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cadernos de campo, São Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014 Entrevista com Carlo Severi entrevistador: EDSON TOSTA MATAREZIO FILHO tradução: ANA CAROLINE AMORIM OLIVEIRA, EDSON TOSTA MATAREZIO FILHO, JULIANO BONAMIGO, LUCAS BARBOSA CARVALHO E MORGANE AVERY. revisão: ANA CAROLINE AMORIM OLIVEIRA, EDSON TOSTA MATAREZIO FILHO, JULIANO BONAMIGO, RENATA FREITAS MACHADO, THAIANA BALBINO SANTOS E THIAGO HARUO SANTOS. 171 DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p171-183 Esta entrevista, concedida pelo Prof. Carlo Severi a mim, aconteceu no âmbito da produ- ção do documentário O que Lévi-Strauss deve aos Ameríndios, lançado em 2013. Por uma sugestão do Prof. Carlos Fausto, entrei em contato com Severi, que estava no Rio de Janeiro naquele mo- mento e logo se entusiasmou com o projeto, cujo objetivo era produzir um filme de divulgação científica sobre algumas ideias de Lévi-Strauss. Contudo o foco deste filme didático era não somente reunir opiniões sobre concei- tos difíceis do estruturalismo colhidas dos maiores especialistas na obra lévi-straus- siana, mas atingir esses conceitos pelo viés da influência indígena sobre Lévi-Strauss, o que tornava o desafio mais interessante. Achei excelente a oportunidade de conversar com um ex-aluno do antropólogo francês – seu orientador de tese “não-oficial”, o oficial foi o etnopsicanalista Georges Devereux – para abordar questões pertinentes ao tema do filme. Assim, o que o leitor encontrará nas páginas que seguem de conversa com Severi é uma entrevista focada em suas apre- ciações sobre termos como estrutura, relação entre natureza e cultura, oposições binárias etc. Mas não só isso; os temas relacionados a Lévi-Strauss são inúmeros e a conversa se espraia para a relação entre filosofia e antropologia, entre psicanálise e antropolo- gia, entre leis universais e particularidades etnográficas, possibilidades de tradução, ín- dios na universidade. Severi comenta também sobre sua relação com o mestre francês, principalmente na épo- ca de seu trabalho de campo com os Kuna, do Panamá, em finais dos anos 1970 e início dos 1980. Neste período, ele estuda os can- tos xamânicos de cura entre os Kuna, cantos estes que estão na base do célebre artigo de Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”. O que o antropólogo descobrirá em campo, contu- do, questionará a comparação feita por Lévi- Strauss no artigo entre o xamã e o psicanalista. Carlo Severi é atualmente diretor de estu- dos da cátedra “Antropologia da Memória”, na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS – Paris), e diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Dentre seus temas de estudo, pre- sentes em diversos artigos e livros, destacam- -se os dos rituais, da memória e das imagens. Escreveu com Michael Houseman uma das obras mais relevantes sobre a análise de rituais na Antropologia, Naven, ou le donner à voir. Essai d’interprétation de l’action rituelle (1994). Muitos de seus textos, incluindo traduções em português, estão disponíveis em seu site carlo- severi.net, juntamente com informações sobre o autor.

Entrevista Com Carlo Severi - Edson Matarezio

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Entrevista com Carlo Severi

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  • cadernos de campo, So Paulo, n. 23, p. 1-381, 2014

    Entrevista com Carlo Severi

    entrevistador: Edson TosTa MaTarEzio Filhotraduo: ana CarolinE aMoriM olivEira, Edson TosTa MaTarEzio Filho,

    Juliano BonaMigo, luCas BarBosa Carvalho E MorganE avEry.reviso: ana CarolinE aMoriM olivEira, Edson TosTa MaTarEzio Filho,

    Juliano BonaMigo, rEnaTa FrEiTas MaChado, Thaiana BalBino sanTos E Thiago haruo sanTos.

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    DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v23i23p171-183

    Esta entrevista, concedida pelo Prof. Carlo Severi a mim, aconteceu no mbito da produ-o do documentrio O que Lvi-Strauss deve aos Amerndios, lanado em 2013. Por uma sugesto do Prof. Carlos Fausto, entrei em contato com Severi, que estava no Rio de Janeiro naquele mo-mento e logo se entusiasmou com o projeto, cujo objetivo era produzir um filme de divulgao cientfica sobre algumas ideias de Lvi-Strauss.

    Contudo o foco deste filme didtico era no somente reunir opinies sobre concei-tos difceis do estruturalismo colhidas dos maiores especialistas na obra lvi-straus-siana, mas atingir esses conceitos pelo vis da influncia indgena sobre Lvi-Strauss, o que tornava o desafio mais interessante. Achei excelente a oportunidade de conversar com um ex-aluno do antroplogo francs seu orientador de tese no-oficial, o oficial foi o etnopsicanalista Georges Devereux para abordar questes pertinentes ao tema do filme. Assim, o que o leitor encontrar nas pginas que seguem de conversa com Severi uma entrevista focada em suas apre-ciaes sobre termos como estrutura, relao entre natureza e cultura, oposies binrias etc. Mas no s isso; os temas relacionados a Lvi-Strauss so inmeros e a conversa se espraia para a relao entre filosofia e

    antropologia, entre psicanlise e antropolo-gia, entre leis universais e particularidades etnogrficas, possibilidades de traduo, n-dios na universidade.

    Severi comenta tambm sobre sua relao com o mestre francs, principalmente na po-ca de seu trabalho de campo com os Kuna, do Panam, em finais dos anos 1970 e incio dos 1980. Neste perodo, ele estuda os can-tos xamnicos de cura entre os Kuna, cantos estes que esto na base do clebre artigo de Lvi-Strauss, A eficcia simblica. O que o antroplogo descobrir em campo, contu-do, questionar a comparao feita por Lvi-Strauss no artigo entre o xam e o psicanalista.

