6
O agregador da advocacia 28 Maio de 2011 www.advocatus.pt Entrevista “O que aconteceu neste país foi que, com os sucessivos governos, houve uma super-produção legislativa. Não houve ministro nenhum que não quisesse deixar a sua marca com alterações sem que a legislação existente se fosse consolidando através da jurisprudência, através da doutrina, como era no tempo em que iniciei a carreira”, diz Alfredo de Sousa, 70 anos, provedor de Justiça desde Julho de 2009 Ministros querem deixar marca Ramon de Melo Advocatus | Quais são os dados finais sobre a actividade do pro- vedor de Justiça em 2010? Qual foi a rácio entre os processos abertos e concluídos em 2010 e em 2009? Alfredo José de Sousa | No ano passado, o número de processos abertos diminuiu ligeiramente re- lativamente a 2009. Houve muito mais processos findos em 2010 do que antes e diminuiu a pendên- cia. O número total de processos pendentes, no final de 2010, era de 2 282 para uma entrada de 6 488 processos no mesmo ano. Advocatus | Continua a existir uma décalage tão grande entre as queixas no distrito de Lisboa e no resto do país? AJS | Continua e é natural que esta situação se mantenha. É a macro- -cidade, há mais conflitualidade e a administração está mais próxima. Alfredo José de Sousa, provedor de Justiça >>> Hermínio Santos jornalista hs@briefing.pt João Teives director do Advocatus

Entrevista com Alfredo José de Sousa

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Entrevista com Alfredo José de Sousa

Citation preview

Page 1: Entrevista com Alfredo José de Sousa

O agregador da advocacia28 Maio de 2011

www.advocatus.ptEntrevista

“O que aconteceu neste país foi que, com os sucessivos governos, houve uma super-produção legislativa. Não houve ministro nenhum que não quisesse deixar a sua marca com alterações sem que a legislação existente se fosse consolidando através da jurisprudência, através da doutrina, como era no tempo em que iniciei a carreira”, diz Alfredo de Sousa, 70 anos, provedor de Justiça desde Julho de 2009

Ministros querem deixar marca

Ram

on d

e M

elo

Advocatus | Quais são os dados finais sobre a actividade do pro-vedor de Justiça em 2010? Qual foi a rácio entre os processos abertos e concluídos em 2010 e em 2009?Alfredo José de Sousa | No ano passado, o número de processos

abertos diminuiu ligeiramente re-lativamente a 2009. Houve muito mais processos findos em 2010 do que antes e diminuiu a pendên-cia. O número total de processos pendentes, no final de 2010, era de 2 282 para uma entrada de 6 488 processos no mesmo ano.

Advocatus | Continua a existir uma décalage tão grande entre as queixas no distrito de Lisboa e no resto do país? AJS | Continua e é natural que esta situação se mantenha. É a macro--cidade, há mais conflitualidade e a administração está mais próxima.

Alfredo José de Sousa, provedor de Justiça

>>>

Hermínio Santosjornalista

[email protected]ão teives

director do Advocatus

Page 2: Entrevista com Alfredo José de Sousa

Maio de 2011 29O agregador da advocacia

www.advocatus.pt Entrevista

“Em 2010, o provedor de Justiça fez 22 recomendações, das quais nove visavam

alterações legislativas e as restantes tinham a ver com a correcção de situações

individuais na sequência de queixas”

2559foi o número de

processos abertos por queixas recebidas por

via electrónica em 2010 e que reflecte como o uso da internet para

apresentar queixas ao Provedor de Justiça

está em crescimento. no mesmo ano, o

número de processos abertos por queixa

escrita foi de 3 300 e 610 por queixa verbal

“uma das características que o provedor de Justiça

deve ter é a da perseverança. Quando está convencido de que se trata de uma causa justíssima, deve insistir

até ao fim”

Advocatus | Não considera que em lisboa os cidadãos sejam mais conscientes dos seus di-reitos? Ou será que o Provedor ainda não chegou ao resto do País?AJS | As queixas ao provedor podem ser feitas pessoalmente, mas a maior parte dos processos abertos tem a ver com queixas re-cebidas pela internet, através do site do provedor de Justiça. Existe um formulário de queixa cujo pre-enchimento é muito simples. Há também as queixas que chegam através de cartas enviadas ao Pro-vedor e de telefonemas. A queixa por via electrónica está em franco crescimento. Em 2010, o número de processos abertos por queixa escrita foi de 3 300, dos quais 610 foram por queixa verbal presencial e 2 559 por via electrónica. Todos os anos se nota um aumento de queixas por via electrónica. Uma das medidas que tomei foi assinar um protocolo com a Associação Nacional dos Municípios para ga-rantir que cada município disponi-bilize gratuitamente os seus servi-ços informáticos para auxiliar os cidadãos a enviarem uma queixa electrónica ao provedor de Justiça.

