Ensaio Sobre Dworkin

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Ensaio Sobre Dworkin - Material de Direito Constitucional

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  • Ensaio sobre Dworkin

    traduzido por Patrcia Sampaio **

    Ronald Dworkin atualmente o sucessor de Hart em sua ctedra da Universidade

    de Oxford e um dos principais representantes da filosofia jurdica anglo-saxnica. O livro

    que se apresenta aos leitores de lngua castelhana ( N. do T. Derechos en Serio) est

    formado por um conjunto de artigos escritos na ltima dcada.

    Crtico implacvel e rigoroso das escolas positivistas e utilitaristas, Dworkin -

    baseando-se na filosofia de Rawls e nos princpios do liberalismo individualista - pretende

    construir uma teoria geral do direito que no exclua nem o argumento moral nem o

    argumento filosfico. Neste sentido, Dworkin o antiBentham, considerando que uma

    teoria geral do direito no deve separar a cincia descritiva do direito da poltica jurdica.

    Por outra parte - e tambm frente a Bentham, que considerava que a idia dos direitos

    naturais era um disparate - prope uma teoria baseada nos direitos individuais, o que

    significa que sem direitos individuais no existe o Direito.

    A obra de Dworkin originou uma polmica muito importante que transcendeu os

    crculos acadmicos. As teses de Dworkin tm obtido mais detratores que seguidores. Um

    leitor imparcial se encontrar com o paradoxo de que seus crticos lhe tenham dedicado

    tanta ateno e, entretanto - caso se atente ao contedo de suas crticas -, sustentem que

    no vale a pena lev-lo a srioi[i]. muito possvel que o paradoxo seja mais aparente

    que real porque a filosofia de Dworkin constitui um ponto de partida interessante para a

    crtica do positivismo jurdico e da filosofia utilitarista. Por outra parte, pretende

    fundamentar a filosofia poltica liberal sobre bases mais slidas, progressistas e

    igualitrias. Tudo isto explica o impacto de sua obra no marco da filosofia jurdica atual.

    Na Europa continental, a obra de Dworkin no muito conhecida. Recentemente

    foi traduzido ao italiano este mesmo livro, e alguns autores lhe tm dedicado ateno.

    Uma das razes por que as teses de Dworkin no tm merecido ateno aqui se deve ao

    fato de que o autor americano prescindiu do desenvolvimento da filosofia jurdica europia

    continental. Genaro Carri - um de seus crticos mais relevantes de lngua castelhana - se

    surpreende de que na obra de Dworkin ( que constitui um importante ataque ao

    *

    *1

  • positivismo) no meream ateno os autores mais representativos das doutrinas

    positivistas de nossos tempos, como Bobbio ou Rossii[ii]. Possivelmente, esta falta de

    ateno quanto s escolas europias tenha reduzido o mbito de influncia das teses de

    Dworkin. Muitos autores - que o citam - se limitam a etiquet-lo como apologista do

    sistema americano ou de neojusnaturalistaiii[iii], para evitar um confronto mais direto

    com a incomodidade que produzem suas teses. E, certamente, um autor incmodo

    porque pe em questo os pressupostos do positivismo jurdico, da filosofia poltica

    utilitarista e, alm disso, resgata a filosofia liberal do conservadorismo.

    As teses sobre o positivismo

    Ronald Dworkin um autor que repele explicitamente as doutrinas positivistas e

    realistas que tm dominado o mundo nos ltimos tempos. E, precisamente, renega o

    positivismo desde a perspectiva metodolgica, nica via que permitia unificar a

    diversidade de escolas positivistas.iv[iv] Uma concepo do direito que negue a separao

    absoluta entre o direito e a moral, e que no acuda a princpios de justia material

    preestabelecidos - como fazia o velho jusnaturalismo - uma doutrina perigosa. E

    perigosa porque Dworkin demonstra que na prtica jurdica dos tribunais a distino entre

    o direito e a moral no to clara como sustentam os positivistas. Acudir ao direito que se

    aplica e se obedece para demonstrar que a moral intervm no direito muito perigoso

    para a doutrina positivista porque mostra de forma manifesta a debilidade de seu enfoque.

    A crtica do pressuposto da distino rgida entre o direito e a moral o objetivo

    fundamental de seu ataque ao positivismo. Dworkin toma como ponto de referncia a

    teoria de Hart porque considera que a verso mais depurada do positivismo jurdico.

    Normas, diretrizes e princpios

    O ataque ao positivismo se baseia em uma distino lgica entre normas,

    diretrizes e princpios. Segundo Dworkin, o modelo positivista somente tem em conta as

    normas que tm a peculiaridade de aplicar-se no todo ou no aplicar-se. O modelo

    positivista estritamente normativo porque s pode identificar normas e deixa fora de

    anlise as diretrizes e os princpios. O conceito de uma norma chave - como regra de

    reconhecimento - permite identificar as normas mediante um teste que ele denomina o

    teste de seu pedigree ou de sua origem.

    2

  • 1[1] Dworkin considera que o teste de pedigree um teste adequado caso se

    afirme - com o positivismo - que o direito um conjunto de normas. Porm, precisamente

    pretende demonstrar que esta viso do direito unilateral. Junto s normas, existem

    princpios e diretrizes polticas que no podem ser identificadas por sua origem mas por

    seus contedo e fora argumentativa.

    O critrio da identificao dos princpios e das diretrizes no pode ser o teste de

    origem. As diretrizes fazem referncia a objetivos sociais que devem ser alcanados e so

    considerados socialmente benficos. Os princpios fazem referncia justia e

    eqidade (fairness). Enquanto as normas se aplicam ou no se aplicam, os princpios

    do razes para decidir em um sentido determinado, mas, diferindo das normas, seu

    enunciado no determina as condies de sua aplicao. O contedo material do

    princpio - seu peso especfico - o que determina quando deve ser aplicado em uma

    situao determinada.