    Carlo Severi atualmente diretor de estu-dos da ctedra Antropologia da Memria, na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS Paris), e diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Dentre seus temas de estudo, pre-sentes em diversos artigos e livros, destacam--se os dos rituais, da memria e das imagens. Escreveu com Michael Houseman uma das obras mais relevantes sobre a anlise de rituais na Antropologia, Naven, ou le donner voir. Essai dinterprtation de laction rituelle (1994). Muitos de seus textos, incluindo tradues em portugus, esto disponveis em seu site carlo-severi.net, juntamente com informaes sobre o autor.

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    Como foi seu primeiro contato com Lvi-Strauss? Conte a impresso que mais lhe marcou quando o conheceu.

    CS: Eu o conheci em 1979, mas tive um primeiro contato em 1977, quando ele acom-panhou meu trabalho de campo. A primeira coisa que eu gostaria de dizer sobre Lvi-Strauss que, quando ramos estudantes, imaginava--se acho que ainda imaginam que era um homem sobretudo apaixonado pela teoria, pelo pensamento e pela investigao filosfica. De fato, era algum que primeira vista no aceitava absolutamente que seus alunos falas-sem sobre estrutura, oposies binrias e coi-sas assim. Ele tornava-se extremamente frio e mudava o tema da conversa. Por outro lado, se algum e foi o meu caso lhe escre-vesse ou fosse v-lo e pedisse um encontro sobre um problema emprico bem pequeno e especfico no pequeno, mas especfico e complicado, ento ele poderia ter uma reao de verdadeiro entusiasmo. Eis algum que era apaixonado pelo detalhe, apaixonado pela ob-servao e que exigia por parte dos jovens dos quais ele acompanhava a pesquisa uma ateno meticulosa para a etnografia. Por isso, natu-ralmente, foi uma grande surpresa para mim, que vinha de uma faculdade de filosofia e que pensava achar um professor que s falaria de oposies binrias ou da relao entre natureza e cultura.

    Oposies estas, como a relao entre natureza e cultura, que foram bastante criticadas, no ?

    CS: absolutamente certo que todos os que colocaram em questo o pensamento lvi--straussiano e sobretudo o carter s vezes esque-mtico dessas oposies Natureza e Cultura, pensamento selvagem e pensamento cientfico, o Ocidente e tudo o que no o Ocidente etc. todos aqueles que o criticaram, s ve-zes com razo, certamente no perceberam que

    esta maneira de opor as coisas estava tambm no objeto que ele estudava. Quer dizer que, de fato, era antes um estilo de pensamento ame-rndio, que podemos ver hoje, que deixou uma marca profunda em seu prprio pensamento. Ento, quando Lvi-Strauss fala de um tipo de pensamento amerndio que ocupa seu esprito, que ele deixa de alguma forma funcionar em seu esprito, quando se consagra anlise das mitologias do continente [americano], de fato, h qualquer coisa de verdadeiro l. Ou seja, ele sentiu profundamente uma fascinao por esse tipo de pensamento e tornou-se de certa ma-neira algum que o retoma.

    Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de comentar sobre esse encontro de pensamentos? Alguma coisa mais especfica que ele tenha desen-volvido nesse sentido?

    CS: Eu diria que certamente existiu esta in-fluncia, mas tambm sempre houve por parte dele uma preocupao de ter uma apreenso do todo. Esta, ele reivindicava como um pa-trimnio do antroplogo. Ento, desse ponto de vista, Lvi-Strauss, de um modo completa-mente consciente, empreendia talvez uma es-pcie de mimese do pensamento amerndio, claro, mas tambm reivindicava uma distncia. Isso est menos em voga hoje em dia, mas, em todo caso, algo que preciso enfatizar. H uma ambio de generalizao em Lvi-Strauss que no exclui de forma alguma a ateno etnografia, mas que permanece apesar de tudo como fonte de seu pensamento.

    Mas h um limite de traduo entre os dois pensamentos, no ? Eu tenho a impresso de que quando Lvi-Strauss fala de um conjunto de livros e ideias que passaram atravs dele, dos quais ele foi uma espcie de suporte annimo,1 de que os mitos se pensavam na cabea dele, pa-rece algo muito prximo da imagem que ele faz

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    tambm dos mitos se pensando entre si. Parece algo que evoca os universais do esprito huma-no, mas, ao mesmo tempo, como voc disse, ele tem uma ateno to grande pelos detalhes, e s vezes esta ateno negligenciada na leitura da obra dele.

    CS: Sim, mas no sei se eu colocaria as coisas desta forma. Os problemas de traduo do pensamento lvi-straussiano se apresenta-ram de modo concreto, principalmente no mundo anglo-saxo, o mundo ingls, onde temos uma dificuldade de compreender sua mensagem e em que foi criticado de maneira bastante frtil. Estou pensando em antrop-logos como James Leach e Rodney Needham. E penso que o fenmeno inverso produzi-do na escola brasileira de Cincias Sociais, na qual, ao contrrio, foram sensveis a vrios aspectos de seu pensamento. Portanto h, de alguma maneira, se voc quiser, antes dos amerndios, relaes com universos culturais que so diferentes da tradio francesa, mas que se mostraram ou resistentes ou bastante sensveis a seu pensamento. evidente que a obra de Lvi-Strauss mergulha suas razes em uma tradio muito francesa e que certa-mente Jean-Jacques Rousseau o personagem que mais a influenciou. Mas, por outro lado, ele foi objeto de uma influncia, e certa-mente em Boas e na tradio morfolgica alem que preciso procurar a fonte desses grandes projetos de antropologia geral que sempre defendeu.

    Como voc pode ver, tento contextualizar um pouco essa comunicao com os ame-rndios, que tem sua realidade, mas que foi tambm filtrada pelo trabalho de outros in-telectuais tanto na Amrica como na Europa. Ento, o que voc est tentando mostrar algo bastante singular em Lvi-Strauss, mas que tambm talvez precise ser recolocado em uma situao mais complexa.

