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ENTRE IRMÃS KRISTIN HANNAH Talvez estivesse na hora de arranjar uma nova terapeuta. Harriet tinha acertado em todos os pontos fracos de Meghann. —A minha mãe veio visitar-me e

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ENTRE IRMÃS

KRISTIN HANNAH

ENTRE IRMÃS

Tradução deANA MARIA PINTO DA SILVA

Para a minha irmã, Laura.E para o meu pai, Laurence.

E, como sempre, para Benjamin e Tucker.Amo-vos a todos.

AGRADECIMENTOS

Um agradecimento à doutora Barbara Snyder e a Katherine Sto-ne... mais uma vez; obrigada a Diane VanDerbeek, extraordináriaadvogada, pela sua ajuda nas questões legais; e, por fim, os meus agra-decimentos a John e a Diane e à fantástica equipa do Olympus: Obriga-da por uma viagem de barco memorável e repleta de diversão.

Não vemos as coisas como elas são,vemo-las como nós somos.

— ANAÏS NIN

Se o amor é a resposta,poderia, por favor, refazer a pergunta?

— LILY TOMLIN

CAPÍTULO 1

A doutora Bloom aguardava pacientemente por uma resposta.Meghann Dontess recostou-se na sua cadeira e examinou as

unhas com atenção. Estava na altura de ir à manicura. Já passara atéda altura.

— Tento não sentir demasiado, Harriet. Você sabe isso. Achoque me impede de apreciar a vida.

— É por isso que vem à minha consulta todas as semanas há qua-tro anos? Porque gosta assim tanto da sua vida?

— Eu, no seu lugar, não punha as coisas nesses termos. Não abo-na muito a favor das suas capacidades psiquiátricas. É muito possível,como sabe, que eu fosse perfeitamente normal quando a conheci eque agora seja você quem me põe doida.

— Está outra vez a usar o humor como escudo.— Está a dar-me demasiada importância. Não teve graça.Harriet não sorriu.— Raramente lhe acho graça.— Lá se vai o meu sonho de ser atriz cómica.— Vamos falar sobre o dia em que você e a Claire foram sepa-

radas.Meghann mexeu-se pouco à vontade na cadeira. Logo quando

mais precisava de uma resposta sarcástica, teve uma branca. Sabia on-de Harriet estava a tentar chegar e Harriet sabia que ela o sabia. SeMeghann não respondesse, a pergunta seria simplesmente formuladade novo.

— Separadas. Uma palavra bonita e simples. Sem emoção. Gosto,mas esse assunto está encerrado.

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— É interessante que mantenha uma relação com a sua mãe, aomesmo tempo que se distancia da sua irmã.

Meghann encolheu os ombros.— A minha mãe é atriz. Eu sou advogada. Sentimo-nos à vontade

no mundo do faz-de-conta.— Isso quer dizer o quê?— Já alguma vez leu uma entrevista com ela?— Não.— Ela conta a toda a gente que vivemos uma existência pobre,

patética, mas cheia de amor. Nós fingimos que é verdade.— Viviam em Bakersfield quando a pretensa existência patética

mas cheia de amor terminou, não é verdade?Meghann permaneceu em silêncio. Harriet voltara a manipulá-la,

trazendo-a de volta àquele assunto doloroso como uma ratazana atra-vés de um labirinto.

Harriet prosseguiu:— A Claire tinha nove anos. Faltavam-lhe vários dentes, se bem

me lembro, e tinha dificuldades a matemática.— Pare.Meghann apertou os dedos em torno dos braços de madeira lisa

da cadeira.Harriet fitou-a. Por debaixo do contorno rebelde e negro das so-

brancelhas, o seu olhar era firme. Os pequenos óculos redondos am-pliavam-lhe os olhos.

— Não se esquive, Meg. Estamos a fazer progressos.— Mais uns quantos progressos e vamos precisar de uma ambu-

lância. Devíamos falar sobre o meu ofício. É por isso que eu venhoaqui, sabe muito bem. Hoje em dia, o Tribunal de Família é comouma panela de pressão. Ontem, apareceu-me um malandro de um paiao volante de um Ferrari e depois jurou a pés juntos que não tinhacheta. O anormal. Não queria pagar a pensão de alimentos e os estu-dos à filha. Azar o dele que eu tenha gravado em vídeo a sua chegada.