    Os princpios - ademais - informam as normas jurdicas concretas, de tal forma que

    a literalidade da norma pode ser desatendida pelo juiz quando viola um princpio que

    neste caso especfico se considera importante. Para dar fora a seu argumento, Dworkin

    d uma srie de exemplos de problemas difceis resolvidos pela Corte Constitucional

    americana e demonstra o papel que nestes casos desempenham os princpios.v[v]

    Os positivistas - ante crtica de Dworkin - tm reagido de modos muito diversos.

    Alguns, como Carrivi[vi], tm sustentado que o ataque de Dworkin ao positivismo mais

    aparente que real, e que se move ainda no mbito do positivismo. Outros tm assinalado

    que uma modificao da regra de reconhecimento seria suficiente para invalidar a crtica.

    H, ainda, os que, desde outra perspectiva, tm afirmado que Dworkin representa um

    novo renascimento do jusnaturalismo.

    A regra de reconhecimento

    1[1] As doutrinas positivistas mais desenvolvidas tm utilizado como critrio de identificao do sistema jurdico uma norma chave. Tal o caso da norma fundamental de Kelsen ou da regra de reconhecimento de Hart. A regra de reconhecimento de Hart consiste em uma prtica social que estabelece que as normas que satisfazem certas condies so vlidas. Cada sistema normativo tem sua prpria regra de reconhecimento e seu contedo varia e uma questo emprica. H sistemas normativos que reconhecem como fonte do direito um livro sagrado, ou a lei, ou os costumes, ou vrias fontes ao mesmo tempo. A regra de reconhecimento o critrio que utiliza Hart para identificar um sistema jurdico e fundamenta a validez de todas as normas dela derivadas.

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  • A distino entre normas e princpios o instrumento de que se utiliza para

    recusar a regra de reconhecimento como critrio para a identificao do direito. Genaro

    Carri sustenta que esta crtica no tem fundamento porque a regra de reconhecimento

    no apenas permite identificar normas mas tambm princpios. Carri coloca o seguinte

    exemplo: imaginemos um pas que carece de Constituio escrita. Imaginemos, alm

    disso, que naquela comunidade os juzes e funcionrios recusam sistematicamente como

    normas vlidas... as que so contrrias aos preceitos do Coro. Este critrio no faria

    referncia exclusivamente ao modo de origem ou pedigree da norma, porque teria em

    conta o seu contedo.vii[vii]

    Outros autores - mais prximos a Dworkin - como Sartorius em Individual Conduct

    and Social Norms, mantm a tese de que possvel encontrar um critrio complexo por

    meio do qual se pode determinar que certos princpios e diretrizes formam parte do direito

    da mesma forma que as normas e os precedentes judiciais.viii[viii] Este objetivo se pode

    conseguir ampliando um pouco o contedo da regra de reconhecimento. Estes autores

    tratam de integrar a distino entre normas e princpios na tradio positivista mediante

    uma modificao na regra de reconhecimento.

    Uma postura distinta mantm Raz. Este autor - discpulo de Hart - tem manifestado

    as debilidades das regras de reconhecimento como critrio de identificao do sistema

    jurdico. Entretanto, da insuficincia da regra de reconhecimento no se pode inferir -

    como faz Dworkin - a impossibilidade de encontrar um critrio que permita identificar o

    direito.ix[ix]

    O neojusnaturalismo de Dworkin

    A reao positivista no tem se limitado a mera modificao da regra de

    reconhecimento ( Carri ou Sartorius), ou busca de critrios distintos (Raz) para a

    identificao do direito. Alguns autores interpretaram a obra de Dworkin como uma nova

    verso do jusnaturalismo. Richards sustenta que a interpretao da argumentao

    judicial tem sido utilizada por Dworkin para defender uma forma de jusnaturalismo em

    oposio ao positivismo de Hart. A argumentao jurdica, segundo Dworkin, invoca e

    utiliza princpios que os tribunais desenvolvem lentamente mediante um largo processo de

    argumentao e de criao de precedentes. Estes princpios so especificamente morais.

    Em conseqncia, a argumentao jurdica depende da argumentao moral, no sentido

    de que os princpios morais tm papel muito importante an argumentao jurdica,

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  • especialmente nos casos difceis. E, portanto, a tese central do positivismo - a separao

    entre o direito e a moral - falsa; no se pode separar a argumentao jurdica da

    argumentao moral. Para Dworkin, uma interpretao terica aceitvel da argumentao

    jurdica requer a verdade do jusnaturalismo.x[x]

    Entretanto, Dworkin no um autor jusnaturalista porque no cr na existncia de

    um direito natural que est constitudo por um conjunto de princpios unitrios, universais

    e imutveis. A teoria do autor americano no uma caixa de torrentes transcedental que

    permite solucionar todos os problemas e que fundamenta a validez e a justia do direito.

    Dworkin recusa o modelo de argumentao tpico do naturalismo - que se baseia na

    existncia de uma moral objetiva que o homem pode e deve descobrir. O autor americano

    tenta construir uma terceira via - entre o jusnaturalismo e o positivismo - fundamentada no

    modelo reconstrutivo de Rawls.xi[xi] Parte-se do pressuposto de que a argumentao

    moral se caracteriza pela construo de um conjunto consistente de princpios que

    justificam e do sentido a nossas intuies. As intuies de nossos juzos so os dados

    bsicos, mas estes dados e estes juzos devem acomodar-se ao conjunto de princpios.

    Esta tarefa reconstrutivo - racional do pensamento moral no exclusiva deste, j que

    Dworkin a estende ao pensamento jurdico. Por isto se pode afirmar com Neil

    MacCormickxii[xii] que o propsito de Dworkin reinstaurar a relao ntima entre a

    argumentao moral e a jurdica, que desde Bentham e Austin se haviam separado

    radicalmente e desde ento constituram o autntico fio condutor das doutrinas

    positivistas.

