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Era uma vez, em Paris Barbara Cartland Série Real – Grandes Romances de nº 11 Copyright © 1975 by Cartland Promotions Título original: THE DEVIL IN LOVE Tradução: Carmita Andrade Publicado originalmente pela Editora Nova Cultural em 1987 Editora e Publisher: Janice Flórido Editora: Fernanda Cardoso Editoras de Arte: Ana Suely S. Dobón, Mônica Maldonado Paginação: Dany Editora Ltda. EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Rua Paes Leme, 524 — 10s andar CEP 05424-010 — São Paulo — Brasil Copyright para a língua portuguesa: 2004 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Impressão e acabamento: RR DONNELLEY Tel.:(55 11)4166-3500 Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos, de fãs para fãs. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida. Cultura: um bem universal. Digitalização: Revisão: Regina Celi

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Era uma vez, em Paris

Barbara Cartland

Série Real – Grandes Romances de nº 11

Copyright © 1975 by Cartland Promotions

Título original: THE DEVIL IN LOVE Tradução: Carmita Andrade

Publicado originalmente pela Editora Nova Cultural em 1987 Editora e Publisher: Janice Flórido

Editora: Fernanda Cardoso Editoras de Arte: Ana Suely S. Dobón, Mônica Maldonado

Paginação: Dany Editora Ltda. EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Rua Paes Leme, 524 — 10s andar CEP 05424-010 — São Paulo — Brasil

Copyright para a língua portuguesa: 2004 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Impressão e acabamento:

RR DONNELLEY Tel.:(55 11)4166-3500

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos, de fãs para fãs. Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.

Cultura: um bem universal.

Digitalização:

Revisão: Regina Celi

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“Monsieur le Diable”… Assim era conhecido Raoul por toda Paris. O “Senhor

Diabo” induzia as mulheres à insensatez e à loucura. Larisa, com toda a sua

inexperiência, tremia só de pensar em ficar frente a frente com aquele homem.

Quando parte para a França, Larisa sonha conhecer Paris… O rio Sena, a Torre

Eiffel, os cafés, as mulheres elegantes. Sua mãe pedira que ela ficasse longe dos

charmosos homens franceses e que de maneira alguma acreditasse em uma só palavra

deles sobre relacionamentos amorosos. Assim que conhece Raoul, percebe que sua mãe

estava certa. Larisa sempre imaginara que um homem tão atraente e sedutor como

aquele só poderia existir num país de contos de fadas… e que jamais poderia sentir

um amor de verdade!

Barbara Cartland é conhecida mundialmente por seus apaixonantes e envolventes romances históricos. Por meio deles é possível conhecer lugares do mundo todo, de diferentes épocas. Falecida em 2001, Barbara deixou inúmeras histórias ainda inéditas para publicação.

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NOTA DA AUTORA É mundialmente aceito ser o champanhe o resultado do trabalho da

vida inteira de Dom Pérignon. Ele foi o primeiro homem a produzir o borbulhante champanhe na França. Mas Patrick Forbes prova, em sua brilhante história do champanhe, que é igualmente correto que os ingleses já faziam essa bebida, discretamente, mais ou menos uma década antes.

Não houve menção do champanhe na literatura francesa até o ano de 1700. No entanto, no livro Hudibras, de Butlin, publicado pela primeira vez em 1666, há referência a ele como sendo uma bebida “estimulante”:

“Pegue o vinho antes de fermentar e transforme-o no estimulante champanhe”.

No livro The Man and the Mode, publicado em 1676, lêem-se estas linhas:

“E o espumante champanhe põe fim a um reinado mas rapidamente revive o amante extenuado”.

Como Patrick Forbes observa, o champanhe inglês deve ter sido primitivo ao extremo. Mas persiste o fato de que o princípio básico da fabricação do champanhe, atribuído a Dom Pérignon, em Hautvillas, já havia sido descoberto pelos ingleses.

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CAPÍTULO I

1890

— Chegou! Chegou! — Larisa Stanton entrou gritando na sala, agitando a carta que tinha na mão. Toda a família Stanton, ali reunida, olhou para ela.

A bela jovem parecia ter invadido inadvertidamente a parte do Olimpo dedicada a Vênus. Lady Stanton, que fora lindíssima quando moça, estava rodeada por suas outras três filhas, que, como Larisa, pareciam deusas gregas, e por seu único filho varão.

O falecido sir Beaugrave Stanton comparava a beleza das moças à das deusas por ter sido um homem obcecado pela história da Grécia antiga.

Na verdade, porém, o tom louro do cabelo das jovens se devia mesmo era à origem escandinava de lady Stanton, embora os traços clássicos elas tivessem herdado do pai.

Sir Beaugrave havia tido a preocupação de batizar as quatro filhas com nomes gregos, Larisa era o nome da cidade onde ele ficara em sua primeira visita ao país, enquanto Cynthus, Athene e Delos foram todos extraídos de um livro sobre a Grécia, que ele pesquisava na época do nascimento das meninas.

O único filho de sir Beaugrave, agora herdeiro do título, chamava-se Nícias, nome que lhe trazia alguns embaraços por parecer muito feminino. Por esse motivo, ele resolvera modificá-lo para “Nicky”, quando começava a frequentar a escola.

Nesse instante Nicky mostrava tanto interesse quanto as irmãs pela carta que Larisa estendia à mãe, dizendo:

— Olhe, mamãe! Os olhos azuis de Larisa revelavam toda a sua ansiedade quando a mãe,

sem nenhuma pressa, pegou a carta e abriu o envelope. Uma onda de curiosidade invadiu a família, como se todos soubessem

que, naquele papel dobrado, estava selado o destino de Larisa e, consequentemente, o de Nicky.

Larisa, embora não sendo a mais velha das irmãs, era a que possuía o espírito mais prático. Havia animado muito a família depois da morte do pai,

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que deixara a todos quase na miséria. Sir Beaugrave sempre cuidara sozinho das finanças da casa. Ainda que

constantemente pregasse economia e prudência, isso não pareceu uma coisa tão imprescindível aos seus filhos e à esposa, até o dia em que ele morreu e se constatou como era precária a situação financeira da família.

— Você sabia mamãe, que papai tinha gasto quase todo o capital? — Nicky indagara, incrédulo.

— Não, meu filho, eu não sabia, pois sempre deixei essas coisas a cargo dele — murmurara lady Stanton, arrasada.

— Mas você não ignorava que papai era incompetente nesses assuntos. Afinal de contas, ele vivia num mundo próprio, e só se preocupava com o sistema monetário da Grécia antiga!

— Sim, tem razão, filho, mas seu pai não gostava de falar em dinheiro e, de qualquer forma, sempre tivemos o que comer e com o que pagar aos nossos empregados.

— Isso porque a cada ano ele gastava parte do capital. E agora não sobrou nada, mamãe. Você entende? Nada!

Por alguns segundos todos ficaram mudos, sem entender o que significava não ter sobrado nada. Eles sempre tinham vivido naquela grandiosa mansão, a Redmarley House, em Gloucestershire, que era a residência dos Stanton há cerca de três séculos!

O bisavô dos jovens, o quinto baronete, havia restaurado a casa por completo em meados do século XVIII, acrescentando-lhe um pórtico georgiano e majestosas colunas jônicas que encantavam sir Beaugrave.

A mansão ficava no alto de uma colina, rodeada por um bosque magnífico que descia pela escarpa até o vale. Uma dúzia de pequenas casas em volta de uma igreja em estilo normando constituía a aldeia mais próxima.

Apesar disso, os Stanton não se sentiam isolados. Possuíam seus cavalos e se entendiam tão bem que não achavam falta da companhia de amigos. Estes, por viverem muito longe dali, se limitavam a visitar a família só algumas vezes por ano.

Apenas Nicky, quando cresceu, queixou-se da falta de divertimentos. Por essa razão, achou a Universidade de Oxford fascinante, o que, aliás, acontecia com qualquer rapaz de sua idade. Estudava ali com afinco, porque desde pequeno a família decidira ingressá-lo no serviço diplomático.

Com a morte do pai, Nicky enfrentara a realidade dos fatos e concluíra

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ser impossível continuar em Oxford e, portanto, inviável seu ingresso na profissão escolhida.

— Que outra carreira você vai seguir, se não for diplomata? — indagou Larisa.

— Poderia trabalhar na fazenda, se conservarmos as terras — ele respondeu com tristeza.

