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ENXAQUECA OFTALMOPLÊGICA ESTUDO CLÍNICO E ELETRENCEFALOGRAFICO DE DOIS CASOS PAULINO W. LONGO * PAULO PINTO PUPO ** OCTAVIO LEMMI *** Enxaqueca é afecção caracterizada por crises periódicas de dor de cabeça, geralmente unilateral, paroxística, precedida ou não de aura visual (escotoma cintilante ou cegueira parcial), acompanhada de dis- túrbios stnsoriais, motores ou mistos, ao lado de fenômenos gerais vasomotores e psíquicos. Essas manifestações clínicas não são de presença obrigatória, podendo faltar ou ser acrescidas de outras mais. Assim sendo, é possível a separação de formas clínicas diversas no quadro da enxaqueca. Classificação bastante interessante e descritiva c a de Moench 1 , que considera as seguintes formas: 1 — Enxaqueca comum ou hemicrânia simples; 2 — Enxaqueca of tálmica (dor de cabeça precedida, acompanhada ou seguida de distúrbios visuais, par- ticularmente escotomas) ; 3 — Enxaqueca oftalmoplégica (dor de cabeça acompanhada de paralisia de músculos oculares) ; 4 — Enxa- queca facioplégica (acompanhada de paralisia facial) ; 5 — Enxaqueca abdominal (síndrome de distúrbios gastrointestinais e cardiovasculares asscciados, não acompanhados de dor de cabeça) ; 6 — Enxaqueca psíquica (distúrbios psíquicos paroxísticos que substituem, se juntam ou se alternam com crises de cefaléia). O aparecimento da enxaqueca está quase sempre ligado à presença de três fatores, hoje admitidos de maneira quase que categórica: 1 — a idade relativamente jovem em que se instala; 2 — a predominância no sexo feminino; 3 — a hereditariedade, homóloga e direta, bem eviden- ciável em 50 a 80% dos casos. Por outro lado, o seu íntimo parentesco com a epilepsia, assinalado por Tissot H863), tem sido estatistica- mente comprovado pela maioria dos pesquisadores e, mais recentemente, firmado de modo inequívoco com o advento da eletrencefalografia 2 . É a forma oftalmoplégica da enxaqueca que nos interessa no pre- sente trabalho. Caracteriza-se pelo fato de algumas crises de hemi- crânia serem acompanhadas de paralisia, parcial ou total, do nervo Trabalho apresentado à Secção de Neuropsiquiatria da Associação Paulista de Medicina, em 6 outubro 1947. * Catedrático de Neurologia na. Esc. Paulista Med. ** Livre-docente de Neurologia da Fac. de Med. Univ. S. Paulo. Chefe de Clínica Neurológica na Esc. Paulista Med. (Prof. Paulino W. Longo). *** Assistente de Clínica Neurológica da Esc. Paulista Med. (Prof. Paulino W. Longo). ==1. Moench, L. G. — Headache. The Year-Book Publishers, Chicago, 1947, pág. 207. ==2. Dow, D. J. e Whitty, C. W. — Electroencephalography changes in migraine. Lancet, 252: 52-53 (julho, 12) 1947.

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E N X A Q U E C A O F T A L M O P L Ê G I C A E S T U D O C L Í N I C O E E L E T R E N C E F A L O G R A F I C O D E D O I S C A S O S

P A U L I N O W . L O N G O * P A U L O P I N T O P U P O ** O C T A V I O L E M M I ***

Enxaqueca é afecção caracterizada por crises periódicas de dor de cabeça, geralmente unilateral, paroxística, precedida ou não de aura visual (escotoma cintilante ou cegueira parcial), acompanhada de dis­túrbios stnsoriais, motores ou mistos, ao lado de fenômenos gerais vasomotores e psíquicos. Essas manifestações clínicas não são de presença obrigatória, podendo faltar ou ser acrescidas de outras mais. Assim sendo, é possível a separação de formas clínicas diversas no quadro da enxaqueca. Classificação bastante interessante e descritiva c a de Moench 1 , que considera as seguintes formas: 1 — Enxaqueca comum ou hemicrânia simples; 2 — Enxaqueca of tálmica (dor de cabeça precedida, acompanhada ou seguida de distúrbios visuais, par­ticularmente escotomas) ; 3 — Enxaqueca oftalmoplégica (dor de cabeça acompanhada de paralisia de músculos oculares) ; 4 — Enxa­queca facioplégica (acompanhada de paralisia facial) ; 5 — Enxaqueca abdominal (síndrome de distúrbios gastrointestinais e cardiovasculares asscciados, não acompanhados de dor de cabeça) ; 6 — Enxaqueca psíquica (distúrbios psíquicos paroxísticos que substituem, se juntam ou se alternam com crises de cefaléia).