Advocatus | Em que áreas é que tomou iniciativas próprias e por-que é que as tomou?AJS | Há sempre iniciativas pró-prias que são os chamados pro-cessos por iniciativa do provedor de Justiça. Uma iniciativa própria foi, desde que tomei posse, fazer o levantamento das recomenda-ções que o meu antecessor tinha feito sobretudo ao Governo, mas também às autarquias e à Assem-bleia da República e que não ti-nham sido acatadas. Fiz uma tria-gem dessas recomendações, vi aquelas que efectivamente tinham ainda actualidade e renovei-as junto do Governo. Uma delas tinha a ver com uma questão muito des-tacada na Comunicação Social, que era a célebre Igreja de Santo António de Campolide. O que se passa é muito simples: a igreja foi dada provisoriamente à Diocese em 1927 em substituição da resti-tuição da Igreja de Santa Marta. O

Supremo Tribunal de Justiça tinha condenado o Estado a restituí-la porque tinha sido expropriada ile-galmente aquando da República. A decisão foi aceite mas nunca foi cumprida, embora a Diocese nun-ca tenha desistido de a recuperar. A Igreja de Santa Marta até aca-baria por ser vendida pelo Estado por 5 milhões de contos e hoje está lá instalado um hotel. Mais uma razão para eu insistir com o Governo para que, já que não foi dado cumprimento ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1927, fosse restituída a de Santo António de Campolide, uma igreja com muito interesse arquitectóni-co e histórico. O Governo exigia sempre contrapartidas financei-ras, mas a recomendação indica-va que a restituição fosse gratuita, não porque eu não conhecesse que o património do Estado só pode ser vendido a troco de di-nheiro mas, neste caso especial, o Estado já tinha vendido a outra igreja, tendo até feito uma grande receita. Dei conhecimento à As-sembleia da República da deci-são que tomei, insistindo que esta instituição recomende ao Governo que cumpra essa recomendação. Este exemplo da igreja serve para mostrar que uma das caracte-rísticas que o provedor de Justi-ça deve ter é a da perseverança. Quando está convencido de que se trata de uma causa justíssima, deve insistir até ao fim. Em 2010, o Provedor de Justiça fez 22 re-comendações, das quais nove vi-savam alterações legislativas e as restantes tinham a ver com a cor-recção de situações individuais na sequência de queixas.

Advocatus | tem ideia da per-centagem de recomendações do Provedor que são acatadas?AJS | A maioria é seguida. Por ve-zes a Administração nem necessi-ta de uma recomendação formal do provedor de Justiça para cor-rigir os seus procedimentos. Por exemplo, na área dos impostos. Hoje, com a introdução da infor-mática, qualquer cidadão pode ver o seu vencimento penhorado por causa da execução de uma dí-

>>>

Page 3: Entrevista com Alfredo José de Sousa

O agregador da advocacia30 Maio de 2011

www.advocatus.ptEntrevista

>>>

“Em momentos de modificações abruptas de legislação que, de alguma maneira, atacam direitos adquiridos, isso reflecte-se nas queixas ao Provedor de Justiça”

“Uma questão curiosa é existirem queixas

contra os advogados relacionadas

com atrasos nos procedimentos disciplinares da

ordem em relação aos advogados, e que

muitas vezes terminam na prescrição”

