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1 EM MARES DE MEMÓRIA: MOBILIZAÇÃO, DEMANDAS E RADICALIZAÇÃO DO MOVIMENTO DOS MARINHEIROS NO CONTEXTO DO GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 ROBERT WAGNER PORTO DA SILVA CASTRO Aluno do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas. [email protected] INTRODUÇÃO O presente trabalho parte de um referencial teórico fundamentado na história política, que sob a perspectiva de René Rémond, não se atem mais ao “estudo do Estado como se ele encontrasse em si mesmo o seu princípio e a sua razão de ser” (RÉMOND, 2003, p.20), mas passa a analisar as origens das decisões políticas, ou em suas palavras, “a raiz das decisões, as estratégias dos grupos de pressão” (RÉMOND, 2003, p.21). Tendo como objetivo contribuir para um melhor entendimento da relação entre antigas demandas sociais básicas inerentes aos subalternos da Marinha do Brasil e a mobilização desses militares em um cenário político tensionado entre os anos de 1962 e 1964, tendo como “pano de fundo” a questão social latente no seio da força naval brasileira. Esta releitura realiza-se a partir da análise de entrevistas e obras memorialísticas de integrantes do movimento dos marinheiros, além de matérias publicadas na mídia impressa do período em questão e da crítica a trabalhos historiográficos de autores que, em alguma medida, abordam o movimento dos marinheiros como acontecimento preponderante para a instauração de uma ditadura civil-militar no país em abril de 1964. Através da memória reavivada foram analisadas as condições de trabalho e as relações sociais internas aos quadros da Marinha, bem como as demandas dos subalternos oriundas do déficit destas relações com a oficialidade e a maneira como estas demandas contribuíram para conferir coesão a essa categoria específica de militares. Num primeiro instante, procuro problematizar os referenciais teórico-conceituais de “memória” e “identidade” no contexto da atividade marinheira e das fronteiras deste último referencial, no que concerne aos subalternos da Marinha enquanto membros de um

EM MARES DE MEMÓRIA: MOBILIZAÇÃO, DEMANDAS E … · tipos de fontes com as quais o histo riador trabalha , por força de seu ofício, a memória é dotada de determinado grau de

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EM MARES DE MEMÓRIA: MOBILIZAÇÃO, DEMANDAS E RADICALIZAÇÃO DO

MOVIMENTO DOS MARINHEIROS NO CONTEXTO DO GOLPE CIVIL-MILITAR DE

1964

ROBERT WAGNER PORTO DA SILVA CASTRO

Aluno do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal de Pelotas.

[email protected]

INTRODUÇÃO

O presente trabalho parte de um referencial teórico fundamentado na história política,

que sob a perspectiva de René Rémond, não se atem mais ao “estudo do Estado como se ele

encontrasse em si mesmo o seu princípio e a sua razão de ser” (RÉMOND, 2003, p.20),

mas passa a analisar as origens das decisões políticas, ou em suas palavras, “a raiz das

decisões, as estratégias dos grupos de pressão” (RÉMOND, 2003, p.21). Tendo como

objetivo contribuir para um melhor entendimento da relação entre antigas demandas sociais

básicas inerentes aos subalternos da Marinha do Brasil e a mobilização desses militares em

um cenário político tensionado entre os anos de 1962 e 1964, tendo como “pano de fundo”

a questão social latente no seio da força naval brasileira. Esta releitura realiza-se a partir da

análise de entrevistas e obras memorialísticas de integrantes do movimento dos

marinheiros, além de matérias publicadas na mídia impressa do período em questão e da

crítica a trabalhos historiográficos de autores que, em alguma medida, abordam o

movimento dos marinheiros como acontecimento preponderante para a instauração de uma

ditadura civil-militar no país em abril de 1964. Através da memória reavivada foram

analisadas as condições de trabalho e as relações sociais internas aos quadros da Marinha,

bem como as demandas dos subalternos oriundas do déficit destas relações com a

oficialidade e a maneira como estas demandas contribuíram para conferir coesão a essa

categoria específica de militares.