— Duvido que alguém compre nossa propriedade, neste fim de mundo — interpôs lady Stanton.

— Além disso, os Stanton sempre moraram aqui… — Então, eu serei o primeiro baronete a deixar este lugar — Nicky

interrompeu-a. Foi Larisa quem sugeriu com firmeza: — Temos que fazer alguma coisa, todas nós, para mantermos Nicky em

Oxford até que receba o diploma. Lady Stanton fitou-a incrédula, e Athene indagou: — O que podemos fazer? Um ano mais moça que Larisa, Athene tinha dezessete anos, um ar

brejeiro e enormes olhos azuis. — É o que vamos decidir — respondeu Larisa. Houve muitas discussões durante dias e, quando as controvérsias

ficavam mais violentas, Larisa lembrava a todos: — Temos que pagar as mensalidades de Nicky. Finalmente, um plano

foi aprovado. Ficou resolvido então que lady Stanton, Athene e Delos, esta última com quinze anos apenas, se mudariam para um chalé dentro da propriedade. A casa-grande permaneceria fechada e os empregados seriam despedidos ou aposentados, com exceção da velha governanta.

As terras seriam arrendadas a fazendeiros, o que, embora trouxesse algum dinheiro, não seria suficiente para os gastos.

Cynthus, com seus dezenove anos, estava noiva do filho de um fidalgo local. O rapaz vivia da pequena mesada dada pelo pai, por isso não havia possibilidade de ele ou Cynthus contribuir para a educação de Nicky.

O auxílio da jovem consistiria em renunciar ao dote e, além disso, após o casamento, deixar de ser mantida pela família.

Enquanto ainda se discutia sobre o problema, Athene surpreendeu a todos saindo sozinha certa manhã e voltando com a notícia de que havia encontrado trabalho.

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— Não acredito! — gritou Cynthus. — Que tipo de trabalho, Athene? — lady Stanton quis saber. — Lembra-se da velha Sra. Braybrook, mamãe, que mora em The

Towers? — Claro, filha! Embora seu pai não quisesse que eu a visitasse, porque

pertence a uma família de comerciantes, algumas vezes a cumprimentei na saída da igreja.

— Muito bem; ela é rica! —Athene explicou. — E eu soube, por intermédio do açougueiro, que procurava alguém

para escrever cartas e lhe servir de secretária e dama de companhia. Fui à casa dela e me ofereci para o cargo. A Sra. Braybrook ficou muito contente.

— Como pôde fazer isso sem me consultar? — lady Stanton repreendeu-a.

— Achei que você iria dizer “não”, mamãe. Sei que papai a desprezava só porque seu marido era fabricante de tapetes em Kidderminster.

— Ele fazia isso, Athene? — Nicky perguntou com interesse. — Fazia. Tenho pena da Sra. Braybrook porque a própria família quase

não a visita e ela está se sentindo muito só depois que enviuvou. — Como é a casa desta mulher? — indagou Delos. — Muito rica e luxuosa. Os tapetes são tão espessos que você afunda os

pés ao andar sobre eles. As cortinas parecem novas e têm franjas de seda. Há um exército de empregados para servi-la.

— Quanto ela vai pagar a você? — Larisa perguntou. — Ficará surpresa quando eu disser. Adivinhe! Todos a fitaram ansiosos

e Athene falou, triunfante: — Cem libras por ano! Que acham disso? Vou trabalhar três ou quatro

horas por dia, a menos que ela precise de mim por mais tempo, de vez em quando.

— É demais! Você não pode aceitar tanto! — comentou lady Stanton. — Já aceitei, mamãe. E, como não vou ter despesas, posso dar tudo a

Nicky. — É muita bondade sua, Athene! — exclamou Nicky. — Mas o melhor desse arranjo é que você vai continuar morando aqui

com mamãe. Athene era impetuosa, a mais impulsiva da família, e lady Stanton havia

dito ao filho que se preocupava com o que pudesse acontecer-lhe se fosse

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morar longe de casa. Aliás, lady Stanton se preocupava com todas as filhas e sempre esperava

que elas tivessem uma vida social divertida, como fora a sua quando jovem. Mas, assim que Cynthus, a mais velha, ficou moça, ela concluiu que não havia dinheiro para frivolidades.

Apesar disso, o dinheiro sempre aparecia na hora de comprar livros sobre a Grécia. Por duas vezes sir Beaugrave fora sozinho para o país que o perseguia em sonhos, viajando, conforme informou à esposa, da maneira mais econômica possível, razão pela qual não a levou.

Essas viagens, no entanto, faziam um rombo enorme nas finanças da casa.

— Como papai pôde gastar tanto, ano após ano, sem pensar que chegaria o dia em que não teríamos com o que viver? — Nicky indagou, furioso.

— Sinto dizer que seu pai nunca pensou no futuro, meu filho. Ele sempre viveu do passado.

Tudo bem no que se refere a ele, mas e quanto a nós? Temos que continuar vivendo e os sonhos não vão pagar as contas dos fornecedores e nem minhas despesas em Oxford.

Não havia dúvida de que Nicky era o que sofria mais com essa situação. E o que fez as coisas piorarem foi a chegada de uma carta de um professor, relatando sobre seu progresso nos estudos e declarando que a família tinha razão de orgulhar-se dele.

Por outro lado, uma vez Cynthus casada e Athene empregada, só faltava Larisa tomar uma providência. Ela sugeriu então à mãe que escrevesse a lady

Luddington, sua madrinha de batismo, pedindo que a recomendasse a alguém para assumir a posição de governanta.

Lady Stanton escreveu a carta, na esperança de que sua velha amiga primeiro convidasse a filha para uma visita a Londres.

Larisa não alimentava essa ilusão. Encontrara lady Luddington pela última vez quando tinha quinze anos, e percebia claramente que aquela mulher elegante e da alta-sociedade não iria se preocupar com uma afilhada tão pouco importante, ainda que lindíssima.

Larisa não somente era bonita, mas a mais inteligente das filhas de sir

Beaugrave. Todas elas tinham bastante cultura e haviam recebido do pai uma educação aprimorada, ainda que sem método, lendo muito mais que as

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jovens de sua idade e da mesma posição social. Sir Beaugrave desejava que as filhas o ajudassem no que ele chamava de

“pesquisas” em torno da história grega, e, por esse motivo, elas aprenderam o grego, dominando a língua não apenas com elegância, mas com precisão.

Sir Beaugrave falava também o francês, pois sua avó era francesa, e sempre aproveitava para usar o idioma durante as refeições da família. Nada o irritava tanto como não obter respostas na mesma língua.

História e geografia eram seus assuntos preferidos, e por isso seus filhos se mostravam versados nessas duas matérias. Mas a matemática, tema que não lhe agradava, consistia numa lacuna na educação de todos.

— Preciso comprar um livro de aritmética elementar — disse Larisa à mãe.

— Não posso ensinar meus alunos a contar nos dedos, como eu faço. Você logo vai aprender a “tapear” seus alunos, usando os dedos sem

que eles percebam — opinou Athene, mas foi de pronto repreendida pela mãe por lançar mão de uma palavra tão vulgar.

— Nicky usa! — protestou ela. — Nicky é homem e pode fazer isso, mas você não. Lembre-se de que,

embora pobres, devemos nos portar como pessoas cultas e civilizadas. — Só espero que as pessoas para quem formos trabalhar reconheçam

nosso valor — respondeu Athene, petulante. Mas, quando ficou sozinha com Larisa, ela observou: — Não invejo você. A posição de governanta é horrível! Não

suficientemente importante para lhe darem um lugar na sala das visitas, mas importante demais para você ficar com os criados.

— E que mais hei de fazer? — Larisa indagou. — Ao menos posso dar todo o dinheiro ganho a Nicky. Isso parecia indiscutível. Mas havia outros obstáculos a vencer.

Primeiro, a idade de Larisa: jovem demais. Em segundo lugar, mulheres da sociedade e vaidosas como lady Luddington não gostariam muito de contratar uma jovem tão atraente, que ganharia delas em charme e beleza.

Apesar de modesta, Larisa já havia notado que toda a sua família causava sensação em qualquer lugar público onde aparecesse.

Infelizmente, isso não funcionava sempre como vantagem. Os vizinhos jamais convidavam as Stanton para as festas, a fim de não ofuscarem a beleza de suas filhas casadouras.