    Voc mencionou Rousseau; considerando o pensamento filosfico pode-se dizer ento que, com Lvi-Strauss, pela primeira vez na histria do pensamento, digamos, universal, o pensa-mento indgena colocado para dialogar em p de igualdade com o filosfico? Isso seria um divisor de guas, a fundao de uma antropologia total-mente original? Com as Mitolgicas, com toda essa reflexo...

    CS: Sim, no tenho certeza de que possa-mos realmente encontrar em Rousseau um di-logo direto e um reconhecimento da dignidade do pensamento selvagem. O que podemos encontrar nele a liberdade de pensar o ser hu-mano em termos gerais, isso sim. Como voc v, sempre h, de uma parte, a anlise especfi-ca do mundo amerndio, mas de outra tambm h uma ambio generalizante. Enquanto algo geral hoje em dia frequentemente pensado como estrangeiro realidade, etnocntrico s vezes. De fato, a escolha de pensar... a escolha de generalizar tambm uma liberao para o exerccio do pensamento. Porque se voc deve pensar as coisas de tipo geral, deve incluir muitos materiais que vo alm da tradio oci-dental, se voc tem como projeto pensar algo a propsito do humano em geral. Ento, esta ambio de generalizar no algo em Lvi-Strauss que seja contraditrio com sua fide-lidade etnografia, muito pelo contrrio, a mesma lgica.

    No seriam, ento, dois Lvi-Strauss, um mais prximo de leis universais e outro atento s especificidades da etnografia?

    CS: Eu diria que o mesmo Lvi-Strauss, que so duas ambies que se encontram igualmente em posio de razes de seu pen-samento. Hoje tendemos sempre a suspeitar da ambio generalista da antropologia como uma maneira de, eventualmente, assumir o risco de trair a realidade imediata, ou seja, a

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    apreenso detalhada das coisas. Mas ele tentou fazer as duas coisas. Essa a sua originalidade. E tambm talvez seja essa a sua herana in-telectual mais importante. Ento, como voc v, tentei um pouco mostrar um dilogo com sua perspectiva, ressaltando que h, mesmo assim, ainda sempre um outro aspecto, que essa ideia de um pensamento livre, porque contm o desafio de dizer algo comum hu-manidade inteira. E isso uma liberdade, no apenas um risco ou um limite no pensamento estrutural.

    Com relao a alguns antroplogos, como Anne-Christine Taylor, que diz que os con-ceitos da antropologia estrutural teriam seus fundamentos genealgicos no encontro de Lvi-Strauss com os ndios2, o que o senhor pensa desta proposio?

    CS: Eu estou de acordo. Como j lhe disse, Lvi-Strauss, tendo trabalhado de maneira intensa em materiais amerndios e sobretudo o mito, s vezes corre o risco de atribuir coisas prprias do pensamento, da tradio mitolgica amerndia, humani-dade inteira. Portanto, por exemplo, nossos amigos africanistas tiveram, frequentemen-te, dificuldades em admitir que a mitologia africana possa ser tratada verdadeiramente da mesma maneira que Lvi-Strauss props para o pensamento, para a mitologia ame-rndia. No estou dizendo que no houve tentativa claro que houve , mas, no final das contas, efetivamente, as coisas so me-nos evidentes, para os africanistas em parti-cular, mesmo que se possa pensar tambm a Oceania. Porm, ao mesmo tempo, no devemos esquecer que as razes histricas do pensamento estrutural so parte de uma tradio, o pensamento morfolgico alemo do sculo XIX. certo que um grande poeta como Goethe, tambm um grande pensador,

    influenciou profundamente Lvi-Strauss. Tivemos ocasio de falar vrias vezes disso, porque, quando eu era um jovem antroplo-go, escrevi um ensaio sobre o conceito de es-trutura, argumentando que, na verdade, ele muito prximo ao conceito de forma origi-nria que Goethe havia proposto nos escri-tos botnicos e de anatomia. A ideia de uma forma que contenha no s uma manifesta-o oriunda no tempo, por exemplo, uma planta, mas tambm que contenha todas as plantas possveis. Voc v que no conceito de estrutura h, ao mesmo tempo, essa ideia de que podemos organizar os dados por meio desse conceito, mas tambm to geral, que permite pensar as transformaes que a rea-lidade no contm, coisas latentes, por assim dizer. Um mito abarca os desenvolvimentos latentes que podem se realizar em uma parte ou em outra do continente amerndio. H geralmente essa ideia em Lvi-Strauss e ela no amerndia, uma ideia europeia que ecoa com a morfologia prpria da tradio dos ndios da Amrica. De fato, existem duas razes para isso, uma com certa tradio intelectual europeia e um reconhecimento de uma possvel explicao do pensamen-to amerndio a partir da. Ento, acho que voc tem razo de destacar esta espcie de mimetismo entre os amerndios e o pensa-mento estrutural que Anne-Cristine Taylor escreveu. Mas penso tambm que podemos ressituar esse mimetismo que um mime-tismo de algum que est em dilogo direto com os materiais e que procura explic-los, em uma tradio intelectual que vem de lon-ge, que vem tambm da Europa. Por isso, por assim dizer, tem um nico Lvi-Strauss, mas h vrias tradies em seu pensamento. Ento, eu diria sobretudo dessa maneira: an-tes de dizer que h dois Lvi-Strauss, h um s Lvi-Strauss no qual esse encontro se d.

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    curioso, ouvindo o senhor falar, eu percebo o contrrio do que propus. como se fosse uma lvi-straussianizao do pensamento amerndio.

    CS: No! As duas coisas esto l!

    como se houvesse uma espcie de afinidade eletiva entre o que ele percebe nos ndios e certa parte da formao dele.

