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Ensaio sobre a Era da Indenização
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ENSAIO SOBRE O PARADIGMA DO CORPO INDENIZÁVEL NO DIREITO
Helder Félix Pereira de Souza1
Selvino José Assmann2
Resumo: Através do pensamento de Michel Foucault e de Giorgio Agamben e partindo da
análise das indenizações pagas por danos sofridos nos acidentes de trânsito brasileiro, o
presente ensaio busca destacar a transformação de um corpo imensurável para um corpo
mensurável como paradigma do corpo indenizável no Direito.
Palavras Chave: Corpo indenizável; biopolítica; vida nua e corpo nu; paradigma.
ESSAY ABOUT THE PARADIGM OF INDEMNIFIABLE BODY IN THE LAW
Abstract: By the thought of Michel Foucault and Giorgio Agamben and based on analysis of
indemnities paid for damage suffered in Brazilian traffic accidents, the present essay search
to detach the transformation of an immeasurable body to a measurable body as a paradigm of
a indemnifiable body in the Law.
Keywords: Immeasurable body; biopolitics; bare life ad naked body; paradigm.
1Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e graduando em Letras pela UFSC; Mestre em Direito pela UFSC e Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM); Graduado em Filosofia pela UFSC.Bolsista do CNPq.e-mail: [email protected]: (48) 9657-1039 e (48) 3371-9622Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4241016Y82 Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH e também no curso de Filosofia. Possui graduação em Filosofia pela Faculdade Filosofia N. Sra Imaculada Conceição Viamão (1967), graduação em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana (1970), mestrado em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana (1971), mestrado em Filosofia pela Pontificia Università Lateranense (1973) e doutorado em Filosofia pela Pontificia Università Lateranense (1983). e-mail: [email protected]: (48) 3319248Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4783092P1
1
Introdução
O Irreparável é o fato de que as coisas sejam assim como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os estados de coisas, como quer que eles sejam: tristes ou leves, atrozes ou felizes. Como tu és, como o mundo é – isso é o irreparável. [...] No momento em que percebes a irreparabilidade do mundo, nesse momento ele é transcendente. Como o mundo é – isso está fora do mundo. (AGAMBEN, 2013a, p.83).
O presente ensaio destaca a transformação de um corpo imensurável em um corpo
mensurável no Direito ocidental, como um convite para refletirmos sobre um sentido mais
originário da noção de indenização jurídica. Tal reflexão visa desvelar ou colocar em
evidência um peculiar paradigma do Direito ocidental, inclusive o brasileiro, que em nossa
época tornou-se uma prática comum, óbvia, e por isso irrefletida: o paradigma do corpo
indenizável, ou seja, a possibilidade de um corpo sem danos, reparável, no Direito.
Para isso, a primeira parte do ensaio apresenta as noções foucaultianas de biopoder e
alguns de seus desdobramentos no pensamento de Giorgio Agamben para compreender, sob a
perspectiva da biopolítica, a possibilidade de se mensurar corpos. A segunda parte demonstra
a possibilidade de se medir corpos no Direito, tomando como modelo os cálculos efetuados
pelos juízes para estabelecer valores indenizatórios às vítimas de acidentes de trânsito no
Brasil, e a hipótese biopolítica no Direito do paradigma do corpo indenizável. Por fim,
algumas considerações finais sobre o tema.
1 Foucault e Agamben: a perspectiva biopolítica no Direito
Michel Foucault, pensador francês do século passado, em sua obra “A história da
sexualidade. A vontade de saber” (2010) desenvolveu um importante conceito, o biopoder,
para compreender a época moderna e, sobretudo, nossa própria época. Com tal conceito,
Foucault detecta historicamente que a partir do séc. XVII ocorreu uma transformação do
antigo poder soberano, representado pelo “privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la”
(2010, p.148) em que o Direito se identificava com o poder de vida e morte dos súditos, para
uma nova forma de poder sobre a vida. Um tipo de poder preocupado em gerir a vida,
administrá-la, não tendo mais o confisco, a apreensão da vida e dos corpos, como era antes o
mecanismo do poder soberano.
2
Esse poder sobre a vida ou biopoder preocupa-se em produzir forças e constitui-se
em dois pólos interligados: um pólo centrado no corpo como máquina, a fim de medir e
avaliar o corpo dos indivíduos e que pode ser entendido como poder disciplinar; e o outro
pólo, que atua no corpo como espécie e toma como objeto a população e seus processos
biológicos, podendo ser entendido como biopolítica.