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E agora, depois de longa espera, chegava finalmente a resposta de lady

Luddington. Quando lady Stanton terminou de ler a carta, colocou-a sobre a mesa

com um suspiro. — Que diz ela, mamãe? — Athene indagou, antes mesmo de Larisa. — Deu boas sugestões? — Não sei o que pensar — murmurou lady Stanton. — Leia para mim — pediu Larisa. Lady Stanton tomou a carta e leu-a em voz alta, com seu timbre musical

que agradava tanto ao marido: “Minha querida Margaret, Sua carta me causou enorme surpresa, pois devo confessar que não li no

Morning Post a notícia do falecimento de seu marido. Apresento minhas condolências atrasadas e meu mais profundo pesar. Sei como vocês eram unidos e como deve estar sofrendo em razão dessa grande perda.

Lamento profundamente que vocês tenham ficado em dificuldades financeiras, o que obriga minha afilhada a procurar um emprego.

Você me perguntou se conhecia uma família que necessitasse de governanta e onde Larisa pudesse ser bem recebida, apesar de sua pouca idade.

Procurei entre meus conhecidos alguém que precisasse de uma preceptora para os filhos. Infelizmente, no momento, não há ninguém em Londres que considere Larisa, com apenas dezoito anos, a pessoa adequada para esse encargo.

Mas aconteceu que a condessa de Chalon, passando por Londres, veio jantar comigo. No decorrer da conversa, ela comentou que seu irmão, o conde de Valmont, estava procurando uma governanta inglesa para o neto, a quem ele dedica muito carinho. Isso significa que Larisa terá que morar na França, na aldeia Valmont-sur-Seine.

Tendo grande interesse por sua família, querida Margaret, perguntei se vivia alguém na companhia do conde viúvo, embora soubesse que não passaria pela cabeça de ninguém se preocupar com uma simples governanta.

A condessa garantiu-me que uma irmã do conde, madame de Savigny, também viúva, mora no château, que fica num local tranquilo, longe do bulício de Paris.

Isso deve sossegar você, que, como eu, deve achar que as extravagâncias

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e tentações de Paris, “a cidade mais libertina do mundo”, seriam prejudiciais à jovem Larisa.

Além disso, eu soube pela condessa que o conde de Valmont tem mais de sessenta anos e, ainda que bem conservado, é um homem austero e com grande responsabilidade no que diz respeito às pessoas que trabalham para ele.

Tenho certeza, minha querida Margaret, de que você pode ficar tranquila quanto ao ambiente em que Larisa irá viver. Ademais, a meu pedido, a condessa escreveu ao irmão, tecendo os maiores elogios à minha afilhada.

Espero que Larisa reconheça o que considero um privilégio, em se tratando ela de pessoa tão jovem e inexperiente, e que, em retribuição, se comporte bem, aliás, como espero de uma filha sua, e dentro das tradições de uma verdadeira lady inglesa.

E a você, querida Margaret, envio meus votos e orações para que atravesse da melhor maneira possível esse triste e trágico período.

De sua amiga, Helen”. Houve um curto silêncio após a leitura da carta. Depois Athene foi a

primeira a exclamar: — França! Você vai à França! Meu Deus, que sorte! Queria estar em seu

lugar! — Não sei se vou permitir que Larisa aceite esse trabalho — lady Stanton

observou, preocupada. — Por que não, mamãe? — indagou Cynthus. — É tão longe! Além disso, apesar do que Helen Luddington possa ter

dito, Valmont-sur-Seine é perto demais de Paris. — Larisa não possui dinheiro bastante para se divertir naquela cidade

do pecado! — Nicky declarou. — Mas não posso negar que a invejo. — Vou levar uma vida sossegada no campo e não terei chance de provar

as atrações de Paris lá, como não tenho vivendo aqui. — Larisa opinou finalmente.

— Assim espero! — lady Stanton respondeu. — Pelo que ouço, Paris é uma cidade depravada! — Mas lá se fazem vestidos maravilhosos! — Athene exclamou.

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— As mais lindas toaletes do Ladies Journal são modelos parisienses. Larisa sorriu. — Isso também não me interessa, pois não terei condições de comprar

nada. — Você vai precisar de alguma roupa para viajar — Cynthus lembrou.

— Não pode usar esses trapos na França. Larisa deu uma olhada em seu vestido, que tinha sido de Cynthus e que

depois passaria para Athene. — É verão. Posso fazer facilmente alguns vestidos de musselina com

pouco dinheiro. Ninguém espera que uma governanta seja chique demais. — E despertaria suspeitas se o fosse — comentou Nicky. — Suspeitas de quê? — Delos quis saber. — De ser gastadeira — lady Stanton explicou mais que depressa. — Como pode ser gastadeira se não tem dinheiro algum? — Delos

insistia no assunto. — Isso não interessa — sua mãe cortou a conversa. — O que importa agora é que Larisa terá alguns vestidos para a viagem

e que nós vamos ajudá-la a fazê-los. — Não se esqueça de que tudo depende de eu ser aceita, mamãe —

Larisa disse. — Precisamos esperar pela carta do conde. — Sim, claro — concordou lady Stanton —, e talvez não recebamos

resposta alguma. Ela parecia quase feliz com essa idéia. Mas Larisa sabia que, se o conde a

rejeitasse, não teria outra alternativa senão a de recorrer a agências de empregos a fim de encontrar trabalho.

Tinha a impressão de que não haveria muitos empregadores interessados numa governanta de dezoito anos mesmo com a cultura que possuía.

As governantas que eles próprios tiveram quando crianças foram mulheres de quarenta anos, filhas de pastores ou médicos. Eram pessoas resignadas àquela vida sem atrativos e, no caso da família Stanton, permaneciam pouco tempo na casa simplesmente porque sir Beaugrave as considerava irritantes.

— Sabem menos do que uma criança de dez anos! — ele dizia. — E nunca têm um pensamento sequer que não esteja em seus livros de

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texto! — O que você espera, querido, de uma pessoa que ganha cinquenta

libras por ano? — perguntava lady Stanton. E as governantas vinham e iam depressa, até que ele decidira enfim não

as contratar mais, tomando a si o encargo de ensinar as filhas. Nicky é claro, fora para a escola secundária e depois para Oxford.

Embora Larisa invejasse o irmão devido aos horizontes mais vastos que ele poderia atingir, estava bastante satisfeita com a própria instrução. O que a magoava mais no momento não era a miséria, mas a separação da família.

Entendia ser inevitável que Cynthus se casasse, e pensava que também ela um dia amaria alguém e sairia de casa. Quando isso acontecesse, iria contente, de livre e espontânea vontade, para esse mundo estranho, do qual conhecia tão pouco.

Mas, apesar dos sonhos românticos, ela era a mais sensata das Stanton. Tinha muito mais senso prático que sua mãe, indefesa, feminina e sempre dependente em tudo do marido.

— Como poderei me acostumar, Larisa naquele minúsculo chalé, sem cozinheira e empregadas de espécie alguma?— ela queixou-se um dia à filha.

— Você terá Nana e Delos gosta de cozinhar — Larisa respondeu. — Além disso, mamãe, vocês comem tão pouco que não será necessário

preparar tantos pratos como no tempo de papai. — Não posso nem pensar em sair daqui, onde morei desde que me casei. Assim falando, Margaret examinava a vasta sala de teto altíssimo, com

preciosas molduras georgianas e enormes portas-janelas dando para o terraço.

— Eu sei, mamãe, mas você teria que sair daqui, mais cedo ou mais tarde, quando Nicky se casasse. A Dower House, se nós a pudermos conservar, é grande demais para você e as duas meninas.

— Eu gosto de casas grandes. Em todo caso, vou tentar tomar o chalé bem gracioso. Nenhum de nós aguenta ver coisas feias, não é verdade?

— Concordo com você. Papai sempre nos ensinou a apreciar o belo. Lembra-se dos comentários rudes que ele costumava fazer sobre os móveis cobertos com capas e sobre o excesso de franjas e babados?

Lady Stanton riu, ainda que com lágrimas nos olhos. Sir Beaugrave de fato induzira sua família a admirar as linhas artísticas da Grécia antiga e detestava o estilo sofisticado, tão difundido pela rainha Vitória.

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Redmarley House, com sua simplicidade georgiana, parecia vazia comparada com as casas dos amigos. Mas as meninas a consideravam uma residência impecável e de bom gosto indiscutível.