    Porm, a relevncia de suas teses no se encontra neste nvel de restaurao da

    relao entre o direito e a moral. Com seu aparato analtico, recusa o jusnaturalismo

    prebenthamiano e questiona muitas das teses que tm sido sustentadas pelos

    positivistas. Dworkin descreveu o sistema e o funcionamento Constitucional dos Estados

    Unidos (sua teoria no conceitual mas descritiva, como observa Soperxiii[xiii]) e ps

    claramente a fuso entre princpios morais e jurdicos. Com esta descrio tem pretendido

    demonstrar que o modelo positivista incapaz de descrever corretamente o direito. Sobre

    este ponto, Carri assinalou que a descrio de Dworkin das atitudes dos juzes

    americanos correta mas no pode ser invocada como contra-exemplo do positivismo... a

    Constituio americana tem incorporado alguns standards como critrios ltimos de

    validade. Por causa desta circunstncia, a conexo existente entre o direito e a moral,

    ainda que seja importante, no uma conexo necessria ou conceitual, mas ftica.xiv[xiv]

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  • Em resumo, a crtica ao pressuposto da separao absoluta entre o direito e a

    moral o conduz construo de uma teoria do direito na qual a moral e a poltica ocupam

    lugar relevante. Dworkin se preocupou em analisar as relaes entre o direito e a moral.

    No separou ambas as parcelas como haviam feito os metodlogos da pureza.

    Entretanto, no faz isso em nome do irracionalismo o de um novo jusnaturalismo

    ontolgico prebenthamiano. A terceira via - frente ao jusnaturalismo e ao positivismo - que

    pretende abrir o autor americano, tem seu prprio aparato analtico: o modelo da

    reconstruo racional aplicado ao conhecimento - e crtica - do direito.

    A Funo Judicial.

    Segundo Dworkin, o modelo positivista hartiano incapaz de dar conta da

    complexidade do direito. Para colocar prova as teses positivistas prope o problema da

    funo judicial. Na tradio positivista mais desenvolvida (o caso de Hart em sua obra

    The Concept of Law) se mantm a tese da discricionariedade judicial. Em caso de no

    haver uma norma exatamente aplicvel, o juiz deve decidir discricionariamente. O direito

    no pode oferecer resposta a todos os casos que se propem. O positivismo hartiano

    sustenta que nos casos difceis no existe resposta correta prvia deciso do juiz, que

    tem um marcado carter discricionrio. Dworkin atacar a teoria da funo discricionria

    dos juzes enunciando a tese da resposta correta.

    Os casos difceis.

    A anlise dos casos difceis e a incerteza do direito que supe a estratgia eleita

    pelo autor americano para criticar o modelo da funo judicial positivista. Um caso difcil

    se existe incerteza, seja porque existem vrias normas que determinam sentenas

    distintas - porque as normas so contraditrias - seja porque no existe norma

    exatamente aplicvel.

    Dworkin sustenta que os casos difceis tm resposta correta. Os casos insolveis

    so extraordinrios em direitos minimamente evoludos. evidente que pode haver

    situaes s quais no se possa aplicar nenhuma norma concreta, mas isto no significa

    que no sejam aplicveis os princpios. Dworkin assinala que o material jurdico composto

    por normas, diretrizes e princpios suficiente para dar uma resposta correta ao problema

    proposto. Somente uma viso do direito que o identifique com as normas pode manter a

    tese da discricionariedade judicial.

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  • O autor americano reconstri casos resolvidos pela jurisprudncia e mostra que

    sua teoria justifica e explica melhor os casos difceis que a teoria da discricionariedade

    judicial. Quando nos encontramos frente a um caso difcil no uma boa soluo deixar

    liberdade ao juiz. E no uma boa soluo porque o juiz no est legitimado nem para

    ditar normas, e muito menos para dit-las de forma retroativa se levamos a democracia -

    e seu sistema de legitimao - a srio. Ao juiz, deve-se exigir a busca de critrios e a

    construo de teorias que justifiquem a deciso. E esta deve ser consistente com a teoria.

    Os juzes, nos casos difceis, devem acudir aos princpios. Porm, como no h

    uma hierarquia preestabelecida de princpios, possvel que estes possam fundamentar

    decises distintas. Dworkin sustenta que os princpios so dinmicos, modificam-se com

    grande rapidez, e que toda tentativa de canoniz-los est condenada ao fracasso. Por

    esta razo, a aplicao dos princpios no automtica, mas exige a argumentao

    judicial e a integrao da argumentao em uma teoria. O juiz ante um caso difcil deve

    balancear os princpios e decidir-se pelo que tem mais peso. O reconstrutivismo conduz a

    busca incessante de critrios objetivos.

    Dworkin prope um modelo de juiz onisciente - o clebre Hrcules - que capaz de

    solucionar os casos difceis e encontrar respostas corretas para todos os problemas. Para

    isso, recorre construo de uma teoria coerente. Porm, possvel que se construam

    teorias que justifiquem respostas distintas. Neste caso, Dworkin recomenda acolher a

    teoria que justifique e explique melhor o direito histrico e o direito vigente.

    Entretanto, aqui se encontram novas dificuldades. Como se vai saber as a teoria A

    melhor que a teoria B? Acaso no se necessita de um critrio de avaliao de teorias

    que permitisse decidir entre elas? No se ter a tentao de absolutizar a prpria teoria e

    consider-la como a melhor? Sobre este ponto de vista, Dworkin no oferece resposta.

    Por outra parte, como tem assinalado MacCormick, o modelo construtivo da

    argumentao se transforma no modelo natural.xv[xv] Este Hrcules, acaso no exerce um

    papel semelhante a Deus ou Razo na reflexo jusnaturalista? possvel que a tese da

    resposta correta exija um critrio absoluto de avaliao das teorias, e ao absolutizar um

    critrio, a tese da resposta correta no surge da utilizao do modelo de reconstruo,

    mas de uma hipottica ordenao valorativa absoluta. Por isso, muitos autores tm

    considerado a filosofia de Dworkin como uma inteligente restaurao do velho

    jusnaturalismo.

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  • O ncleo mais importante da crtica ao modelo da funo judicial positivista est

    centrado no tema dos casos difceis. Dworkin sustenta que quando existem contradies

    ou lacunas, o juiz no tem discricionariedade porque est determinado pelos princpios.