    CS: Necessariamente, Lvi-Strauss foi formado na Europa, fez escolhas, optou por uma tradio que era alis muito estran-geira tradio francesa especificamente. Portanto, foi com Boas que aprendeu tudo isso na antropologia norte-americana. Foi Boas quem trouxe terra americana esta tra-dio, ele fez uma tese sobre o pensamento de Goethe. Era algum que j tinha assimi-lado esta maneira de pensar e que a levou Amrica. Ento, ele fez o papel de ancestral, de fundador de uma nova antropologia no continente, ningum viu o que havia por trs dele, mas Lvi-Strauss percebeu muito bem. No se trata de negar que haja um contato direto com materiais amerndios, claro que h. Mas vejo as coisas de maneira, talvez, mais complexa. Quer dizer: uma das fon-tes h outras em sua obra. verdade que ele fez entrar na cultura europeia formas de racionalidade que descobriu entre os ndios da Amrica, mas foi um certo itinerrio in-telectual que lhe permitiu compreender isso. Portanto no se trata de decidir se Lvi-strauss que lvi-straussiza os amerndios, ou se so os amerndios que deram elementos a Lvi-Strauss. Os dois fenmenos ocorrem. E penso que ele tem sempre um equilbrio tal em sua obra, que deixa falar os amern-dios em seu trabalho. Ento, historicamen-te, foi uma espcie de grande abertura que ele provocou na cultura europeia, que pde pela primeira vez escutar, por assim dizer, perceber essa lgica em funcionamento nas

    sociedades amerndias. Posto isso, j que voc quer que discutamos esse assunto, no penso que se possa falar de filosofia amern-dia da mesma maneira que se possa falar de filosofia na Europa. H uma falta de media-o a, na minha opinio, um pouco rpida. Poderamos dizer, ao contrrio, algo talvez mais interessante, mais lvi-straussiano. O que poderamos dizer que a filosofia, toda a filosofia europeia em princpio, no passa de um exemplo de um grande ecossistema inte-lectual de pensamento que atravessa todas as culturas do planeta. Portanto, uma forma organizada de uma ecologia do esprito que um fenmeno de espcie.

    Ento, diria antes o inverso estou ten-tando de novo inscrever-me em um dilogo com o que voc faz. Na minha opinio, esta no a maneira lvi-straussiana de dizer as coisas. Eu colocaria antes que a filosofia eu-ropeia no mais do que uma instncia, um exemplo de um ecossistema de pensamento que atravessa todas as outras culturas e que dessa maneira que se deve compreender o Ocidente, como uma cultura entre outras, e no atribuir aos amerndios o exerccio tpico, estabelecido h dois mil e quinhen-tos anos, de uma disciplina especfica que se chama filosofia, que tem problemas espec-ficos debatidos em instituies, com media-es culturais prprias ao Ocidente. antes o inverso que se deveria dizer: quando os europeus fundam a filosofia, eles retomam, sob uma forma especfica, uma atividade de espcie que a criao de uma conceitualiza-o do mundo exterior e, me parece, de uma subjetividade.

    Como ele prprio diz que tem trs aman-tes, que so a psicanlise, a geologia e o marxis-mo, o pensamento amerndio seria uma quarta amante?

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    CS: Bem, no que diz respeito psicanlise, as coisas param rapidamente e estou bem se-guro em diz-lo, j que sempre trabalhei tanto com Lvi-Strauss quanto com um psicanalista, Georges Devereux, que foi meu orientador de estudos oficial, enquanto Lvi-Strauss era meu no-oficial, por assim dizer. Este cessa toda re-lao com a psicanlise muito cedo, no final dos anos 1950. Portanto, quando atribumos a ele uma simpatia pela psicanlise, na ver-dade estamos tomando as coisas de maneira demasiadamente superficial. Eu vim de uma formao psicanaltica, minha tese era sobre o conceito e sobre a etnografia que temos, que diz respeito eficcia simblica, portan-to a comunicao entre o corpo e o esprito. um dos ensaios nos quais Lvi-Strauss fala explicitamente de psicanlise e expe suas pr-prias ideias sobre o inconsciente. Quando o conheci, era um homem discretamente hostil psicanlise. Portanto, no nada daquilo que imaginamos hoje, ou seja, algum que estava em uma posio incondicional sobre a prtica e as teorias psicanalticas. Ele amava Freud, com certeza, mas odiava Lacan. E, como voc v, tento dar-lhe uma imagem um pouco mais re-alista do que era este homem. Ele odiava Lacan e era tambm muito desconfiado em relao psicanlise mais tradicional. Logo, esse campo do saber foi uma decepo para ele. O marxis-mo tambm, o marxismo...

    Ele comentava que apesar de Lacan dizer que tinha um dbito grande com ele, no entendia o que Lacan escrevia3.

    CS: De fato, ambos se frequentavam mui-to e se conheciam bem. Quando Lvi-Strauss dizia que no compreendia, a partir de um certo momento, o que Lacan escrevia, era uma maneira de no participar dessa espcie de fas-cinao e desse papel quase enfeitiador que teve a figura de Lacan sobre a cultura parisiense

    durante quase trinta anos. Lvi-Strauss no era disso, no era um admirador de Lacan, tal como o conheci, mas no se pode dizer que no entendia. Ele sabia muito bem do que se tratava. Mas e preciso dizer as coisas como elas so no havia uma posio homognea, como eu acreditava quando era estudante, que pusesse gente como Althusser, Lacan e Lvi-Strauss em um grande movimento geral, em uma espcie de grande coordenao de trs perspectivas. Foi exatamente o contrrio, na realidade. O que acontecia que todo mundo aprendeu muito de Lvi-Strauss, ao menos em Paris, e sempre se reservou para ele um papel, realmente, de ancestral de algum estilo de pen-samento. Mas no por isso que ele se deixava colocar no mesmo pacote, junto de um certo nmero de seus contemporneos. Em absolu-to! Provavelmente, uma das primeiras coisas que descobri que, na esfera privada, era mui-to intransigente e, alis, mais tarde, tambm em pblico, sobre um certo nmero de coisas que as pessoas assimilavam de bom grado a um grande movimento do estruturalismo. Ele no gostava absolutamente que seu pensamento fosse associado de maneira apressada a toda uma srie de coisas. Sustentava mesmo assim um certo rigor na definio do projeto de an-tropologia, e penso que um de seus grandes mritos tambm. No fundo, poderia ter sido mais flexvel e isso lhe daria ainda mais reno-me, ainda mais pblico, mas ao contrrio, isso ele no fez. Para ele importavam os limites do empreendimento antropolgico como uma das formas de manter sua capacidade de descober-ta. Por isso, permaneceu um homem muito singular e, no fundo, muito solitrio.

