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40 v 15 DE MAIO DE 2014 ‘O IVA é como uma arma nuclear, mata tudo o que aparece à frente’ Primeira relatora especil da ONU para o Direito à Água Potável e Saneamento, acusa o Governo e as políticas de austeridade de violarem os Direitos Humanos POR PEDRO MIGUEL SANTOS TEXTO E GONÇALO ROSA DA SILVA FOTO «No Brasil, há dinheiro para o Mundial mas não para as pessoas. Como houve cá para o Europeu. Ou como há para salvar bancos» Fala tão depressa e quer dizer tanto que, a meio de uma resposta, para, ri-se e atira: «Qual era a sua pergunta?» No discurso nota-se a influência do «juridiquês», próprio de quem se move nas grandes instituições internacionais. O tom anasalado e a figura de «senhora bem» enganam quem a avaliar à primeira vista. Na verdade, é uma radical. Defende as pessoas que os Estados abandonam. É a primeira relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Água Potável e Saneamento. Nomeada em 2008, trabalha pro bono denun- ciando a violação de direitos bási- cos que, apenas em 2010, os Estados mundiais declararam universais. Já visitou 14 países em missão, gere uma equipa de oito pessoas e um orçamento de €2 milhões por ano. Ouvimo-la após participar numa conferência da Amnistia Interna- cional Portugal, sobre os efeitos das políticas de austeridade nos Direi- tos Humanos (DH). > Na sua opinião, os Estados têm a obrigação de não violarem os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Como vê a situação em Portugal? Tem havido um alheamento relati- vamente a questões de Direitos Hu- manos. Parece um mundo esquizo- frénico. Há o Portugal que ratificou os tratados e que tem obrigações nessa matéria. E, depois, há o Por- tugal em crise. Nesse Portugal os Direitos Humanos não são chama- dos. Tomam as medidas que acham mais apropriadas, independente- mente de saberem se são ou não po- tencialmente violadoras dos direi- tos das pessoas. A possibilidade das pessoas apre- sentarem queixa à Organização das Nações Unidas (ONU), em caso de violação dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (DESC), deve-se ao impulso português. No Conse- lho de Direitos Humanos da ONU acham que Portugal é um grande defensor dos DESC… > E acha que não? A nível nacional, não. Há uma dupla personalidade, entre as obri- gações que assumimos e aquilo que fazemos e não fazemos para as res- peitar. > Qualquer membro do Governo lhe dirá que está cá a troikaNa perspetiva do Pacto dos DESC, o Comité de Peritos da ONU, que con- trola a sua aplicação nos 162 Estados- -membros, reconhece que há altu- ras com mais dinheiro e com menos dinheiro… > Mas diz no relatório que apresentou em julho de 2013, à Assembleia-Geral da ONU, que a questão não é o dinheiro. É a falta de vontade política para fazer cumprir os Direitos Humanos, por oposição à que existe para salvar bancos, fazer megaeventos ou comprar armamento. É tudo verdade. Estive em missão no Brasil e as pessoas vivem em favelas à beira dos estádios para o Mundial de 2014. Há dinheiro para o Mun- dial mas não para as pessoas. Como houve cá para o Europeu. Ou como há para salvar bancos. Pode ser ne- cessário limitar os gastos nas áreas sociais. O que as Nações Unidas e os peritos internacionais dizem, e que está no tratado, é que se os gover- nos vão fazer cortes há uma série de perguntas que têm de fazer, a priori. Os cortes são indispensáveis? Há outras áreas onde ir buscar dinheiro ou gastar menos? Há outras medi- das menos austeras? Se se chegar à conclusão de que tem mesmo de se cortar, então, como é que se vai cor- tar? São feitos estudos de impacto nos DH? É evitado o impacto destas medidas nas pessoas mais vulnerá- veis e marginalizadas? > Nada disso parece compatível com a entrada da troika, das avaliações... Concordo consigo, que quer que lhe diga? > O que faz a ONU quanto a isso? A ONU é composta por Estados- -membros e é preciso saber se os Es- tados têm ou não vontade política para fazer alguma coisa. Se calhar a resposta é não. Albuquerque CATARINA DE PORTUGAL ENTREVISTA

Entrevista a Catarina de Albuquerque

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Primeira relatora especial da ONU para o Direito à Água Potável e Saneamento, acusa o Governo e as políticas de austeridade de violarem os Direitos Humanos

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Page 1: Entrevista a Catarina de Albuquerque

40 v 15 DE MAIO DE 2014

‘O IVA é como uma arma nuclear, mata tudo o que aparece à frente’Primeira relatora especil da ONU para o Direito à Água Potável e Saneamento, acusa o Governo e as políticas de austeridade de violarem os Direitos Humanos POR PEDRO MIGUEL SANTOS TEXTO E GONÇALO ROSA DA SILVA FOTO

«No Brasil, há dinheiro

para o Mundial mas não para as

pessoas. Como houve

cá para o Europeu.