— Porque continua a pagar-me se se recusa a discutir a raiz dosseus problemas?

— Eu tenho questões, não problemas. E não há necessidade deesmiuçar o passado. Eu tinha dezasseis anos quando tudo aconteceu.

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Agora tenho uns anafados quarenta e dois. Está na hora de não olharpara trás. Fiz o que estava certo. Agora já não tem importância.

— Então, nesse caso, por que razão continua a ter esse pesadelo?Meghann brincou com a pulseira de prata David Yurman que trazia

no pulso.— Também tenho pesadelos com aranhas que usam óculos de sol

Oakley. Mas sobre isso nunca me pergunta nada. Ah, e na semana pas-sada sonhei que estava encurralada numa sala envidraçada cujo soalhoera feito de bacon. Conseguia ouvir as pessoas a chorar, mas não eracapaz de encontrar a chave. Quer falar sobre esse?

— Uma sensação de isolamento. Uma perceção de que as pessoasestão incomodadas com as suas atitudes, ou que sentem a sua falta.Muito bem, vamos lá falar sobre esse sonho. Quem estava a chorar?

— Merda.Meghann devia ter percebido. Afinal de contas, tinha um bachare-

lato em psicologia. Já para não falar do facto de em tempos ter sidouma criança prodígio.

Baixou os olhos e examinou o relógio de pulso em ouro e platina.— Que pena, Harriet. Acabou-se o tempo. Palpita-me que vamos

ter de deixar as minhas neuroses enfadonhas para a semana que vem.Pôs-se de pé, alisou as calças do seu fato Armani azul-marinho.

Não que houvesse sequer uma ruga à vista.Harriet tirou os óculos devagar.Meghann cruzou os braços num gesto instintivo de autoproteção.— Vá lá. Aposto que vai valer a pena.— Gosta da sua vida, Meghann?Não era de uma pergunta dessas que ela estava à espera.— O que há nela para não gostar? Sou a melhor advogada de di-

vórcios do estado. Vivo...— Sozinha...— Num espetacular condomínio por cima do Public Market e

conduzo um Porsche novinho em folha.— Amigos?— Falo com a Elizabeth todas as quintas-feiras à noite.— Família?

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Talvez estivesse na hora de arranjar uma nova terapeuta. Harriettinha acertado em todos os pontos fracos de Meghann.

— A minha mãe veio visitar-me e ficou em minha casa duranteuma semana no ano passado. Se tiver sorte, virá fazer-me outra visitamesmo a tempo de assistir à colonização de Marte, na MTV.

— E a Claire?— Eu e a minha irmã temos problemas, admito isso. Mas nada de

importante. Somos apenas demasiado ocupadas para podermos estarjuntas.

Uma vez que Harriet não disse nada, Meghann apressou-se a col-matar o silêncio.

— Tudo bem, ela dá comigo em doida por desperdiçar a sua vidadaquela maneira. É suficientemente inteligente para fazer o que qui-ser, mas continua amarrada àquele acampamento de falhados a quedão o nome de estância.

— Com o pai dela.— Não quero falar sobre a minha irmã. E definitivamente não quero

falar do pai dela.Harriet tamborilou com a caneta em cima da mesa.— Pois bem, então e isto: quando foi a última vez que dormiu

com o mesmo homem duas vezes?— Você é a única pessoa que acha que isso é uma coisa má. Eu

gosto de variedade.— Da mesma maneira que gosta de homens mais novos, certo?

Homens que não têm vontade de assentar. Livra-se deles antes de elesse livrarem de si.

— Mais uma vez, dormir com homens mais novos e sexy que nãoquerem assentar não é uma coisa má. Eu não quero uma casa comuma vedação nos subúrbios. Não estou interessada em vida familiar,mas gosto de sexo.

— E da solidão? Também gosta?— Eu não sou solitária — respondeu ela com teimosia. — Sou

independente. Os homens não gostam de mulheres fortes.— Os homens fortes gostam.— Nesse caso, o melhor é eu começar a frequentar ginásios em

vez de bares.

