Entre o risco e o acaso _ a vertigem do pensamento - Revista Eletrônica de Jornalismo Científico - Jorge Vasconcelos

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  • 7/22/2019 Entre o risco e o acaso _ a vertigem do pensamento - Revista Eletrnica de Jornalismo Cientfico - Jorge Vasconcelos

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    REVISTA ELETRNICA DE JORNALISMO CIENTFICO

    Artigo

    Entre o risco e o acaso: a vertigem do pensamentoPor Jorge Vasconcellos10/12/2008

    A filosofia produziu, ao longo de sua vasta tradio, algumas imagens de si prpria, eaquela que se hegemonizou at nossos dias tem como principal caracterstica nosapresentar o ato e a prtica do pensamento como prprios nossa natureza e umatarefa at mesmo banal: pensar nos constitutivo. Basta ser para pensar, ou dito deoutro modo, todo homem capaz de pensar, desde que suas faculdades bsicas estejamem acordo: a sensibilidade, a imaginao, o entendimento e a razo. E mais, que esteacordo entre as faculdades d ensejo a uma forma de subjetividade que compartilhadapor todos. Ns, os humanos..., sujeitos (do conhecimento) e sujeitadores', estamos

    sempre prontos a ter idias e produzir verdades sobre o mundo, revelando e desvelandoas obscuridades do real. Essa imagem do pensamento filosfico, que uma imagemprpria filosofia, como prtica, mas tambm como disciplina, foi esboada j por Plato(mesmo que entre os gregos antigos, noes como as de faculdades humanas, emacordo ou em desacordo, assim como de subjetividade, no estivessem presentes emsua mentalidade). Porm, seria na modernidade, com Descartes e Kant, que essa imagemda filosofia e, consequentemente, do filsofo, de um tipo de filsofo, diga-se de modobem explcito, viria se consolidar. Essa imagem da filosofia e do que seria o filosofar,Gilles Deleuze denominou de imagem dogmtica, metafsica ou moral do pensamento.Essa imagem do filosfico implicou um modelo de pensar que, em sua prtica filosfica,estaria refm de um modo recognitivo do pensamento, isto , pensar , dessa maneira,um acolher a um j dado, pensar estar passivo diante das idias, que existiriamindependentemente de nossas volies. Logo, pensar nos coloca em posio dequaseestupor. O que Deleuze denuncia toda uma estratgia poltica prpria filosofia,poltica filosfica em seu sentido mais forte, uma poltica da verdade, a serviofundamentalmente da moral. Nessa imagem do pensamento, o pensador, todo e qualquerpensador, seja ele mesmo um suposto pensador, criador de idias, seja produtor deconceitos (o filsofo), seja inventor de funes (o cientista), ou mesmo instaurador demonumentos (o artista), criaria a partir de um modelo de verdade, que , desde sempre,um modelo moral. H ento, o filsofo refm do "Bem", o cientista servo do "Verdadeiro",o artista escravo do "Belo". Esse modelo de verdade que contrape o "Bem" ao "Mal", o

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    "Verdadeiro" ao "Falso", o "Belo" ao "Feio", tambm, como foi dito, um modelo moral e,consequentemente, tambm, um modelo epistemolgico e um modelo esttico.

    O que aqui tentaremos mostrar que esse modelo de verdade que atravessou a histriado pensamento, cunhando para si uma imagem que se prope ser A Imagem doPensamento, insere em sua estratgia geopoltica filosfica uma forma da prtica dofilosofar que procura eliminar o risco e o acaso do pensar. Entretanto, para colocarmosem questo essa estratgia da imagem dogmtica ou moral do pensamento, antes detudo, precisamos pensar as noes de risco e acaso como idias filosficas, ou, dito

    de outro modo, precisamos introduzir o risco e o acaso no pensamento. precisomostrar que possvel, e, talvez, somente assim, com o risco e o acaso, seja possvel aprpria criao, seja filosfica, cientfica ou artstica. Defendemos que criar ,

    justamente, c riar sob o signo do risco e do acaso.