O que importa aqui é destacar que, segundo Foucault, o surgimento do biopoder e o
seu funcionamento em dois pólos, o poder disciplinar que cuida do corpo individual e a
biopolítica que cuida do corpo populacional, fez com que o corpo dos viventes se distribuísse
em um domínio de valor e utilidade que “tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais
do que manifestar o seu fausto mortífero”. E nesse sentido, o Direito passa a funcionar através
da lei “cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num
contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo
reguladoras.” (FOUCAULT, 2010, p.157).
Em outras palavras, o Direito quando pensado sob o viés foucaultiano se apresenta
muito mais em sua característica normalizadora, ou seja, de mecanismo que disciplina
comportamentos dos corpos individuais e regulamenta o corpo populacional, organizando e
gerenciando os corpos dos vivos em um domínio de valor e utilidade, do que sob o seu poder
soberano que é, em última instância, a morte. (FOUCAULT, 2005).
Com algumas reservas, podemos dizer que a especulação foucaultiana sobre o
biopoder, por motivos metodológicos, se ocupou mais da microfísica do poder presente no
Direito do que de sua macrofísica. No entanto, Giorgio Agamben, um pensador
contemporâneo a nós, inspirado nas reflexões de Hannah Arendt (1978; 2011), de Carl
Schmitt (2006), de Walter Benjamin (1986) e outros pensadores, ampliou o pensamento
foucaultiano da microfísica do poder em uma perspectiva macrofísica através de uma
intersecção entre “o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder”
(AGAMBEN, 2010a), como podemos constatar em suas obras que seguem a série Homo
Sacer.
Diferentemente de Foucault, que via o problema da biopolítica, ou seja, a inserção
da vida biológica na política, como um acontecimento da época moderna, em Agamben tal
evento remonta ontologicamente ao surgimento da política como “contribuição original do
poder soberano” sendo “pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana” (2010a). E que a
inserção cada vez mais intensa da vida biológica na política formou um espaço onde o Direito
existe suspenso e vigora o “estado de exceção” (2011b). Tal espaço constituiu-se na
3
modernidade em um campo3 que representa o paradigma da biopolítica funcionando como um
dispositivo do poder que captura viventes reduzindo-os a uma única forma de vida: “a vida
nua”4. (AGAMBEN, 2010a, p.176).
No Direito, que é o que nos interessa aqui, o paradigma do campo suscitado por
Agamben produz seus efeitos na medida em que a decisão soberana5 “que decide sobre o
valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal” (AGAMBEN, 2010a, p.138) implica na
redução da potencialidade da vida ou da forma-de-vida à mera vida nua, consequentemente o
corpo é reduzido à sua nudez, podendo ser medido, avaliado, valorado ou desvalorado. Um
forte indício dessa operação dispositiva da biopolítica no Direito se desvela na atuação do
Judiciário em casos de responsabilidade civil, especialmente nas complexas lides de
indenização por danos morais em que há morte ou perda de partes do corpo do lesado, tendo o
juiz que elaborar parâmetros e efetuar cálculos para medir o quantum indenizatório devido
(SOUZA, 2013).
Se pensarmos a partir da categoria da biopolítica, tal prática, tão comum em nossa
sociedade atual e no Direito, implica em tornar mensurável algo que tendemos a crer
imensurável, ou melhor, reparar o irreparável: o corpo. É o que analisaremos no ponto
seguinte.
2 O corpo mensurável ou o paradigma do corpo indenizável
O reflexo da biopolítica na contemporaneidade repercute nas decisões judiciais
influenciando até mesmo na elaboração das leis. As teorias de Foucault e Agamben podem
servir, nesse caso, como importantes chaves de leitura sobre tais acontecimentos e,
principalmente, para compreendermos nossa época.