Ou como há para salvar

bancos»

Fala tão depressa e quer dizer tanto que, a meio de uma resposta, para, ri-se e atira: «Qual era a sua pergunta?» No discurso nota-se a influência do «juridiquês», próprio de quem se move nas grandes instituições internacionais. O tom anasalado e a figura de «senhora bem» enganam quem a avaliar à primeira vista. Na verdade, é uma radical. Defende as pessoas que os Estados abandonam.

É a primeira relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Água Potável e Saneamento. Nomeada em 2008, trabalha pro bono denun-ciando a violação de direitos bási-cos que, apenas em 2010, os Estados mundiais declararam universais. Já visitou 14 países em missão, gere uma equipa de oito pessoas e um orçamento de €2 milhões por ano. Ouvimo-la após participar numa conferência da Amnistia Interna-cional Portugal, sobre os efeitos das políticas de austeridade nos Direi-tos Humanos (DH).

> Na sua opinião, os Estados têm a obrigação de não violarem os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Como vê a situação em Portugal?Tem havido um alheamento relati-vamente a questões de Direitos Hu-manos. Parece um mundo esquizo-frénico. Há o Portugal que ratificou os tratados e que tem obrigações nessa matéria. E, depois, há o Por-

tugal em crise. Nesse Portugal os Direitos Humanos não são chama-dos. Tomam as medidas que acham mais apropriadas, independente-mente de saberem se são ou não po-tencialmente violadoras dos direi-tos das pessoas.

A possibilidade das pessoas apre-sentarem queixa à Organização das Nações Unidas (ONU), em caso de violação dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (DESC), deve-se ao impulso português. No Conse-lho de Direitos Humanos da ONU acham que Portugal é um grande defensor dos DESC…

> E acha que não?A nível nacional, não. Há uma dupla personalidade, entre as obri-gações que assumimos e aquilo que fazemos e não fazemos para as res-peitar.

> Qualquer membro do Governo lhe dirá que está cá a troika…Na perspetiva do Pacto dos DESC, o Comité de Peritos da ONU, que con-trola a sua aplicação nos 162 Estados- -membros, reconhece que há altu-ras com mais dinheiro e com menos dinheiro…

> Mas diz no relatório que apresentou em julho de 2013, à Assembleia-Geral da ONU, que a questão não é o dinheiro.É a falta de vontade política para fazer cumprir os Direitos Humanos,

por oposição à que existe para salvar bancos, fazer megaeventos ou comprar armamento.É tudo verdade. Estive em missão no Brasil e as pessoas vivem em favelas à beira dos estádios para o Mundial de 2014. Há dinheiro para o Mun-dial mas não para as pessoas. Como houve cá para o Europeu. Ou como há para salvar bancos. Pode ser ne-cessário limitar os gastos nas áreas sociais. O que as Nações Unidas e os peritos internacionais dizem, e que está no tratado, é que se os gover-nos vão fazer cortes há uma série de perguntas que têm de fazer, a priori. Os cortes são indispensáveis? Há outras áreas onde ir buscar dinheiro ou gastar menos? Há outras medi-das menos austeras? Se se chegar à conclusão de que tem mesmo de se cortar, então, como é que se vai cor-tar? São feitos estudos de impacto nos DH? É evitado o impacto destas medidas nas pessoas mais vulnerá-veis e marginalizadas?

> Nada disso parece compatível com a entrada da troika, das avaliações...Concordo consigo, que quer que lhe diga?

> O que faz a ONU quanto a isso?A ONU é composta por Estados- -membros e é preciso saber se os Es-tados têm ou não vontade política para fazer alguma coisa. Se calhar a resposta é não.

AlbuquerqueCATARINA DE

PORTUGAL ENTREVISTA

Page 2: Entrevista a Catarina de Albuquerque

15 DE MAIO DE 2014 v 41

BI

A JURISTA DA ÁGUA

Nascida em Lisboa, há 43 anos, é jurista

na Procuradoria- -Geral da República.

Licenciou-se em Direito, fez mestrado no Instituto de

Altos Estudos Internacionais e

Desenvolvimento, na Suíça.

Consultora da UNICEF, Comissão

Europeia e Alto Comissariado

da ONU para os Direitos Humanos, dá aulas em várias

faculdades de Direito, portuguesas

e estrangeiras. Foi condecorada, em 2009, com a

Ordem de Mérito, pelo Presidente da

República

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> Apesar da UE não ter uma posição oficial sobre a privatização da água, a verdade é que na Grécia e em Portugal houve indicações nos memorandos de entendimento com a troika, da qual faz parte a UE, para que as empresas públi-cas de água fossem privatizadas. Como vê essa situação?Como pouco transparente. Há pré--requisitos a ser cumpridos para se poder delegar esses serviços a tercei-ros. Estas decisões têm de envolver a participação cidadã. Não podem ser feitas à socapa, sem se perceber qual vai ser o impacto nos Direitos Humanos e sem dar a possibilida-de às pessoas de se exprimirem, de influenciarem a decisão.