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— E as mulheres fortes enfrentam os seus medos. Falam sobre asescolhas dolorosas que fizeram na vida.

Meghann chegou mesmo a sobressaltar-se.— Desculpe, Harriet, estou cheia de pressa. Até para a semana.E dito isto, saiu do gabinete.Lá fora estava um dia de junho gloriosamente luminoso. Era o

início do denominado verão. Em todos os outros lugares do país, aspessoas iam para a praia, faziam churrascos e organizavam piqueni-ques à beira da piscina. Ali, na velha e boa Seattle, as pessoas confe-riam de forma metódica os seus calendários e resmungavam que erajunho, caraças.

Apenas uns quantos turistas andavam por ali nessa manhã; foras-teiros identificáveis pelos seus guarda-chuvas enfiados debaixo dosbraços.

Meghann respirou fundo por fim enquanto atravessava a rua mo-vimentada e cortava caminho pelo relvado do parque na margem dorio. Um enorme totem saudou-a. Por detrás dele, uma dezena de gai-votas mergulhava em busca de pedaços de comida deitada fora.

Passou por um banco de jardim onde um homem se encontravadeitado, embrulhado num cobertor de jornais amarelados. À sua fren-te, o Sound de um azul intenso estendia-se ao longo da pálida linhado horizonte. Desejou retirar algum conforto daquela vista; muitasvezes, era capaz. Contudo, naquele dia a sua mente estava presa na re-de de um outro tempo e de um outro lugar.

Se fechasse os olhos — coisa que não se atrevia a fazer — lem-brar-se-ia de tudo: a marcação do número de telefone; a conversa for-mal e desesperada com um homem que não conhecia; a longa e silen-ciosa viagem de carro até àquela cidadezinha de trampa no Norte. E opior de tudo, as lágrimas que enxugara nas faces afogueadas da irmãmais nova quando lhe disse: Vou deixar-te, Claire.

Os seus dedos fecharam-se em torno da balaustrada. A doutoraBloom estava errada. Falar sobre a opção dolorosa de Meghann e dosanos solitários que se lhe seguiram não iria ajudar em nada.

O seu passado não era propriamente um conjunto de recordaçõesa serem revisitadas; era como uma Samsonite descomunal com uma ro-da solta. Meghann aprendera isso há muito tempo. A única coisa quepodia fazer era arrastá-la pelo caminho atrás de si.

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*

Todos os meses de novembro, o poderoso rio Skykomish forçavaas suas margens lamacentas. A ameaça de inundações era um episódioanual. Numa dança tão antiga como o próprio tempo, as pessoas quehabitavam as minúsculas cidades ao longo das margens do rio obser-vavam e esperavam, com sacos de areia a postos. A sua memória re-montava a algumas gerações atrás. Toda a gente tinha uma históriapara contar sobre a época em que as águas subiam até ao segundo an-dar da casa de fulano e de sicrano... até ao cimo das entradas dasgranjas... até à esquina das ruas Spring e Azalea. As pessoas que mora-vam em locais mais planos e mais seguros viam os noticiários notur-nos e abanavam a cabeça, tagarelando sobre o ridículo e o absurdodos agricultores que viviam nas planícies de aluvião.

Quando o rio começava por fim a baixar, um suspiro coletivo de alí-vio percorria a cidade. De uma maneira geral principiava com EmmettMulvaney, o farmacêutico que via religiosamente o Canal Meteoroló-gico no único televisor de ecrã panorâmico que havia em Hayden.Chegava mesmo a reparar em alguns pormenores ínfimos das infor-mações, coisas que escapavam até aos meteorologistas especializadosde Seattle. Costumava transmitir o seu parecer ao xerife Dick Parks,que contava à sua secretária, Martha. Em menos tempo do que demo-rava ir de carro de uma ponta à outra da cidade, a notícia espalhava--se: Este ano não vai haver problemas. O perigo passou. Certo e sabido, vintee quatro horas após a previsão de Emmett, os meteorologistas eramda mesma opinião.

