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ENSAIO Tentarei esboçar aqui uma possível dialogação entre Filosofia e Literatura que se desdobra na Poesia do heterônimo Ricardo Reis de Fernando Pessoa. Inicialmente faço um apanhado geral de Ricardo Reis para depois contrastá-lo com a doutrina de Epicuro. O Clássico Reis Reis é o heterônimo que encarna, no contexto da poesia de Pessoa, uma espécie de reexperimentação de pensamento e da prática estética-poética da Antigüidade Greco-Latina. Nascido na Porte, a 1° de setembro de 1887, foi educado num colégio de jesuítas, onde teve contato com a língua latina e com a cultura clássica. Por isto, foi, segundo seu criador, um latinista por educação alheia e um semi-helenista por educação própria. Formado em medicina, sem nunca ter realmente exercido a profissão, viu-se obrigado, por força de suas idéias monarquistas, a exilar-se durante certo tempo no Brasil, depois da proclamação da República em Portugal. Leitor apaixonado de Horácio, poeta latino do século I A.C., é o autor de odes, na sua maioria curtas, inspiradas temática e formalmente na poesia horaciana. Identificado, como aliás todos os demais heterônimos, com os postulados poético-sensacionistas de Pessoa, Reis, como antípoda que é de Caeiro, dedica-se a vivenciar poeticamente um “sensacionismo” de caráter “reflexivo”, tendo por base o que chama de “pensamento elevado” ou “pensamento alto”, ou seja, o pensamento equilibrado, onde a emoção comparece, mas inteiramente sujeita ao controle da razão, e voltado apenas para a articulação de idéias e questões que dizem respeito aos grandes temas e inquietações do homem: os deuses, o destino, o próprio homem, o sentido da vida, a beleza, a

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Tentarei esboçar aqui uma possível dialogação entre Filosofia e Literatura que se desdobra na Poesia do heterônimo Ricardo Reis de Fernando Pessoa. Inicialmente faço um apanhado geral de Ricardo Reis para depois contrastá-lo com a doutrina de Epicuro.

O Clássico Reis

Reis é o heterônimo que encarna, no contexto da poesia de Pessoa, uma espécie de reexperimentação de pensamento e da prática estética-poética da Antigüidade Greco-Latina.

Nascido na Porte, a 1° de setembro de 1887, foi educado num colégio de jesuítas, onde teve contato com a língua latina e com a cultura clássica. Por isto, foi, segundo seu criador, um latinista por educação alheia e um semi-helenista por educação própria. Formado em medicina, sem nunca ter realmente exercido a profissão, viu-se obrigado, por força de suas idéias monarquistas, a exilar-se durante certo tempo no Brasil, depois da proclamação da República em Portugal.

Leitor apaixonado de Horácio, poeta latino do século I A.C., é o autor de odes, na sua maioria curtas, inspiradas temática e formalmente na poesia horaciana. Identificado, como aliás todos os demais heterônimos, com os postulados poético-sensacionistas de Pessoa, Reis, como antípoda que é de Caeiro, dedica-se a vivenciar poeticamente um “sensacionismo” de caráter “reflexivo”, tendo por base o que chama de “pensamento elevado” ou “pensamento alto”, ou seja, o pensamento equilibrado, onde a emoção comparece, mas inteiramente sujeita ao controle da razão, e voltado apenas para a articulação de idéias e questões que dizem respeito aos grandes temas e inquietações do homem: os deuses, o destino, o próprio homem, o sentido da vida, a beleza, a virtude, o tempo, a arte, a morte, a alegria, o prazer, a dor etc. E tudo isto temperado por inflexões filosóficas de caráter estóico-epicurista, em versos rítmica e metricamente regulares e num português erudito e latinado.

As odes de Reis procuram ser, assim, a tradução em linguagem poética, naturalmente nobre, de temas nobres e elevados, oriundos da análise equilibrada e racional das sensações, com o objetivo de extrair delas lições e conceitos universais de cunho ético-estético. Representante, em pleno século XX, da poética clássica e do paganismo, além de adepto do “pensamento alto” e defensor de teses estóico-epicuristas, Reis prega a indiferença solene do homem diante do arbítrio e do poder dos deuses, diante do destino inelutável e da morte como termo definitivo de toda vida. Inerme em face de tais forças, cabe ao homem apenas a sabedoria de viver a vida de forma equilibrada e serena, “sem desassossegos grandes” e também sem grandes alegrias, já que tudo passa e tudo perde o sentido diante da morte inevitável. O que importa é somente a experiência desapegada do

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momento presente e de pequenos prazeres, que não deixam traço nem saudade e, portanto, não são capazes de provocar nenhum abalo ou desvio descentralizador:

Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra

De árvores alheias.1

Viver a vida com a nobre e aristocrática lucidez dos “grandes indiferentes”, que sabem que tudo tem seu fim e de que tudo já está irremediavelmente traçado, eis o lema que perpassa toda a poesia de Ricardo Reis:

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre, E deseja o destino que deseja;

Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispõe, e ali ficamos;

que a Sorte nos faz postos Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube.

Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado.2

O EPICURISTA REIS

A poesia de Ricardo Reis mantêm um intenso diálogo com a filosofia. Este fato se evidencia nos poemas que expressam de maneira clara muito da doutrina epicurista. Escola Filosófica que se originou na Grécia, logo após o período Clássico, o Epicurismo tem como uma de suas reflexões centrais a busca pelo autodomínio das sensações através da razão. Epicuro defende a idéia de que todo conhecimento se inicia com a sensação e que para se tornar conhecimento deve passar pelo comando e complementação da razão:

“A sensação deve servir-nos para proceder, raciocinando, à indução de verdades que não são acessíveis aos sentidos.”3

Em outras palavras, a razão não nega os sentidos, mas tem uma função reguladora

que permite dar o devido tratamento às sensações. A partir desse pressuposto, Epicuro propõe uma concepção materialista da realidade, fundada na natureza, mas que regulada pela razão procura libertar o homem dos temores gerados pelas sensações que o impediram de encontrar a felicidade: o medo dos deuses, o temor da morte, a ânsia incontrolada dos prazeres e o incontido pesar sobre as dores. Toda a poesia de Ricardo Reis aborda esses temas, estabelecendo, desta forma, um diálogo inevitável entre literatura e filosofia, no qual o poeta confirma o pensamento epicurista. Selecionamos alguns poemas de Ricardo Reis para ilustrar essas proximidade

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Como um epicurista legitimo, Reis nega o temor aos deuses:

Só esta liberdade nos concedem Os deuses: submetermo-nos

Ao seu domínio por vontade nossa. Mais vale assim fazermos

Porque só na ilusão da liberdade A liberdade existe.

Nem outro jeito os deuses, sobre quem O eterno fado pesa,

Usam para seu calmo e possuído Convencimento antigo

De que é divina e livre a sua vida.Nós, imitando os deuses,

Tão pouco livres como eles no Olimpo, Como quem pela areia

Ergue castelos para encher os olhos, Ergamos nossa vida

E os deuses saberão agradecer-nos O sermos tão como eles.4

Outra preocupação sua é o destino e o tratamento dado se identifica com a doutrina de Epicuro:

No breve número de doze meses O ano passa, e breves são os anos,

Poucos a vida dura. Que são doze ou sessenta na floresta Dos números, e quanto pouco falta

Para o fim do futuro! Dois terços já, tão rápido, do curso

Que me é imposto correr descendo, passo. Apresso, e breve acabo.

Dado em declive deixo, e invito apresso O moribundo passo.5

O Repouso do Prazer é outro tema trabalhado por Reis:

Não só quem nos odeia ou nos inveja Nos limita e oprime; quem nos ama

Não menos nos limita. Que os deuses me concedam que, despido

De afetos, tenha a fria liberdade Dos píncaros sem nada.

Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada

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É livre; quem não tem, e não deseja, Homem, é igual aos deuses.6

A limitação da dor:

Quanta tristeza e amargura afoga Em confusão a 'streita vida!

Quanto Infortúnio mesquinho Nos oprime supremo!

Feliz ou o bruto que nos verdes campos Pasce, para si mesmo anônimo, e entra

Na morte como em casa; Ou o sábio que, perdido

Na ciência, a fútil vida austera eleva Além da nossa, como o fumo que ergue

Braços que se desfazem A um céu inexistente.7

Não nos resta melhor forma para concluir nossa tentativa de aproximar Reis do Epicurismo do que as próprias palavras de Fernando Pessoa:

Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis. Tentaremos sintetizá-la.Cada cal de nós_ opina o Poeta_ deve viver a sua própria vida isolando-se dos outros e procurando apenas,

dentro de uma sobriedade individualista, o que lhe agrada e lhe apraz. Não deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas. Buscando o mínimo de do, o homem deve procurar sobretudo a calma, a tranqüilidade, abstendo-se do esforço e da atividade útil.8

1 Pessoa, Fernando: Obra Poética. Rio de Janeiro 1986. Editora Nova Aguilar. Terceira Edição2 idem3 idem4 idem5 idem6 idem7 idem8 Pessoa, Fernando: Prosa Completa. Rio de Janeiro,1974. Editora Nova Aguilar. Primeira Edição.