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3065 ENTRE MINAS E A BAHIA: ENTRELAÇANDO HISTÓRIAS, CONSTRUINDO SABERES Ivana SACRAMENTO, SEC / UFBA Educação à distância na formação de professores [email protected] Introdução A educação a distância vem se inserindo no campo educacional como uma nova modalidade educativa e essa modalidade de ensino rompe a relação face a face entre professores e alunos e o processo de ensino e de aprendizagem ocorre em ambientes que transcendem o espaço da sala de aula tradicional, processando-se em outros espaços e tempos que diferem dos marcados pelas escolas convencionais, atendendo a demandas cada vez mais crescentes de segmentos diferenciados da sociedade. Os cursos de formação continuada de professores nesta modalidade vêm crescendo a cada dia, pois permite ao professor o aprimoramento da práxis pedagógica sem que seja preciso o seu “afastamento” da sala de aula. Nesse sentido, este relato de experiência tem por objetivo apresentar reflexões sobre a elaboração de projetos de letramento num curso EAD, especificamente do projeto feito por um professor licenciado em Letras, com pós-graduação Lato Sensu, da cidade de Uberlândia (MG), que foi construído com alunos da EJA numa escola da zona rural desta cidade. O professor elaborou o projeto a partir dos interesses reais de seus alunos, interligando as práticas de letramento selecionadas a conteúdos curriculares de outras disciplinas. Não há dúvida de que o curso e os eventos de letramento oriundos das práticas de letramento identificadas pelo professor junto aos estudantes modificaram a visão do modelo pedagógico vigente na escola em questão, e a ação do professor e dos alunos da EJA dessa escola. 2 Formação continuada na modalidade EAD – o curso “Caminhos da escrita” e as práticas de letramento

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ENTRE MINAS E A BAHIA: ENTRELAÇANDO HISTÓRIAS, CONSTRUINDO

SABERES

Ivana SACRAMENTO, SEC / UFBAEducação à distância na formação de professores

[email protected]

Introdução

A educação a distância vem se inserindo no campo educacional como uma nova

modalidade educativa e essa modalidade de ensino rompe a relação face a face entre

professores e alunos e o processo de ensino e de aprendizagem ocorre em ambientes

que transcendem o espaço da sala de aula tradicional, processando-se em outros

espaços e tempos que diferem dos marcados pelas escolas convencionais, atendendo a

demandas cada vez mais crescentes de segmentos diferenciados da sociedade. Os

cursos de formação continuada de professores nesta modalidade vêm crescendo a cada

dia, pois permite ao professor o aprimoramento da práxis pedagógica sem que seja

preciso o seu “afastamento” da sala de aula.

Nesse sentido, este relato de experiência tem por objetivo apresentar reflexões

sobre a elaboração de projetos de letramento num curso EAD, especificamente do

projeto feito por um professor licenciado em Letras, com pós-graduação Lato Sensu, da

cidade de Uberlândia (MG), que foi construído com alunos da EJA numa escola da zona

rural desta cidade. O professor elaborou o projeto a partir dos interesses reais de seus

alunos, interligando as práticas de letramento selecionadas a conteúdos curriculares de

outras disciplinas.

Não há dúvida de que o curso e os eventos de letramento oriundos das práticas

de letramento identificadas pelo professor junto aos estudantes modificaram a visão do

modelo pedagógico vigente na escola em questão, e a ação do professor e dos alunos da

EJA dessa escola.

2 Formação continuada na modalidade EAD – o curso “Caminhos da escrita” e as

práticas de letramento

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A busca pelos cursos a distância é perceptível, seja na formação inicial ou na

formação continuada. Essa modalidade de ensino é responsável por qualificar mão de

obra dos profissionais que já estão no mercado de trabalho e que dificilmente teriam

disponibilidade para frequentar cursos presenciais. Os cursos a distância diminuem o

elitismo educacional na medida em que também tornam possível o acesso à educação

àqueles indivíduos que residem em regiões ou cidades que não possuem universidades

ou instituições que ofertam cursos profissionalizantes ou Secretarias Estaduais e

Municipais que precisam ofertar formação continuada em serviço a seus profissionais.