“Há que saber gerir os meios e distinguir o

essencial do acessório. Em muitas coisas, as rotinas levam a

consumo de tempo desnecessário. Há dois princípios que regem

a acção do Provedor de Justiça: a informalidade

processual e o contraditório”

sua área. A primeira área trata de assuntos de urbanismo e ordena-mento do território, a segunda da fiscalidade, a terceira dos direi-tos sociais, a quarta do trabalho público, a quinta dos atrasos na Justiça – uma questão curiosa é existirem queixas contra os advo-gados relacionadas com atrasos nos procedimentos disciplinares da Ordem em relação aos advoga-dos e que muitas vezes terminam na prescrição. Também há queixas dos próprios advogados em rela-ção à disponibilização das verbas para pagamento das defesas ofi-ciosas. Há uma sexta área, que é a dos direitos fundamentais e do sistema prisional e de detenções. Temos um contacto semanal com as prisões para tratamento de queixas dos presos no que respei-ta a alimentação, saúde, regime de visitas, ao regime disciplinar. No caso do taser de Paços de Fer-reira, por exemplo, o Provedor de Justiça foi a primeira entidade que tratou do assunto, tendo feito uma recomendação ao Ministério da Justiça sobre a utilização desses instrumentos contra os presos.

Advocatus | Mas sempre há al-guma coisa a melhorar em rela-ção ao enquadramento legisla-tivo que regula a actividade do provedor?AJS | Há uma coisa a melhorar e que este Governo tinha já pronta para aprovar que era a Lei Orgâni-ca da Provedoria de Justiça, que dava maior flexibilidade à gestão administrativa e logística por parte do provedor e à gestão dos seus assessores jurídicos, que são os que suportam as acções do pro-vedor de Justiça.

Advocatus | Portanto, o proble-ma não será dos poderes que estão consagrados no estatuto, mas dos meios colocados à dis-posição do provedor?AJS | Há que saber gerir os meios e distinguir o essencial do acessó-rio. Em muitas coisas, as rotinas levam a consumo de tempo des-necessário. Há dois princípios que regem a acção do provedor de Justiça: a informalidade proces-

vida fiscal. Os bancos penhoram o ordenado por inteiro e a Adminis-tração Fiscal esquece-se que a lei só permite a penhora de um terço do vencimento. Quando o cidadão executado por dívida fiscal vê que todo o seu vencimento ou pensão foi penhorada, queixa-se ao Pro-vedor que interpela a Administra-ção Fiscal que, normalmente, re-conhece o erro e reduz a penhora aos limites legais.

Advocatus | Da sua experiência, considera que os cidadãos es-tão a recorrer mais aos serviços do Provedor ou mantêm-se os mesmos níveis?AJS | Estão a subir, mas também é preciso notar que, com o perío-do de indefinição ocorrido com a substituição do meu antecessor, registou-se um decréscimo nas queixas, que depois foi recupe-rado. Há outras questões que é preciso distinguir: uma coisa é o número de queixosos; outra é as questões objecto da queixa. Por exemplo, recentemente tivemos queixas contra os Censos mas a questão é a mesma, embora existam cerca de 500 queixosos. O número de cidadãos que se queixam é sempre maior do que a quantidade de processos abertos.

Advocatus | Em momentos de crise, os cidadãos recorrem mais aos serviços do provedor?AJS | Em momentos de modifi-cações abruptas de legislação que, de alguma maneira, atacam direitos adquiridos, isso reflecte--se nas queixas ao provedor de Justiça. Há muitos cidadãos que se queixam porque viram restringi-dos o acesso a prestações sociais como, por exemplo, o Rendimento Mínimo de Inserção.

Advocatus | Considera adequa-do o enquadramento legislativo que regula a actividade do Pro-vedor de Justiça?AJS | Considero, mas há que re-ferir várias coisas e uma delas é o funcionamento da Provedoria. O provedor de Justiça tem dois adjuntos e 40 assessores juris-tas, cada um especializado na

Page 4: Entrevista com Alfredo José de Sousa

Maio de 2011 31O agregador da advocacia

www.advocatus.pt Entrevista

“Quando alguém vê os seus rendimentos de trabalho penhorados, a lei estabelece um

limite a essa penhorabilidade, exactamente para não deixar o titular desses rendimentos

de mãos vazias. O mesmo não acontecia com os titulares de direitos de autor”

“Eu nunca posso recomendar ou

criticar a acção da Administração Pública

ou de qualquer membro do governo sem previamente o confrontar com o

problema e perguntar qual é a posição que

toma perante a questão que lhe coloco”