O aparecimento da enxaqueca está quase sempre ligado à presença de três fatores, hoje admitidos de maneira quase que categórica: 1 — a idade relativamente jovem em que se instala; 2 — a predominância no sexo feminino; 3 — a hereditariedade, homóloga e direta, bem eviden-ciável em 50 a 80% dos casos. Por outro lado, o seu íntimo parentesco com a epilepsia, já assinalado por Tissot H863) , tem sido estatistica­mente comprovado pela maioria dos pesquisadores e, mais recentemente, firmado de modo inequívoco com o advento da eletrencefalografia 2 .

É a forma oftalmoplégica da enxaqueca que nos interessa no pre­sente trabalho. Caracteriza-se pelo fato de algumas crises de hemi­crânia serem acompanhadas de paralisia, parcial ou total, do nervo

T r a b a l h o apresen tado à Secção de Neurops iqu i a t r i a da Associação P a u l i s t a de Medic ina , em 6 ou tubro 1947.

* Ca tedrá t i co de Neuro logia na. Esc . P a u l i s t a Med . ** Livre-docente de Neurologia da F a c . de Med . U n i v . S. Pau lo . Chefe de Clínica

Neuro lóg ica na Esc . Pau l i s t a Med. (Prof . P a u l i n o W . L o n g o ) . *** Ass i s t en te de Clínica Neuro lóg ica da E s c . Pau l i s t a Med . (Prof . P a u l i n o W .

L o n g o ) . ==1. Moench , L . G. — Headache . T h e Year-Book Pub l i she r s , Chicago, 1947, pág . 207. ==2. Dow, D . J . e W h i t t y , C. W . — Elec t roencephalography changes in mig ra ine . Lance t ,

252: 52-53 ( ju lho , 12) 1947.

motor ocular comum ipsilateral, a princípio intermitente e fugaz, depois quase sempre permanente. Descrita inicialmente por Charcot (1890) , que lhe deu a denominação de "enxaqueca oftalmoplégica", fora já assinalada por Gubler (1860) e por Saundby (1882). Moebius (1884), descrevendo, segundo Behmack 3 , uma "paralisia oculomotora recidi­v a t e e periódica" como manifestação motora, acompanhada ou não de dor, e dependente de afecções orgânicas da base do crânio, não a admitiu corno possível forma particular de enxaqueca. Foram a descrição "princep?" de Charcot, o trabalho de Ballet (1896) e as teses de Alche (Paris, 1895) e de Leclezio (Bordeaux, 1905), que lhe outorgaram o direito de um lugar próprio nos quadros da patologia, direito ainda hoje bastante discutido.

A multiplicidade dos quadros clínicos assinalados na literatura, a confusão freqüente entre a "enxaqueca oftalmoplégica" de Charcot e a "paralisia oculomotora recidivante e periódica" de Moebius e, mais ainda, os achados anatômicos em casos semelhantes 4 , têm sido, a nosso ver, as razões pelas quais muitos estudiosos põem em dúvida a existên­cia da forma oftalmoplégica da enxaqueca. Entre eles, citemos Chris­tiansen s , Pasteur Vallery-Radot 6 , Crouzon e Chatelin 7 , Gerini 8 , Garcin 9 , Dereux. 1 0 e Riley — discutindo uma comunicação de Foster-Kennedy 1 1 — bem como os tratadistas Claude 1 2 e Ford 1 3 .

A propósito destas discussões, encontramos no trabalho de Bürki 1 4 uma análise criteriosa, separando a verdadeira forma da

==3. Behmack, Ch. — Z u r K e n n t n i s de r ophthalmoplegischc M i g r ä n e . Ztschr . f. d. ges . Neuro l , u . Psychia t . , 114: 264-280, 1928.