A carta do conde de Valmont chegou quatro dias mais tarde que a de lady Luddington.

Breve e formal, dizia apenas que ele soubera, por sua irmã, a condessa de Chalon, que miss Larisa Stanton se oferecia como preceptora, podendo dar aulas de inglês e de outras matérias elementares para seu neto, Jean-Pierre de Valmont, menino de oito anos de idade.

Ele estava disposto a lhe pagar um salário de 3.750 francos anuais e anexava à carta uma passagem de segunda classe para a viagem de Londres a Paris, incluindo acomodações no vapor que fazia a travessia do canal da Mancha.

Se lady Stanton pudesse lhe informar o dia exato da chegada da filha, ele mandaria uma carruagem esperá-la na Gare du Nord, em Paris, para conduzi-la ao château Valmont.

Era uma carta de negócios, fria, que agradou muito a lady Stanton, mais do que se tivesse sido efusiva e floreada.

— Segunda classe! — exclamou Athene. — Bem, isso deixa claro a você, Larisa, sua posição subalterna de

governanta. — Não esperava que o conde me pagasse uma viagem de primeira

classe! — replicou Larisa, e Athene prosseguiu: — Papai sempre dizia que cavalheiros viajam de primeira classe,

homens de negócios de segunda, e camponeses de terceira. Você está incluída no segundo grupo, Larisa!

— Mas ela vai ocupar o vagão reservado às senhoras — lady Stanton falou.

— Eles devem ter o mesmo tipo de carro na França, como aqui. — E, suspirando, acrescentou:

— Oh, Larisa, esse castelo fica tão longe para você viajar sozinha! — Posso cuidar de mim mesma, mamãe. Não se preocupe. De repente,

Nicky exclamou: — Céus! — Que foi? — perguntou Larisa. — Já fez os cálculos de quanto o conde vai lhe pagar? Cento e cinquenta

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libras por ano! — Tem certeza? — indagou lady Stanton. — Não tenho idéia de como anda o câmbio no momento. — Mais ou menos vinte e cinco mil francos por libra — Nicky

esclareceu. — Será possível que vou ganhar tanto? — Larisa mal podia crer. — Foi o que ele escreveu — confirmou Nicky. — É bom demais! Juntando o salário de Athene com o de Larisa, você

vai ter duzentos e cinquenta libras por ano, Nicky! Isso dá para mantê-lo em Oxford até o fim do curso.

— Sem dúvida. — Nicky concordou e, dirigindo-se à irmã, disse: — Larisa, você precisa ficar com algum dinheiro. — Não vou necessitar de muito, Nicky. Terei cama e comida; quanto ao

resto, posso passar sem ele. — Mas se for a Paris vai querer comprar alguma coisa — opinou

Athene. — Você tem que me prometer, Larisa, que jamais irá a Paris sozinha! —

pediu lady Stanton. — Não se aborreça, mamãe, não vou. Mas pense em tudo isso como uma

aventura. Se eu achar insuportável a vida lá, volto para casa. Estou certa de que você arranjará um lugarzinho para mim no chalé. Nana já disse que vai criar galinhas, então poderei comer ovos se não houver outra coisa.

— Agora ouçam — disse Nicky. — Estou profundamente grato a vocês, mas sei que vão precisar de

algum dinheiro para comida, roupa e salário da empregada. Acho que o aluguel das fazendas pode ficar aqui em casa. Com o que Larisa e Athene vão dar para mim, e com o que pudermos apurar das vendas, terei mais do que o suficiente para minhas despesas.

— Vendas? O que você quer vender? — lady Stanton gritou. — Não os quadros e nem os móveis, mamãe: são patrimônio de família

e vêm passando de pai para filho. Mas acho que alguns livros de papai e a prata comprada por vovô não constituem peças importantes para as gerações futuras.

Lady Stanton suspirou. — Detesto vender coisas! — É melhor do que passar fome! — Nicky observou.

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— Ademais, Larisa precisa de roupas. Não quero que minha irmã chegue na França como uma mendiga! Contudo, prometo que, assim que conseguir meu diploma pretendo ganhar bastante dinheiro para distribuir a todos vocês.

Lady Stanton fitou o filho com adoração. Larisa, no entanto, sabia que, apesar das boas intenções de Nicky, seria difícil, até para ele sozinho, manter-se com seu salário durante os primeiros anos de vida profissional. Porém, não era importante falar sobre isso no momento. Por enquanto, graças a ela e a Athene, e ao produto da venda de alguns objetos, o irmão poderia terminar os estudos em Oxford.

Larisa não parecia muito chocada, como o resto da família, à idéia de vender objetos da casa. Ela até já selecionara vários livros, com o auxílio de Nicky, que dariam um bom dinheiro, e até o mesmo que o pai pagara por eles. Muitos haviam custado caríssimo!

Algumas urnas arcaicas e outras peças que sir Beaugrave trouxera da Grécia poderiam ser adquiridas por museus.

As coisas não eram, portanto, tão negras como se apresentaram de início. Isso não impedia que lady Stanton lamentasse sair da casa, para ir viver num odioso e minúsculo chalé, onde haveria pouco a se fazer para passar o tempo.

Nessa mesma tarde, quando Larisa e Nicky foram à biblioteca escolher os livros que iriam vender, a moça observou:

— Penso que o que causa mais sofrimento a mamãe é o fato de ver que todas estamos fazendo algo para ajudar você, menos ela. Sabe como ela o adora, Nicky, mais que a todas nós juntas.

— Isso não é verdade! — Nicky protestou. — É verdade sim, e você sabe muito bem disso! As mães sempre

preferem os filhos homens. No entanto papai dava preferência às filhas. — As quatro Vênus para ele! — Nicky falou, sorrindo. — Papai nunca pôde decidir qual das quatro era a mais linda. — Sempre achei que ele admirava mais a Cynthus, mas ela desconfiava

que ele preferia Athene, até que Delos nasceu. — Vocês quatro são muito bonitas. Por isso, tome cuidado na França,

Larisa. Os franceses têm reputação péssima em relação a mulheres. — Que tipo de reputação? — Conquistadores inveterados! Desconfie desses gestos de beija-mão e

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de olhares lânguidos! Você precisa ficar com os pés no chão para não se meter em dificuldades.

— Dificuldades? — Mamãe deveria ter uma conversa com você antes da viagem, Larisa. — Não entendo o que você quer insinuar, Nicky. Nessa noite, em sua cama, Larisa ficou pensando naquela conversa com

Nick. De que jeito seria o amor na França? Às vezes, ela imaginava como seria bom amar alguém e ser retribuída.

“Eu amo você!” Larisa podia quase ouvir a voz profunda de um homem pronunciando

essa frase aos seus ouvidos. Ele a abraçaria, e lhe procuraria os lábios… “Será que vou ter medo? O que sentirei ao ser beijada?” Ela não

encontrava respostas para essas perguntas. Nicky devia ter alertado sua mãe sobre a inocência da irmã, pois um ou

dois dias mais tarde, lady Stanton chamou Larisa a seu quarto. — Quero falar com você, Larisa… — ela começou. — Eu também quero falar com você, mamãe. Tive uma idéia fantástica!

Pensei sobre isso há algum tempo, mas não quis dizer nada até descobrir se minha sugestão era prática.

— Se era prática? — indagou lady Stanton. — É. Quando fui a Gloucester, ontem, procurar tecidos para meus

vestidos, entrei numa casa de brinquedos em High Street. — E por quê, Larisa? — Lembrei-me das lindas bonecas que você comprava lá quando éramos

crianças. Você fazia lindos vestidos para elas e eu me divertia trocando suas roupas, principalmente as de uma chamada Masera! Papai escolheu esse nome, apesar de a boneca não ter nada de grego. Tinha uma saia armada e um pequeno guarda-sol, tudo copiado por você do Ladies Journal.

— Eu me recordo de como você gostava de vestir suas bonecas, Larisa! E eu adorava fazer as roupas.

— Muito bem, mamãe. Então você pode ganhar muito dinheiro fazendo a mesma coisa.

— Mas como? — Indaguei ao dono da loja se ele recebia muitos pedidos para bonecas

bem-vestidas, e ele confirmou que, na época do Natal, vendia tantas quantas possuísse em estoque. Manifestei então meu interesse em vestir essas

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bonecas, e ele disse que eu poderia comprá-las bem barato, num lugar que chamou de “atacado”. Quando uma delas estivesse pronta, aconselhou-me a levá-la para a loja, que ele a compraria de mim.