Tomando como base os inúmeros processos com pedido de indenização por danos
morais e materiais decorridos dos acidentes automobilísticos que, atualmente no Brasil e no 3 A noção de campo aqui utilizada é um conceito de Agamben e aproxima-se dos campos de concentração em que o estado de exceção começa a constituir-se como regra. Em outras palavras, o Direito passa a existir de forma suspensa, passando a vigorar a exceção onde tudo é possível, inclusive valorar ou desvalorar corpos.4 A vida nua é um conceito de Giorgio Agamben e neste ensaio é entendida como uma vida biológica desqualificada, reduzida de suas funções, como se fosse uma vida vegetativa, e por isso uma sobrevida, disforme e descartável, por conseguinte passível de ser instrumentalizada e medida.5 A decisão soberana no caso pode, não necessariamente, ser a de um governante, mas a de todos aqueles que se estende o seu poder, ou seja, um juiz, um perito, um policial, etc. Vale a pensa pensar também se o indivíduo comum que aceita ou decide ingressar no judiciário para exigir a reparação dos danos não estaria também tomando uma decisão soberana e exercitando assim um poder soberano que diz sim ao dispositivo jurídico, em um momento em que poderia dizer não ao mesmo. Tanto da ótica do governante quanto a do governado, ao invés de dizer sim prontamente às suas manifestações funcionais, seria possível parar para refletir sobre a possibilidade de se dizer não a algumas dessas manifestações em nossa época? Isso dá o que pensar.
4
mundo, matam mais pessoas do que as guerras (SOUZA, 2013), é possível desvelar algumas
características peculiares de nossa época. Seguindo alguns indícios presentes na pesquisa do
ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Paulo de Tarso Sanseverino (2010), que
realizou uma brilhante pesquisa sobre os valores indenizatórios pagos no judiciário brasileiro
decorrente da previsão do artigo 944 do Código Civil de 1988 (BRASIL, 2002), podemos
afirmar que o judiciário se encaminha para uma padronização dos valores indenizatórios
pagos às vítimas e também para uma normalização da forma de calcular e medir partes do
corpo lesado, o próprio corpo e o dano integral causado à vítima, na tentativa de reparar tais
danos.
De modo semelhante, o legislativo vem tentando simplificar e facilitar a solução de
tais conflitos criando uma lei que delimite objetivamente valores indenizatórios e métodos
para o cálculo dos respectivos valores. A lei do seguro DPVAT6 e toda a sua precisão em
definir valores indenizatórios foi fruto dos constantes pedidos de ações revisionais sobre os
valores pagos às vítimas de trânsito, e que se constitui como uma espécie de modelo que
claramente aponta valores para cada parte do corpo lesado inclusive para a morte da vítima. 7
Contudo, cabe questionarmos como o juiz ou o legislador conseguem chegar a tais
valores? Como é possível medir cada parte do corpo, assim como a vida e a morte de uma
forma-de-vida humana para definir valores indenizatórios?
Sob o viés da biopolítica, se pensarmos o juiz, o legislador, o perito, etc., como uma
manifestação do poder soberano que decide sobre o valor e o desvalor da vida enquanto tal, é
possível compreender melhor a mensurabilidade do corpo nos casos de indenização.
As indenizações por danos irreparáveis devidos à perda ou lesões de parte do corpo,
por exemplo, de vítimas no trânsito por culpa de outrem, ou nos acidentes de trabalho,
culminando na responsabilidade civil, são indícios da atuação biopolítica em nossa sociedade.
Em tais casos, mais especificamente os de danos morais, em que se atribui um valor
compensatório ao sofrimento da vítima ou dos seus dependentes legais, o juiz terá que decidir
sobre o valor e o desvalor monetário da vida, do corpo e de suas partes, para poder indenizar o
beneficiário. Desse modo, a vida nua mais uma vez está presente e a prática jurídica se torna
6 Lei 6.194 de 1974 que regulamenta o seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre.7 Para maiores detalhes sobre o método de cálculo das indenizações e também sobre os valores pagos para cada parte do corpo, inclusive para a perda da vida, além de discorrer sobre os projetos de lei que tentam regulamentar valores indenizatório e a lei do seguro DPVAT com a sua súbita regulamentação legal que definitivamente fixou valores em dinheiro para cada parte do corpo, indicamos o artigo “Biopolítica e Judiciário: a vida insacrificável, porém matável, pode ser indenizável” (SOUZA, 2013, pp.599-617).
5
um exercício de soberania em que não se consegue superar ou resistir à transformação de toda
forma-de-vida, juridicizada, em vida nua.