==4. Richter ( f ibrocondroma da base do cérebro , 1887) , Massa longo (processo i n f l ama tó r io crônico ou neoplást ico das men inges da base . 1891) , Shionoya ( tuberculose das men inges , 1911) , K a r p l u s (neurof ib roma do I I I par , 1902) , Dassen ( a n e u r i s m a d a a r t é r i a comunican te pos ter ior . 1931) , etc.

==5. Chr i s t i ansen , V . — Rappor t sur la mig ra ine (VT Réun ion Neuro log ique I n t e r n a t i o n a l e Annue l le . Société de Neuro logie de P a r i s — 25 a 27 de maio, 1925. Rev . Neuro l . , 1: 854-881, 1925.

==6. P a s t e u r Va l le ry -Radot — R a p p o r t su r la pathogénie des mig ra ines . Rev . Neuro l . , 1: 881-922, 1925.

==7. Crouzon, M . e Chate l in . Ch. — U n cas de mig ra ine ophta lmoplégique (para lys ie ocula i re pé r iod ique ) . Rev . Neuro l . , 1: 734-36, maio , 1914.

==8. Ger in i , C. — Sopra un caso di emic ran ia oftalmoplegica. Cervello, 6: 197-208, 1927. ==9. Garc in , R. e He lb ron . P . — Cont r ibu t ion à 1'étude des mig ra ines accompagnées et . en

par t icu l ie r , de la physiopathologie des mig ra ines oph ta lmiques accompagnées . A n n . Méd . , 34: 81-114, 1934.

Garc in , R. e Dolfuss, M . A . — Para l i s i e s rec id ivantes et a l t e rnan t e s de la 3º et de la 6º paires évoluant par poussées depuis onze a n s . Rev . Neuro l . . 1: 461-469, 1931.

==10. D e r e u x , M . J . — Pa ra ly s i e pér iodique de la t ro i s i ème pa i re évoluant par poussées douloureuses depuis qu inze ans (cont r ibut ion à 1'étude de la mig ra ine ophtha lmoplég ique) . Rev. Neuro l . . 75: 307-308, 1943.

==11. Fosterr-Kennedy — A case of ophthalmoplegic mig ra ine and a theory for i ts pro¬ duction. J . N e r v . a. Men t . Dis . , 104 : 89-91 ( ju lho) 1946.

==12. Claude . H . — Patologia I n t e r n a — E n f e r m e d a d e s del S i s tema Nerv ioso . Biblioteca Ca rno t y Fournier Vol . T r a d . espanhola . Sa lva t Edi t . , Barce lona , 1942. págs . 784 e 787.

==13. Ford , F r . — Diseases of the N e r v o u s Sys tem in In fancy , Childhood and Adolescente . Ch. C. Thoma s . Bal t imore . 1937. pág . 849.

==14. B ü r k i — Ophthalmoplegic mig ra ine . Conf in ia Neurologica , 4: 54, 1941. A p u d Spiegel , E . A . e Sommer , I . — Neuro logy of t he eye, ea r , nose and th roa t . G r u n e & S t r a t t o n E d i t . , New York , 1944, pág . 376.

enxaqueca oftalmoplégica das "pseudo-enxaquecas oftalmoplégicas". Estas seriam melhor catalogadas como oftalmoplegias recidivantes acompanhadas de fenômenos dolorosos. Neste grupo, podem ser incluí­dos todos aqueles casos da literatura, nos quais a necrópsia revelou afecções orgânicas comprometendo o nervo motor ocular comum, isola­damente ou ao lado de outros nervos cranianos (processos inflamatórios, tumores, aneurismas, etc.) Em geral, em tais casos, a sintomatologia surge já em idade avançada e se desenvolve por surtos de paralisia permanente ao invés de paralisias recorrentes dos nervos ocu! orno to res.

A verdadeira enxaqueca oftalmoplégica, ao contrário, é moléstia da juventude e a oftalmoplegia é recorrente, acompanhando as crises da enxaqueca; quando ela, após aparecimentos sucessivos, não se estabelece de modo permanente, tende a se espaçar e mesmo a desaparecer na velhice, tal como as próprias crises da enxaqueca.