    Voc ia falar sobre a influncia do marxismo, e acabei te interrompendo.

    CS: Ah! A influncia do marxismo, mais uma vez, um pouco como em relao obra

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    de Freud. Lvi-Strauss admirava Freud pelo que ele era, ou seja, um grande positivista. Como no se quer ver hoje em dia, mas de fato era isso, foi um evolucionista e um positivista. E, no fundo, o que amava muito em Marx era a ambio cientfica. Disse muito claramente que Marx e o marxismo eram coisas comple-tamente diferentes, que o comunismo inter-nacional no tinha sua simpatia. antes um homem que se situava em uma posio mode-rada, mas com uma certa simpatia pela direita. Bem, preciso dizer as coisas como elas so. A geologia, ao contrrio, penso que voc est completamente com razo, era um entusiasta da geologia e deste tipo de cincia natural, que efetivamente era muito prxima da morfologia alem, e portanto, um pensamento da forma, que se escalona sobre uma temporalidade quase inimaginvel. E tinha essa fascinao pelas dis-tncias temporais quase infinitas. Havia, talvez, em sua obra, algo que estudei no pensamento morfolgico, uma fascinao por aquilo que os evolucionistas do sculo XIX chamaram de a Profecia do Passado. Ou seja, a aplicao de um mtodo proftico no mais no futuro, mas s origens da humanidade acho que ele sem-pre teve uma grande admirao por esse pro-jeto, muito visvel em alguns de seus escritos. Portanto, em meio a tudo isso, se encontra um grande fascnio intelectual pelo pensamento amerndio. Isso, sim, penso ser perfeitamente verdadeiro.

    Severi, voc gostaria de comentar alguma coisa mais relacionada ao seu trabalho de campo com os Kuna4, com seu debate com Lvi-Strauss em relao eficcia do simblico?

    CS: Veja, isso um grande tema. Posso simplesmente lhe dizer que antes de ver Lvi-Strauss pela primeira vez, eu lhe escrevi uma longa carta. Ento, o que estava acontecen-do era que eu estava fascinado, como muitos

    outros, por seu ensaio sobre a eficcia sim-blica. J tinha escrito minha primeira dis-sertao sobre isso pela Faculdade de Milo, orientada por um psicanalista, Franco Fornari, que era na poca o presidente da Sociedade Psicanaltica Italiana. Resisti um pouco em in-terpretar as coisas de longe assim, essa assimi-lao que Lvi-Strauss tinha feito, de maneira fascinante entre o trabalho do xam e o do psi-canalista ocidental. Ento, simplesmente, fui para os Kuna, passei o vero de 1977 com eles e devo dizer que descobri alis como outros, no estou sozinho que o canto xamnico que Lvi-Strauss estudou e que utilizou para fazer essa comparao entre o psicanalista e o xam, era cantado em uma variao de Kuna que ningum compreende se no iniciado. Ento, sua explicao foi inteiramente fun-dada sobre a veiculao do sentido entre o xam e a mulher que dava luz, como voc deve saber, e descobri simplesmente que l, com uma enorme probabilidade, a mulher em questo no compreendia praticamente nada do que o xam lhe dizia. Veja, era embaraoso. E a primeira coisa que fiz [ao voltar do cam-po] foi escrever para Lvi-Strauss uma carta muito longa, na qual lhe contei um pouco do que tinha visto em campo e toda uma srie de detalhes, pois eu havia estudado seu texto, no apenas seu ensaio; ido Sucia procurar as edies Kuna e inglesa do canto que havia sido publicado. Eu j tinha inclusive traduzido e publicado esses textos. Depois, quando esti-ve com os Kuna, vi que as coisas se passavam assim e por isso que ele aceitou seguir meu trabalho.

    Alis, era um problema emprico emba-raoso, que certamente teve consequncias sobre suas teorias, e por isso que o que fiz lhe interessou. Assim, aceitou acompanhar meu trabalho at sua morte. Permaneci sem-pre como algum que ia v-lo, e lhe contava

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    o que passava pela minha cabea para saber o que ele pensava. Nesse sentido, acho real-mente que teve um papel de mestre em tudo o que pude fazer. Mas tambm por isso que eu tinha vontade de falar de forma realista. O que quero sublinhar que Lvi-Strauss teve um interesse extraordinrio por este problema e foi extremamente fiel, no sentido em que ele poderia ter ignorado, por exemplo, o que eu fazia e me deixar de lado, mas, ao contr-rio, disse: eis algum que encontrou um de-talhe interessante que pode mudar as coisas, e ocupou-se desse assunto comigo. Ento, esta a razo pela qual conheci Lvi-Strauss, pois, como estudante de filosofia em Milo, na Itlia, eu lhe escrevi uma grande carta para explicar que ele tinha se enganado mais ou menos sobre tudo [risos]. [E Lvi-Strauss res-pondeu:] Talvez possamos falar sobre isso. Voc no etnlogo ainda, vire etnolgo. Se voc quer se tornar etnlogo, vou lhe ajudar. E foi o que fez. Ao seu lado, encontrei um assunto absolutamente interessante, ao qual dediquei alguns anos de trabalho.