Num primeiro instante, procuro problematizar os referenciais teórico-conceituais de

“memória” e “identidade” no contexto da atividade marinheira e das fronteiras deste último

referencial, no que concerne aos subalternos da Marinha enquanto membros de um

2

segmento específico dentro de uma classe – os militares. Em seguida, busco utilizar a

memória reavivada enquanto instrumento para a reconstrução da trajetória deste segmento

de militares durante o recorte temporal em questão e estabelecer um diálogo desse

referencial com a história política. Por fim, procuro demonstrar a relação entre a resposta da

alta administração naval às reivindicações dos marinheiros e a radicalização de seu

movimento em apoio ao programa reformista do então presidente João Goulart.

1. MEMÓRIA & IDENTIDADE EM EVIDÊNCIA.

Ao propagar a ideia dos “vencedores” em relação aos acontecimentos passados, a

“memória oficial” relega ao esquecimento histórico, segmentos como o dos marinheiros,

suas demandas e atuação na cena política – seja internamente à Marinha, seja na cena

política nacional como em 1964. Corroborando a ideia de Michael Pollak, ao analisarmos

as “memórias subterrâneas das minorias, dos marginalizados e dos excluídos” (POLLAK,

1989, p.4), torna-se possível compreender de modo mais aprofundado como determinados

acontecimentos políticos ocorreram. E que só se efetivaram a partir de pressões sociais, que

se constituem então na “raiz das decisões” (RÉMOND, 2003, p.21). Nesta medida, de

acordo com Thompson1 “ao propor que se adotasse a perspectiva dos vencidos, a história

vista de baixo, traz-se ao centro da cena a experiência de grupos e camadas sociais antes

ignorados” (LUCA, 2011, p. 113).

A memória, como instrumento de reconstrução da trajetória de determinados grupos

não abarcados pela “memória oficial”, está intimamente relacionada com a ideia de cultura

política – inserida no contexto da renovação da história política com René Rémond. Onde

esta consiste em “um fenômeno de múltiplos parâmetros, que não leva a uma explicação

unívoca, mas permite adaptar-se à complexidade dos comportamentos humanos”

(BERSTEIN, 1998, p. 350).

1 In, LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi

(Org.). Fontes Históricas. São Paulo, Contexto, 2011, p. 113.

3

O trabalho de releitura da trajetória do movimento dos marinheiros, fundamentado em

entrevistas e obras memorialísticas de integrantes do movimento dos marinheiros, a que se

propõe esta análise, não pode ser realizado em detrimento da análise crítica de outros tipos

de fontes, neste caso, obras historiográficas que de alguma maneira abordam o referido

tema e matérias publicadas na mídia impressa do período em questão. Pois, como os demais

tipos de fontes com as quais o historiador trabalha, por força de seu ofício, a memória é

dotada de determinado grau de subjetividade, mas com a característica de ser “volátil” de

acordo com as demandas do presente, ou nas palavras de Pierre Laborie “ela se constrói sob

influência dos códigos e das preocupações do presente, por vezes mesmo em função dos

fins do presente” (LABORIE, 2009, p. 80). Esta característica da memória não diminui sua

relevância enquanto fonte a ser trabalhada pelos historiadores. Mas no contexto de um

passado “rejeitado” por grande parte da sociedade brasileira, como o golpe civil-militar em

1964, devemos tomar o cuidado de não sobrepor a memória à história, entre as quais, no

entender de Denise Rollemberg, existe um “abismo aprofundado com o tempo [...] num

confronto em que os personagens e os testemunhos assumiram a missão de guardiães da

memória, arautos da história” (ROLLEMBERG, 2009, p. 378). Cabe ao historiador analisar

a memória enquanto fonte, ciente de que, sobretudo nas “batalhas de memória”, está,

“imersa no presente, preocupada com o futuro, quando suscitada, é sempre seletiva.