Este ano não seria uma exceção, mas agora, naquele belo dia doinício do verão, era fácil esquecer esses meses perigosos em que aqueda da chuva punha toda a gente maluca.

Claire Cavenaugh estava de pé na margem do rio, com as suas bo-tas de trabalho enterradas na macia lama castanha quase até aos tor-nozelos. A seu lado, um cortador de relva sem gasolina estava tomba-do no chão.

Ela sorriu, enxugou a testa, passando-lhe com a mão enfiada nu-mas luvas. A imensa quantidade de trabalho que era preciso fazer parater a estância pronta para a época de verão era inacreditável.

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Estância.Foi assim que o seu pai apelidou aqueles cerca de sessenta e cinco

metros quadrados de terreno. Sam Cavenaugh adquirira aquelas terrashá quase quarenta anos, numa altura em que Hayden não era mais doque um posto de gasolina na subida para Stevens Pass. Comprara olote de terreno por tuta-e-meia e instalou-se na granja decrépita quedele fazia parte. Deu a esse lugar o nome de River’s Edge Resort e co-meçou a sonhar com uma vida que não incluía capacetes e tampõespara os ouvidos, nem turnos da noite na fábrica de papel de Everett.

No início trabalhava fora do horário de expediente e aos fins desemana. Com uma motosserra, uma furgoneta e uma planta desenha-da num guardanapo de papel e começou os trabalhos. Desbravou eaplanou campos, eliminou ervas daninhas e matagais que valiam porcem anos e construiu à mão cada chalé de pinheiro nodoso à beira dorio. Hoje em dia, River’s Edge era um próspero negócio familiar. Ha-via oito chalés ao todo, cada um com dois bonitos quartos, uma únicacasa de banho e um terraço com vista para o rio.

Nos últimos anos, acrescentaram uma piscina e uma sala de jogos.Os planos para construir um campo de minigolfe e uma lavandaria es-tavam em andamento. Era o tipo de lugar a que as famílias voltavamano após ano a fim de passarem o seu precioso tempo de férias.

Claire ainda se recordava da primeira vez que o vira. As árvoresenormes e o impetuoso rio prateado afiguraram-se como sendo o pa-raíso para uma rapariga criada numa caravana que se limitava a ficarparada no lado pobre da cidade. As suas recordações de infância antesde vir para River’s Edge eram sombrias: cidades feias que iam e vi-nham; apartamentos ainda mais feios em edifícios degradados. E amãe. Sempre a fugir de uma coisa ou de outra. A mãe casara váriasvezes, mas Claire não era capaz de se lembrar de nenhum homem quetenha ficado com ela durante mais tempo do que dura um pacote deleite. Meghann era a única de quem Claire se lembrava. A irmã maisvelha que tomava conta de tudo... e que um dia partiu, deixando Clai-re para trás.

Agora, todos esses anos depois, as suas vidas encontravam-se li-gadas pelo mais ténue dos fios. Uma vez de tantos em tantos meses,ela e Meg falavam pelo telefone. Nos dias especialmente maus, limita-vam-se a falar sobre o tempo. Depois, para não variar, Meg tinha «de

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fazer outra chamada» e desligava. A irmã adorava sublinhar como erabem-sucedida. Meghann era capaz de martelar na mesma tecla duran-te dez minutos, afirmando que Claire se tinha vendido barato.

— Viver nesse pequeno acampamento disparatado, a fazer limpe-zas para outras pessoas.

Era esse o seu discurso habitual e, todos os anos pelo Natal, ofe-recia-se para lhe pagar os estudos na faculdade.

Como se ler o Beowulf fosse melhorar a vida de Claire.Durante anos, Claire ansiou que fossem amigas, além de irmãs,

mas Meghann não o queria e Meghann levava sempre a melhor. Elaseram aquilo que Meghann queria que fossem: desconhecidas educadasque partilhavam um tipo sanguíneo e uma infância miserável.