    Esta tese est fundamentada em dois argumentos: A) qualquer norma se fundamenta em

    um princpio; B) os juzes no podem criar normas retroativas. Tm a obrigao de aplicar

    os princpios porque formam parte essencial do direito. Os princpios no so

    pseudorregras. Na anlise dos princpios aparece com claridade meridiana a relao

    entre a argumentao moral e a argumentao jurdica.xvi[xvi]

    Todavia, a recusa da discricionariedade do juiz tem tambm motivos polticos. Caso

    se admita a discricionariedade judicial, ento os direitos dos indivduos esto merc dos

    juzes. A tese da discricionariedade supe retroatividade. Os direitos individuais s so

    direitos se triunfam frente ao governo ou maioria. Deixar discricionariedade do juiz a

    questo dos direitos significa no se tomar a srio os direitos. Frente ao poder jurdico do

    juiz - poder criador de direito discricionrio - Dworkin propugna a funo garantidora - no

    criadora - do juiz.

    A crtica ao positivismo e ao realismo tem o mrito de haver aberto uma via de

    anlise e crtica, mas corre o risco prprio de todo aquele que enfrenta doutrinas bem

    estabelecidas. A distino lgica entre normas e princpios, o modelo de reconstruo

    (herdado de Rawls), a fuso entre moral e direito (herdada de Fuller) e a tese da resposta

    correta so as principais ferramentas de crtica ao positivismo.

    A incerteza e a funo da teoria

    Uma das chaves para o xito da obra do autor americano se encontra em sua

    preocupao pelo tema da certeza do direito. Sua teoria tem a originalidade de enfocar a

    anlise do direito desde a perspectiva dos casos difceis e das incertezas que produzem.

    Os casos difceis propem problemas que a teoria deve resolver. Esta proposio lhe

    proporciona uma dimenso prtica e funcional muito importante. A teoria serve -

    efetivamente - para a reduo da incerteza.

    O expediente positivista ante o caso difcil abandonar o problema

    irracionalidade e ao sentimento subjetivo do juiz. Dworkin mantm a tese da busca da

    racionalidade. Por muito criticvel que seja a tese da resposta correta, e por muito que

    consideremos que a incerteza particularmente difcil de destruir em qualquer teoria

    jurdicaxvii[xvii], deve-se reconhecer o mrito a autores como Dworkin ou Sartorius de 8

  • haver buscado a reduo da irracionalidade. Estes autores tm manifestado o alto preo

    que se paga caso se conceda ao juiz a discricionariedade. Os positivistas pagam este

    preo sem se darem conta de que esto aceitando leis retroativas.xviii[xviii]

    Profundamente relacionado com o problema da certeza se encontra a idia de

    Dworkin acerca da funo da teoria. Segundo o autor americano, a teoria do direito tem a

    funo de reduzir a incerteza do direito. A melhor teoria de Hrcules no apenas tm

    funes descritivas mas serve tambm para solucionar casos difceis. Dworkin considera

    que toda teoria jurdica deve ter um aspecto descritivo e outro prescritivo. A teoria no s

    serve para conhecer o direito vigente mas tambm um auxiliar indispensvel ao juiz.

    Dworkin destri o pressuposto metodolgico positivista da separao absoluta entre a

    descrio e a prescrio. Em um caso difcil, a teoria serve para que o juiz decida com

    fundamento racional. A teoria o fundamento da validez da tese da resposta correta. Sem

    uma teoria do direito no possvel solucionar os casos difceis. O juiz ao utilizar uma

    teoria como critrio para a resoluo dos conflitos sociais aplica o direito. A teoria no

    apenas descreve, mas tambm toma parte do direito.

    possvel que os juristas educados na tradio positivista rasguem suas

    vestimentas ante tamanha blasfmia mas, tal como evoca Dworkin, suas teses exigem

    respostas. No possvel demonstrar que as teorias jurdicas so utilizadas para resolver

    os casos difceis?

    A Tese dos Direitos

    A filosofia jurdica de Dworkin est baseada nos direitos individuais. Isto significa

    que os direitos individuais - e muito especialmente o direito igual considerao e

    respeito - so triunfos frente maioria. Nenhuma diretriz poltica nem objetivo social

    coletivo pode triunfar frente a um autntico direito.

    A filosofia poltica de Dworkin antiutilitarista e individualista. Na base das teorias

    utilitaristas se encontram fins coletivos aos quais devem ser subordinados os direitos

    individuais. Bentham - desde sua especfica perspectiva utilitarista - afirmou que a idia

    de uns direitos naturais individuais era um disparate. Dworkin recusa o utilitarismo porque

    no toma a srio os direitos e se alinha a esta direo de pensamento que ope ao

    utilitarismo uma autntica teoria dos direitos. A proposta de Dworkin se acerca ao

    pensamento de Stuart Hampshire. Este autor em um livro recentexix[xix] sustentou que

    durante dcadas o utilitarismo tem sido uma doutrina progressiva que tem facilitado e 9

  • promovido a sociedade do bem estar mas, nos ltimos tempos, se converteu em um srio

    obstculo ao progresso moral. Dworkin sustenta que os objetivos sociais apenas so

    legtimos se respeitam os direitos dos indivduos. Uma verdadeira teoria do direito deve

    dar prioridade aos direitos frente aos objetivos sociais.

    Agora, como entende os direitos? Os positivistas consideram que os nicos direitos

    existentes so os reconhecidos pelo sistema jurdico. Frente ao positivismo, Dworkin

    sustenta que junto aos direitos legais existem direitos morais. Os direitos jurdicos e os

    direitos morais no pertencem a ordenamentos conceituais distintos. Em caso de conflito

    entre direitos morais e jurdicos estes no triunfam necessariamente sobre aqueles. Se o

    juiz decide que as razes derivadas dos direitos morais so to fortes que lhe impem a

    obrigao moral de fazer todo o possvel que possa apoiar estes direitos, ento possvel

    que deva mentir. Segundo Dworkin, o problema dos direitos no se resolve mediante o

    mero reconhecimento legal porque o umbral entre direitos morais e jurdicos difuso.