Provocada, revela, mas também silencia.” (REIS, 2004, p. 29).

A memória não se reduz ao simples ato de recordar. Para Maurice Halbwachs (2003,

p. 39), a memória seria um processo coletivo fruto da interação individual com os outros (o

fenômeno social), possibilitando, assim, que as pessoas se lembrem de determinados fatos.

Deste modo, cria-se a concepção de uma memória coletiva que abrangeria toda uma

influência da cultura social na sua formação. O posicionamento de Halbwachs acerca da

“memória coletiva” vai de encontro à afirmação de Joel Candau, que considera:

[...] impossível admitir que essa expressão designe uma faculdade, pois, a única

faculdade de memória realmente atestada é a memória individual [...] a expressão

4

“memória coletiva” é uma representação, uma metamemória, quer dizer, um

enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória

supostamente comum a todos os membros desse grupo. (CANDAU, 2014, p.24)

Faz sentido analisar o fato de que os indivíduos dialogam entre si, criando-se assim

uma linha tênue entre diferença e identidade, formadores de memórias que são reflexos do

fenômeno social. Na medida em que “podemos dizer que a identidade é uma construção,

um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo [...] que tem

estreitas conexões com relações de poder” (SILVA, 2014, p. 97), onde podemos

compreender a construção de uma identidade própria dos subalternos da Marinha. Não

somente a partir de suas atividades profissionais, mas também da relação paradoxal

estabelecida com a oficialidade. Segundo Kathryn Woodward (2014, p. 13), a identidade de

um determinado grupo é relacional, ou seja, constitui-se a partir da relação e da diferença

relativa a outras identidades e também se vincula a aspectos e condições sociais e materiais.

Mesmo que inerente a um determinado segmento interno a uma classe, como no caso dos

marinheiros analisados no presente trabalho. Mesmo não sendo uma faculdade mental, a

memória coletiva – enquanto fenômeno de interação social dentro de um grupo ou

segmento social onde lembranças individuais convergem em diversos pontos constituindo

uma base comum – é um elemento fundamental para a construção ou (re) afirmação de uma

identidade e o estabelecimento de suas fronteiras.

2. A ASSOCIAÇÃO E SUA GÊNESE.

A rebelião dos militares da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil

(AMFNB), ocorrida de fato entre os dias 25 e 27 de março de 1964, foi o clímax de um

movimento iniciado com a fundação da supramencionada associação em março de 1962

com sede na cidade do Rio de Janeiro. Inicialmente, com a finalidade de assistir aos

subalternos da força naval em suas demandas sociais, especialmente aqueles oriundos de

outras cidades do país, a partir de 1963, com a eleição de sua segunda diretoria, a

5

associação fuzinauta2 passou a contestar a situação social do grupo que representava,

cobrando melhorias salariais e o acesso a benefícios sociais, além “direitos políticos e

civis” 3. A característica peculiar deste movimento se apresenta no fato de que fora

constituído essencialmente por militares de baixa graduação, isto é, cabos, marinheiros e

soldados. Elementos oriundos das camadas de base da sociedade brasileira. Este aspecto,

associado à efervescência política do período, propiciou um maior destaque para as ações

reivindicatórias da associação junto à alta administração naval.

Os oficiais da Marinha, oriundos em sua maioria das camadas mais abastadas da

sociedade brasileira, preservavam os valores e costumes de uma sociedade senhorial,

fundamentada em relações de preconceito e servilismo. Já os subalternos, recrutados entre

as camadas menos favorecidas e que até o início do séc. XX ainda eram punidos com

castigos corporais, eram submetidos a uma relação de caráter servil e paternalista com a

oficialidade naval e marginalizados no meio social. Situação essa que denotava um conflito

iminente, no entendimento do ex-marinheiro Antônio Duarte, “um conflito originado na

estrutura envelhecida da Marinha, como se a instituição tivesse o direito de fazer do

soldado uma propriedade semelhante a que se tinha na época da escravidão” (DUARTE,

2005, p.93).