    Ele recebeu dezenas de pedidos de orienta-es de tese sobre o conceito de oposio bin-ria, ou de Natureza e Cultura, o pensamento. E recusou todos! No s porque no tinha muito tempo, ele tinha poucos estudantes, e quando o conheci, ele estava quase se aposen-tando. Enfim, estava no fim de sua carreira. A aposentadoria veio talvez seis ou sete anos mais tarde. Mas ainda dirigia o Laboratrio de Antropologia Social, que havia fundado. Portanto, Levi-Strauss era esse homem, quer dizer, algum que ostentava certa alergia pelas teorias e pela filosofia. No queria ouvir fa-lar de filosofia. Mas, ao mesmo tempo, podia passar uma hora ou duas com um estudante para ver como organizava sua etnografia. Isso, sim, era apaixonado por esse gnero de coisas. E bom que se tenha uma imagem diferente

    daquela do grande terico sempre perdido em seus pensamentos, no era assim. Foi um gran-de terico, eu penso, que, ao mesmo tempo, era muito consciente de que a organizao de uma forma especfica de pensar sobre um tema podia abrir a via compreenso de fenmenos gerais. A verdade essa.

    Portanto, no so dois Lvi-Strauss. S h um, mas h uma relao entre essas duas es-tratgias que faz o essencial de sua obra, mui-to mais do que o termo estruturalismo. Isso realmente o que posso dizer. Quer dizer que ele acreditava firmemente que, a partir de um detalhe interessante, pode-se procurar o se-gredo de uma lei geral. E , no fundo, o que eu mais admirava nele, enquanto homem e em sua obra. Era sua capacidade de perceber fenmenos isolados que podem abrir a pos-sibilidade de generalizao, uma vez que sua complexidade especfica fosse compreendida. Veja, no fundo, ele seguia a grande instruo de Goethe, quer dizer, frente multiplicidade inimaginvel de fenmenos da natureza ou do pensamento, procure o exemplo mais simples e descreva cuidadosamente sua complexidade especfica. Eis, por assim dizer, em todo caso, o estilo intelectual que encontrou, talvez tam-bm entre os amerndios.

    E o fato de voc perceber que a paciente do xam kuna no entendia o que era cantado pe em xeque a comparao que Lvi-Strauss fez entre o xam e o psicanalista5?

    CS: Fiz a mesma pergunta e ele me res-pondeu. Eu preparava minha defesa de tese, de modo que deveramos nos encontrar al-guns dias depois para a banca. E me respon-deu: escute, isso quer dizer que o xamanismo ainda mais parecido com a psicanlise do que eu pensava [risos]. Ento, a partir des-se momento, era naturalmente um paradoxo: o que ele quis dizer que elas no pareciam

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    nem um pouco. Mas, menos nos termos pelos quais ele via as coisas em 1949, quando publi-cou o ensaio A eficcia simblica. O homem com que falei era algum que pensava que a psicanlise, no fundo, era um fracasso cient-fico. Ele me respondeu com uma espcie de se magia, isso quer dizer que ainda mais parecido com a psicanlise do que eu pensava em 1949. Mas essa era sua opinio em 1981, quando defendi minha tese. Portanto, penso que essa tambm uma maneira de contribuir com um certo realismo na descrio de Lvi-Strauss enquanto intelectual, quer dizer, temos tendncia a associ-lo empreitada psicanalti-ca e a certos movimentos do pensamento ps--estruturalista, por exemplo. Lvi-Strauss no era isso. Era um positivista, um cientista, ali-s, e que pensava a psicanlise nos anos 1980 como uma decepo.

    Conhecer o xamanismo talvez tenha suscitado isso nele, no? O xamanismo talvez tenha gerado esta decepo?

    CS: Eu no sei! Isso eu no sei! Ao con-trrio, o xamanismo um fenmeno prodi-giosamente interessante, e que pode, alis, fazer eco com a psicanlise, mas por outras vias, no necessariamente por essa. Veja, en-contrei muitas pessoas em minha vida que me disseram: mesmo que isso no funcio-ne assim entre os Kuna, pode funcionar em outra parte, e que no querem renunciar ao conceito de eficcia simblica. Mesmo que se olhe com cuidado, em todo caso, preciso reformul-lo caso queiramos considerar essa dificuldade emprica, bastante real. Agora, podemos ler esse texto e outros. Publiquei um canto Kuna, podemos ver se se parece ou no com a lngua cotidiana. Em 1949, certamente no; quiseram criticar Lvi-Strauss por isso. Mas ateno: ele trabalhava sobre fontes. E aqueles que no mencionaram essa diferena

    talvez at mesmo a ignorassem foram os dois antroplogos sucos que publicaram o texto: Nils Holmer e Henri Wassen. Portanto, desse ponto de vista, o problema se coloca muito antes da interveno levi-straussiana: ele se coloca no momento em que se constitui o documento, quer dizer, na passagem que no contarei, porque um pouco audaciosa e complicada do texto Muigas ao Museu Etnogrfico de Gteborg, onde foi publicado o canto Kuna em questo. Com efeito, esse texto chegou pelo correio na Sucia e foi um jovem dessa etnia, Guillermo Hayans, que era carteiro deles, que o transcreveu e enviou esse pequeno caderno alis com verso pictogr-fica tambm aos dois cientistas suecos que, em seguida, o publicaram. uma histria bas-tante romanesca, na verdade. Portanto, nin-gum no campo havia recolhido esse texto e feito a simples operao que fiz mas no sou o nico , que consistia em gravar uma parte e depois pedir s pessoas para traduzi-lo. As pessoas me diziam: mas no se compreende nada, no sabemos o que . Veja, essa opera-o tem consequncias tericas, compreende? Quer dizer, era isso o importante para Lvi-Strauss: ele sentia que era preciso tirar con-sequncias disso e que no era simplesmente um pretexto para comear uma polmica ou, ao contrrio, para negar a realidade e guardar o conceito de eficcia simblica, como alguns de meus colegas tentaram fazer.

