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 Em defesa de Hades Postado por Alexandra em http://sofalex.blogspot.com.br/2014/11/em-defesa-de-  hades.html em 16/06/2015 Por Dawn Black, traduzido e adaptado pela Al exandra: Quando recontam o mito da abdução de Perséfone, normalmente o fazem de uma forma limitada e um tanto equivocada. Primeiro, Hades não é o belzebu grego. Ele não governa um inferno. Os helenos não associam a morte com o mal. A morte é algo que acontece com todo mundo, não importa o quão bom ou mau alguém é ou quantas coisas boas ou ruins lhe aconteceram. Segundo, se ele rege o submundo para onde vão os mortos, não é porque ele gosta de gente morta ou porque ele é cruel e sinistro. Ele ganhou essa função quando Zeus, Poseidon e ele tiraram na sorte quem iria ficar com qual reino (Céu, Mar, Submundo). Ou seja, foi pelo acaso de um sorteio, não propriamente por afinidade. OK, é verdade que os antigos se aproximavam dele com cuidado, evitando  jurar em seu nome e chamando-o por apelidos para não atrair sua atenção, porque ninguém estava com pressa em morrer. Mas Hades não é a morte (a morte é Thanatos), Hades não mata e nem ordena a morte (isso fariam as Moiras). E, apesar de presidir as punições dos que fizeram algo errado, não é ele quem julga também (os juízes são Minos, Radamantis e Éaco, e algumas pessoas que cometem crimes graves vão direto para o Tárt aro sem passar por eles). Coitado, é como se Hades fosse um gerente que tivesse que lidar com os clientes que lhe culpam pela burocracia que já existia antes de ele assumir o posto. De acordo com muitos relatos, Hades é bastante ‘relax’, ‘de boa’. Um dos seus apelidos é “o hospitaleiro”, afinal é sua função prover hospitalidad e aos mortos, e ele faz isso muito bem. Ele não parece ter um temperamento tão forte quanto o de seus irmãos Poseidon e Zeus, e só se registrou ele ficando bem irritado umas poucas vezes, tipo quando Pirithous tentou sequestrar Perséfone (e está amarrado numa cadeira até hoje) ou quando pessoas interferiam com as práticas funerárias. De fato,

Em Defesa de Hades

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Texto muito interessante refletindo sobre o mito do roubo de Persefone

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  • Em defesa de Hades Postado por Alexandra em http://sofalex.blogspot.com.br/2014/11/em-defesa-de-

    hades.html em 16/06/2015

    Por Dawn Black, traduzido e adaptado pela Alexandra:

    Quando recontam o mito da abduo de Persfone, normalmente o fazem de

    uma forma limitada e um tanto equivocada.

    Primeiro, Hades no o belzebu grego. Ele no governa um inferno. Os helenos

    no associam a morte com o mal. A morte algo que acontece com todo mundo, no

    importa o quo bom ou mau algum ou quantas coisas boas ou ruins lhe aconteceram.

    Segundo, se ele rege o submundo para onde vo os mortos, no porque ele

    gosta de gente morta ou porque ele cruel e sinistro. Ele ganhou essa funo quando

    Zeus, Poseidon e ele tiraram na sorte quem iria ficar com qual reino (Cu, Mar,

    Submundo). Ou seja, foi pelo acaso de um sorteio, no propriamente por afinidade.

    OK, verdade que os antigos se aproximavam dele com cuidado, evitando

    jurar em seu nome e chamando-o por apelidos para no atrair sua ateno, porque

    ningum estava com pressa em morrer. Mas Hades no a morte (a morte

    Thanatos), Hades no mata e nem ordena a morte (isso fariam as Moiras). E, apesar

    de presidir as punies dos que fizeram algo errado, no ele quem julga tambm

    (os juzes so Minos, Radamantis e aco, e algumas pessoas que cometem crimes

    graves vo direto para o Trtaro sem passar por eles).

    Coitado, como se Hades fosse um gerente que tivesse que lidar com os

    clientes que lhe culpam pela burocracia que j existia antes de ele assumir o posto.

    De acordo com muitos relatos, Hades bastante relax, de boa. Um dos seus

    apelidos o hospitaleiro, afinal sua funo prover hospitalidade aos mortos, e

    ele faz isso muito bem. Ele no parece ter um temperamento to forte quanto o de

    seus irmos Poseidon e Zeus, e s se registrou ele ficando bem irritado umas poucas

    vezes, tipo quando Pirithous tentou sequestrar Persfone (e est amarrado numa

    cadeira at hoje) ou quando pessoas interferiam com as prticas funerrias. De fato,

  • na maioria das vezes ele parece bastante tranquilo, inclusive aceitando acordos de

    trocar uma alma pela outra ou mesmo soltando almas ocasionalmente (tipo Eurdice),

    embora isso nunca tenha funcionado muito bem.