O relato do “entrevistado um4” contribui para uma melhor compreensão da condição

marginal em que se encontravam os marinheiros no contexto social do período:

2 Termo utilizado na Marinha para fazer referência aos fuzileiros navais (“fuzi”) e marinheiros (“nautas”)

juntos. 3 Como consta no discurso do marinheiro de 1ª classe José Anselmo dos Santos, lido no dia 25/03/1964 no

Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara. Cf. Biblioteca Nacional – O Globo, 28 mar. 1964, p.6. 4 Entrevista realizada pelo autor, em 21 de novembro de 2013, na qual o doravante denominado “entrevistado

um” solicitou o anonimato. Trata-se de um ex-marinheiro que ingressou na força naval em dezembro de 1959,

na Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina. E que em dezembro de 1960 foi enviado para o Rio

de Janeiro, a fim de servir no navio “Cruzador Barroso”. Esteve presente na assembleia da AMFNB realizada

em março de 1964 no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, sendo expulso da Marinha neste mesmo

ano e condenado a cinco anos e três meses de prisão sob a alegação de crime de subversão, dos quais cumpriu

dois anos na cadeia de Pelotas, segundo ele.

6

[...] Por que quando nós chegamos no Rio, marinheiro era marginalizado. Por

quê? O cara com o que ganhava como é que ia procurar mulher? Não tinha

condições! O que que o cara fazia? O cara vivia ali, na Central do Brasil [...] ali

tava sempre cheio de vagabunda. E o marinheiro ia ir aonde? Se metia sempre no

meio das vagabunda ali entendeu!? O nosso meio social; de quem não era de lá,

de quem não tinha família lá; era tá no meio das vagabunda ali. E até por isso, as

famílias não aceitava marinheiro. Deus o livre que uma moça fosse namorar um

marinheiro! De jeito nenhum!

A doutrina de reafirmação de uma relação senhorial de dominação, se sintetiza na

seguinte frase dirigida aos subalternos por seus comandantes: “Você não é ninguém, a

Marinha o retirou da barriga da miséria para transformá-lo em um ser civilizado”

(DUARTE, 2005, p.93). Uma doutrina que visava à manutenção do status quo então

instaurado na Marinha do Brasil, mas que mostrava seu viés elitista quando ensinada nos

cursos de formação de oficiais, e seu caráter de submissão e desconstrução da dignidade do

marinheiro durante o curso de formação destes. Exaltando as suas origens sociais, as

antigas práticas de recrutamento, ou seja, seus “antepassados”, os benefícios

proporcionados pela Marinha (basicamente comida, teto e salário) e associava a sua

imagem a do elemento relacionado à malandragem, vícios, brigas, farras e ao pouco

desenvolvimento intelectual. Deste modo, se construía uma representação em relação aos

marinheiros, que ultrapassava os limites da força naval, como exposto pelo historiador

Flávio Rodrigues:

Sua imagem, aos olhos dos paisanos [...] correspondia em geral ao

estereótipo do indivíduo desgarrado e de moralidade duvidosa, frequentador de

prostíbulos e violento, toxicômano e alcoólatra: [...] por vezes, as mulheres

mudassem de lugar nos ônibus, quando um marinheiro sentava-se ao seu lado [...]

para não serem “confundidas”. (RODRIGUES, 2004, p.60)

Em consonância com o contexto político-social da época, os marinheiros

vislumbraram na possibilidade de criar uma associação – a exemplo dos suboficiais e

sargentos e dos taifeiros da Marinha – uma forma de tentar unir forças em um auxílio

mútuo, e posteriormente, buscar mudanças em suas realidades dentro da força. Porém, a

7

AMFNB inseriu-se no cenário político nacional no ano de 1963 como uma associação que

buscava melhorias para aqueles a quem representava. Na negação em reconhecer a

pertinência das demandas dos marinheiros e em estabelecer um canal de diálogo com estes,

o almirantado contribuiu sobremaneira para a radicalização do movimento dos subalternos.