No Brasil a legalização da educação a distância (EAD), enquanto modalidade de

ensino, se deu a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96 (BRASIL,

1996). Posteriormente, o Ministério da Educação através do decreto lei 5.622 firmou as

diretrizes gerais da EAD em seu Art. 1º:

Para os fins deste Decreto, caracteriza-se a educação a distância comomodalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nosprocessos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios etecnologias de informação e comunicação, com estudantes eprofessores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou temposdiversos. (BRASIL, 2005)

O conceito de educação a distância está relacionado à utilização de algum

recurso tecnológico e didático para mediar a comunicação entre professores e alunos, em

espaço e tempos distintos. Deste modo, essa modalidade educacional é responsável por

romper com os paradigmas educacionais tradicionais na medida em que torna possível,

através das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), estabelecer a relação de

ensino e de aprendizagem.

O curso Caminhos da Escrita é ofertado desde 2013 e faz parte da iniciativa do

MEC (Ministério da Educação) visando fortalecer as práticas de escrita dos alunos, por

meio da mediação dos professores para o ensino da escrita do Programa Olimpíada de

Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. Trata-se de um curso on-line, com duração de

treze semanas e carga horária de oitenta horas (80h), realizado completamente a

distância, com ensino baseado na mediação intensa da aprendizagem e na colaboração

ativa entre os alunos. O curso compreende um eixo teórico, em que são estudados temas

relacionados a práticas de letramento, e um eixo prático, em que o participante analisa

vídeos, nos quais professores relatam projetos de ensino da escrita na escola. Ao final, o

professor cursista é orientado a elaborar um pré-projeto, que é comentado pelo mediador

e pelos demais colegas.

Realizar um curso em torno de projetos de práticas de letramento, sobretudo à

distância, na Comunidade Virtual da Olimpíada de Língua Portuguesa “Escrevendo o

Futuro”, voltado para professores da rede pública, não é tarefa das mais simples, visto

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que muitas vezes o conceito de práticas de letramento, principalmente na elaboração dos

projetos, é confundido com outros conceitos, ou mesmo práticas arraigadas na cultura

escolar. A discussão sobre letramento não é muito fácil, apesar de algumas vezes

pensarmos que ela é óbvia em determinados contextos. Muitas vezes (e não são raras

essas ocasiões) nos deparamos com a confusão entre o letramento e a alfabetização,

entre os conceitos de eventos e práticas de letramento, entre outros. Portanto, o

letramento está relacionado com os usos da escrita em sociedade e com o impacto da

língua escrita na vida moderna (KLEIMAN, 2005).

Ao eleger como premissa as práticas de letramento como ponto de partida para

um trabalho significativo na sala de aula de língua portuguesa, é preciso deixar muito

claro para o professor cursista que:

as práticas de letramento são práticas culturais, presentes no nosso dia a dia,

histórica e socialmente contextualizadas, vinculadas às diversas esferas da vida

social;

é possível a transposição didática de tais práticas para o trabalho com leitura,

escrita, oralidade e conhecimentos linguísticos em Língua Portuguesa na escola.

Dessa forma, ao se pensar na pedagogia de línguas na contemporaneidade, é

pensar o uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação, mas, principalmente,

é refletir sobre a diversidade cultural e a diversidade de linguagens na escola.

2.1 Práticas de letramento: alicerçando a prática docente e empoderando os

estudantes

Tradicionalmente, o sistema educacional concentra-se na preocupação em

estimular a racionalidade, relegando como aspecto secundário estímulos que envolvem a

afetividade e a sensibilidade. Em se tratando de EAD, o mais provável é que se pense

num contato mais distante, mais impessoal, já que não há a interação face a face. No

entanto, hoje temos uma educação que ressalta a relevância das questões afetivas no

transcorrer da aprendizagem, independentemente da idade ou do nível de escolaridade.

Ou seja, a dinâmica na comunicação entre indivíduos, o acolhimento, o apreço, o sujeito

afável e a procura pelo bem estar do grupo e de si mesmo. Nas palavras de Moran (2004,

p.1),

o afetivo dinamiza as interações, as trocas, a busca, os resultados.Facilita a comunicação, toca os participantes, promove a união. O climaafetivo prende totalmente, envolve plenamente, multiplica aspotencialidades. O homem contemporâneo, pela relação tão forte com osmeios de comunicação e pela solidão da cidade grande, é muito sensívelàs formas de comunicação que enfatizam os apelos emocionais eafetivos mais do que os racionais.