“Pedi aos meus assessores jurídicos

que fizessem um estudo claro e

argumentativo onde se dissesse que o

bastonário da ordem está, tal como os

tribunais e os membros do governo, sujeito,

na parte da respectiva competência, à

sindicância, digamos assim, do provedor

de Justiça”

sual e o contraditório. Este último quer dizer que eu nunca posso recomendar ou criticar a acção da Administração Pública ou de qual-quer membro do Governo sem previamente o confrontar com o problema e perguntar qual é a po-sição que toma perante a questão que lhe coloco. Só depois, se por-ventura essa resposta não for con-vincente, há uma recomendação formal. E em relação a ministros e presidentes de Câmaras, é o pro-vedor que empenha a sua assina-tura nessas recomendações.

Advocatus | Homologou recen-temente uma proposta dos seus serviços que confirmava a sujei-ção da ordem dos Advogados ao âmbito da acção do provedor de Justiça. Porque é que sentiu necessidade de clarificar esta questão?AJS | Senti essa necessidade porque o bastonário, nas respos-tas que fazia às interpelações do provedor de Justiça, respondia--me com um ofício dizendo: “a Ordem dos Advogados e o bastonário não estão sujeitos à jurisdição do Provedor de Justi-ça. No entanto, tendo em conta que o provedor é o conselheiro Alfredo José de Sousa, aí vai a resposta”. Ora bem, eu não fi-quei agradado com esta honra pessoal – era a minha pessoa que merecia a consideração do bastonário da Ordem do Advo-gados, mas não pode ser, tem de ser a instituição provedor de Justiça. Como não estava satis-feito com essa formulação, pedi aos meus assessores jurídicos que fizessem um estudo claro e argumentativo onde se dissesse que o bastonário da Ordem está, tal como os tribunais e os mem-bros do Governo, sujeito, na par-te da respectiva competência, à sindicância, digamos assim, do provedor de Justiça.

Advocatus | Há pouco referiu-se às queixas sobre advogados. Também existem queixas em re-lação aos solicitadores?AJS | Existem em relação aos soli-citadores de execução.

Advocatus | E em que matérias?AJS | Penhoras e atrasos e mui-tas vezes preferências dadas a uns certos processos em relação a outros.

Advocatus | Por falar em execu-ções, como é que vê as suces-sivas reformas da acção execu-tiva?AJS | Isso já é um problema legis-lativo. Fiz algumas sugestões para a reforma e que o ministro da Justi-ça me disse que iam ser acatadas. Por exemplo, uma delas tem a ver com os direitos de autor. Quando alguém vê os seus rendimentos de trabalho penhorados em execução fiscal ou comum, a lei estabelece um limite a essa penhorabilidade, exactamente para não deixar o ti-tular desses rendimentos de mãos vazias. O mesmo não acontecia com os titulares de direitos de au-tor, e designadamente nos casos em que viviam só desses direitos de autor. Mandei fazer um estudo de direito comparado e verifiquei que, quer em Espanha, quer em França, o regime da penhora dos rendimentos era quase de equi-paração entre os trabalhadores e os titulares de direitos de autor. Fiz uma recomendação que foi acolhi-da no projecto que não foi ainda publicado porque o Governo caiu, e julgo que ficou parado. Quando houver uma novo Governo voltarei a esta justa luta.

Advocatus | Do ponto de vista mais global, em lisboa existe uma situação em que três quar-tos dos processos são pendên-cias de processos executivos e que têm uma exequibilidade di-minuta…AJS | Esse é talvez um dos proble-mas mais delicados e com muita relevância na actual crise econó-mica e financeira e claramente de-sincentivador do investimento na-cional e estrangeiro. Porquê? Por-que o credor que não vê pagos os seus créditos recorre ao tribunal e o desejável para um normal per-curso da actividade económica é que o tempo de cobranças desses créditos seja razoável, mas nor-malmente demora 10 a 20 anos.