    A garantia dos direitos individuais a funo mais importante do sistema jurdico. O

    direito no mais que um dispositivo que tem como finalidade garantir os direitos dos

    indivduos frente s agresses da maioria e do governo.

    Um exemplo servir para explicar a concepo dos direitos como triunfos frente

    maioria. Imaginemos que quatro pessoas decidem se associar para praticar esporte.

    Criam uma sociedade e em seus estatutos estipulam que as decises sero tomadas por

    acordo da maioria. Uma vez constituda a sociedade, decide-se por unanimidade pela

    construo de uma quadra de tnis. Uma vez construda a quadra, os scios decidem por

    maioria que uma das pessoas associadas - que da raa negra - no pode jogar porque

    no querem negros na quadra. Acaso a lei da maioria uma lei justa? Se isto pode ser

    feito, que sentido tem o direito a igual considerao e respeito?

    Uma teoria que tome os direitos a srio no considerar vlido este acordo porque

    a pessoa discriminada tem um direito individual que pode triunfar frente maioria. O

    direito a no ser discriminado adquire relevncia frente aos bens coletivos e apenas um

    autntico direito se pode vencer a maioria.

    O esquema utilizado por Dworkin para explicar a tese dos direitos est centrado an

    anlise das controvrsias judiciais. Poderia ser sintetizada do seguinte modo: A) Em todo

    processo judicial existe um juiz que tem a funo de decidir o conflito; B) Existe um direito

    a vencer no conflito e o juiz deve indagar a quem cabe vencer; C) Este direito a vencer 10

  • existe sempre, ainda que no exista norma exatamente aplicvel; D) Nos casos difceis o

    juiz deve conceder vitria a uma parte baseando-se em princpios que lhe garantem o

    direito; E) Os objetivos sociais esto subordinados aos direitos e aos princpios que o

    fundamentam; F) O juiz - ao fundamentar sua deciso em um princpio preexistente - no

    inventa um direito nem aplica legislao retroativa: se limita a garanti-lo.

    Este esquema tem sido objeto de numerosas crticas. Em primeiro lugar, para que

    o esquema funcione preciso especificar quais so os princpios aplicveis, e esta no

    uma tarefa fcil, pois como j afirmou Dickinson os mais amplos e fundamentais

    princpios do direito quase nunca se podem aplicar diretamente como critrios de deciso

    nas controvrsias. Por uma parte, o princpio demasiado genrico - por exemplo, o

    respeito ao direito de propriedade... e pode ser sustentado pelas duas partes no conflito...

    Por outra parte, se o princpio mais restrito, poder expressar e defender o interesse de

    uma parte e, ento, pode colidir com outro princpio igualmente vlido que defende o

    interesse da outra parte.xx[xx]

    Em segundo lugar, deve ter-se em conta que - como afirma Hart - a deciso

    judicial, especialmente em temas de importncia constitucional, implica a eleio entre

    valores morais e no meramente a aplicao de um nico princpio moral: portanto, uma

    loucura pensar que onde o sentido do direito duvidoso a moralidade sempre pode dar

    resposta.xxi[xxi]

    Em terceiro lugar, a maioria das constituies dos pases desenvolvidos - como,

    por exemplo, Alemanha, Frana, Itlia - so sociedades pluralistas. Suas constituies

    so fruto de compromissos entre ideologias polticas distintas e, portanto, um conflito

    entre princpios possvel e muito freqente em razo de seu pluralismo.

    Estas objees so srias. Dworkin reconhece que os conflitos entre princpios

    podem acontecer. Entretanto, Dworkin sustenta que quando existe um conflito no se

    pode deixar o tema nas mos da discricionariedade do juiz. Este deve dar vitria ao

    princpio que tenha maior fora de convico. A tarefa do juiz ser a justificao racional

    do princpio eleito. Sartorius - na linha de Dworkin - sugere um critrio no substantivo

    mas meramente formal. A deciso correta ser aquela que satisfaa o mximo de

    adeso.xxii[xxii] E esta adeso teria a teoria do juiz onisciente Hrcules.

    Deixar as coisas como as deixa Hart - dando liberdade discricional ao juiz -

    significa no apurar o campo das decises racionais. Dworkin - apesar das dificuldades - 11

  • sustenta que a melhor teoria do direito ser capaz de reduzir a incerteza e a insegurana

    mediante a justificao de critrios objetivos.

    A tese dos direitos tem recebido numerosas crticas. Por exemplo, MacCornick

    assinalou que a resoluo de um conflito entre princpios no supe a criao de um novo

    direito nem a aplicao de uma norma retroativa. Simplesmente se trata da eleio entre

    direitos.xxiii[xxiii] Seria impossvel aqui citar as crticas que tem suscitado a tese dos

    direitos. indubitvel que Dworkin prope temas de fundamental importncia para todo

    aquele que esteja interessado no estudo dos direitos. No se h de esquecer que os

    temas tratados por Dworkin esto baseados em conflitos que tm sido apresentados ante

    a Corte Constitucional e que suas anlises podem ser de grande utilidade an hora de

    analisar as decises do Tribunal Constitucional.xxiv[xxiv] Em muitas ocasies tem-se

    afirmado que o Tribunal est subordinado Constituio. Os positivistas e realistas - pelo

    menos alguns dentre eles - tm considerado que esta afirmao no era mais que uma

    mentira piedosa, que servia para ocultar o poder poltico do juiz. Possivelmente as teses

    de Dworkin podem contribuir para compreender o que o homem da rua j sabe: que os

    juzes no tm um grande poder poltico. Os juzes e tribunais no tm liberdade para

    inventar direitos e interpretaes. A doutrina dos tribunais lhes exige coerncia e adeso

    e, na realidade, a funo criadora de direito dos juzes bastante limitada.