Or. casos acima assinalados e os de Flatau (apud Costa Rodrigues e Collares 1 5 ) , Brcuchard 1 6 , Lotti e Sedlakowa 1 7 , Behmack 3 , Gareiso e Rascovsky 1 8 e de Foster Kennedy 1 1 , não deixam dúvidas quanto à sua existência e quanto à correlação estreita entre as crises de enxa­queca e os surtos de oftalmoplegia. Aliás, e a é admitida pela maioria dos tratadistas: Wilson 1 9 , Strümpell 2 0 , Dejerine 2 1 , Adrogué 2 2

Barraciuer 2 3 , Curshmann 2 4 , Grinker 2 S .

As discussões ainda hoje existentes em torno da patogenia da oftalmoplegia conseqüente à enxaqueca decorre, segundo pensamos, do fato de que numerosos autores se tenham deixado enlevar pelos pro­cessos anátomo-patológicos encontrados em casos descritos como "enxa­queca oftalmoplégica". Com isso estabeleceu-se confusão, uns admitindo dualidade de. patogenia, outros excluindo sumariamente do grupo da enxaqueca oftalmoplégica os casos em que foi encontrado substrato

==15. Costa Rodr igues , T. e Collares, J . V . — E n x a q u e c a d i ta ophtalmo-facioplegica. Arch . Bras i l . de Medic ina , 20: 51-71, 1930.

==16. B roucha rd — Accès de mig ra ine simple. Pa ra ly s i e du sphincter de 1'iris et du muscle ci l iaire . J . de Neuro l , et de Psychia t . , 41-47, 1911.

==17. Cit. por Eh le r s . H . — O n the pathogenesis of the ophthalmoplegic migra ine . Ac ta Psychia t . et Neu ro l , 218-225, 1928-1929.

==18. Gareiso A. e Rascovsky A. — Sobre tin caso dc jaqueca oftalmoplégica ( C h a r c o t ) . Arch . Argen t , de Pedia t . , 11: 9-21, 1939.

==19. Wilson, S. A. K. — Neurology. Williams a. Wilkins Co., Baltimore, 1940, pág. 1580. ==20. S t rümpe l l , A. — T r a t t a t o di patologia speciale medica e te rap ia . T r a d , i ta l iana . E d .

Va l la rd i , Mi lano , 1928. Vol . I I , pa r t e I I , pág . 86. ==21. De je r ine , J . — Sémiologie des affect ions du sys tème ne rveux . Masson et Cie, 1926,

pág. 1150. ==22. A d r o g u é , E- — Neuro log ía ocular . El Ateneo , Buenos Ai res , pág:. 128. ==23. B a r r a q u e r . Gisper t e Cas t añe r — T r a t a d o de en fe rmedades nerviosas . Sa lva t Ed i t . ,

Barcelona , 1940, págs . 181-182. ==24. C u r s h m a n n , H . e K r a m e r , F . — T r a t a d o de las en fe rmedades del s is tema nervioso.

T r a d , espanhola , Labor Ed i t . , Barce lona , 1932, pág . 762. ==25 . Gr inke r , R . — Neuro logy . Ch. C. T h o m a s , Spr ingf ie ld , I l l inois , 1944, pág. 1069.

anatômico para a oftalmolegia e, outros ainda, generalizando a natureza sintomática da oftalmoplegia para todos os casos.

Somos inteiramente favoráveis às idéias de Btirki, separando as falsas das verdadeiras enxaquecas oftalmoplégicas. Aquelas são sín-dromes secundárias a processos locais da base do crânio e sua patogenia é facilmente explicada; estas devem ter sua origem ligada aos fatores patogênicos da própria enxaqueca.

Entre muitas, a teoria angiospástica da crise da enxaqueca, já en­trevista por Dubois-Reymond (1860) , é a mais aceita. Esta crise dependeria de distúrbios da vasomotricidade cerebral, seja em conse­qüência de fenômenos alérgicos, seja como manifestações de desordens cerebrais intrínsecas, decorrentes de fatores transmitidos hereditària-mente e traduzidos eletrencefalogràficamente por disritmias análogas às da epilepsia. O cortejo sintomático da crise de enxaqueca, incluindo escotomas, hemianopsias passageiras, hemiparesias ou hemianestesias fugazes, parafasias ou afasias transitórias, peculiares aos distúrbios vasomotores corticais do cérebro, constituem argumento básico para aqueles que os consideram fator causai.