Nas palavras de Avelino Capitani, ex-marinheiro e integrante da AMFNB: “A persistente

obstinação do Conselho do Almirantado em não reconhecer e condenar a Associação levou-

nos a trilhar caminhos cada vez mais políticos e mais combativos na solução das

reivindicações.” (CAPITANI, 1997, p. 25).

3. A MOBILIZAÇÃO E A GUINADA À “BOMBORDO5”.

Com a ascensão do grupo mais combativo à direção da AMFNB em abril de 1963, o

distanciamento entre a alta administração naval e o movimento dos marinheiros tendeu a

aumentar. Pois, aqueles exigiam que a associação alterasse seu estatuto, dele escoimando

tudo que não dizia respeito a problemas de natureza cívica, cultural, beneficente e

desportiva para que assim pudesse ser reconhecida pela Marinha. A diretoria da AMFNB

por sua vez, rejeitava este discurso e cobrava através da arena política, em assembleias e

manifestações públicas em atos políticos, a reformulação do Regulamento Disciplinar da

Marinha (RDM), melhores salários e condições de serviço, o reconhecimento de sua

associação pela força naval, a estabilidade na carreira, direito ao voto e ao casamento, além

de poder usar trajes civis nos horários de folga. Em seu relato a cerca da assembleia

ocorrida em março de 1964 no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, o

“entrevistado um6” denota bem esse caráter reivindicatório da associação e algumas

demandas dos marinheiros:

[...] a associação ia reivindicar aumento e que ia reivindicar também pro

marinheiro poder casar e mais uma série de reivindicação que eles iam fazer. Bah

aquilo tudo ia ser uma boa pra nós, e aí agente foi se entusiasmando e ficando.

5 “Bombordo” é a lateral esquerda de uma embarcação, quando observada da “popa” (parte traseira) para a

“proa” (parte dianteira). 6 Entrevista realizada pelo autor, em 21 de novembro de 2013.

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Alguns historiadores que trabalham com o recorte temporal em questão, abordam o

movimento dos marinheiros sob a ótica da quebra de hierarquia e da indisciplina em

detrimento das suas demandas sociais. Caracterizando a mobilização desses militares como

um atentado contra os “fundamentos da disciplina e da hierarquia como condições

indispensáveis para o exercício de comando de quaisquer forças militares regulares” (REIS,

2004, p.38). Este tipo de abordagem historiográfica do movimento dos marinheiros entre os

anos de 1962 e 1964 deixa de considerar o social enquanto provocador de mudanças

políticas, de inseri-lo no contexto do golpe civil-militar enquanto uma das “estruturas

básicas sobre as quais a política se assentava” (JANOTTI, 2011, p.11). Na medida em que

o movimento dos marinheiros, em especial a assembleia da associação em 25 de março de

1964, é interpretado por muitos historiadores como fator precipitador dos acontecimentos

do dia 31 de março do mesmo ano.

O historiador Thomas Skidmore apresenta uma abordagem historiográfica acerca do

movimento dos marinheiros, que além de também ressaltar a questão da indisciplina em

detrimento das demandas sociais inerentes ao segmento, como na seguinte colocação do

autor: “O que finalmente galvanizou a ação dos moderados foi o flagrante desafio de Jango

ao princípio da disciplina militar durante o fim da Semana Santa de 27 a 29 de março”

(SKIDMORE, 2003, p. 358). Skidmore caracteriza a AMFNB, como “um sindicato que

exigiria melhoria de condições de trabalho a seus comandantes […] que havia ganho o

apoio dos marinheiros liderando suas revindicações de melhor soldo e o direito de se

casarem e de usar trajes civis quando fora do serviço” (SKIDMORE, 2003, p.358). Ele

ressalta a espontaneidade do movimento dos subalternos da Marinha, mas desconsidera em

seus membros, a capacidade de conscientização política no que tange às suas demandas

específicas e à realidade política do período em questão, ao afirmar que: “sua liderança

9

estava ligada diretamente aos esquerdistas radicais que se haviam entendido com o

presidente nos moldes da nova estratégia de 13 de março7” (SKIDMORE, 2003, p.358).·.