>>>

Page 5: Entrevista com Alfredo José de Sousa

O agregador da advocacia32 Maio de 2011

www.advocatus.ptEntrevista

“O credor que não vê pagos os seus créditos

recorre ao tribunal e o desejável para um normal percurso da

actividade económica é que o tempo de cobranças desses

créditos seja razoável, mas normalmente

demora 10 e 20 anos”

“Havendo advogados, tribunais e super-

-produção legislativa, a litigiosidade aumenta,

sobretudo na área do administrativo e fiscal”

“A produção das nossas faculdades de Direito foi absorvida na sua maior parte pela advocacia, e portanto nós somos talvez dos países com mais advogados por habitante”

>>>

O problema das insolvências é o mesmo. Apesar das reformas, não há uma resposta eficaz em relação a estas questões. Da área do fun-cionamento da Justiça é talvez, no actual momento de crise econó-mica e financeira, um dos sectores que precisava de uma profunda revisão no sentido da sua eficácia e rapidez.

Advocatus | tendo em conta a sua experiência como juiz na jurisdição administrativa, como é que explica que, por exemplo, apesar da criação de vários tribunais de primei-ra instância em várias zonas do país e de um tribunal de segunda instância, a situação continue calamitosa? Como é que conseguimos sair desta situação?AJS | Isso já não faz parte das minhas funções de provedor de Justiça directamente. O que aconteceu neste país foi que, com os sucessivos governos, houve uma super-produção le-gislativa. Em matéria de legis-lação não houve ministro ne-nhum que não quisesse deixar a sua marca com alterações sem que a legislação existente se fosse consolidando através da jurisprudência, através da dou-trina, como era no tempo em que iniciei a carreira. Na área do Administrativo e Fiscal essa super-produção é evidente. A litigiosidade aumentou e as con-dições propiciadoras dessa liti-giosidade também aumentaram – e nesse aspecto dou razão ao bastonário porque a produção das nossas faculdades de Di-reito foi absorvida na sua maior parte pela advocacia, e portan-to nós somos talvez dos países com mais advogados por habi-tante. Ora, havendo advogados, tribunais e super-produção le-gislativa a litigiosidade aumenta, sobretudo na área do adminis-trativo e fiscal.

Advocatus | o provedor tem o poder de pedir a fiscaliza-ção abstracta e sucessiva da constitucionalidade. não acha

que a iniciativa, nesta área, tem sido diminuta?AJS | Os dados de 2010 indicam que o Provedor recebeu 39 quei-xas para pedidos de fiscalização de constitucionalidade. A maior parte delas era por violação dos princípios constitucionais. O provedor só patrocinou dois desses pedidos. Um deles era relativo ao pedido de fiscaliza-ção das normas do regulamento nacional de estágio da Ordem dos Advogados, em que justa-mente se exigia para o estágio dos que eram licenciados pós--processo de Bolonha um mes-trado e não se admitia a licen-ciatura. O outro pedido era o da incompatibilidade do exercício da profissão de angariador imo-biliário com qualquer outra área comercial ou profissional que era estabelecida pelo artigo que re-gulava o exercício desta profis-são. O problema é que há situa-ções em que outras entidades já tomaram a iniciativa de pedir a declaração de inconstitucionali-dade. Por exemplo, no caso dos cortes salariais, deputados da Assembleia da República pedi-ram a sua fiscalização ao Tribu-nal Constitucional exactamente com os mesmos fundamentos que o provedor de Justiça tinha nas queixas que lhe eram apre-sentadas. Perante isto, não vale a pena complicar o processo no Constitucional, quando já há um processo em curso para o mesmo efeito. Depois, há uma outra questão: só devemos ir ao Constitucional quando tivermos a convicção profunda de que os argumentos de inconstituciona-lidade que vamos aduzir estão suportados quer pela doutrina, quer pela jurisprudência.

Advocatus | Em Abril de 2010 apresentou na Assembleia da República um código de boa conduta administrativa. O que é que sucedeu a esse código?AJS | A Carta Fundamental dos Direitos Humanos anexa ao Tra-tado de Lisboa reconhece como um direito do cidadão o direito à boa governação das instituições

Page 6: Entrevista com Alfredo José de Sousa

Maio de 2011 33O agregador da advocacia

www.advocatus.pt Entrevista

Edição vídeo desta entrevista

em www.advocatus.pt

comunitárias. O que eu fiz foi uma adaptação ao ordenamento jurídico português desses deve-res que os agentes da Adminis-tração Pública têm perante os cidadãos que se lhes dirigem, estabelecendo um conjunto de regras que não são nada ino-vadoras, mas apenas mais bem sistematizadas e clarificadas, para que o cidadão, quando isso não for devidamente cumprido, se dirija ao provedor de Justiça para que este actue. Tem algu-mas inovações, por exemplo se um funcionário da Adminis-tração Pública se enganou ao praticar qualquer acto que lesou um cidadão que se dirigiu aos seus serviços reconhecer e pe-dir desculpa, além de resolver o problema. É difícil neste país as pessoas reconhecerem que se enganaram ou erraram.