— Larisa! — exclamou lady Stanton. — O que seu pai diria disso? — Acho que consideraria um trabalho digno, principalmente se o

dinheiro for para Nicky estudar em Oxford. — Pensando bem, a idéia foi boa. Só espero executar meu trabalho com

perfeição. — Claro que sim, mamãe! Sabe como essas bonecas são malvestidas. E

você vestirá todo tipo de bonecas, espanholas holandesas, orientais. Vai se divertir!

— Nana as levará para a loja. Eu não quero ir, pois acharia embaraçoso vender onde sempre fui compradora.

— Ah, eu entendo, mamãe. Athene acompanhará Nana. Ela é bastante esperta e não deixará o dono da loja nos enganar.

— Parece-me um trabalho um tanto… comercial — lady Stanton hesitou —, mas, ao mesmo tempo, sendo para Nicky…

— Não pense em nada mais, mamãe. Lembre-se só de que vai ajudar Nicky.

— Vou decidir sobre isso, Larisa; mas você me conduziu para outro assunto. Eu também preciso conversar com você.

— Comigo? — Você vai para a França, querida, e acho como também Nicky, que

devo lhe dar alguns conselhos antes de iniciar essa viagem um pouco assustadora.

— Não a considero assustadora, mamãe. Bem… não muito! O que me apavora é não conseguir fazer as coisas certas, não estar preparada para o trabalho de governanta.

— Não é disso que estou falando, Larisa. — Então, o que a preocupa? Lady Stanton procurou escolher bem as

palavras. — Você sabe, querida, que os franceses são muito diferentes dos ingleses

— ela começou. Larisa sorriu. — Por exemplo: eles falam outra língua, não é, mamãe?

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— Não estou brincando — censurou-a lady Stanton. — Eles têm fama de ser atrevidos e irresistíveis com as mulheres. — Você está me prevenindo para não me apaixonar por um francês? — Sim, estou. E ouça-me com atenção, Larisa. O que vou lhe dizer é

muito importante! — Estou ouvindo — disse Larisa, surpreendida com a nota de seriedade

na voz da mãe. — Você sabe, minha filha, que o inglês é um gentleman, e não persegue

uma jovem a não ser que tenha intenções sérias, que pretenda se casar com ela. E não se esqueça de que as governantas fazem uma classe à parte. São senhoras distintas, mas não são consideradas dignas de se casarem com um homem da alta-sociedade.

— O que você quer dizer com “perseguir”, mamãe? — É tentar fazer amor com essa jovem, Larisa. — Como beijar, por exemplo? — É… — Mas mesmo uma governanta pode sempre dizer “não”. — Eu sei que é o que você vai fazer, filha. Contudo, se fosse trabalhar

numa residência inglesa, eu recomendaria que se portasse discretamente e não se envolvesse com os homens da casa. Tenho certeza de que um inglês jamais abusaria de uma jovem desprotegida, numa posição tão vulnerável como a de uma governanta. E, se ele se aproximasse de você, seria com boas intenções. Na França isso é diferente.

— Diferente como, mamãe? — Os casamentos franceses são arranjados. Um francês considera seu

dever casar-se com a mulher escolhida pelo pai, porque ela lhe dará terras e um bom dote. Isso depende, é claro, da posição do pretendente.

— Quer dizer então, mamãe, que se uma jovem francesa casa-se com um marquês seu dote tem de ser maior do que se casar com um conde?

— Larisa indagou, muito interessada. — Isso depende da origem da família. Não é só o título que vale na

França, mas o berço e o sangue contam mais que qualquer outra coisa. — Isso significa que, se um francês de boa categoria social se apaixonar

por mim, não pode nem sonhar em se casar comigo? — É muito provável que não. O cabeça da família é muito poderoso. Ele

manobra o dinheiro e o distribui a todos, a seu critério. É por isso, Larisa, que

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numa casa francesa moram não apenas o pai, a mãe e os filhos, mas também os avós, tios e primos. É mais barato mantê-los juntos do que em moradias separadas.

— Eu sempre soube que os franceses eram práticos — Larisa comentou, rindo.

— E são. Mas tenha sempre uma coisa em mente, minha filha: os franceses apreciam mulheres bonitas, e você é lindíssima.

Larisa encarou a mãe com espanto. Ela muito raramente elogiava as filhas.

— Não quero que fique convencida — lady Stanton continuou —, mas está cansada de saber que seu pai comparava você às deusas gregas.

— As quatro Vênus! E Nicky pode ser Apolo! — É, ele pode, não é mesmo? Não acredito que haja no mundo um

jovem mais atraente do que ele! Havia doçura na voz de lady Stanton ao falar no filho. Com esforço ela

pôs de lado seus pensamentos sobre Nicky e voltou a atenção a Larisa. — Siga para a França com a cabeça no lugar, minha filha. Não ouça os

franceses. Não acredite em nenhuma palavra do que eles disserem sobre o amor. Você não tem dote e, embora possa se orgulhar de seus ancestrais, isso não será levado em consideração na França, devido à sua posição de quase empregada.

— Não darei ouvidos a nenhum homem, mamãe, e prometo não me apaixonar.

— Lembre-se sempre de que, se tal acontecer, será um desastre. Você ficará de coração partido, pois o homem amado se casará com uma mulher que lhe dê dinheiro ou terras, e que tenha a aprovação da sua família.

— Você pinta o retrato dos franceses de maneira horrenda! — Larisa exclamou.

— Mas juro, mamãe, que estarei atenta o tempo todo, e vou ignorar até o mais insignificante elogio.

— Estou falando sério, Larisa! — Eu sei, mamãe! — Ela se abaixou e beijou a mãe, suplicando: — Não fique assim aflita! Eu lhe asseguro que, se suas outras filhinhas

não sabem cuidar de si mesmas, eu sei!

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CAPÍTULO II Larisa observava os brancos penhascos de Dover desaparecendo aos

poucos, quando o vento começou a soprar mais forte, obrigando-a a descer. Havia um lugar reservado para ela no salão do navio, de onde podia

analisar com cuidado os passageiros, um a um. Não pareciam muito interessantes; por isso, resolveu refletir sobre seus objetivos.

Aquela viagem era uma aventura, coisa que há um mês não imaginaria que fosse acontecer em sua vida tranquila.

Só por um momento, ao se despedir de Nicky, que a acompanhou até Dover, ela sentiu um pouco de pânico.

Mas a coragem, que nunca a abandonara, e o otimismo, que a fazia crer que os acontecimentos caminhavam para melhor, fizeram-na dizer adeus ao irmão sem derramar uma lágrima sequer.

Tudo se passara tão depressa e havia tanto a fazer antes de partir, que Larisa mal teve tempo de pensar na viagem.

Acrescia a isso o enorme trabalho de empacotar vários objetos para a mudança de lady Stanton e das meninas para o chalé.

A escolha dos vestidos de Larisa provocara quase um conselho de guerra e, como sempre, ela fizera as sugestões mais sensatas.

— Como vou viajar para fora do país, onde ninguém me conhece, não há razão de eu guardar luto. Mamãe, é claro, usará preto por um ano, e meio luto por outro ano. As meninas deverão vestir roupas escuras por doze meses também. Mas eu posso pôr qualquer cor disponível.

— O que você quer dizer com qualquer cor disponível, querida? — lady

Stanton indagou, espantada. — Quero dizer, mamãe, que como nós duas temos mais ou menos o

mesmo tamanho posso usar suas roupas, o que nos permitirá economizar dinheiro e tempo para fazer outros vestidos. — E, antes que a mãe pudesse protestar, Larisa acrescentou rapidamente:

— Prometo ser bem cuidadosa e, quando você tirar o luto, devolverei tudo.

— É na verdade uma boa idéia. Mas minha roupa de viagem é azul. O que todo mundo vai dizer?

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— Ninguém vai dizer nada, mamãe. Quem se incomoda com uma governanta? E é bem possível que a condessa nem tenha mencionado ao irmão que papai morreu há pouco tempo.