Claire pegou no cortador de relva. À medida que caminhava acusto pelo terreno esponjoso, ia reparando numa dezena de coisasque precisavam de ser feitas antes do dia da inauguração. As rosas queprecisavam de ser podadas, o musgo que era necessário raspar dos te-lhados, o bolor que tinha de ser esfregado das balaustradas do pórti-co. E havia ainda a monda. Um inverno longo e húmido transforma-ra-se numa primavera surpreendentemente luminosa e a relva cresceradando quase pelos joelhos de Claire. Tomou nota mentalmente parapedir a George, o seu faz-tudo, que fizesse uma boa limpeza nessatarde, esfregando as canoas e os caiaques.

Atirou para a parte posterior da carrinha o cortador de relva, queembateu no fundo com um sonante baque que fez chocalhar a cabinaenferrujada.

— Olá, querida. Vais à cidade?Voltou-se e viu o pai de pé no alpendre do edifício da receção.

Usava umas jardineiras coçadas, com manchas castanhas espalhadaspelo peitilho causadas por alguma mudança de óleo há muito esqueci-da, e uma camisa de flanela.

O homem tirou um enorme lenço vermelho do bolso das calças eenxugou a testa ao mesmo tempo que se dirigia para a filha.

— A propósito, estou a consertar aquele frigorífico. Escusas de irsaber os preços dos novos.

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Não havia eletrodoméstico nenhum que ele não fosse capaz dereparar, mas, em todo o caso, Claire ia indagar sobre os preços.

— Precisas de alguma coisa da cidade?— O Smitty tem uma peça para mim. Podes ir buscá-la?— Feito. E manda o George começar a limpar as canoas assim

que chegar, está bem?— Vou pôr isso na minha lista.— E manda a Rita lavar o teto da casa de banho do chalé número

seis com lixívia. Ficou bolorento este inverno.Claire fechou a porta da cabina.— Vens jantar a casa?— Hoje não. A Ali tem um jogo de tee ball em Riverfront Park,

estás lembrado? Às cinco horas.— Ah, é verdade. Eu apareço por lá.Claire acenou com a cabeça, sabendo que ele iria mesmo. Nunca

perdera um único acontecimento na vida da neta.— Até logo, pai.Claire agarrou na maçaneta da porta e puxou-a com força. A por-

ta abriu com uma enorme chiadeira. Agarrou-se ao volante preto e su-biu para o assento.

O pai empurrou a porta e bateu-a com força.— Vai com cuidado na estrada. Presta atenção à curva ao quiló-

metro sete.Claire sorriu. Há quase duas décadas que ele lhe dava aquele mes-

mo conselho.— Gosto muito de ti, pai.— Eu também. Agora, vai buscar a minha neta. Se te despacha-

res, ainda temos tempo para ver os desenhos animados antes do jogo.

CAPÍTULO 2

O lado ocidental do edifício de escritórios estava virado paraPuget Sound.

Uma parede de janelas que iam do chão ao teto emoldurava a belís-sima vista de um azul-pastel. Ao longe situava-se a colina arborizada deBainbridge Island. À noite, podiam avistar-se algumas luzes por entreaquela escuridão negra e verde; contudo, à luz do dia, a ilha parecia desa-bitada. Apenas a balsa branca, aportando ruidosamente na sua doca dehora a hora, indicava que havia pessoas a morar lá.

Meghann estava sentada, sozinha, a uma mesa de reuniões com-prida em forma de rim. A superfície lustrosa em madeira de cerejeirae ébano evidenciava elegância e dinheiro. Talvez acima de tudo di-nheiro. Uma mesa como esta tinha de ser feita por encomenda e de-senhada individual e exclusivamente; o mesmo se aplicava também àscadeiras de camurça. Quando uma pessoa se sentava a esta mesa econtemplava aquela vista, a conclusão era óbvia: quem quer que fosseo dono deste escritório, era uma pessoa muitíssimo bem-sucedida.

Era verdade. Meghann atingira todos os objetivos que se propu-sera para si mesma. Quando entrou para a faculdade, era uma ado-lescente assustada e solitária, que não se atrevia a sonhar em ter umavida melhor. Agora tinha-a. O seu escritório encontrava-se entre osmais bem-sucedidos e mais respeitados da cidade. Possuía um aparta-mento caríssimo na baixa de Seattle (muito longe da caravana a cair aosbocados que fora o «lar» da sua infância) e ninguém dependia dela.