No curso de formação continuada Caminhos da Escrita, são feitas muitas

atividades que, em certa medida, mexem com a afetividade, não só dos professores

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cursistas, como também dos mediadores. O conceito central do curso, que são as

práticas de letramento, por si só, nos leva ao envolvimento, seja de professores, alunos

ou mediadores, visto que práticas de letramento são “os modos culturais gerais de usar a

leitura e a escrita que as pessoas produzem num evento de letramento” (BARTON, 2000,

p. 11). Os eventos de letramento designam as atividades particulares em que a leitura e a

escrita têm um papel integral, as ‘práticas de letramento’ designam tanto os

comportamentos exercidos pelos participantes num evento de letramento quanto às

concepções sociais e culturais que o configuram, determinam sua interpretação e dão

sentido aos usos da leitura e/ou da escrita naquela situação particular.

Observamos que os usos da escrita no cotidiano da escola feitos pelos

professores pertencem ao domínio organizacional, da burocracia do sistema. Muitas

vezes são para responder às exigências internas, na maioria das vezes, burocráticas, tais

como: preenchimento de diários de classe (cadernetas), de fichas de aluno, de projetos,

de planejamento, relatórios pedidos pela SEC de algumas atividades realizadas nas

escolas. E o trabalho desenvolvido no curso EAD Caminhos da Escrita, em certa medida,

possibilitou o ingresso (ou o reconhecimento) em práticas de letramento diferentes das

práticas que os professores(as) do Ensino Fundamental e Médio vivenciam no seu

cotidiano escolar, e por meio dos olhares e interesses dos próprios alunos. De acordo

com Barton (2000, p.11), dentro de uma dada cultura, “há diferentes letramentos

associados às diferentes esferas de atividades”.

De alguma maneira, a participação no Curso permitiu aos professores cursistas

que mostrassem o seu trabalho, o que fazem efetivamente em sala de aula, as angústias

pelas quais passam, as dificuldades e também os sucessos, pois esses professores

vislumbraram a possibilidade de olhar para o seu trabalho por outros ângulos e

enxergarem novas possibilidades, a construção de novos conhecimentos a partir da

experiência que têm em suas salas de aula; o “saber produzido na experiência”, como

postula Mendes (2008, p. 60). Em alguns momentos percebemos que a abordagem

intercultural no ensino de língua portuguesa pode ser sim possível, quando o professor se

reconhece como participante ativo dessa língua, e não como instrutor de uma língua que

não é nem a dele, nem a do aluno, pois é a partir desse viés que muitas aulas de língua

portuguesa acontecem. Na abordagem de ensino intercultural (Mendes, 2008),

primeiramente precisamos nos esforçar para enxergarmos o outro, nos questionarmos

acerca de como vemos e lidamos com o diferente de nós. Visto dessa forma, a

abordagem de ensino intercultural vai orientar não somente o que professores de línguas

(aqui especificamente de língua portuguesa), elegem como conteúdos a ser ensinados,

mas, e sobretudo, como as escolhas do que e como ensinar dentro de uma língua pode

ser uma

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força potencial que orienta um modo de ser e de agir, de ensinar e deaprender, de produzir planejamentos e materiais culturalmente sensíveisaos sujeitos participantes do processo de aprendizagem, em busca daconstrução de um diálogo intercultural. (MENDES, 2008, p. 61)

Atualmente há um aumento significativo nas demandas curriculares e

pedagógicas, o que muitas vezes acarreta o desinteresse dos alunos pelas atividades e

dos professores também, pois muitas vezes acabam reproduzindo ano a ano os mesmos

conteúdos curriculares. Num trabalho com projetos de letramento, as escolhas e as

relevâncias partem dos alunos e não dos professores, pois ela é ditada pela dinâmica

social. Daí afirmarmos que o trabalho com práticas de letramento alicerça a práxis

docente e empodera os estudantes.

2.1.1 Refletindo sobre o processo de construção do projeto

Uma das turmas de 2015.2 do Curso Caminhos da Escrita, a qual mediamos, era

composta por 23 professores de escolas públicas de 07 estados do Brasil. O curso é

desenvolvido na plataforma AVA, que é um recurso tecnológico interativo com o objetivo

de promover o diálogo entre professores e alunos, bem como fomentar a transmissão do

conhecimento por meio de ferramentas apropriadas, dessas ferramentas podemos citar

os fóruns, os chats, a wiki. Durante todo o curso os fóruns foram os mais usados e foi por

meio de um dos fóruns de discussão abertos, que a construção do projeto de práticas de

letramento pelo professor cursista foi tomando forma.