    Modelos da Funo Judicial

    Dworkin prope um novo modelo da funo judicial que contrasta com os modelos

    tradicionais. Na histria do pensamento jurdico se encontram vrias concepes. Entre

    elas, as mais importantes so as seguintes:

    A) O modelo silogstico defendido pelo formalismo jurdico. Segundo esta

    concepo, a tarefa do juiz lgico-mecnica. O problema do juiz a

    subsuno do caso a uma norma preestabelecida. Se no existe norma

    aplicvel, ento o juiz deve recusar a demanda. No direito no existem casos

    difceis porque tudo o que no est proibido est permitido. O direito sempre

    oferece resposta aos problemas que so propostos. A funo do juiz est

    subordinada lei.

    B) O modelo realista defendido por muitas correntes antiformalistas. Segundo estes

    modelos, as decises dos juzes so fruto de suas preferncias pessoais e de

    sua conscincia subjetiva. O juiz primeiro decide, e logo justifica sua deciso 12

  • mediante normas. Por isso Llevellyn afirmava que as normas no so mais que

    brinquedos vistosos. Nesse modelo, carece de sentido colocar o tema dos casos

    difceis porque no se do na realidade. O juiz sempre soluciona os casos que

    lhe so propostos. O juiz tem, portanto, poder poltico, e na realidade no est

    subordinado lei. Este modelo justifica o afastamento do juiz da lei. Concede ao

    poder judicirio um autntico poder poltico que no congruente com o sistema

    de legitimao do estado democrtico nem com o postulado da separao de

    poderes.

    C) O modelo positivista da discricionariedade judicial. Este modelo reconhece a

    existncia de casos difceis nos quais no existe norma aplicvel. Em pginas

    anteriores se analisou este modelo defendido por autores como Hart e Bobbio.

    Nos casos difceis, o juiz tem discricionariedade no sentido forte do termo. Este

    modelo defende o poder poltico do juiz e lhe permite a aplicao de normas

    retroativas. O direito no oferece respostas corretas mas uma variedade de

    possveis respostas. O juiz decide discricionariamente entre elas.

    D) O modelo de Dworkin da resposta correta. Segundo esse modelo, o juiz sempre

    encontra resposta correta no direito preestabelecido. O juiz carece de

    discricionariedade e, portanto, de poder poltico. A verdadeira resposta

    corresponde teoria que capaz de justificar do melhor modo os materiais

    jurdicos vigentes.

    O modelo de Dworkin evita vrios problemas importantes: o primeiro, que o juiz

    no se constitua em legislador, o que significa que o poder judicirio tem como funo

    garantir direitos preestabelecidos.

    Em segundo lugar, a tese de Dworkin compatvel com o postulado da separao

    de poderes, posto que o juiz est subordinado lei e ao direito. O poder judicirio nulo

    - como afirmava Montesquieu - porque sua funo garantir direitos.

    Em terceiro lugar: o modelo da resposta correta recusa a teoria do silogismo, mas

    aceita seu princpio poltico bsico: o juiz no tem nem pode ter poder poltico. A funo

    do juiz garantir os direitos individuais e no assinalar objetivos sociais. A funo judicial

    distinta da legislativa ou da executiva.

    13

  • Em quarto lugar: nos casos difceis, os juzes no baseiam suas decises em

    objetivos sociais ou diretrizes polticas. Os casos difceis so resolvidos com base em

    princpios que fundamentam direitos.

    Sem dvidas, todas estas teorias da funo judicial podem ser criticadas.

    Entretanto, pode ser que a teoria de Dworkin da funo judicial deva ser levada a srio

    porque no incorre nos exageros das teorias silogstica e realista ( que negavam os casos

    difceis). Tampouco incorre nas contradies da teoria da discricionariedade judicial ( pois

    de um modo ou outro conceder poder poltico ao juiz supe trair o sistema de legitimao

    do estado democrtico e tambm supe a aceitao de leis retroativas).

    A linha de anlise de Dworkin sugere a negao do poder poltico do juiz sem

    reduzir sua atividade a uma mera operao mecnica. Em seu modelo o juiz garantidor

    de direito e no criador deles, e, neste sentido, um fiel seguidor de Montesquieu, para

    quem o poder judicirio era nulo. Por outra parte, a anlise de Dworkin no supe uma

    quebra de legitimao do estado democrtico nem a criao de normas retroativas. Por

    ltimo, o modelo de Dworkin concorda com a idia de que o poder judicirio no tem o

    poder poltico supremo nos casos difceis. O homem da rua sabe que o poder supremo

    no se encontra nos juzes e sustentar em estado bruto a teoria da discricionariedade

    judicial supe reconhecer - em ltima instncia - que os juzes podem desvirtuar

    mediante interpretao no apenas as leis mas tambm a Constituio. Para todos

    aqueles que creiam que o poder judicirio est subordinado a princpios superiores (sejam

    legais, constitucionais ou morais) o modelo de Dworkin da funo judicial ser atrativo.

    O Novo Liberalismo

    Uma das chaves do xito da obra de Dworkin se encontra em sua pretenso de

    fundamentar o liberalismo progressista. Pretende construir e justificar uma teoria poltica

    liberal superadora do liberalismo conservador. A crtica ao positivismo jurdico - que a

    manifestao por excelncia da teoria jurdica liberal tradicional - e a crtica ao utilitarismo

    - que at hoje tem sido uma das manifestaes da filosofia poltica liberal - ocupa um

    lugar muito importante como prolegmeno do novo liberalismo progressista.

    Dworkin pretende resgatar o liberalismo das garras do positivismo jurdico e da

    filosofia utilitarista. Seu ataque ao positivismo reforado pelo seu ataque filosofia

    utilitarista. A tese dos direitos um dos instrumentos mais eficientes que usa para

    14

  • demonstrar a debilidade dos argumentos utilitaristas quando se prope o tema de direitos

    individuais.

    Dworkin restaura o liberalismo individualista radical. Fundamentado em um

    poderoso aparato analtico - herdado de Rawls -, o novo liberalismo progressista por

    suas opinies favorveis desobedincia civil ou discriminao inversa.