Lançou um olhar ao seu relógio. Eram quatro e vinte.

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A sua cliente estava atrasada.Seria de esperar que cobrar honorários muito superiores a trezen-

tos dólares por hora encorajasse as pessoas a chegar a horas.— Doutora Dontess?— Sim, Rhona?— A sua irmã, Claire, está na linha um.— Pode passar. E avise-me assim que a May Monroe chegar.— Muito bem.Premiu um botão nos seus auriculares e forçou um sorriso na voz.— Claire, que bom que ligaste.— O telefone funciona para os dois lados, sabes muito bem. Mas

então? Como vai a vida na Terra do Dinheiro?— Ótima. E aí por Hayden? As pessoas ainda ficam sentadas à

espera que o rio inunde?— Esse perigo já passou, pelo menos por este ano.— Ah.Meghann olhou pela janela. Lá em baixo à sua esquerda, gigantes-

cas gruas cor de laranja carregavam contentores multicolores paradentro de um cargueiro. Não fazia a mínima ideia do que dizer à irmã.Tinham um passado em comum, mas não ia além disso.

— Então como vai essa minha linda sobrinha? Ela gostou daprancha de skate?

— Adorou — respondeu Claire e riu-se. — Mas francamente,Meg, um dia destes vais ter de pedir ajuda a um vendedor. De umamaneira geral, as meninas de cinco anos não têm coordenação paramanobrar pranchas de skate.

— Tu tinhas. Vivíamos em Needles nesse ano. No mesmo anoem que te ensinei a andar de bicicleta.

Meg desejou de imediato não ter dito aquilo. Fazia-lhe sempremal lembrar-se do seu passado conjunto. Durante muitos anos, Clairefora mais uma filha para Meghann do que uma irmã. Sem dúvida queMeg fora mais mãe para Claire do que alguma vez a sua mãe tinha sido.

— Da próxima vez compra-lhe um filme da Disney e pronto.Não precisas de gastar tanto dinheiro com ela. Ela fica feliz com umaPolly Pocket.

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Fosse lá isso o que fosse. Um silêncio constrangedor interpôs-se en-tre elas. Meghann consultou o relógio e depois ambas falaram aomesmo tempo.

— O que é que tu...— A Alison está a gostar do primeiro ano na escola...?Meghann comprimiu os lábios. Foi precisa muita força de vonta-

de para não falar, mas ela sabia que Claire detestava que a interrom-pessem. Odiava em especial quando Meg monopolizava as conversas.

— Está — respondeu Claire. — A Ali está ansiosa por ir o dia in-teiro para a escola. O jardim de infância ainda nem terminou e ela jáestá desejosa de que chegue o outono. Está sempre a falar nisso. Àsvezes tenho a impressão de estar agarrada à cauda de um cometa.E nunca está quieta, nem quando dorme.

Meghann ia começar a dizer Tu eras igual, mas deteve-se. Magoa-va-a lembrar-se disso; queria ser capaz de eliminar as memórias.

— Então, como vai o trabalho?— Vai bem. E o acampamento?— Estância. Abrimos dentro de pouco mais de duas semanas. Os

Jeffersons vão fazer uma reunião familiar aqui com cerca de vintepessoas.

— Uma semana sem acesso a telefone ou televisão? Porque seráque estou a ouvir o tema musical do filme Fim de Semana Alucinante naminha cabeça?

— Algumas famílias gostam de se juntar — disse Claire naqueletom de voz tu magoaste-me.

— Desculpa. Tens razão. Eu sei que tu adoras esse lugar. Escuta— disse ela, como se tivesse acabado de ter essa ideia —, porque nãome deixas emprestar-te algum dinheiro para construíres uma espéciede pequeno spa na propriedade? Ou melhor ainda, um pequeno hotel.As pessoas iriam aparecer por aí em bandos para uns belos tratamen-tos de corpo. Sabe Deus que lama não vos falta.

Claire soltou um longo e profundo suspiro.— Fazes sempre questão de me lembrar que tu és rica e eu não

sou. Caramba, Meg.— Não foi isso que eu quis dizer. É só... porque sei que não po-

des expandir o negócio sem capital.