    Comearemos problematizando filosoficamente o acaso. Isso porque a contingncia esuas relaes com a necessidade tema filosfico desde Aristteles. O que verdadeiro, positivo e c ientfico, para contemporanizarmos o aristotelismo, o que se fazpor necessidade, no por contingncia. E mais, preciso afastar aquilo que no serianecessrio da prtica do pensamento. No h lugar para o acaso entre os deuses, logo,no pode haver lugar para o casual na cincia primeira que a metafsica. Em um mundocomo o antigo, em que os desgnios humanos eram governados pela moira (o destino,

    para os antigos), realmente era de se esperar que apenas o necessrio e o corretodesse sentido existncia, no plano tico, e o verdadeiro e o verificvel possibilitasse oconhecimento, no plano epistemolgico. Havia uma inexorvel articulao entre onecessrio e o verdadeiro, entre o certo e o correto, logo tambm, entre a contingnciae o engano, entre o acaso e o erro. Pensar a partir desse modelo, tanto no planometafsico e no fsico quanto no lgico e no ontolgico, seria pensar o necessrio e overdadeiro. Por sua vez, as relaes entre o acaso e o pensamento e entre o erro (nosentido de errncia) e o conhecimento, somente teriam condies de possibilidade deestabelecerem-se aps a modernidade, no limiar do contemporneo. Desde ento,estaramos j sob a gide de Nietzsche: Deus est morto!. Nossa garantia ilimitada sefoi, nosso avalista universal se esvaiu e o processo de antropomorfizao da cultura

    estava lanado. Logo, uma questo pareceu se colocar: como podemos agora pensar?Darwin nos deu a indicao da resposta: no somos o epicentro do processo da criao,somos apenas um dos vetores das linhas que a vida tomou: a "vegetalidade" e a"animalidade", esta da qual, talvez, sejamos sua mais perfeita traduo. Por outro lado,as modernas prticas cientficas, da fsica quntica ao efeito borboleta, da teoria docaos cincia do provvel e do imprevisvel, nos deixaram ver que a contingncia,pensada como o acaso e a necessidade no so necessariamente antpodas, leiamos,ainda, Jacques Monod.

    Diferentemente do acaso, a noo de risco, se nos propusermos a fazer um estudo

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    genealgico do conceito, no possui essa longa durao de problematizaes pelahistria da filosofia, s quais passou a noo de contingncia. certo que,indiretamente, Aristteles, ao defender aphronesis (prudncia ou temperana) como dasmais axiais entre as virtudes, levanta a questo do risco, ou melhor, dos riscos a quesomos acometidos se, porventura, no utilizarmos a reta razo para agirmos. De fato,estaramos, segundo o estagirita, lanados imprudncia e, como tal, sujeitos mescolha e s "invirtudes" ou aos vcios, ou mesmo, destinados a nos defrontar com ahybris (a desmedida, fria dos deuses) caso no ajamos prudentemente. Trata-se,ento, de no nos arriscarmos para que no corramos perigo. Bem, este o ponto que

    consideramos fundamental para uma discusso filosfica acerca do que seja o "risco",alm de sua articulao noo de acaso e, o mais importante, que esta idia sejapensada como fora e potncia criativa e criadora. Faz-se necessrio distinguir, logo deincio, risco de perigo.

    Devemos levar considerao, antes de tudo, o sentido banal da idia de perigo: estamosem perigo quando sujeitos a algo, a algum, a alguma coisa que coloque nossaintegridade fsica, psquica ou mesmo emocional em risco. Exemplificando: seestivermos sobre o parapeito de um prdio de 40 andares, de olhos vendados, estamos,com certeza, correndo grande perigo. Por outro lado, e aqui afirmamos a despeito daestranheza que isso possa parecer, no estamos necessariamente nos arriscando. Issoporque o perigo da ordem do possvel. Toda ao perigosa traz em seu bojo o seurisco, isto , seu grau de periculosidade. J, por sua vez, o risco no s mais amplo,como no da mesma natureza que o perigo. Quando dissemos que o perigo traz, demodo subjacente, seu grau de risco a algum tipo de integridade ao vivente, destacamosque essa noo associa-se ao campo do possvel. Explicando: o possvel enseja sempreuma poro de real em sua materializao. Dito de outra maneira: todo possvel, dealgum modo, se realiza ou pode se realizar. Se, porventura, estamos no topo de umprdio, de olhos vendados, possivelmente cairemos. Ou seja, a queda a realizaopossvel de nossa imprudncia. Entretanto, seguindo esta linha de problematizao, estarno parapeito de um prdio de 40 andares de olhos fechados no apresenta nenhum risco,pois, entendemos que o risco no da ordem do possvel e dos seus processos derealizao, mas, isso sim, da ordem do atual e do virtual, dos processos de atualizao