O mesmo conceito, por extensão, tem sido aventado por vários au­tores, procurando explicar o mecanismo da oftalmoplegia subseqüente à crise de enxaqueca. Assim, desde Charcot, consideram-na como dependente de angiospasmo e anoxia, ao nível dos núcleos do III par craniano, no pedúnculo cerebral, ou, talvez, no próprio tronco nervoso. As observações de Bogaert, Helsmooertel e Bauwens 2 6 , bem como de Matzdorff 2 7 , assinalando, no mesmo paciente, crises de angiospasmos cerebrais, de enxaqueca oftálmica, de epilepsia, de distúrbios vertiginosos do tipo labiríntico, seriam argumentos a favor deste ponto de vista.

Fazendo um parêntese, lembremos que Ehlers 1 7 , pelo contrário, vê na vasodilatação paralitica, pós-espasmo inicial, por ação direta da artéria cerebral posterior sobre o tronco do nervo motor ocular comum, o fator compressivo determinante da paralisia. O nervo motor ocular externo, em virtude de sua menor proximidade da artéria, seria atingido com menor freqüência.

Foster-Kennedy 1 1 , que vem defendendo, desde 1931, a teoria de que a enxaqueca tem por causa um edema intracraniano localizado, explica a oftalmoplegia como dependente da ação compressiva reiterada do parênquima cerebral edemaciado, sobre o próprio tronco nervoso.

==26. V a n Bogaer t . L . , Helsmooer te l , J . e B a u w e n s , L . — V e r t i g e s de M é n i è r e , m i g r a i n e ophta lmique , m i g r a i n e ophta lmoplégique et ang iospasmes cé r éb raux . J . Belge de Neuro l , e t d e Psych ia t . , 28: 207-212, 1928.

==27. Matzdorf f , P . — Bez iehungen zwischen d e m mig ranösen und dem epilept ischen F o r ¬ menkre i sen ( M i g r ã n e , ophthalmoplegische M i g r ä n e , M e n i è r e a n f ä l l e , epi lept ische A n f ä l l e ) . Z t schr . f. d. ges. Neuro l , u . Psychiat . ,156: 574-593, 1936.

Nesta explicação, os distúrbios da vasomotricidade cerebral não figuram como fatores diretos, mas sim indiretos, pelo edema que determinam. O edema, localizado de preferência nas regiões em declive, em parti­cular no lobo temporoccipital, encontrando a firme resistência da tenda do cerebelo e do osso esfenóide, comprime o nervo motor ocular comum aí sediado, acarretando seu bloqueio funcional. A repetição de tal fenômeno, nas crises sucessivas da moléstia, explica muito bem as oftalmoplegias, a princípio fugazes, depois mais duradouras e, por fim, permanentes, por efeito lesivo final sobre o nervo.

É esta, julgamos, a teoria mais condizente com os fatos clínicos. A unilateralidade da oftalmoplegia, sua ipsüateralidade com a hemi-crânia e com os sintomas cerebrais corticais que a acompanham, assim como o caráter freqüentemente total da paralisia do nervo motor ocular comum — comprometimento troncular e não nuclear — são argumentos ponderáveis em favor de sua gênese compressiva e não anóxica.

C A S O 1 — D . G., ma t r i cu l ada n o S e r v i ç o de N e u r o l o g i a da Esco la P a u l i s t a de Medic ina , sob n .° 3 0 3 1 . M o ç a de 1 6 anos de idade, vem apresen tando , h á 4 anos — 3 a 4 vezes po r a n o — crises per iódicas de cefaléia , local izada n o hemi--c r ân io esquerdo, p a r t i c u l a r m e n t e nas reg iões pe r io rb i t á r i a e t empora l , a c o m p a n h a ­das de m a l - e s t a r ge ra l , fotofobia, náuseas e vômi tos , a u m e n t a n d o de in tens idade p rog re s s ivamen te e desapa recendo , t a m b é m p rog re s s ivam e n te e de m o d o comple to , c e r ca de 4 a 5 dias depois de seu início. A p r o x i m a d a m e n t e u m a vez por ano , q u a n d o a s c r i ses de cefaléia são p o r demais violentas , esse complexo de s in tomas é ac resc ido de d i s tú rb ios oculares mais intensos, d o m e s m o l ado da hemic rân ia , ca rac t e r i zados po r queda da pá lpebra mais o u menos comple ta , diplopia e desvio do g lobo ocu la r p a r a fora , d i s tú rb ios estes que se inic iam na fase ma i s in tensa da cefaléia — do i s a t r ê s dias depois de seu a p a r e c i m e n t o — p a r a r e g r e d i r e m e desa­pa rece rem, l en tamente , em 1 0 ou 1 5 dias . F o r a das cr ises , a paciente de nada se queixa , ap r e sen t ando boa saúde ge ra l .