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— Não quero o teu dinheiro, Meg. Nós não o queremos.Lá estava ele: o lembrete de que Meg era um eu e de que Claire era

um nós.— Desculpa se disse o que não devia. Só queria ajudar.— Já não sou a criancinha que precisava da proteção da irmã mais

velha, Meg.— O Sam sempre foi ótimo a proteger-te.Meg percebeu uma pequena centelha de amargura na voz da irmã.— Pois.Claire fez uma pausa e respirou fundo. Meghann sabia o que

a irmã estava a fazer. A reorganizar ideias e a passar para um terrenomais seguro, mais suave.

— Vou para o lago Chelan — disse ela por fim.— Aquela viagem anual com as amigas — disse Meghann, grata

pela mudança de assunto. — Como é que vocês se intitulam? As Me-lancólicas?

— É isso mesmo.— Vão para o mesmo lugar?— Todos os verões desde o liceu que fazemos isso.Meghann perguntou-se como seria ter uma irmandade de amigas

assim tão chegadas. Se ela fosse outro tipo de mulher, poderia sentirinveja. Fosse como fosse, não tinha tempo para vaguear por aí comuma data de mulheres. Além de que não era capaz de se imaginar acontinuar a ser amiga das mesmas pessoas com quem tinha andadono liceu.

— Muito bem. Diverte-te.— Ah, podes ter a certeza de que nos vamos divertir. Este ano, a

Charlotte...O intercomunicador tocou.— Meghann. A senhora Monroe já chegou.Graças a Deus. Uma boa desculpa para desligar. Claire era capaz de fa-

lar sem parar sobre as suas amigas.— Bolas. Desculpa, Claire, tenho de desligar.— Ah, não faz mal. Eu sei que tu adoras ouvir as histórias das mi-

nhas velhas amigas do liceu.— Não é isso. Tenho uma cliente que acabou de chegar.

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— Pois, claro. Adeusinho.— Adeus.Meghann desligou a chamada assim que a secretária mandou en-

trar May Monroe para a sala de reuniões.Meghann tirou os auriculares e atirou-os para cima da mesa, onde

embateram com estrépito.— Olá, May — disse ela, encaminhando-se em passo rápido na

direção da sua cliente. — Obrigada, Rhona. Não passes chamadas,por favor.

A secretária anuiu com um aceno de cabeça e abandonou a sala,fechando a porta atrás de si.

May Monroe estava de pé em frente de um grande quadro a óleomulticolor, um original de Nechita intitulado Amor Verdadeiro. Meghannsempre gostara da ironia desse conceito: ali, naquela sala, o amor verda-deiro morria todos os dias da semana.

May envergava um prático e funcional vestido de malha preto esapatos pretos que estavam há, pelo menos, cinco anos fora de moda.O seu cabelo louro num tom de champanhe caía-lhe suavemente so-bre os ombros num corte de estilo ultrapassado e fácil de cuidar.A sua aliança de casamento era um elo simples de ouro.

Olhando para ela, nunca poderíamos imaginar que o marido con-duzia um Mercedes preto e frequentava todas as terças-feiras o Broad-moor Golf Court para jogar golfe. É muito provável que May nãogastasse dinheiro consigo mesma há muitos anos. Pelo menos, desdeque trabalhara como uma escrava num restaurante local para poderpagar os estudos de medicina dentária do marido. Apesar de ser ape-nas alguns anos mais velha do que Meghann, a tristeza deixara as suasmarcas bem visíveis em May. Viam-se uns círculos escuros de olheiraspor debaixo dos seus olhos.

— Por favor, May, sente-se.May inclinou-se para a frente como uma marioneta que tivesse si-

do manipulada por outra pessoa. Sentou-se numa das confortáveis ca-deiras de camurça.