Uma das primeiras atividades do curso pedia para que os professores assistissem

aos vídeos com os relatos de escritores consagrados, nos quais eles narravam suas

memórias de leitura e aquisição da escrita. Consideramos o trabalho com memórias algo

singular e de uma riqueza ímpar, porque nós incorporamos biograficamente os

acontecimentos e as experiências de aprendizagem ao longo da vida. Portanto, num

curso EAD, por meio do AVA, estávamos também promovendo uma maior aproximação

com o gênero textual trabalhado na atividade. Todos os professores cursistas elaboraram

seus relatos e foram textos singulares, carregados de lembranças e emoções. Depois da

construção dos relatos, foram feitas leituras teóricas sobre sobre os conceitos de práticas

de letramento, multimodalidade, multiletramentos, diversidade cultural, sobre os eixos

leitura, produção de textos orais e escritos e aspectos lingüísticos.

Após esses estudos, subsidiados pelos textos de apoio disponibilizados no AVA e

mediados pela tutora, foi pedido aos professores que identificassem práticas de

letramento que fossem significativas para os seus alunos e para isso, a escuta dos

estudantes seria imprescindível. Só depois disso é que começaram a escrever os

projetos. Foi nesta etapa que pudemos perceber algumas fragilidades teóricas dos

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professores e perceber a “real” aproximação que um curso desenvolvido na modalidade

EAD pode proporcionar.

Num dos fóruns intitulado “Pergunte ao mediador”, o professor da cidade de

Uberlândia escreveu:

(Fragmento 01)

Professora, estou com muita vergonha de teclar estas palavras quedaqui a pouco, como num passe de mágica estarão bem diante de teusolhos, mas o fato é que eu, com quase trinta anos de profissão não seifazer um projeto, ou o que é pior, nunca fiz um projeto. Sempredesenvolvi algumas atividades com meus alunos, mas nada desofisticado. Trabalho na Eja em quatro turmas, do 6º ao 9º período, ànoite, numa comunidade bastante carente. Ano passado, motivado poruma enorme insatisfação, inconformismo em ver que algumas pessoassimplesmente não se importam com as necessidades de letramento -aliás, palavra esta que até então me era totalmente desconhecida - dosnossos alunos, trabalhei com a criação de fábulas com todos eles, masnada de projeto. A ideia veio, uma colega mostrou-me alguns brevesvídeos, imprimi alguns textos e depois de trabalhar leitura, compreensão,etc, fui trabalhar com eles a criação de novos textos em forma defábulas. Professora, depois de ter lido seus textos, seu comentáriosem nossos relatos, suas interações com os cursandos, citando o nomede todos nós, fiquei maravilhado. Sinceramente nunca tinha visto alguémescrever tão bem assim e é por isso que estou lhe enviando essasegunda confissão: me ajuda a fazer um projeto, me dê o passo a passo,um modelo,ou algumas dicas a mais das que você já nos deu para queeu possa prosseguir. É que é tudo novidade para mim, nunca tinha feitoum curso a distância, estou me adaptando à nova ferramenta deescrever e os termos técnicos não me são ainda bem familiares. Desculpe-me pelo texto longo e pelo desabafo. Vi todos os seis vídeosdo módulo 4, ficaram todos muito bons e gostaria imensamente de estarfazendo o melhor, como aqueles e outros tantos professores fazemdentro do seu ambiente escolar em benefício de seus alunos e suascomunidades, sem buscar reconhecimento algum, mas pelo simples fatode querer o melhor para seus alunos. (FÓRUM, 2015)

Percebemos que para elaborar projetos de práticas de letramento nos quais os

alunos é que apontam a relevância do que aprender traz atrelado o contexto sócio-

histórico dos professores em formação continuada, que emoldura suas trajetórias de vida.

Na introdução à edição brasileira do seu livro Biografia e Educação, Delory-Momberger

(2008), faz alguns questionamentos:

[...] Existe uma relação entre a forma como os indivíduos representamsua vida e a maneira como eles adquirem competências e saberes sobreo mundo e sobre si mesmos? Como a família, a escola e a sociedadeelaboram modelos e trajetórias de formação? Como os indivíduosconstroem subjetivamente o percurso e a imagem de sua existência?(DELORY-MOMBERGER, 2008, p.25)

Acrescentaríamos a essas indagações: como os professores adaptam seus

conhecimentos, adquiridos ao longo de uma formação escolar desde a infância até os

estudos Lato Sensu, com os conhecimentos disseminados num curso de formação

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continuada, voltado para o seu objeto de trabalho, no caso aqui específico, a língua

portuguesa? Até que ponto os programas de formação continuada têm sido uma pressão

para os professores, que trazem um discurso de melhoria na prática pedagógica e de

respeito à identidade e ideologias, enquanto tenta moldá-los, impeli-los a adotar tal ou

qual teoria vigente, mesmo que sob um discurso de respeito às individualidades e

diferenças?