> Mas como relatora especial da ONU pode ter uma posição sobre isso?As obrigações de DH são dos Esta-dos, que ratificam, porque querem, determinados tratados e têm obri-gação jurídica de os cumprir. Temos de pedir contas não à ONU mas aos países. Porque é que Portugal está a tomar as medidas que toma com desrespeito por Direitos Humanos, porque é que a Grécia…

> Para si é óbvio que as medidas de austeridade, em Portugal, desrespeitam os DH?A minha presunção é de que sim. O que vejo são retrocessos nos DH e os retrocessos, à partida, são vio-lações. O Governo nunca me veio provar que não são violações.

> Compilou dados muito relevantes sobre as consequências da austeridade nos países europeus. Qual o cenário?Na área do abono de família, em Portugal, 30% dos jovens e crian-ças, entre 2009 e 2012, perderam o abono de família, eram 1,8 milhões e estamos em 1,3 milhões. Temos de perceber o que isto quer dizer para uma família com crianças a seu cargo e em que, imaginemos, a mãe é funcionária pública, sofreu cortes, o pai pode ter perdido o emprego... Há um acumular de aus-teridade que pode provocar viola-ções de direitos. Porque a visão do Pacto Internacional sobre os DESC é a realização progressiva e plena.

Quando vai no sentido contrário há um problema. A Letónia, em 2009, cortou 50% do orçamento na área da Educação. Na Grécia, em dois anos, as infeções com VIH em utili-zadores de drogas aumentaram 20 vezes, porque cortaram programas de troca de seringas, de dispensa de metadona.

> Critica também a política fiscal, a que chama de «tributação regressiva». O IVA é uma arma de destruição ma-ciça. O IRS afeta mais quem ganha mais e menos quem ganha menos, em teoria. O IVA é completamente cego e agora vai passar a 23,25 por cento. É tanto pago por nós como por uma pessoa que beneficia do rendimento social de inserção. Ob-viamente, dentro de um bolo de dinheiro limitado, estes 23,25% vão ter um impacto muito maior do que para quem ganha milhões. Como política fiscal, o aumento do IVA deve ser das piores medidas para os DH. É como a arma nuclear, mata tudo o que aparece à frente, não dis-tingue.

> Quer dizer que o Governo português acabou de contribuir para a violação dos Direitos Humanos em Portugal?Sim. Vai insistir num erro, que vai onerar mais as pessoas que menos podem. O que diz o Pacto dos DH é: «Adotem medidas de austerida-de mas não deixem que elas tenham impacto em quem menos pode.» Isto é o contrário.

> Mas as medidas de austeridade não são iguais em todo o lado. Não, não são. Olhamos para a Islân-dia, durante esta crise, e os rendi-mentos dos mais pobres só se re-duziram 9%, enquanto os dos mais ricos tiveram um corte de 38%. Na Irlanda, aconteceu exatamente o contrário: os mais pobres tiveram uma redução de rendimento de 26% e os mais ricos de 8%.

> As pessoas juntam-se para defender a água pública, como no referendo feito em Itália, em 2011, ou na iniciativa de cidadania europeia Rigth2water, que este ano reuniu 1.6 milhões de

assinaturas, pelo direito à água pública potável e ao saneamento. Depois há a ação dos Estados: em Itália o referendo foi ignorado, em vários países da UE preparam-se privatizações. Que pensa disto?Um princípio fundamental de Di-reitos Humanos é o da participação. No caso italiano há uma contradição entre a participação pública e as de-cisões tomadas. Mas às vezes as coi-sas são mais complicadas. Ninguém quer aumento de tarifas mas o Egito, que visitei, tem as tarifas mais bai-xas do mundo. Quem mais pode está a pagar um preço ridículo e as pes-soas que moram em bairros de lata pagam muito mais. As pessoas têm de ser esclarecidas. Se queremos ga-rantir água para as gerações futuras, alguma coisa temos de pagar. Mas é para ser reinvestido na água, não é para ser distribuído a investidores em Nova Iorque.

> Foram divulgadas pressões da Comissão Europeia junto do Governo italiano para que ignorasse os resultados do referendo. Eu não tenho capacetes azuis a meu serviço. Não posso mandar a tropa entrar pela Itália adentro e dizer: «Façam aquilo que as pessoas disse-rem…» Os mecanismos de Direitos Humanos não têm capacetes azuis para obrigar os governos a respei-tar. Podemos escrever cartas, falar com a imprensa, fazer pressão, mas não se esqueça que o meu cargo foi criado pelos Estados-membros das Nações Unidas. É como pôr a raposa a tomar conta das galinhas. Deram--me determinados poderes – limi-tados – precisamente para não ferir demasiadas suscetibilidades.

> Em que é que os seus poderes são limitados?Então, não tenho capacetes azuis!

> E se tivesse?Ah… se tivesse era diferente! Manda-va-os para todos os países do mun-do. Ainda não visitei um em que não houvesse problemas de DH. Acho que seria necessário a ONU ser do-tada de mecanismos mais ágeis, que tivessem garras.

«Eu não tenho

capacetes azuis!

Se tivesse era diferente! Mandava-os para todos

os países do mundo»

«O que vejo são

retrocessos nos Direitos Humanos

e os retrocessos,

à partida, são violações. O Governo nunca me veio provar

que não são violações»

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