    Isso uma coisa at que recorrente na antro-pologia, no ? Descobre-se que a eficcia simb-lica que foi descoberta nos Kuna no existe dessa forma entre eles. Como acontece nos estudos do parentesco, por exemplo. Descobre-se que o que chamamos hoje de dravidianato no existe nos povos dravidianos, mas que h em outros lugares.

    CS: Essa uma boa ideia. No imposs-vel que tenha formas de eficcia simblica que

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    existam alm desse caso e se encontram em ou-tro lugar alm dos Kuna. Alis, no vamos fa-lar disso por mais tempo, mas de fato penso ter encontrado um tipo de interpretao daquilo que se passa entre os Kuna. Dediquei uns trin-ta anos, escrevi sobre e penso ter encontrado uma soluo possvel a esse problema. Mas voc tem razo, um fenmeno geral. Quer dizer, a Antropologia feita de tal maneira que generalizamos a partir de casos geogrfi-cos precisos, portanto os conceitos que utili-zamos tm sempre uma espcie de campo de origem. Na medida em que tentamos genera-lizar, nos damos conta de que eles podem ou no valer em tal ou tal campo, seja devido a razes geogrficas, seja por razes conceituais. Da a possibilidade de que algo que foi pen-sado ou que acreditamos ter visto em alguma parte possa se revelar vlido de maneira con-ceitual e no geogrfica, salvo no campo de origem do conceito. Efetivamente, isso pode ser algo prprio da Antropologia. Em todo caso, um fenmeno tpico.

    Atualmente, h muitos indgenas ingressando na universidade e mesmo em cursos de ps-gra-duao. Existem cursos de formao de professo-res indgenas das mais diversas reas e tambm em antropologia. Como o senhor v esse possvel encontro de intelectuais indgenas com a obra de Lvi-Strauss?

    CS: Isso algo muito importante. A rea-propriao por parte dos jovens intelectuais que vm dessas regies do mundo um fe-nmeno muito importante. Eu diria mesmo que, em ltima instncia, cabe a eles decidir se o que os antroplogos fizeram vlido ou no. Penso que Lvi-Strauss estaria muito or-gulhoso disso. Talvez uma das coisas que teria sentido mais intimamente. No com-pletamente um fenmeno recente. Nos anos entre 1930 e 1950, na Amrica do Norte,

    isso aconteceu em parte mas verdade que na poca era de toda maneira um fenmeno raro. Parece-me que cabe, sobretudo a ns, iniciarmos um dilogo com os jovens intelec-tuais e ter trocas, tanto quanto possveis, de nosso lado, com eles. Com certeza, ao mes-mo tempo um embate social, mas tambm intelectual muito importante. Voc sabe, fui membro da banca de um jovem Kuna, que se tornou antroplogo. Ele no o nico, alis, h outros. Eu me dei conta de que em sua dissertao h, ao mesmo tempo, uma maturidade antropolgica absolutamente impecvel particularmente do ponto de vis-ta etnolingustico algum muito forte, que trabalhou justamente sobre a mitologia Kuna. E de maneira completamente cons-ciente, esse jovem intelectual restitui o que a antropologia pode lhe dar, mas no cessa a. Ele coloca paralelamente uma descrio e interpretao perfeitamente satisfatrias do ponto de vista de um antroplogo manei-ra de interpretar de seu mestre Kuna. Quer dizer que produziu, assim, um texto muito novo, que interpreta sua prpria cultura uti-lizando-a, apropriando-se de uma tcnica de transcrio, de uma anlise da gramtica, dos conceitos que aprendeu na escola dos antro-plogos. Mas tampouco renuncia em perse-guir a anlise, mostrando a seu mestre Kuna que ele tambm completamente capaz de fazer como ele. Ou seja, uma interpretao que escapa aos nossos instrumentos concei-tuais e que, ao contrrio, nos d uma ima-gem muito bela de como funciona a tradio Kuna hoje em dia. Tradio extremamente refinada, articulada, sofisticada e portadora precisamente desse pensamento amerndio sobre o qual falamos. A tradio Kuna d um exemplo admirvel desse exerccio do pensar amerndio. E se tivssemos que desmentir o que dissemos antes, se pudssemos procurar

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    os filsofos entre os amerndios, talvez os encontrssemos entre os Kuna. Quer dizer, entre eles h uma populao intelectual, consciente de seu saber. Tradicionalmente, voc tem xams que se visitam uns aos ou-tros, que confrontam, que comparam verses de tal ou tal canto xamnico, que os estudam juntos. Portanto, voc tem uma espcie de tradio de reflexo e transmisso do saber que faz dessa populao um exemplo admi-rvel da tradio amerndia. E dentre estes jovens intelectuais ele se chama Abadio Green Stocel, preciso que eu diga seu nome vejo talvez um exemplo do que voc pro-cura, mas, desta vez, feito por um amerndio, isto , uma reflexo paralela entre os mto-dos de anlise estrutural da mitologia e uma maneira amerndia de pensar sua prpria he-rana mitolgica.

    Antropologia Kuna.CS: Antropologia Kuna. No fundo, uma

    antropologia Kuna que me interessa particular-mente. Como lhe disse, no o primeiro an-troplogo Kuna, j que tinha Arnulfo Prestan e Victoriano Smith. E antes deles, havia pessoas que trabalhavam com os suecos, que preciso citar como as fontes reais da antropologia que se pde fazer entre essa etnia a partir dos anos 20 do sculo passado. Portanto, Rubm Pres Kantule, que trabalhou muito com os antro-plogos e Guillermo Hayans, que justamente o carteiro que enviou o texto de certos cantos xamnicos para a Sucia. Dessa forma, h entre os Kuna quase uma tradio dessa capacidade reflexiva que permite ter um olhar antropolgi-co sobre sua prpria cultura e que no o nico caso possvel. Isso existe hoje em dia justamen-te em outros lugares, mas mesmo assim uma das grandes singularidades, eu penso, a partir do incio do sculo XX, sobre a cultura Kuna, que soube, ao mesmo tempo, preservar-se e

    encontrar uma maneira de construir um olhar antropolgico sobre si mesma. ainda alguma coisa que Lvi-Strauss teria verdadeiramente amado muito.