Larisa viu os rostos apreensivos da mãe e das irmãs, e acrescentou: — De qualquer modo, se vocês se sentirem melhor, posso usar uma

faixa preta no braço. — Não, isso é horrível! — Cynthus protestou. —Acho muito boa a idéia de Larisa, mamãe, e ela pode levar também

meu vestido cor-de-rosa. É o mais novo que tenho, mas sairá de moda até o ano que vem. Além disso, preciso de vestidos mais adequados para meu enxoval.

— Naturalmente, querida — lady Stanton concordou —, e vamos lhe comprar alguns bem bonitos. Você vai ficar linda de lilás, uma cor considerada adequada para meio luto.

E foi assim que Larisa selecionou alguns vestidos da mãe que, reformados, ficaram mais joviais. Certo dia, lady Stanton exclamou:

— Tenho mais uma sugestão a fazer! — O quê, mamãe? — perguntou Larisa. — Peça a Nicky que a ajude a trazer aqui para baixo o grande baú do

sótão, aquele de couro marrom com tampa redonda. Larisa fez o que a mãe mandou. Quando lady Stanton abriu o baú, as

meninas surpreenderam-se com o conteúdo dele. A mãe tivera uma vida social intensa na juventude e, sendo filha única,

possuía um guarda-roupa variado e rico. Durante as temporadas, ia sempre a Londres, onde era convidada para

grandes recepções, e muitas vezes fora considerada a moça mais linda e elegante daquelas reuniões.

Infelizmente, ao casar-se com sir Beaugrave, tivera que aceitar suas idéias de que o futuro financeiro do mundo estava na Austrália. Ele investira a maior parte de seu dinheiro, incluindo o dote da esposa, aliás considerável, em minas de ouro naquele país.

Cinco anos mais tarde, as minas se esgotaram e, quando sir Beaugrave morreu, descobriu-se que sua grande fortuna sumira nas mãos de companhias australianas, cujas previsões otimistas jamais se materializaram.

— Guardei alguns dos meus vestidos mais bonitos como recordação de uma juventude feliz — lady Stanton explicou às filhas.

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Assim falando, tirou do baú uma anágua armada com barbatanas, que fez as meninas gargalharem.

—Você usou isso, mamãe?—Athene indagou. — Devia ser muito incômoda. — É verdade. Era muito difícil entrar ou sair das carruagens. E também

indecente quando a gente se sentava sem tomar cuidado, pois a saia pulava para a frente, exibindo toda a roupa de baixo.

Mas os vestidos que estavam no baú eram lindos. — Este foi meu primeiro vestido de baile — disse lady Stanton,

mostrando às filhas um modelo de cetim branco, enfeitado com renda no decote e na saia rodada.

— Que fazenda linda! — observou Athene. — E foi muito cara, minha filha, eu me lembro. — Será que podemos reformar este vestido? — sugeriu Larisa, com certa

dúvida, porém. — Vista-o — lady Stanton ordenou. Larisa obedeceu. A parte de cima, que moldava bem o corpo, ficou

muito bonita. Mas a saia, sem armação da anágua, caía lisa, arrastando-se no chão, sem nenhuma elegância.

Lady Stanton puxou-a para trás. — Se nós ajustarmos na frente, o resto da fazenda vai formar um

drapeado atrás, criando uma linda cauda. Larisa deu um grito de satisfação. — Claro! Como você é esperta, mamãe! Havia outro vestido bonito no baú. Era de crepe azul-claro, enfeitado

com tule, que poderia ser reformado da mesma maneira. Vários pares de luvas, grinaldas de flores e um leque que agradou muito

a Delos também se encontravam na mala. — Achei que tinha mais coisas — observou lady Stanton, um pouco

desapontada —, mas agora me recordo de que usei um vestido para fazer a roupa de batizado de Athene e vários outros para vocês irem a festas quando crianças. Não queria pedir dinheiro a seu pai muitas vezes.

— Esses dois são perfeitos, mamãe — Larisa declarou. — Apenas desconfio que são chiques demais para uma governanta! Sua impressão foi confirmada depois de prontos os vestidos. Todas

ajudaram a reformá-los e, quando Larisa os experimentou, Cynthus teve

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inveja. — Seriam bons para meu enxoval — ela insinuou. — Nunca vou poder comprar nada assim tão bonito! — Tenho a impressão de que jamais poderei usar estes vestidos —

Larisa observou, olhando-se no espelho. — Vou embrulhá-los muito bem e, quando você se casar, os mandarei de

volta. — Você é um amor, Larisa. — E Cynthus a beijou. O vestido azul não era tão luxuoso como o branco, mas, mesmo assim,

Cynthus exclamou quando viu a irmã: — Você parece um anjo vindo do céu. — Mas acho que quem vai usar este vestido é você, Cynthus — replicou

Larisa. — A menos que eu o ponha para comer sozinha na sala de estudos do

château. — Você não vai comer com a família na sala de jantar, minha filha? —

indagou lady Stanton atônita. — Penso que não, mamãe. Lembro muito bem que papai nunca permitiu

que miss Grimshaw ou miss Johson jantassem conosco. E elas só almoçavam com você quando nós estávamos juntos.

— Tinha me esquecido disso! Faz tanto tempo! Oh, Larisa, não posso nem pensar em vê-la tratada dessa maneira. O que diria seu pai?

— Papai devia ter pensado nisso ao comprar aqueles livros caríssimos. Só espero que Nicky consiga alguma coisa com a venda deles!

Era fácil ver para onde o dinheiro tinha ido, ano após ano. — Gostaria de saber por que papai gostava tanto da Grécia! —

perguntou Larisa ao irmão, mais tarde, quando ambos terminaram de selecionar os compêndios.

— Ele tinha essa idéia fixa! Acho que, se fosse seguir suas inclinações, nos abandonaria e iria morar lá.

— Talvez tenha sido grego em outra encarnação — Larisa observou, sonhadora.

— Você acredita nisso? — inquiriu o irmão. — Penso algumas vezes nessa possibilidade. É difícil entender, sem se

falar em reencarnação, por que uma pessoa tem enorme aptidão para música, ou outra, como Delos, já falava francês quase antes de ser fluente em inglês!

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— No caso de Delos, ela deve ter puxado à nossa bisavó — Nicky lembrou.

— É? Não sei. Talvez haja uma explicação diferente! — Quem sabe eu fui embaixador em outra vida — Nicky disse, sorrindo.

— Por isso desejo tanto ingressar no serviço diplomático! Larisa sorriu: — E será embaixador outra vez nesta, tenho certeza! Pense só em como

vai ficar maravilhoso com aquela farda toda bordada de dourado! Mas a cada dia, enquanto encaixotava as coisas da casa-grande que

seriam levadas ao chalé, Larisa achava mais difícil entender como seus pais haviam sido tão imprevidentes!

Larisa e Nicky foram obrigados a passar a noite em Dover, para que ela pudesse tomar o primeiro barco para Calais na manhã seguinte.

Ficaram num hotel barato e pouco confortável, onde, apesar disso, desfrutaram com muito prazer cada minuto da companhia um do outro. Até o péssimo jantar pareceu delicioso.

— Cuide-se bem lá na França, Larisa — recomendou Nicky quando acabaram de comer.

— Você sabe que vou ter juízo, Nicky, e, se um de nós tinha de sair do país para trabalhar, essa pessoa só podia ser eu.

— Por que diz isso? — Cynthus sempre foi muito distraída. Se tivesse que tomar conta de

uma criança, se esqueceria dela, por estar lendo ou perdida em sonhos. Athene é muito impulsiva, e Delos, romântica em excesso.

Nicky riu, dizendo: — E você, não é nada disso? — Sou mais prática. Pelo menos espero! — Não estou muito certo, Larisa, mas acho que você é a mais inteligente

e a mais corajosa de todas! — Acha mesmo? — Acho, mas isso não impede que me preocupe com você, Larisa. É

linda demais para ficar sozinha na França. E vai ouvir muitos franceses dizerem a mesma coisa.

— Prometi a mamãe não dar atenção a elogio algum! — Pobre mamãe! Ela não tem idéia do que é o mundo fora de

Redmarley House. Francamente, Larisa, não vai ser fácil para você.

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— Eu sei. De qualquer maneira, é só atravessar o canal e estarei com vocês de novo. É o que farei se as coisas ficarem insuportáveis!

— É difícil saber como agradecer a você por tudo o que está fazendo por mim!