    Dworkin se preocupa em manter distncia da filosofia utilitarista liberal. Seu

    liberalismo no utilitarista, mas igualitrio. Dworkin afirma que popular a opinio de

    que uma forma de utilitarismo, que considera que o desenvolvimento um valor em si,

    constituinte do liberalismo... mas esta opinio errnea. O desenvolvimento econmico

    foi um elemento derivado do liberalismo do New Deal. Parecia que desempenhava papel

    til para obter a complexa distribuio igualitria dos recursos exigida pelo liberalismo. Se

    agora parece que o desenvolvimento econmico prejudica mais do que ajuda a

    concepo liberal de igualdade, ento o liberal livre para recusar ou cortar o

    crescimento como estratgia.xxv[xxv] A oportunidade da obra de Dworkin - em um

    momento em que o liberalismo havia deixado de ser tutor eficaz do equilbrio entre os

    direitos individuais e o bem estar social - explica a transcendncia desta obra.xxvi[xxvi]

    Como bom liberal, Dworkin considera que um dos objetos principais do sistema

    jurdico controlar e limitar a ao do governo. Todavia, a defesa dos direitos individuais -

    e muito especialmente a defesa do direito igual considerao e respeito - no o leva a

    posies conservadoras, mas progressistas.

    s vezes, essa filosofia individualista coerentemente aplicada deveria conduzi-lo a

    posies conservadoras como nos casos estudados de Affirmative Action2[2] e

    discriminao inversa. Como assinalou Sandel, Dworkin defende a Affirmative Action...

    seu argumento bsico um argumento de utilidade social. A Affirmative Action est

    justificada porque um meio efetivo para atacar um problema nacional...Entretanto

    Dworkin, como Rawls, cr que nenhum objetivo social se pode justificar - ainda que sirva

    ao bem estar geral - se viola os direitos individuais.xxvii[xxvii] Os saltos nos quais incorre

    Dworkin tm dado lugar a crticas contraditrias. Por uma parte, Raz tem sustentado que

    sua teoria conservadora, enquanto Mackie a tem considerado radical. O prprio Dworkin

    afirma, referindo-se a Raz, que sua acusao de conservador me encanta porque

    representa um antdoto opinio generalizada de que minha teoria radical.

    215

  • Apesar das possveis incoerncias que existem na proposio e desenvolvimento

    da teoria liberal de Dworkin, preciso reconhecer seu esforo realizado com o objetivo de

    resgatar o ncleo da moral liberal dos excessos utilitaristas e conseqencialistas. A

    reabilitao do direito a igual considerao e respeito - como o primeiro e autntico direito

    individual da moral liberal - permite-lhe um novo desenho da filosofia liberal que se afasta

    do liberalismo tradicional conservador. Dworkin ( em seu trabalho Liberalismo) considera

    que os princpios do liberalismo utilitarista esto em crise e que h que se abandonar a

    estratgia utilitarista. Porm, isso no significa que o liberalismo esteja definitivamente

    morto. Para Dworkin, a fundamentao do liberalismo igualitrio necessria para a

    reabilitao do liberalismo progressista.

    O radicalismo igualitarista de Dworkin o conduz a teses exageradas que tm sido

    objeto de numerosas crticas. Por exemplo, sustenta que no existe um direito

    liberdade. E no existe tal direito liberdade - no sentido forte do direito - porque o

    Estado no pode limitar a liberdade dos cidados baseando-se em polticas de bem estar

    geral. Se os direitos se definem como triunfos frente aos interesses gerais, ento o direito

    liberdade no um autntico direito que compita com o direito igualdade.

    Evidentemente, esta tese provocou numerosas crticas dos liberais conservadores que

    privilegiaram o direito liberdade sobre o direito igualdade. Precisamente Dworkin

    sustenta - frente teoria dominante - que esses direitos no esto em tenso porque o

    verdadeiro liberal respeita o princpio da igualdade como o primeiro e superior direito e

    como o autntico direito. Neil MacCormick, por exemplo, criticando Dworkin assinala que

    em certas matrias a gente tem direito liberdade e que em outras matrias tem direito

    igualdade.xxviii[xxviii] Husak, em Ronald Dworkin and the Right of Liberty,xxix[xxix]

    pretende demonstrar que o direito liberdade existe e que as razes dadas por Dworkin

    para sua recusa so insatisfatrias. E so insatisfatrias porque qualquer argumento que

    se use contra o direito liberdade se pode usar tambm contra o direito igualdade. E

    coloca o exemplo dos impostos progressivos que violam o direito igualdade mas que se

    justificam pelos benefcios sociais que supem. Para Husak as consideraes utilitaristas

    podem justificar a negao dos direitos em alguns casos e em outros no. Husak no

    apenas se limita a mostrar esta tese da variedadexxx[xxx] mas tambm assinala que o

    prprio Dworkin a aceita implicitamente e, se assim, ento Dworkin tampouco leva os

    direitos to a srio quanto aparenta (p.127). Se os direitos devem ser tomados

    seriamente no devemos permitir que a simpatia pelo liberalismo nos leve a crer que o

    direito liberdade no existe (p.130).

    16

  • O radicalismo igualitrio de Dworkin coerente com sua tese dos direitos e o

    carter axiomtico do direito igualdade. Entretanto, Dworkin no apenas interveio em

    debates tcnico-jurdicos mas tambm interveio nos debates polticos desde a palestra

    liberal New York Review of Books. Uma aplicao coerente do princpio de igualdade

    entendida como direito individual igualdade deveria recusar qualquer poltica de

    igualdade levada a cabo pelo governo que favorece a igualdade mas que viola o direito

    igual considerao e respeito individual. Porm, este no o caminho seguido por

    Dworkin, porque forando os argumentos justifica com razes utilitaristas as polticas de

    igualdade que violam o direito igualdade. As simpatias pelo liberalismo progressista

    pesam mais que sua declarao primignia de considerar o direito como um mecanismo

    que serve para proteger o indivduo frente ao poder do governo e das maiorias. No prprio

    Dworkin, s vezes as consideraes utilitaristas servem para negar os direitos individuais

    e s vezes no. Essa uma boa prova de que tambm Dworkin aceita implicitamente a

    tese da variedade. Entretanto, evidente que neste caso a incoerncia do pensamento

    de Dworkin manifesta, posto que nenhum direito pode ser violado ( se um direito no

    sentido forte) por consideraes utilitaristas, segundo sua prpria definio dos direitos

    como triunfos frente s maiorias e aos objetivos sociais. A tese da variedade e a definio

    de direitos dada por Dworkin so incompatveis, e - entretanto - o autor americano

    mantm as duas a uma s vez. A inconsistncia do argumento neste ponto clara.