N a ú l t ima cr ise , quando a pac iente foi po r nós e x a m i n a d a ( 3 0 - 8 - 4 7 ) , e s tando j á no seu o i tavo dia, a cefalé ia desaparece ra , m a s pers i s t i am os sinais de para l is ia comple ta d o mo to r ocular c o m u m esquerdo (p tose palpebra l completa , d iplopia , m i d r í a s e com ref lexos pupi la res p reguiçosos , e s t r ab i smo d i v e r g e n t e , para l i s ia dos re tos super ior , i n t e rno e i n f e r i o r ) , nada h a v e n d o em re l ação aos ou t ro s pa r e s c ran ianos . O s s in tomas para l í t icos l en t amen te r e g r e d i r a m e, n o 2 1 . ° dia, a inda e s t avam presentes , se bem que bas tan te a t enuados (f ig. 1 ) , somente se ex t ingu indo por completo , a o cabo de 3 0 dias . A paciente nunca fêz referência ao apareci­m e n t o de e sce tomas nas suas cr ises . A o e x a m e dos d iversos apa re lhos e do siste­m a nervoso , n a d a mais se apu rou de a n o r m a l . O i n t e r r g a t ó r i o sobre os an tece­dentes pessoais e famil iares nada revelou de impor t ânc i a p a r a o caso, n ã o havendo-referências a mani fes tações semelhantes nem a neurops icopa t ias .

F o r a m rea l izados e x a m e s subs id iár ios — reações serológicas p a r a sífilis, e x a m e de l iquor, c r a n i o g r a m a — que a p r e s e n t a r a m resu l t ados no rma i s . E n t r e t a n t o , o exame cletrencefalográjico (n . ° 6 5 6 ) d e m o n s t r o u : T r a ç a d o em condições técnicas sa t i s fa tór ias . E l e t r e n c e f a l o g r a m a de base, i r r egu l a r , não ap re sen t ando r i tmos de repouso bem c a r a c t e r i z a d o s ; as osci lações de potencial são em gera l reduz idas ( e m m é d i a 2 0 mic rovo l t s ) e as f reqüências são osci lantes ( e n t r e 7 e 1 1 c / s ) n ã o se evidenciando u m r i tmo a l fa bem d e t e r m i n a d o ( f i g . 2 a ) . P e l a h iperpnéia , acen­tuou-se bem mais o t ipo deste t r a ç a d o de repouso , n a t u r a l m e n t e pelo desvio d a a t enção da paciente , sendo que, depois de dois minu tos de h iperpnéia , a p a r e c e r a m

d i s r i tmias pa rox í s t i cas bi la tera is difusas, com d u r a ç ã o de 2 a 3 segundos , com o n d a s de potencial t r ípl ice do de base e f reqüência de 6 c / s , bem s íncronas ( f i g . 2 b). T a i s d i s r i tmias se r epe t i r am em vár ios o u t r o s sur tos , após a h iperpnéia , m e s m o depois de 5 minu tos de repouso . U m a vez desaparec idas , novamen te su r ­g i r a m com a repe t ição da hiperpnéia . C o n c l u s ã o : E l e l r ence fa log rama de base, i r r egu la r , c em tendência a f reqüências lentas e osci lações de potencial de fraca ampl i tude . A p ó s hiperpnéia , a p a r e c i m e n t o de d i s r i tmias pa rox í s t i cas b i la te ra i s difusas, de c u r t a du ração , por ondas de 6 c / s e potencial de 80 a 100 mic rovo l t s .

Fig. 1 — Caso 1 — D. F. —• Paresia dos músculos reto inferior (a), reto superior (b ) , reto interno (c), com integridade do reto externo (d). Paresia do elevador da palpebra.