— Agora você me deixou sem jeito — Larisa protestou. — Nós o amamos, Nicky, e tenho certeza de que você faria o mesmo por

nós, se houvesse necessidade. — Sabe que sim, querida — respondeu ele. Agora, a bordo do Britannia, Larisa quase agradecia à obsessão de seu

pai pela Grécia, pois, não fora isso, ela não estaria a caminho de uma aventura que há muito desejava encetar.

“Vou à França!”, dizia a si mesma. “Vou conhecer os franceses e, se eles forem desagradáveis, volto para casa.”

Era bom saber que sempre poderia contar com a mãe, Athene e Delos. Mas, de qualquer maneira, ela estava decidida a aguentar o tempo que fosse necessário até que Nicky terminasse os estudos.

“Cento e cinquenta libras por ano!”, ela repetia enquanto o vapor soltava fumaça, cruzando um mar relativamente calmo.

Parecia-lhe uma quantia exorbitante só para ensinar um menino a falar inglês. Ela apenas temia que o garoto não progredisse tão rapidamente como o avô esperava.

“A verdade é que as crianças aprendem depressa!” Larisa refletiu. “E não será mais complicado para ele aprender inglês do que para uma criança inglesa aprender francês.”

O vapor chegou a Calais no horário, e o trem que a levaria a Paris já aguardava na estação.

Larisa, a conselho da mãe, foi direto ao vagão das “Senhoras”. Estava vazio quando ela entrou, mas, minutos após, a porta se abriu e uma senhora apareceu.

Uma fragrância exótica invadiu o ar, enquanto ela se movimentava para ocupar o assento oposto ao de Larisa.

O carregador entrou a seguir, levando enorme quantidade de pacotes, que foram colocados no bagageiro acima da cabeça delas.

A mulher deu uma gorjeta generosa a ele, que lhe agradeceu, dizendo: — Merci beaucoup, madame! A recém-chegada acomodou-se, as saias farfalhando ao roçar nas

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anáguas de seda. Vestia-se bem, ainda que de modo um tanto exagerado. Usava um casaco guarnecido de pele e um broche de brilhantes muito vistoso.

Fazia mais calor no trem do que na travessia do canal e, depois de curto espaço de tempo, a dama tirou o casaco. Larisa notou então que seu vestido era todo enfeitado de rendas preciosas.

Após lançar no ar muitos apitos, o trem partiu e o som metálico produzido pelo contato de engates em pára-choques fez o vagão sacudir-se várias vezes com força.

A locomotiva expelia uma fumaça negra, que felizmente não entrou no carro porque as janelas estavam fechadas.

Larisa observava tudo, os feios edifícios ao longo do cais, algumas casas do subúrbio, e depois o campo aberto.

Era o que ela queria ver: o solo francês os álamos à margem das estradas, os camponeses trabalhando nas áreas cultivadas.

Quando o trem desenvolveu mais velocidade, um dos volumes pertencentes a sua companheira de viagem caiu do bagageiro.

A mulher soltou uma exclamação de aborrecimento. Ao mesmo tempo, olhando para o alto, Larisa percebeu que vários outros pacotes estavam prestes a despencar também.

— Deixe-me ajudá-la, madame! — ela falou em francês. — Merci bien! Larisa subiu no assento e arrumou todos os pacotes. — O carregador foi um idiota colocando minhas coisas de um jeito tão

descuidado! — a senhora se queixou. — Agora estão mais seguros — garantiu-lhe Larisa. — Foi muito amável, mademoiselle. É inglesa? — Sou, e acabei de atravessar o canal. — Foi o que pensei. É a primeira vez que vem à França? — Sim, a primeira — confessou Larisa. — Espero que goste daqui. — Ela sorriu e acrescentou: — Naturalmente que vai gostar! E muito linda, mademoiselle. E esse

vestido lhe fica muito bem. Onde foi feito? Larisa ficou tão surpreendida com a pergunta que não respondeu

imediatamente, e a senhora então disse: — Perdoe-me! Parece indiscrição de minha parte, mas posso lhe

explicar. Sou madame Madeleine. Talvez isso não signifique nada para você,

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mas meu nome é bem conhecido em Paris. Não sou como monsieur Worth, claro, mas trabalho com alta-costura.

— Ah, é costureira?! — exclamou Larisa. — Isso mesmo. Fui a Londres depois de uma viagem pelo norte da

França com a finalidade de comprar renda para os vestidos que confecciono. Não há no mundo fabricantes de rendas iguais aos da Normandia e Bretanha. Trabalham em suas próprias casas e muitos nem sabem ler, por isso é impossível a eles enviar a Paris o que produzem.

A modista fez um gesto com a mão e continuou: — Preciso sempre ir lá eu mesma, não apenas para comprar as rendas,

como também para providenciar as encomendas do próximo ano. — Entendo… É difícil fazer renda? — indagou Larisa. — É uma arte que passa de geração em geração. Em geral uma família

guarda segredo de um desenho para que não seja copiado. — Parece um trabalho fascinante! — É verdade. E por serem as rendas feitas a mão, posso cobrar um preço

alto pelos meus vestidos quando enfeitados com elas. Madame Madeleine sorriu e acrescentou: — Agora compreende a razão de minha pergunta sobre seu vestido? É

meu ofício. — Foi de minha mãe e ela o comprou em Londres há alguns anos. — A cor é perfeita para sua pele. Mas, pensando bem, qualquer cor deve

ficar bem em você. Espero ter algum dia o prazer de vesti-la. — Sinto muito, mas isso nunca vai acontecer, madame! Embora me

agradasse muito! — Por que tem tanta certeza? Com sua beleza, não terá dificuldade em

obter vestidos lindos e caros! — Para uma governanta? Não! Eu mesma faço meus vestidos, quando

tenho dinheiro para comprar o tecido. — Você é governanta? — madame Madeleine indagou, espantada. — Sim, por isso vim à França. Vou ensinar um garoto a falar inglês. — Mas esse trabalho é um desperdício, considerando sua beleza! — Dou graças a Deus por ter conseguido trabalho. Ninguém gosta de

governantas de minha idade! — E com sua beleza! Entendo. Mas, mesmo assim, insisto, é uma pena! — Uma pena? — Larisa repetiu, acreditando não ter escutado bem.

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— Com sua aparência, seria um sucesso no palco, ou em qualquer lugar onde os homens de Paris pudessem… vê-la.

Larisa riu. — Se minha mãe a ouvisse iria desmaiar. Ela prefere morrer a me ver

num palco! Além disso, duvido que eu possua talento. — Que idade tem mademoiselle? Espero que não ache minha pergunta

rude. — Dezoito anos, mas tento parecer mais velha para que as pessoas não

me considerem jovem demais para lecionar. — Contudo, não é sua idade que vai incomodar todo mundo… —

madame Madeleine observou, lançando um olhar aos cabelos louros, aos enormes olhos azuis, aos traços clássicos de Larisa. Depois continuou a conversa de modo natural: — Vai morar em Paris?

— Na verdade, não. Estou indo para Valmont-sur-Seine. — E acrescentou, com certo orgulho: — Vou dar aulas ao neto do conde de Valmont!

— Le comte de Valmont? — madame Madeleine repetiu. — Cest impossible! — Por que impossível? Vai ao château Valmont? Não, mademoiselle, não! não! não! — Há alguma coisa de errado lá? — perguntou Larisa, assustada. — Depende do que você considera “errado”. Mas, se se encontrar com o

conde Raoul de Valmont, vai ser um desastre! — Quem é o conde Raoul? — Não ouviu falar dele? — Não! Nunca! Foi um conde de Valmont quem escreveu para minha

mãe, mas ele assinou “François”. — É o chefe da família — explicou madame Madeleine. — E é um grande aristocrata. Os Valmont fazem parte da história da

França. — Então, por que se refere ao conde Raoul desse modo? — Talvez você jamais o veja, ele está sempre em Paris. Dizem que não se

dá bem com o pai. Enfim, quem se surpreenderia com isso? — Não compreendo nada — Larisa comentou. — Por favor, explique-se melhor. Deve entender que é importante para

mim. — Se você fosse minha filha, eu a poria no primeiro navio de Calais a

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Dover e a mandaria para casa. — Mas por quê? Por quê? — Larisa insistia. — Porque, ma pauvre petite, o conde Raoul não é pessoa para conviver

com você. — Não consigo imaginar o que ele tem a ver com meu trabalho. — É o pai do garoto que será seu aluno. — Não sabia que Jean-Pierre tinha pai! Supus que fosse órfão. — Ele tem pai, mademoiselle… um homem cuja existência ninguém pode

ignorar. Mas é possível que você nunca se encontre com ele. Se for verdade o que se diz, o relacionamento entre o conde Raoul e o pai é péssimo!