    do virtual ou das virtualidades. O que isso significa?A idia de risco no comporta evidentemente um tipo de desfecho, como um perigo arondar um vivente, que possa de antemo ser apontado como aquilo acontecer se fizertal coisa. Arriscar-se comporta outro sentido. lanar-se ao desconhecido e ao acaso.Exemplificando: se, como artista-msico, ouso compor, evidentemente munido de rigor epesquisa, a mais incompressvel, aos meus contemporneos, e incompreendida, aos meuspares, das sinfonias, provocando tores inusitadas nas notas e desconstruindo osinstrumentos tradicionais a esse tipo de composio musical, no corro perigo algum,estaria lanando-me sob o signo da criao e sob a rbita do acaso. O que viria a se dar

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    no poderia estar contido no campo do possvel a ser realizado. Estaramos destinadospor essa obra a compreender a urgncia do contingente e da incerteza.

    Diramos, por outro lado, confirmando as diferenas de natureza entre risco e perigo, queeste ltimo lgico e aquele ontolgico. O perigo implica em seqncias que podem serdeterminadas: o prdio alto; os olhos vendados; a queda (possvel ou provvel). O riscosuscita uma forma de compreenso que no pode ser acolhida por uma ordem lgica, poruma forma ou frmula seqencial. Arriscar-se ser sempre como lanar os dados. Hcomo que uma escolha que no escolhemos ao nos colocarmos em risco. Talvez, melhor

    dizendo, no nos colocamos em risco como nos colocamos em perigo. Estamossimplesmente em risco, na forma mais extrema do risco: a criao.

    O perigo um caminho que pode ou no ser tomado, seguido, traado pelo caminhante.O risco o prprio caminho que se coloca frente daquele que caminha. O perigo bssola, o risco errncia.

    Nosso intuito aqui, alm de marcar as distines entre perigo e risco e as relaes destecom o acaso, possui como seu principal propsito o de mostrar o quanto a criao, todoe qualquer tipo de criao, seja ela filosfica, cientfica ou artstica, depende em largamedida de enfrentarmos o risco e afirmarmos o acaso. A criao este grandeenfrentamento e esta grande afirmao.

    Criar, em seu sentido mais radical, produzir o novo. Trata-se, deste modo, de notrilhar os caminhos at ento percorridos. Trata-se de lanar-se deriva, experimentarum certo nomadismo, abrir-se aos devires, afirmar o acaso, todo o acaso. Os criadores,filsofos, cientistas ou artistas, ao abrirem-se aos devires, experimentam o novo emsuas obras. Obras filosficas ou experimentos cientficos, por exemplo, dependemdaqueles que os criam, que os produzem arriscarem-se e lanarem-se s contingncias es foras externas a si mesmos. Eles prprios no so donos de suas criaes.

    Diremos, ento, que o pensamento, nossa fora criadora originria, no obra depassividade e estupor, como defende uma certa imagem da filosofia, aquela que GillesDeleuze denominou de imagem dogmtica ou moral. Isso porque pensar se abrir ao

    acaso, estar em risco, sempre. Criar o lanar-se maior das vertigens, bem maissuspensos ficaramos do que se estivssemos ao parapeito de um prdio de 40 andaresde olhos vendados. Criar a vertigem radical, a vertigem do pensamento.

    Jorge Vasconcellos filsofo e coordenador do Ncleo de Pesquisas em FilosofiaFrancesa Contempornea da Universidade Gama Filho

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