Tal operação calculadora somente é possível se aquilo que tentamos definir como
corpo ou vida for capturado em um dispositivo jurídico capaz de avaliar e atribuir um valor
com base em um modelo de valores. O corpo quando capturado pelo dispositivo jurídico
transforma-se em um corpo nu, derivado da vida nua, tal como um corpo extenso qualquer,
mas de plena valorabilidade. No entanto, ao mesmo tempo em que tal corpo ou vida torna-se
plenamente valorável, pode também não ter valor algum, ainda mais quando o modelo ou a
unidade de valor estabelecida nos cálculos indenizatórios é algo tão volátil ou contingente
como o dinheiro. Consequentemente, a vida nua ou o corpo nu, após um processo de
desvaloração e valoração desencadeado pela captura objetiva do dispositivo biopolítico, tem
como produto final um corpo ou vida indenizável.
Aquilo que no discurso dos Direitos Fundamentais é invalorável monetariamente, nas
mãos do poder soberano vigente, seja do perito, do técnico, do analista ou do juiz, passa a ser
valorado e sua medida última de valor é o dinheiro. Desse modo, “As vidas dos indivíduos, a
despeito dos direitos que lhe conferem soberania sobre a própria existência, implicam em sua
valorização econômica a ser garantida pelas decisões jurídicas e políticas em curso.”
(ASSMANN; BAZZANELA; 2013, p.186).
É possível afirmar, portanto, que o dispositivo biopolítico que atravessa o Direito e
captura corpos através do poder soberano que pode se realizar através do juiz, manifesta-se
duplamente quando há casos de pedido indenizatório por danos morais: num primeiro
momento, o poder soberano insere uma forma-de-vida em seus cálculos racionais-objetivos de
poder, capturando-a através do dispositivo da exceção, tornando-a nua; em um segundo
momento, sobre tal vida ou corpo nu, atribui-se uma nova forma de vida, pautada em critérios
científicos (biológicos, econômicos, sociais, antropológicos, psicológicos, etc.) conseguindo,
finalmente, estabelecer valores indenizatórios a serem pagos em relação ao corpo que morreu
ou ficou danificado. O resultado final é a transformação da potencialidade da forma-de-vida
múltipla em uma unicidade de forma de vida que segue os critérios da juridicidade padrão.
Seja com a simples e prática tabela do seguro DPVAT, seja com os parâmetros adotados pelos
tribunais para o cálculo de danos irreparáveis, inclusive dos chamados danos morais.
Quando a vida nua gerida em escala populacional pela biopolítica e priorizando os
interesses e as decisões do poder soberano é inserida no dispositivo biopolítico, o poder
soberano “só pode afirmar-se separando em cada âmbito a vida nua da sua forma”
6
(AGAMBEN, 2015, p.20) e assim reafirmar aquela mesma vida nua, novamente como vida
nua, em uma constante cisão com a sua forma. De fato, somente operando sobre tal cisão
entre vida nua e simples forma de vida capturada é possível e viável medi-la em termos
financeiros, ainda mais nos dias de hoje em que o dinheiro tornou-se a medida de todas as
coisas e até mesmo Deus foi convertido em dinheiro. (AGAMBEN, 2013b).
O fato de a vida humana poder ser medida e o corpo ser integralmente mensurável8
nos consagra ainda mais como incapazes, por enquanto, de superar a vida nua em que
vivemos, mesmo que venhamos a celebrar que, com a globalização, fomos capazes de tornar
realidade global e universal a defesa e a realização dos direitos humanos. A vida nua não
morrerá enquanto a vida humana estiver sendo lesada ou morta pela sua captura por um
exercício de soberania marcado pela primazia de uma teologia econômica (AGAMBEN,
2011a), que a globalização em curso transforma em única forma de vida possível.
Nesse sentido, defendemos a hipótese de que o cálculo efetuado pelo juiz para auferir
um valor indenizatório para o corpo e as partes lesadas, medidas como critérios para
fundamentar o dano moral, representa o paradigma indenizatório no Direito cujo fundamento
último e mais eficiente é a criação de uma tabela capaz de calcular o corpo em valores
monetários a fim de facilitar e tornar mais eficiente as decisões em tais casos no judiciário.