A alta oficialidade, adepta em sua maioria de um discurso anticomunista, não

reconhecia a justeza das reivindicações de seus subalternos. Os “rótulos” de comunistas,

agitadores, indisciplinados e subversivos, atribuídos ao movimento e a seus integrantes,

também contribuíram para uma acentuada radicalização dos mesmos. Distanciando-se do

almirantado e travando uma “batalha” pública no cenário político nacional ao apoiar as

propostas reformistas do presidente João Goulart e tratar abertamente de questões políticas

de amplitude nacional.

No fluxo do contexto político-social da década de 1960 e diante da negação da alta

administração naval em reconhecer as demandas de seus subalternos. Os marinheiros

opuseram-se à grande maioria da oficialidade naval, inclusive ao Conselho do Almirantado

e ao Clube Naval, em busca do atendimento as suas demandas. A mobilização política e a

manifestação pública dos marinheiros entre os anos de 1962 e 1964 evidenciava a

existência de um conflito social acentuado na Marinha e também desfazia a ideia de

unidade da classe militar junto à opinião pública. A divergência em termos de

posicionamento político no interior da cúpula militar, por mais radical que fosse – como no

episódio da sucessão de Jânio Quadros na Presidência da República em 1961 – não era

vista como subversão ou quebra da hierarquia e da disciplina. Mas quando esta divergência

partia dos subalternos, mesmo que restrita a questões sociais tornava-se ameaçadora ao

status quo de dominação na força naval.

A crescente projeção do movimento dos marinheiros, acompanhada do acirramento da

crise com o alto comando da Marinha, culminou em uma série de prisões administrativas

iniciada em setembro de 1963, principalmente dos dirigentes da associação, além de

transferências de militares envolvidos com o movimento para quartéis mais isolados e até

mesmo para outros estados, tudo com o objetivo de desarticular as ações da AMFNB. Esta

7 Em referência ao comício realizado por João Goulart em 13 de março de 1964 na Central do Brasil, no

Estado da Guanabara.

10

repressão é melhor ilustrada no relato de Paulo Fernando da Costa8, ex-marinheiro e sócio

da AMFNB em 1964:

[...] a associação foi se agigantando demais, entendeu? E aí a estrutura militar

começou a pressionar, entendeu? Queria que ela acabasse! Prendiam, prendiam

os diretores e depois soltavam. O pessoal a bordo era perseguido, quem era da

associação, dirigentes ou quem recolhia as mensalidades, eram repreendidos ou

presos. Porque justamente você reivindicava coisas pro bem estar. E eles era

contra, achavam que a administração naval é que teria que fazer isso aí. Não os

marinheiros. [...]

De todas as maneiras empregadas para pressionar os marinheiros, eram as prisões

administrativas as que mais os ameaçavam, não pelo aspecto do cárcere propriamente dito,

mas pelas consequências que este ato administrativo poderia provocar na carreira daquele

que fora punido; como por exemplo, a própria expulsão da força. Este instrumento passou a

ser amplamente utilizado para coagir os membros da associação e aqueles que tivessem

algum tipo de envolvimento com os mesmos.