Advocatus | Em Março, foi ao Parlamento debater o relatório do provedor, 10 meses depois da sua entrega. na altura iro-nizou que não sabia se estava a discutir o relatório de 2009 ou de 2010. A classe política não tem apreço pelo trabalho do provedor?AJS | O que se passou foi que a Lei manda que o relatório seja remetido à Assembleia da Repú-blica e que o provedor se dispo-nha a ir à Comissão de Direitos, Liberdade e Garantias sempre que seja solicitado. Eu cumpri isso no ano passado, e quando estava fazer o relatório de 2010, queria saber que reparos é que havia ao relatório de 2009 e qual era o parecer. Foi reconhecido o lapso e não passou disso.

Advocatus | Como é que gos-taria de ser reconhecido quan-do deixar de ser Provedor de Justiça?AJS | Eu só vim para aqui – dis-se-o claramente – por uma ques-tão de serviço público e porque também, como cidadão, vi que o Parlamento andou muito mal, e reconheceu isso, no proces-so de substituição do provedor Nascimento Rodrigues. Quando

me convidaram pela primeira vez, por acaso foi um só par-tido, na altura foi o líder parla-mentar do PS, Alberto Martins, disse que não estava disponível. Mas se alguma vez pensasse em aceitar o cargo não estaria para me sujeitar ao que se sujeitou o prof. Jorge Miranda, uma figura de prestígio. Se porventura os dois partidos que garantem os dois terços me convidassem, eu ponderaria aceitar. Assim foi. Ambos os partidos se dirigiram a mim, e eu aceitei por serviço à República.

“Só devemos ir ao Constitucional quando tivermos a convicção

profunda de que os argumentos de

inconstitucionalidade que vamos aduzir estão

suportados quer pela doutrina, quer pela

jurisprudência”

Edição vídeo desta entrevista

em www.advocatus.pt

“Eu só vim para aqui – disse-o claramente – por uma questão de serviço público e

porque também, como cidadão, vi que o Parlamento andou muito mal, e reconheceu

isso, no processo de substituição do provedor Nascimento Rodrigues”

O mar é o que move Alfredo José de Sousa. O seu hobby preferido é um passeio à beira-mar em cenários tão diferentes como a Póvoa de Varzim, onde nasceu, Cabanas de Tavira, local que elegeu há muitos anos para passar férias, ou Cascais, a terra que adoptou quando veio viver para Lisboa. “Sou um homem do mar”, afirma, definitivo, o actual provedor de Justi-ça, licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra (1958/63) e que começou a carreira como delegado do procurador da República em Celorico de Basto, Mogadouro e Amarante (1967). Ler, principalmente livros ligados à Po-lítica e à Sociologia, e o Cinema, desde o fran-cês e o italiano até ao norte-americano, tam-bém são outras actividades que lhe agradam. Uma boa discussão com amigos, como José

Carlos Vasconcelos, por exemplo, também o mobiliza. A sua longa carreira inclui uma pas-sagem pela Polícia Judiciária, no Porto, como inspector (1968/74). Juiz de Direito nas Comar-cas de Tavira, Alenquer, Vila Nova de Gaia e Vila do Conde (1974/79) e Juiz do Tribunal de 1.ª Instância das Contribuições e Impostos do Por-to (1979/85), foi também presidente do Tribunal de Contas, tendo cessado funções em 6 de Ou-tubro de 2005, data em que se jubilou. Proferiu várias conferências e interveio em vários semi-nários sobre temas de Direito Fiscal, Direito e Controlo Financeiro em diversas universidades e associações, em Portugal e no estrangeiro, e no âmbito de organizações internacionais. Publicou vários artigos de opinião em jornais diários e semanários de referência.

Um homem do mar

PERFil