    Ento, temos um cara num emprego difcil, vivendo no escuro e cercado de

    lamentadores, seria legal ter uma companheira por perto. Ele sai procurando e

    escolhe Persfone. E a, senhoras e senhores, a ele pergunta a Zeus se pode. Ele faz

    o que sempre se fez: pediu a permisso do pai da garota. Pode ser que Zeus no seja

    pai de Persfone, mas ele o rei dela e serve. Zeus diz tipo vai fundo e ele diz a

    Hades que este vai ter que agarr-la s escondidas, porque Demter uma daquelas

    mes helicopterizadas; da eles pedem ajuda vov Gaia e ela ajuda de bom grado a

    conseguir que a garota ficasse sozinha para que ele pudesse apanh-la e lev-la para

    casa.

    Vejam isso aconteceu num mundo no qual os homens tomavam esposas como

    esplio de guerra e isso era normal e OK. No mundo celta tambm era normal, os

    homens roubavam o gado do pai e pediam de resgate a filha. No se consultava a

    moa.

    Uma das coisas que d nos nervos na lngua inglesa chamarem o rapto

    (rapt) de Persfone de estupro (rape). No sabemos se isso aconteceu, se ela

    consentiu ou no, o mito no fala o que ele fez com ela quando chegaram na casa dele.

    O mito s fala da abduo, do arrebatamento ("rapture"). Hoje em dia

    arrebatamento est associado com jbilo e movimento para cima, no para baixo,

    mas com certeza isso influncia crist. O arrebatamento tem a ver com ser

    transportada para outro plano, no necessariamente o cu e a felicidade.

    At ento, todas as aes de Hades com relao a Persfone foram

    compreensveis e no foi a pior coisa que poderia ter acontecido a ela. A coisa

    incomum mesmo foi a reao de Demter. OK, no saber onde Persfone estava e se

    preocupar foi perfeitamente normal, o que foi incomum foi sua recusa a aceitar o

    par, mesmo depois de vrios outros deuses lhe encorajarem a aceitar, dizendo que

    Persfone poderia estar em situao pior do que estar com o Governante de Muitos.

  • Pode ser que fosse legal Hades ter falado com ela, mas ele atado ao seu reino, a

    responsabilidade de lidar com Demter no Olimpo de Zeus.

    Ser que Demter teria recusado a oferta de casamento se lhe dessem

    escolha? Provavelmente. No porque Hades fosse um mau partido, mas porque

    Demter um olimpiana e Hades do submundo, o que significaria que ela no iria

    mais ver Persfone com ela morando l com ele. Ela no a poderia visitar, ao menos

    que um psicopompo como Hcate ou Hermes a escoltasse e com a permisso de ambos

    os reis. Apenas alguns deuses tiveram passagem livre para transitar entre os reinos.

    Me e filha no se veriam mais.

    Essa situao difcil de Demter no era incomum no mundo antigo. Os pais

    davam as filhas em casamento, os maridos as levavam para longe e s vezes as mes

    no as viam mais. Era comum naquela cultura. E as mes lamentavam sim. Mas quando

    as mortais lamentavam, isso no resultava na fome mundial.

    Persfone tambm estava infeliz como milhes de garotas ficavam ao serem

    levadas da famlia e arredores para viver com um estranho num lugar estranho. No

    mundo em que vivemos, estamos to mal-acostumados que nosso ultraje um luxo.

    Como muitas, ela teria que se ajustar e talvez aprender a amar seu novo par e sua

    vida e (agora como poucas) aprender a abraar sua impressionante posio como

    Anfitri de Muitos, Rainha do Submundo. Esse um ttulo bem legal.

    E, de acordo com todos os relatos, foi o que ela fez. Hades a traiu algumas

    vezes (ao que sabemos, duas) e ela as transformou em plantas e teve um cacho de

    filhos com pessoas que no eram ele, mas isso me parece um relacionamento divino

    normal. Talvez at mais saudvel do que o de Zeus com Hera e de Afrodite com

    Hefesto (espero no ser atingido por um raio ao dizer isso).

    E quanto a rom? Hades lhe deu antes de ela voltar para Demter, com medo

    de que sua me no deixasse sua esposa legtima voltar para ele. Mas ela sabia que

    isso significaria que ela teria que voltar? E, se sabia, ele a forou? Como se fora

    algum a comer? Pode ser que ela soubesse e quisesse voltar ou pode ser que ela

    fosse to jovem e inocente que no soubesse o que significaria comer no submundo.

    A rom a chave da questo se Persfone se apaixonou ou no por Hades naquele

  • ponto. E esse momento foi um bom tempo depois da abduo. Talvez nunca

    saberemos.

    Claro que estou conjeturando e sei que os deuses no precisam da minha

    defesa, mas os mitos talvez precisem. um desservio quando feminimizamos os

    mitos, dando mais poder a Persfone, transformando Hades num vilo maligno ou num

    cara charmoso e misterioso sedutor, ou ignorando as regras sobre quem pode ou no

    pode cruzar fronteiras. preciso considerar a cultura, porque se ignorarmos ou

    removermos o contexto desses relatos, podemos perder o x da questo. H verdade

    nesses mitos, afinal nos interessamos por eles, mas encontraremos muito menos se

    nossa viso for turvada pelo preconceito moderno ocidental.

    ( Fonte: http://blog.sacredhearth.com/2014/10/in-defense-of-hades-a-closer-look-

    at-the-abduction-of-persephone/ )