ENXAQUECA OFTALMOPLÉGICA 183

C A S O 2 — P . del F . , m a t r i c u l a d o n o Se rv iço de N e u r o l o g i a da Esco la P a u l i s t a de Medic ina , sob n .° 2200, com 21 anos de idade. A p r e s e n t a , desde os 13 a n o s , cr ises de cefaléia, local izadas n o h e m i c r â n i o esquerdo — r e g i ã o s u p r a - o r b i t á r i a — a c o m p a n h a d a s de m a l - e s t a r ge ra l , fotofobia e es tado nauseoso com d u r a ç ã o a p r o x i ­m a d a de 24 h o r a s . E s s a s cr ises s u r g e m per iod icamente , n ã o a c o m p a n h a d a s d e e sco tomas ou cegue i ras parc ia i s , c ada 15 ou 20 dias . H á 4 anos, u m a dessas-

cr i ses foi m u i t o in tensa e se a c o m p a n h o u de q u e d a da pá lpeb ra esquerda , desvio d o g lobo ocu la r p a r a fo ra e diplopia, s in tomas es tes que t i v e r a m a d u r a ç ã o de u m dia. Do i s anos depois, n o v a c r i se s eme lhan te a es ta ú l t ima , m a s os s in tomas neu rocu la re s pe r s i s t i r am cerca de u m m ê s . Depo i s desta , o pac iente vem ap re sen ­t ando u m a dessas cr ises po r ano .

Q u a n d o o e x a m i n a m o s (19 -3 -46 ) , ap re sen t ava do r de cabeça — r e g i ã o s u p r a -o rb i t á r i a e s q u e r d a — h á ce r ca de t r ê s dias, a c o m p a n h a d a de para l i s ia comple ta do m o t o r ocu l a r c o m u m e s q u e r d o (p tose pa lpebra l , para l i s ia dos re tos super ior , i n t e r n o e in fer ior , e s t rab i smo d ive rgen te , m id r í a se com d iminuição dos r e f l exos pupi la r es e d i p l o p i a ) . Esses sinais para l í t i cos só d e s a p a r e c e r a m in t eg ra lmen te depois de ce rca 45 dias . N a d a de a n o r m a l se evidenciou em re l ação aos ou t ro s pa res c r a n i a ­nos, bem como e m re l ação ao r e s t an te do s i s tema ne rvoso . O e x a m e dos d iversos apa re lhos n a d a m o s t r o u de impor t ânc i a p a r a o caso. N o i n t e r r o g a t ó r i o sobre os an tecedentes pessoais e fami l ia res n ã o houve re fe rênc ia a mani fes tações semelhan tes nem a d i s tú rb ios neuro-ps icopá t icos , n e m se a p u r o u qua lquer i n f o r m a ç ã o que pudesse ser re lac ionada à p re sen te a fecção . F o r a das cr ises , o pac iente vol ta a r e c u p e r a r e s t ado de saúde per fe i t amente n o r m a l .

O s e x a m e s subs id iár ios rea l izados — reações sero lógicas p a r a sífilis, l iqü ido ce fa lo r raqu id iano e c r a n i o g r a m a —• r e s u l t a r a m n o r m a i s . O eletrencefalograma (n .° 767) r e v e l o u : T r a ç a d o e m condições técnicas sa t i s fa tór ias . E l e t r e n c e f a l o g r a ­m a per fe i t amente r e g u l a r e s imét r ico , a p r e s e n t a n d o r i t m o a l fa d o m i n a n t e nas á r eas cen t ra i s , pa r ie ta i s e occipitais , com f reqüência var iáve l e n t r e 5 e 7,5 c / s e de potencial l i ge i r amen te mais e levado que o de base (f ig . 3, o e b). A p ó s h ipe rven t i -k ç ã o p u l m o n a r de 2 minu tos , sucedem-se múl t ip los su r to s de d i s r i tmias , igua l ­men te fugazes, m a s com ondas mais lentas — 6,5 e m e s m o 4,5 c / s — e de potencial mais e levado — 60 a 90 mic rovo l t s — a l g u m a s ezes se esboçando o complexo " o n d a s e e s p í c u l a s " ( f i g . 3, c). S o m e n t e depois de 4 minutos , vo l t a o e le t rence­f a l o g r a m a a o aspec to r egu la r , an t e r io r à dispnéia . T a i s d i s r i tmias são d i fusas po r t oda a cor t ica l idade . C o n c l u s ã o : E l e t r e n c e f a l o g r a m a evidenciando d i s r i tmias l a r -vadas espontâneas , as quais são m u i t o intensif icadas com a h ipe rven t i l a ção pu lmonar .