A partir da primeira mensagem postada no fórum pelo professor, começamos um

processo de diálogo intenso, inicialmente sobre as teorias, sobre o conceito de práticas

de letramento e do reconhecimento delas na fala dos discentes. Essa interação foi muito

interessante e profícua, pois alguns dias depois uma segunda postagem no fórum

mostrava que os conceitos trabalhados no curso começavam a tomar forma:

(Fragmento 02)

Estava na sala de aula, ao som de murmurinhos, pequenos barulhos decarteiras arrastadas e chamadas de celular quando fui surpreendido coma pergunta do Greison, um garoto de 17 anos do 9° período:

— Professor, quanto você ganha? Levei o maior susto, este meninodeve estar pensando que ganho muito bem. Tentei levar na esportiva edisse brincando:

— Por que, você que ser um professor também?

— Professor não, cê tá louco! Eu quero é ser caminhoneiro que nem omeu pai, disse ele para uma gargalhada geral da turma.

Levantei- me da carteira de onde estava sentado e comecei a conversarcom eles. Bom, o fato é que rolou uma enorme discussão. Teve alunopedreiro que queria ser engenheiro, teve aluno que queria ser peão deboiadeiro, polícia, enfermeira, dona de casa, etc. Teve de tudo um pouco,menos alguém querendo ser professor, ainda mais quando lhes disse oquanto ganhava. Saí caminhando entre cadeiras e carteiras ouvindo-os econversando com todos eles quando pensei comigo mesmo: "Esta aí anecessidade local, a ideia de projeto!". Mas o que eu faço agora,professora? Confesso-lhe que ainda estou um pouco receoso quanto aospassos seguintes a serem tomados, porém me pareceu uma boa ideiatrabalhar as questões de sonhos, profissões, metas e objetivos.(FÓRUM, 2015)

Respondemos que ele havia conseguido encontrar através das falas dos alunos, o

fio condutor para o projeto. Foi sugerido pela mediadora que ele poderia trabalhar com

“projetos de vida”, começando em torno do que os alunos fazem hoje, o que gostariam de

fazer no futuro e como poderiam se preparar para isso. A partir daí, os alunos

escreveriam, eles próprios, um projeto, "um projeto de vida", em que começariam com

uma espécie de memorial, contando o que já fizeram e fazem hoje e projetando o que

desejam fazer e o que precisam para consegui-lo.

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Dessa forma, o projeto foi construído pelo professor, mas com a participação

efetiva dos alunos. O professor cursista supracitado escreveu no seu projeto que

considerando os interesses e as necessidades dos alunos, surgiu o "Projetos de vida:

sonhar é preciso". O gênero de foco escolhido foi as memórias literárias - utilizando

como possibilidades materiais, aparelhos celulares, gravadores, a oralidade e a escrita

para entrevistar os diferentes profissionais da escola e também os moradores da

comunidade para saber um pouco mais sobre a profissão de cada um e suas

experiências vividas. As etapas do projeto contemplaram ainda, a leitura para os

discentes do memorial de leitura e escrita feito pelo professor no início do curso, que foi

um texto bem escrito e arriscamos a afirmar, um dos motivadores para a continuidade do

professor no curso, além de outro relato pessoal, que foi escrito espontaneamente, pois

não era exigência de atividade para certificação. Nas palavras do professor cursista

“mostrei-lhes os dois relatos que eu fiz e que você corrigiu e li para eles, para poderem

ver que se eu posso, eles também podem”.

Assim, coube aos estudantes fazer entrevistas com as pessoas para conhecerem

suas histórias. Além disso, receberam uma escritora para uma roda de conversa sobre o

seu processo de escrita de poemas. Depois de escreverem as memórias, fizeram um

sarau para apresentar os trabalhos a toda a comunidade. Além disso, o professor

participou de uma mostra de apresentações da EJA, promovida pela SEC municipal de

Uberlândia, na qual explanou sobre o processo de construção do projeto e levou como

exemplo o texto de “um aluno de mais idade, mas com muita vontade de aprender, para

mostrar a real necessidade deles” (FÓRUM, 2015). Segundo ele, a intenção em escolher

o trabalho do aluno com maior dificuldade de aprendizagem, foi reivindicar e mostrar as

autoridades presentes, a necessidade de um olhar mais sensível às especificidades da

EJA, inclusive em relação ao currículo, que, sob o seu olhar e sua experiência de quase

30 anos de docência, precisa ser revisto.