    E podemos dizer que os xams so os intelec-tuais indgenas?

    CS: Mas no somente os xams, porque de fato, entre os Kuna, h vrios tipos de intelec-tuais. Os chefes o so, trata-se justamente dos especialistas em mitologia, capazes de enunciar durante horas cantos mitolgicos, e tambm existem os especialistas da iniciao feminina, que so os especialistas do canto. Portanto, h nessa cultura uma passagem da ao ritual ao estabelecimento dos cantos que descrevem os rituais, o que um pouco como uma passagem para uma literatura, no fundo.

    Os cantores, o que voc chama de eu-memria?

    CS: Sim, sim, isso. Estas so as pesso-as que assumem seus papis de memria da tradio. Abadio Green um dos jovens que assume, ao mesmo tempo, o papel de antro-plogo perfeitamente consagrado por nossos rituais cientficos, mas que no renuncia em ser tambm aluno de seu mestre Kuna e de toda essa tradio. Portanto, h um desafio que importante no somente para as culturas amerndias hoje, mas tambm para a prpria antropologia. Ento, penso que atualmente devemos trabalhar com os jovens intelectuais, e isso um desafio tanto para eles quanto para ns. provavelmente uma das coisas que fa-ro talvez o futuro da antropologia: de passar desta situao de eco, do pensamento ame-rndio que revive no trabalho intelectual de Lvi-Strauss a um sistema de troca bem real, organizado e levado a cabo pelos intelectuais amerndios que tomam a palavra. A propsi-to desse famoso pensamento amerndio que

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    Lvi-Strauss entreviu nesses documentos, do qual ele pde explorar a lgica de uma manei-ra totalmente terica ou quase. Trata-se de um tempo para organizar a troca e torn-la mais complexa, sem dvida, menos mgica, menos mimtica e conflituosa, porm bem real, des-cendendo da prpria prtica da antropologia de hoje.

    Voc v, ento, uma filosofia por vir ainda, desse encontro e dessa apropriao indgena?

    CS: Sim, tenho uma filosofia disso, voc tem razo. Penso que a filosofia da antropologia deve ser simplesmente um ideal de tradutibili-dade. Isto , o que deve ser possvel trabalhar a partir de uma premissa geral, todas as ln-guas so diferentes, mas todas so traduzveis. Portanto, no se pode nem se encerrar na dife-rena, nem afirmar uma generalizao que seria uma extenso do pensamento ocidental. Ento, preciso reconhecer a diferena e ter uma am-bio de tradutibilidade, essa a filosofia que devemos ter, a meu ver. Quer dizer, o que posso tirar do ensinamento de Lvi-Strauss e de sua comunicao com o pensamento amerndio precisamente isso, que todas as lnguas so di-ferentes e preciso sempre reconhecer, como j dizia Boas, o gnio de uma lngua, ou seja, a lgica que opera em seu interior. Como diziam os morflogos alemes, no h a infncia de uma lngua, todas so adultas, por assim dizer, porque tal como aparece, ela domina comple-tamente uma lgica prpria. Portanto, no h lngua primitiva. algo que um grande teri-co alemo, Semper, deu como exemplo para a arte. Ele dizia as tcnicas de expresso tm uma evoluo. A arte no tem evoluo. A arte perfeita desde a pr-histria. Por que ele tinha essa ideia? Porque uma obra de arte a inven-o de uma relao entre as tcnicas, e isso um puro produto do pensamento. E no existe histria do pensamento, no existe a infncia

    do pensamento; desde que se comea a pensar, todo o pensamento est l, e desde que se come-a a falar, toda a lngua est l. Portanto, deste ponto de vista, preciso reconhecer a comple-xidade de todas as lnguas e saber descrever sua especificidade, mas necessrio tambm saber que no h uma lngua intraduzvel, todas o so traduzveis. Por conseguinte, pode-se procurar mais alm de sua prpria identidade local, e possvel pensar alguma coisa de geral, como Rousseau e Lvi-Strauss pensaram. isso o que penso, e a partir dessa ideia que podemos nos apresentar a esse dilogo, enquanto antroplo-gos, com os jovens intelectuais que emergem hoje em dia no Brasil e tm j uma histria nas culturas do continente. Ao mesmo tempo, h que se restituir com rigor e completude a lgica do pensamento amerndio, mas tambm saber que este pode entrar em contato com outros e o que preciso trabalhar so os paradigmas de tradutibilidade. No fundo, quanto a isso, penso que ainda somos lvi-straussianos. Talvez sem sermos inteiramente estruturalistas, mas con-tinuamos ainda lvi-straussianos para alm do estruturalismo.

    Muito bom, acho que isso.CS: Ok!

    Para no se cansar muito, no vou ficar explo-rando o senhor.

    CS: Seria um depoimento de apenas cinco minutos.

    Pelo que marcou aqui, uma hora e vinte.[Entrevistador e entrevistado riem]

    Notas

    1. Entrevista concedida a Didier Eribon, publicada em De perto e de Longe, Ed. Cosac & Naify, So Paulo, 2005.

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    2. TAYLOR, Anne-Christine. Dom quixote na am-rica: Claude Lvi-Strauss e a antropologia ameri-canista. In: Sociologia & Antropologia, v. 01.02, p. 77-90, 2011.

    3. Mencionado na mesma entrevista a Didier Eribon ci-tada na nota 1.

    4. Povo de lngua chibchan, habitante do Panam e da Colmbia.

    5. Lvi-Strauss estabelece esta comparao no texto A eficcia simblica (1949), que se encontra no livro Antropologia Estrutural, Ed. Cosac & Naify, So Paulo, 2008.