Meghann ocupou o seu lugar habitual à cabeceira da mesa. Aber-tas à sua frente encontravam-se várias pastas de processos com papéisautocolantes cor-de-rosa vivo sobressaindo nos rebordos dos docu-mentos. Meghann tamborilou com as pontas dos dedos sobre a pilha

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de papéis, perguntando-se qual das suas inúmeras abordagens seria amelhor. Ao longo dos anos, aprendera que se verificavam tantas rea-ções às más notícias quanto indiscrições em si. O instinto avisou-a deque May Monroe era frágil, que apesar de estar em plena rutura doseu casamento, ainda não aceitara por completo o inevitável. Muitoembora os papéis do divórcio tivessem dado entrada há meses, Mayainda não acreditava que o marido levasse o processo adiante.

Depois desta reunião, iria acreditar.Meghann olhou para ela.— Tal como lhe disse na nossa última reunião, May, contratei um

detetive particular para vasculhar os assuntos financeiros do seu marido.— Foi uma perda de tempo, não foi?Independentemente do número de vezes que esta cena era repre-

sentada até à exaustão neste escritório, nunca foi ficando mais fácil.— Não propriamente.May fitou-a por um longo momento, depois pôs-se de pé e diri-

giu-se ao serviço de café em prata que se encontrava em cima da cre-dência em madeira de cerejeira.

— Entendo — disse ela, mantendo-se de costas para Meghann.— O que foi que descobriu?

— O seu marido tem mais de seiscentos mil dólares numa contanas ilhas Caimão, de que ele é o único titular. Há sete meses, hipote-cou a quase totalidade do valor da vossa casa. Talvez você pensasseque estava a assinar os documentos de refinanciamento, não?

May voltou-se. Segurava na mão uma chávena de café e respetivopires. A porcelana tilintava nas suas mãos trémulas à medida que elase encaminhava até junto da mesa de reuniões.

— As taxas e os juros caíram.— O que caiu foi o dinheiro. E direitinho nas mãos dele.— Oh, meu Deus — sussurrou ela.Meghann pôde ver o mundo de May a desintegrar-se. Perpassou pe-

los olhos verdes da mulher; parecia que uma luz se apagara dentro dela.Era um momento que muitas mulheres enfrentavam numa situação

daquelas: a tomada de consciência de que os seus maridos não passa-vam de estranhos e de que os seus sonhos eram apenas isso mesmo.

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— Mas há mais e as notícias são péssimas — prosseguiu Meghann,tentando ser branda nas palavras que escolhia, mas sabendo o tama-nho do rombo que deixaria depois de proferi-las. — Ele vendeu oconsultório ao seu sócio, Theodore Blevin, por um dólar.

— Mas por que razão faria ele isso? O consultório vale...— Para que você não pudesse receber a metade a que tem direito.Nesse ponto, as pernas de May pareceram tê-la abandonado. En-

colheu-se toda na cadeira. A chávena e o pires bateram na mesa comestrépito. O café saltou pelo rebordo da porcelana e foi cair numa po-ça em cima da madeira. May começou de imediato a limpar o estarda-lhaço com o guardanapo.

— Desculpe.Meghann tocou com a mão no pulso da sua cliente.— Não se desculpe — disse; levantou-se, agarrou em alguns guar-

danapos e limpou a nódoa. — Eu é que tenho de pedir desculpa,May. Por mais vezes que eu assista a este tipo de comportamento,não consigo deixar de me sentir maldisposta.

Meghann tocou no ombro de May e concedeu à mulher um tem-po para pensar.

— Algum desses documentos diz por que razão ele me fez isto?Meghann desejou não ter de responder a essa pergunta. Por vezes

uma pergunta era preferível a uma resposta. Pegou no processo e ti-rou de lá uma fotografia a preto e branco. Com extremo cuidado, co-mo se ela tivesse sido revelada numa folha de explosivos plásticos enão num papel lustroso, empurrou-a na direção de May.

— O nome dela é Ashleigh.— Ashleigh Stoker. Já percebi por que razão ele se oferecia sem-

pre para ir buscar a Sarah às aulas de piano.Meghann abanou a cabeça. Era sempre pior quando a esposa co-

nhecia a amante, ainda que de passagem.— Washington é um estado sem imputação de culpabilidade; não

precisamos de fundamento para um divórcio, por isso o adultério delenão interessa.

May ergueu os olhos. Exibia a expressão vaga de olhos vidradosprópria de uma vítima de acidente.