Aproveitando do seu crescente destaque no cenário político nacional e sua

influência em meio aos grupos sociais de base, muito ligados ao apoio ao próprio

presidente Goulart. A AMFNB passou a buscar interlocutores diretamente no governo

federal, como o ministro do trabalho Amauri Silva e o chefe da Casa Civil da Presidência

da República o Sr. Darcy Ribeiro9. Estavam tomadas as posições, e a AMFNB passara a

crer que as mudanças que desejava na Marinha não poderiam ser realizadas através do

diálogo com as autoridades navais, devido ao reacionarismo e a soberba destas. Mas

poderiam ser implementadas pelo próprio presidente da República se o seu projeto

reformista para o país fosse adiante. Assim, os marinheiros optaram por permanecer fiéis ao

governo e à Constituição.

No dia 24 de março de 1964 o ministro da Marinha, almirante Sylvio Motta

determinou a prisão de 12 diretores da AMFNB pela sua participação em debates sobre as

8 Entrevista realizada pelo autor, em 02 de novembro de 2013. 9 Algumas reuniões eram realizadas em seu apartamento no Rio de Janeiro. Cf. RODRIGUES, Flávio Luís.

Vozes do mar, o movimento dos marinheiros e o golpe de 1964. São Paulo: Cortez, 2004, p. 96.

11

reformas de base durante reunião no Sindicato dos Bancários e no dia seguinte determinou

a prisão de mais 40 marinheiros. Este fato não impediu a realização da assembleia do dia 25

de março em comemoração aos dois anos da AMFNB, porém mudou seu caráter, o que

seria um ato festivo, transformou-se em uma assembleia permanente diante das notícias das

ordens de prisão, da divulgação de que “os militares que vão cumprir a terceira pena

disciplinar serão licenciados10

após a conclusão do castigo, conforme preceitua o

Regulamento Disciplinar” 11

. Diante dos acontecimentos e da possibilidade de punições em

massa caso os marinheiros retornassem aos seus navios ou quartéis, estes iniciaram uma

vigília no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro e declararam-se em assembleia

permanente até que suas reivindicações fossem aceitas, começava uma “queda de braço”

entre o ministério da Marinha e a associação.

O desfecho deste episódio no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com a

libertação dos marinheiros, foi amplamente explorada pela mídia carioca, no sentido de

relacionar a figura do presidente à indisciplina e a desordem promovidas por amotinados12

da Marinha, como divulgou o jornal “O Globo”:

Cumprida a promessa do Presidente da República obtida com a mediação do

CGT e da qual estava ciente o novo ministro da Marinha, almirante reformado,

Paulo Mário da Cunha Rodrigues. Os amotinados da Associação dos Marinheiros

e Fuzileiros Navais do Brasil que haviam sido removidos do Sindicato dos

Metalúrgicos, onde começou o movimento, para o Batalhão de Guardas do

Exército, deste foram libertados e começaram a sair às 17h40min. E deram início

logo a uma passeata que se deteve na estátua de Marcílio Dias na Praça Onze,

dirigindo-se depois até a Candelária de onde após ovacionarem os almirantes

Paulo Mário, novo titular da Marinha, Araújo Suzano, novo chefe do Estado

Maior da Armada e Cândido Aragão, que assumiu o comando geral dos fuzileiros

navais, dirigiram-se para a sede de sua Associação.13

A questão da “quebra da hierarquia e da disciplina14

” fora amplamente explorada

pelos golpistas em detrimento das reivindicações de um movimento de base e cunho

eminentemente social, interno à Marinha do Brasil. A radicalização dos marinheiros -

10 Afastados temporariamente. 11 Biblioteca Nacional - Diário de Notícias, 25 mar. 1964, p.3. 12 Grifo do autor. 13 Biblioteca Nacional – O Globo, 28 mar. 1964, capa. 14 Grifo do autor.

12

evidenciada na assembleia realizada no Sindicato dos Metalúrgicos - diante das negativas

da alta administração naval em estabelecer diálogo acerca de suas demandas, foi

preponderante para a precipitação de um golpe civil militar que já se desenhava.