C O M E N T Á R I O S

Em ambos os casos apresentados encontramos: 1 — moléstia da juventude; 2 — cefaléia instalando-se sob a forma de crise, acompanha­da de fotofobia, mal-estar geral, náuseas e vômitos; 3 — as crises de cefaléia precederam de 1 e de 4 anos às crises de oftalmoplegia; 4 — o eletrencefalograma revelou disritmias paroxísticas bilaterais e difusas, tais como são assinaladas na epilepsia e na enxaqueca; 5 — a oftalmo­plegia ipsilateral foi, inicialmente, fugaz e, depois, mais duradoura, atingindo mais de 30 dias de duração; 6 — as crises de enxaqueca menos intensas, não se acompanharam de sintomas paralíticos; 7 — a paralisia do motor ocular comum foi total, atingindo as musculaturas extrínseca e intrínseca do globo ocular, sendo sua regressão integral; 8 —• fora das crises, era bom o estado de saúde geral; 9 — durante o período da oftalmoplegia e fora dê!e, nada de anormal revelaram os exames do restante do sistema nervoso e dos demais aparelhos; os exames subsidiários de sangue — reações para sífilis — liquor e craniograma foram inteiramente normais.

Com tais elementos, cremos não haver dúvidas quanto à afirmativa que se tratava de casos de verdadeira enxaqueca, cujas crises reiteradas determinaram a paralisia troncular do motor ocular comum ipsilateral, por compressão; nos períodos de intervalo, fora das crises de enxaqueca, a paralisia entra em regressão, mas, pela repetição daquelas, recidiva e se intensifica.

R E S U M O E C O N C L U S Õ E S

As acerbas discussões ainda hoje verificadas na literatura sobre ?. existência ou não de uma enxaqueca oftalmoplégica, bem como as divergências de opinião sobre sua fisiopatologia, são abordadas de início pelos autores que, como contribuição, apresentam duas observações próprias. Em ambos os casos havia crises de enxaqueca bem evidencia­das (cefaléia de início mais ou menos súbito, hemicrânica, acompanhada de fenômenos neurovegetatives, vômitos e fotofobia). Em ambos os casos, no eletrencefalograma, havia disritmia paroxística bilateral, simé­trica, indicando tratar-se de verdadeira enxaqueca, em pacientes sem manifestações comiciais e sem antecedentes familiares de epilepsia. Em ambos, a oftalmoplegia sobreveio em média uma vez por ano (enquanto que as crises de enxaqueca eram muito mais freqüentes), sendo ipsilateral, acompanhando crises mais intensas de cefaléia, com compro­metimento total do motor ocular comum (musculatura intrínseca e extrínseca do globo ocular), tendo a duração variável entre 1 e 30 e mais dias, desaparecendo depois completamente.

Baseados nestas duas observações em que crises de enxaquecas (edema cerebral localizado) se seguiram de repetidas paralisias tron-culares do terceiro nervo craniano, ipsilateral, os autores pensam poder concluir favoravelmente à teoria de Foster-Kennedy — compressão do tronco nervoso pelo cérebro edemaciado — e à existência de uma ver­dadeira forma oftalmoplégica da enxaqueca, no sentido de Charcot.

S U M M A R Y A N D C O N C L U S I O N S

The authors, going through the literature on ophtalmoplegie mi­graine, point out the difference of opinions concerning its existence or not and its physiopathology. They present two cases. Both had a rich symptomatology characterizing the attacks of migraine (more or less rapid onset of the headache localized to one hemicranium and folowed by neurovegetative signs, vomiting and fotofobia). Both cases showed, in the electroencephalogram, bilateral symetrical paro­xysmal dysrhythmia indicating a true migraine in patients without epileptic seizures and without an epileptic familial background. The ophtalmoplegia usually followed the most severe attacks of headache with total involvement of the third pair, lasting one to thirty or more days.

Based in these two cases where attacks of migraine (localized cerebral oedema) were followed by repetitive troncular palsy of the ipsilateral third pair, the authors think to be able to adopt Foster-Ken­nedy's theory (compression of the nervous t runk by the oedematous brain) and to accept the existence of a true ophtalmoplegic form of migraine in the sensus of Charcot.

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