    Concluses

    Os trabalhos de Dworkin reunidos neste livro constituem um elemento

    imprescindvel para a reflexo filosfica, poltica e jurdica atual. O leitor encontrar

    importantes argumentos para a superao do positivismo jurdico metodolgico que

    domina em nossas latitudes. Encontrar uma teoria dos casos difceis e da incerteza do

    direito que ir colocar em questo as teses tradicionais da funo judicial. indubitvel

    que a novidade das teses dworkianas e seu radicalismo podem produzir certas

    surpresas, mas no se h esquecer que se esta obra produziu to importante literatura

    porque a merecia.

    Em segundo lugar: nestes trabalhos se mostram as necessrias conexes

    existentes entre o direito, a moral e a poltica. As escolas analticas se esmeraram em

    mostrar as diferenas e as autonomias absolutas entre elas. Dworkin pretende construir

    as pontes que as escolas analticas destruram.

    17

  • Em terceiro lugar: Dworkin constri uma teoria dos direitos baseada no direito

    igualdade que difere das teorias puramente positivistas e leva a discusso construo

    do argumento moral e dos direitos morais. As linhas de demarcao entre direitos morais

    e jurdicos permanecem difuminadas.

    Em quarto lugar: Dworkin reabilita o liberalismo radical igualitrio como uma

    filosofia poltica determinada e coerente, distinta na estratgia do liberalismo tradicional

    mas com um ncleo moral e poltico justificador do novo liberalismo progressista.

    Em quinto lugar: creio que para os juristas continentais pode ser de grande

    utilidade o contato com a filosofia jurdica norte-americana. A teoria e a filosofia jurdica

    europia tm se caracterizado pelo seu academicismo e por seu mtodo da abstrao

    generalizante. O formalismo tem sido considerado como um dos baluartes frente a teorias

    e filosofias irracionalistas e aliberais. Dworkin, seguindo uma antiga tradio americana,

    parte de problemas muito concretos e no aceita o postulado formalista da separao

    absoluta entre o aspecto descritivo de uma teoria e seu aspecto normativo. A teoria

    jurdica de Dworkin no apenas tem funes cognoscitivas, mas tambm funes prticas

    de adequao do direito mudana social. A utilizao das capacidades humanas para

    resolver problemas justifica a existncia da teoria jurdica. O enfoque de problemas

    concretos e a anlise de suas conseqncias so necessrios em um mbito cultural

    como o nosso em que o saber jurdico mais desenvolvido - a dogmtica - se refugiou em

    um esplendoroso isolamento para evitar a debilidade de suas proposies.

    Por ltimo: o aparato analtico utilizado por Dworkin permite propor e resolver

    problemas de forma nova. Porm, como qualquer mtodo, tem suas limitaes das quais

    o prprio Dworkin muito consciente. Com o aparato analtico de Dworkin apenas se

    pode observar um setor da realidade jurdica. Quem quer que creia que com esse aparato

    analtico possvel resolver qualquer problema confunde um mtodo com uma concepo

    de mundo.

    Todas estas so razes que corroboram a publicao desta importante obra aqui

    na Espanha; precisamente em um momento de especial efervescncia - poltica, social e

    jurdica - pode ser de especial utilidade a leitura de uma obra na qual os temas candentes

    da poltica jurdica esto presentes com toda a radicalidade - e em alguns casos

    incoerncia - que supem.

    18

  • O prprio Dworkin - em uma carta de 28 de dezembro de 1983 que ser publicada

    na revista Doxa da Universidade de Alicante - resumiu com especial clarividncia e em

    muito poucas palavras sua posio filosfica jurdica: De modo geral posso dizer que fui

    me conscientizando progressivamente da importncia de considerar a filosofia jurdica

    como parte importante da filosofia moral e poltica e, portanto, da filosofia. Creio que

    nossa matria sofreu isolamento, no sentido de que os conceitos legais podem ser

    explorados por si mesmos de um modo til, o qual d como resultado um trabalho

    analtico estril. Tentei pr especial nfase no fato de que os conceitos jurdicos

    fundamentais, incluindo a idia mesma de direito, so conceitos contestados ou

    interpretativos, de tal modo que no podem ser explicados utilizando-se as formas

    convencionais de anlise conceitual ou lingistica que so usadas para explicar, por

    exemplo, o conceito de justia. Portanto, qualquer teoria do direito competente deve ser

    ela mesma um exerccio de teoria moral e poltica normativa. Este ponto de vista me levou

    recentemente a estudar a idia de interpretao como algo mais importante para a teoria

    jurdica do que se havia considerado, e tambm a estudar a filosofia poltica quando

    minha maior preocupao tem sido a idia de igualdade. Tentei desenvolver uma teoria da

    conpetncia judicial que una esses campos com o estudo do processo legal.

    Sem margem de dvida, para os juristas formados no marco positivista, para os

    filsofos formados no mbito do utilitarismo, para os liberais e os marxistas, Dworkin um

    autor incmodo porque questiona os pressupostos fundamentais comumente aceitos. Por

    isso as teses de Dworkin exigem tambm resposta em nosso mbito cultural.

    19

  • iiiiiiiv

    vviviiviiiixxxixiixiiixivxvxvixviixviiixixxxxxixxiixxiiixxivxxvxxvixxviixxviiixxixxxx

    Ensaio sobre Dworkin* As teses sobre o positivismo Normas, diretrizes e princpios A regra de reconhecimento O neojusnaturalismo de Dworkin

    A Funo Judicial. Os casos difceis. A incerteza e a funo da teoria

    A Tese dos Direitos Modelos da Funo Judicial O Novo Liberalismo Concluses