O posicionamento do professor mostra que o desenvolvimento das competências

necessárias ao profissional de hoje exige atitudes investigativas e reflexivas que se

configurem em instrumentos para a construção de conhecimentos dos sujeitos. Isso é

algo que só se conquista via prática de questionamento, argumentação, fundamentação,

manejo crítico e criativo das informações disponíveis. O professor, portanto, não pode

aprender essas práticas reflexivas quando está na condição de consumidor passivo de

informações, quando não lhe é oferecida a oportunidade de apresentar sua realidade e

questionar o que está recebendo como uma das formas de ensinar e aprender. Sendo

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assim, dispor de um espaço para a formação continuada é condição sine qua non para

alicerçarmos a práxis pedagógica (SACRAMENTO, 2011).

Consoante com a pesquisa (auto)biográfica que postula o reconhecimento da vida

como experiência formadora e da formação como estrutura de resistência (Delory-

Momberger, 2008), vimos que o trabalho com histórias de vida é tocante e possível

mesmo num ambiente virtual de aprendizagem. No entanto as histórias de vida apenas,

não são formadoras,

elas se situam, deliberadamente, do lado do processo de mudançaglobal da pessoa e da relação do formando com o saber e com aformação: elas formam para a formabilidade, ou seja, para a capacidadede mudança qualitativa, pessoal e profissional, engendrada por umaação reflexiva com sua “história”, considerada como “processo deformação.” (DOMINICÉ, 1990 apud DELORY-MOMBERGER, 2008, p.99).

Portanto, trabalhar com histórias de vida é trabalhar com a “ficção verdadeira do

sujeito” (op. cit.), em que sujeitos narram sua história, tomando-a por verdadeira (na hora

em que a enuncia) e na qual se constrói como sujeito individual e social. Dessa forma

creio que o professor cursista, ao optar por trabalhar com as memórias e os projetos de

vida dos alunos, promoveu uma aproximação mais direta e os levou a um compartilhar de

experiências, de empoderamento e de formação de ambas as partes.

Conclusão

Este relato de experiência teve como objetivo discutir sobre a elaboração de

projetos de letramento e a importância do Ambiente Virtual de Aprendizagem nesse

processo, não apenas como recurso tecnológico, mas também como ferramenta para

promover a interação e socialização de professores e alunos na EAD, especificamente

professores em formação continuada. Muitos professores que se integram a essa

modalidade de ensino desistem dos cursos e tal fato está intimamente associado à falta

de convívio social entre colegas e professores/mediadores.

Em se tratando de formação continuada para professores em exercício, muitos

deles há muito tempo, como é o caso do professor alvo deste relato, com quase 30 anos

de profissão, a EAD pode muitas vezes se configurar como um obstáculo ao

aprimoramento da práxis pedagógica desses profissionais, pois nessa modalidade o

aluno é sujeito ativo da sua aprendizagem, tem autonomia para definir horários de

estudos e quando e como irá acessar os recursos tecnológicos disponíveis e não há a

presença do professor diariamente solicitando a sua participação. Assim, a falta de

interação e de afetividade também são justificativas para a evasão na EAD.

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O nosso objetivo consistiu em destacar que é possível fazermos um trabalho

colaborativo e muito próximo, envolvendo os professores cursistas, os alunos desses

professores e os mediadores do curso, e fundamentalmente tornar a EAD uma

modalidade de ensino dinâmica e humana.

Concluimos este relato com as palavras do professor cursista “Às vezes é preciso

que alguém desperte esse gigante adormecido que está dentro de nós. Cabe também a

nós, professores, não deixar que essa chama de esperança que existe em cada um de

nossos alunos se apague. [...] Que ela fique sempre acesa incendiando projetos e vidas,

até formar uma fogueira enorme dentro de cada um, transformando-se num furacão de

promoções e realizações. É por acreditar na capacidade de seus alunos que professores

buscam na idealização de projetos, uma melhor maneira de incentivá-los e orientá-los”.

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