É importante pensar a noção de paradigma no sentido derivado de Agamben, que
retoma em alguma medida o significado grego de parádeigma remetendo a um modelo, um
exemplo. Em “Signatura rerum” o pensador italiano resume o conceito de paradigma em seis
pontos:
1) El paradigma es una forma de conocimiento ni inductiva ni deductiva, sino
analógica, que se mueve da la singularidade a la singularidad. 2) Neutralizando la
dicotomia entre lo general y lo particular, sustituye la lógica dicotómica por un
modelo analógico bipolar. 3) El caso paradigmático deviene tal suspendiendo y, a la
vez, exponiendo su pertencia al conjunto, de modo que ya no es posible separar em
él ejemplaridad y singularidade. 4) El conjunto paradigmático no está jamás
presupuesto a los paradigmas, sino que permanece inmanente a ellos. 5) No hay, en
8 Se pensarmos o corpo de uma forma mais alargada que o corpo individual e populacional, e embarcarmos em outra noção foucaultiana (2013) de corpo visível e corpo invisível, corpos utópicos (que não tem lugar algum) e corpos heterotópicos (espaços absolutamente outros), a captura dispositiva da biopolítica dos corpos não assumiria aí uma vastidão inimaginável? Poderíamos pensar extensões como o corpo institucional, o corpo estatal, o corpo jurídico, o corpo familiar, o corpo ambiental, o corpo difuso, etc., e assim a captura biopolítica reduziria a totalidade de corpos a meros corpos nus, como a vida nua? A Era dos Direitos (BOBBIO, 1992), marcada pelas quatro, mas crescentes gerações de Direitos, como, de modo geral, o Direito das liberdades, os Direitos sociais, ambientais, e os Direitos do patrimônio genético, não poderiam culminar em uma juridicização mais intensa da vida ao ponto de ocorrer a corporificação jurídica da totalidade das coisas materiais e imateriais do mundo? O que ganhamos ou perdemos quando é possível juridicizar a totalidade das coisas? O mundo se tornaria um imenso deserto? (ARENDT, 2011).
7
el paradigma, un origen o una arché: todo fenómeno es el origen, toda imagem es
arcaica. 6) La historicidade del paradigma no está en la diacronia ni em la sincronía,
sino en un cruce entre ellas. (AGAMBEN, 2010c, p.40-41)
Em suma, um paradigma é uma forma de modelo exemplar que atua como
conhecimento analógico sempre vigorante e que preserva a singularidade do fenômeno
particular e geral, sem desatá-los. Constitui uma marca ontológica que ultrapassa a dicotomia
ôntica entre sujeito e objeto, apontando diretamente para o ser. Por exemplo, o campo como
paradigma biopolítico da modernidade, citado na primeira parte deste ensaio, não é uma
hipótese explicativa que “busca reduzir a modernidade ‘a uma causa ou a uma origem
histórica’, mas ‘paradigmas, cujo objetivo era fazer inteligível aqueles fenômenos cujo
parentesco havia escapado ou podia escapar à mirada histórica’” (CASTRO, 2012, p.157).
Assim, se na biopolítica o paradigma do campo é uma de suas marcas ontológicas
por excelência, podemos pensar que no Direito a indenização funciona como dispositivo que
permite o soberano jurídico capturar formas-de-vida e transformá-las em vidas nuas, para
poder medi-las, avaliá-las e calcular o seu valor ou desvalor em pecúnia indenizatória. Surge,
portanto, a necessidade de se examinar com maior precisão a noção de indenização que em
nossa época vem se tornando uma prática tão comum no Direito.
A simples constatação de que o termo indenização guarda um sentido jurídico mais
antigo derivado do adjetivo latino indemne, que significa o “que não teve prejuízo, indene”
(FARIA, 1962, p.483), cuja raiz demne remonta ao substantivo damnum, significando
prejuízo, dano, perda e que em termos jurídicos do antigo direito romano designava “às vezes
os danos e juros pagos por uma perda material” (FARIA, 1962, p.276) de onde deriva multa e
castigo pecuniário. Isso nos faz pensar o problema da reparabilidade e da irreparabilidade da
vida, do corpo, mas também das coisas humanas e não humanas, além da estreita vinculação,
ao menos atualmente, entre o direito, a vida, o corpo e o dinheiro.
Qual seria o limite da reparação das coisas no mundo e do próprio homem no
mundo? O que é o irreparável? Na tentativa de reparar tudo através do Direito, não corremos
o risco de justamente danificarmos tudo com o Direito através do dispositivo da juridicização?
No entanto, qual o limite de tal captura dispositiva da vida e do corpo através do Direito?