CONCLUSÃO

Observar a participação da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil

dentro do contexto histórico dos anos de 1962-1964, bem como de seus membros enquanto

militares subalternos da Marinha, somente como um movimento de indisciplina e

subversão da hierarquia. No qual marinheiros foram conduzidos “pelas esquerdas” a

radicalizar seu movimento e contrapor-se às determinações do almirantado. É desmerecer e

depreciar tanto intelectualmente quanto politicamente aqueles homens que se mobilizaram

em torno de uma associação atuando como membros, colaboradores ou apenas

simpatizantes desta. Pois, essa síntese do movimento dos marinheiros em 1964, muito

utilizada na época pelos oficiais golpistas, deixa de considerar naqueles marinheiros de

origem pobre, membros das classes menos favorecidas da sociedade brasileira, a

capacidade de entender a realidade a qual estavam submetidos, o contexto político do país à

época e de superar as inúmeras dificuldades que lhes eram impostas tanto pelos seus

superiores quanto pela própria sociedade que lhes tinha como marginais. Buscando através

da educação, da politização e da mobilização de seus pares, as mudanças que acreditavam

necessárias para que pudessem ter uma vida mais digna na Marinha do Brasil.

O movimento dos marinheiros em 1964 fora uma resposta dos próprios subalternos às

dificuldades que enfrentavam na força naval, diante da indiferença e até mesmo da

contrariedade de seus superiores em buscar soluções para suas antigas demandas, e assim,

mudar a realidade destes militares diminuindo o histórico “abismo social” existente na

Armada, que refletia de forma clara e sem eufemismos a situação de desigualdade que

vigorava na sociedade brasileira em meados do século passado.

A questão social foi, desde sempre, o principal problema, de cunho humano, nas

forças armadas brasileiras, em especial na Marinha, pelas razões já expostas durante este

13

trabalho. Assim, a AMFNB foi à maneira encontrada pelos escalões inferiores da Marinha,

para buscar melhorias junto à alta administração naval.

O processo de radicalização do movimento dos marinheiros acompanhou o grau de

inflexão do almirantado em dialogar com seus representantes a fim de reconhecer suas

demandas de ordem social. Acompanhou também, o processo de acentuada politização de

seus membros, o contexto político interno e externo, e, sobretudo, as perseguições aos

integrantes da associação. Desse modo, é possível observar que os desdobramentos da

mobilização dos marinheiros a partir de 1962, não foram conduzidos pela vontade dos

governantes ou dos comandantes navais, nem pelas ações e posicionamentos das lideranças

da AMFNB, mas constituem parte integrante do processo de construção da identidade deste

segmento social específico.

Enfim, as demandas sociais de um grupo submetido a séculos de preconceito,

violência e cerceamento de direitos, em uma estrutura monarquista e reacionária. Levaram-

nos a compreender as suas origens e o cenário do qual eram parte. Cientes de sua força

buscaram junto aos altos escalões do governo brasileiro as mudanças necessárias para que

pudessem viver com dignidade. Por esta razão foram taxados de subversivos e

indisciplinados, foram perseguidos e presos, alguns mortos, e seu movimento, bem como

suas demandas, foram submetidas a um relativo ostracismo histórico e renegada a sua

“classe” a capacidade de reflexão política, por se tratar de um “bando de marujos”, no

entender de boa parte da sociedade, incapazes de tal reflexão.

14

FONTES

Fontes Orais

“Entrevistado um” (ex-marinheiro) - Entrevista realizada pelo autor, em 21 de

novembro de 2013.

Paulo Fernando da Costa (ex-marinheiro) - Entrevista realizada pelo autor, em 02 de

novembro de 2013.

Livros de Memória

CAPITANI, Avelino Biden. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e

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Jornais e Periódicos

- Jornal o Globo

- Jornal do Brasil

- Jornal Última Hora

- Jornal A Tribuna do Mar

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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