De fato é imprescindível no Direito, para melhor compreendermos o seu estatuto em
nossa época, uma investigação arqueológica e geneológica sobre a noção de indenização e as
suas consequências no mundo do homem. Antes de nos entregarmos a tal instrumento de
forma tão natural e comum, urge clarear melhor a questão da mensurabilidade e da
reparabilidade da vida e do corpo na atualidade. Pois o sentido paradigmático de indenização
8
que carrega a noção de indemne como reparação de danos, pode conter também um sentido
mais originário de reparar o irreparável, que desde a antiguidade pode ser entendida como a
descomedida tentação do homem de vencer sua natural mortalidade almejando alcançar por
suas próprias mãos o artifício da imortalidade: deixar de ser homem e mortal, para tornar-se
Deus, mesmo que para isso tenha que sacrificar seu próprio mundo.
Considerações Finais
Este ensaio buscou utilizar a perspectiva da biopolítica iniciada com Foucault e
ampliada com Agamben, a fim de compreender o funcionamento e o estatuto do Direito em
nossa época. O que se buscou, sobretudo, foi exercitar algumas intuições especulativas sobre
a possibilidade de mensurar os corpos e a vida a partir dos cálculos indenizatórios tão
comuns, atualmente, no judiciário.
Enquanto ensaio, o respectivo texto é incompleto e inacabado, pois seu intuito é abrir
uma reflexão sobre o presente dialogando com autores que ousaram pensar a própria época.
Por conseguinte, tal texto é algo que convida a continuarmos a pensar sobre nosso momento
histórico como “contemporâneos” mantendo-nos próximos e distantes do nosso próprio
tempo, “para perceber não as suas luzes, mas a escuridão” (AGAMBEN, 2014a, p.25) a fim
termos alguma noção sobre o que estamos fazendo. Partindo do Direito e o problema das
indenizações, emergiram alguns indícios do paradigma do corpo indenizável, na medida em
que este se assemelha aos aspectos da condição humana e o sempiterno conflito entre o ser e o
devir, o mutável e o imutável, o reparável e o irreparável.
Enfim, pensando o Direito acabamos pensando a nós mesmos e nossa própria
condição. De fato, como Agamben aponta, parece que estamos cada vez mais sendo
capturados por um dispositivo jurídico e biopolítico que reparte e reduz a múltipla e potente
forma-de-vida em simples vida nua. Desse modo, haveria alguma forma de escaparmos dessa
captura da vida, dos corpos e do mundo, tendo em vista que no Direito há uma forte tendência
totalizante de juridicizar o mundo humano? Isso consequentemente nos leva a pensar também
sobre o ser do Direito, ou seja, o que é isso que chamamos de Direito e o que não é Direito
nos dias de hoje?
Em uma de suas últimas obras, Agamben (2014b) fala da possibilidade de se
desativar dispositivos através da potência destituinte, que frente ao poder constituinte e poder
9
constituído, seria capaz de torná-los inoperosos. No Direito, seria o mesmo que pensar o não
Direito, tornar o Direito sem obra, ou seja, desaplicar o Direito.
Uma potência destituinte implica na “profanação” (AGAMBEN, 2010b, p.79) dos
instrumentos jurídicos na medida em que deles nos utilizamos, mas sem somente aplicá-los
como uma ferramenta cirúrgica ou como um operador do direito que se apropria de uma
norma dos conjuntos de normas dispostas no ordenamento jurídico e as aplica ao caso
examinado; e sim reflexionando sobre o si do Direito e do conflito em latência, buscando com
o Direito um a priori não de resultados e eficiência, mas sim de reflexividade, ou como
potência de pensamento.
Tal atividade pode acarretar em uma suspensão do dispositivo ou da “oikonomia”
(AGAMBEN, 2010d, p.39) instrumental no Direito através da postura reflexiva sobre o que
estamos fazendo com e no Direito e quais as responsabilidades diante das decisões soberanas
(jurídicas e não jurídicas). Assim, convergindo e divergindo de Agamben (2011b), o Direito
pode ser não somente aplicado, mas, sobretudo e principalmente, reflexionado, ou seja, o
Direito pensado, refletido em suas inúmeras possibilidades e consequências antes de
simplesmente e mecanicamente aplicado. Em suma, um Direito não totalmente inoperoso,
sem obras, e nem totalmente destituinte, mas semi-inoperoso e semi-destituinte, seria
possível?
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AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2013a.
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