— Mas por que ninguém pode ignorar a existência dele? — Porque, mademoiselle, ele é o mais atraente, o mais sensacional, o mais

procurado homem de toda Paris! Todos falam sobre ele, todas as mulheres vão atrás dele! Monsieur le diable!, É como o chamam e, posso lhe garantir, merece esse nome.

— “O senhor diabo”? O que o faz ter esse apelido? — Ele induz as mulheres com quem se relaciona à insensatez e a

qualquer tipo de loucura. Ah, mademoiselle, se soubesse com que facilidade elas se rendem!

Madame Madeleine fez um gesto com as mãos e exclamou: — “Vite! Vite!, madame”, é o que me dizem. “Quero depressa o melhor

vestido, o mais elegante, o mais ousado! Hoje à noite preciso parecer linda, diferente. Tenho que apagar o brilho de todas as outras mulheres.” E nem há necessidade de perguntar por quê. Sei que vão jantar com o conde Raoul.

— Mas qual a razão dele ter tanto sucesso com mulheres? — Como se pode explicar esse poder que alguns homens têm? A eleita

às vezes é uma duquesa, uma grande dame dos círculos sociais mais exclusivos; outras vezes é uma artista do Folies-Bergère ou do Moulin Rouge. Trabalha no teatro ou no Café Chantant. Onde houver uma mulher atraente, o conde Raoul a descobre e, quando isso acontece, voyons! Ela está perdida!

Larisa não tirava os olhos de madame Madeleine. Estava fascinada com essa história.

— E o conde se apaixona e ama a todas elas? — O que é amor? — madame Madeleine respondeu, sacudindo os

ombros. — É por acaso o néctar que um homem encontra em cada flor que toca

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com os lábios? Ou é o prazer emocionante de saber que basta estalar os dedos e as mulheres correm para satisfazê-lo?

— O conde Raoul é casado? — Não, não. É viúvo. A mulher dele, mãe do menino a quem você vai

dar aulas, morreu ao dar à luz esse filho. — Que pena! Ele deve ter sofrido muito, eu penso. — Se sofreu não demonstrou — madame Madeleine sacudiu os ombros

mais uma vez. — Continuou dando festas. Toda Paris fala sobre essas recepções e

deseja ser convidada para elas. Isto é, a Paris feminina. — E os homens gostam dele? — Boa pergunta, mademoiselle. Geralmente, quando um cavalheiro se

porta de modo tão escandaloso assim, os outros homens o desprezam. Mas, nesse caso é diferente. O conde Raoul é querido mesmo entre pessoas de seu próprio sexo.

— E não têm ciúme dele? — Ciúme, não. Inveja, talvez. Homens de mais idade admiram o

desempenho do conde Raoul nas pistas de corrida de cavalo e nas de dança. Isso os faz lembrar os dias da juventude. Para os mais jovens, ele é o modelo. Tentam imitá-lo, mesmo sabendo que talvez não consigam o mesmo resultado.

Larisa silenciou por segundos; em seguida disse: — A senhora me fez entender que o conde brigou com o pai. O que

significa que ele não irá ao château e, consequentemente, eu não terei chance de conhecê-lo, não é?

— Vamos esperar que isso aconteça, pois, como já falei, seria um desastre se o conde pusesse os olhos em você!

— Mas, por quê? — Olhe-se no espelho, mademoiselle! Larisa riu. — A senhora está me deixando convencida. Se o conde tem atrás de si as

mulheres elegantes e sofisticadas de Paris, não vai dar a mínima atenção a uma simples governanta.

— Pode ser. Contudo, ma petite, eu me preocupo com você. — A senhora é muito amável, mas eu lhe asseguro que posso cuidar de

mim mesma. Minha mãe já me preveniu de que, quando os franceses elogiam

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uma mulher, não há sinceridade, e eu prometi não me impressionar com isso. — Muito autoconfiante! — madame suspirou. — Tão jovem! Lembro-me

de que, na sua idade, também me sentia assim. Mas foi há tanto tempo que nem quero pensar!

— Mas a senhora conseguiu um grande sucesso, madame! — É, na verdade, com algum auxílio de… amigos. E muita dor de

cabeça. — Tem sido infeliz? — Acho que as mulheres vêm ao mundo para ser infelizes. Se você é

bonita, anda por uma estrada perigosa, com armadilhas de ambos os lados; se é feia, não há ciladas pelo caminho, porém, você derrama lágrimas amargas de frustração!

Larisa não pôde evitar o riso. — Oh, madame, a senhora faz tudo soar tão triste! Sempre pensei que

Paris fosse excitante! __E é. A Paris que você não vai ver. — Conte-me sobre as festas do conde Raoul — pediu Larisa. — Está muito curiosa, mademoiselle! É perigoso! — madame Madeleine

exclamou. Contudo, sendo uma faladeira inveterada, não resistiu à tentação de revelar algo.

— Uma vez — começou Madeleine —, o conde Raoul apostou com um gastrônomo a quantia de 50.000 francos, assegurando que apresentaria um jantar no qual o prato principal consistiria na mais deliciosa carne de Paris, a qual, não obstante, o desafiado não comeria.

— O gastrônomo aceitou a aposta? — Larisa quis saber. — Claro! E perdeu! — Como? — A entrada de peixe foi magnífica. Então, o prato seguinte foi trazido

na sala de jantar, numa enorme travessa de prata. Dentro dela estava Fifi le Fleur, uma estrela do Folies-Bergère, completamente nua.

Larisa riu, apesar de chocada. — Em outra ocasião — madame Madeleine continuou — uma das

convidadas do conde exibiu uma dança espanhola em cima da mesa do Maxim's, o mais elegante restaurante de Paris, frequentado pelo beau-monde e também pelo demi-monde. Causou sensação.

— Tudo parece muito, muito divertido — Larisa exclamou

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perguntando-se ao mesmo tempo o que significava demi-monde. — Há divertimentos e divertimentos, mademoiselle. E precisa ter muito

cuidado em não se deixar levar pelo tipo de divertimento condenável. — Como posso distinguir o certo do errado? — Fugindo das tentações do “diabo”, isto é, do conde Raoul! Ele é o

errado! Uma carruagem puxada por dois magníficos cavalos aguardava Larisa

na Gare du Nord. Um senhor idoso, assistente do conde de Valmont, vestindo libré preta e

dourada, estava na plataforma e a conduziu à carruagem. Dentro dela havia uma empregada, também usando uniforme preto, que cumprimentou Larisa amavelmente:

— Bonjour, m’mselle. — Bonjour! — respondeu Larisa. As malas foram acomodadas, o homem idoso tomou assento ao lado do

cocheiro, e a carruagem partiu. Era quase noite e os lampiões de gás já estavam acesos. Larisa inclinou-

se para observar, excitada, através das janelas, as altas casas cinzentas com venezianas de madeira, as lojas ainda abertas, os cafés com seus fregueses sentados às mesas das calçadas, tomando vinho.

— Morro de vontade de conhecer Paris! — ela disse à empregada. — É uma cidade muito barulhenta e movimentada, m'mselle. — Você prefere o campo? — Sempre morei em Valmont-sur-Seine… — E não se aborrece lá? — Larisa indagou. — Não, m’mselle, ao contrário, sou grata por trabalhar em local tão

bonito e tranquilo. A Larisa, pareceu impossível obter mais informações sobre Paris, por

ela. Ela havia procurado obter informações acerca da cidade antes de sair da

Inglaterra. Soubera então que a fabulosa Exposição Internacional do ano anterior, 1889, havia impressionado o mundo.

— O fato de a Exposição ter tido lugar no ano do centenário da Revolução Francesa não agradou a todos — Nicky dissera.

— Nenhuma das cortes européias foi representada por seus embaixadores, com exceção da Bélgica.

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— E a Inglaterra? — A rainha Vitória requisitou a presença em Londres de nosso

embaixador, lorde Lytton, para que ele não pudesse comparecer à cerimônia de abertura.

— Mas a Feira foi um sucesso? — Mais de trinta milhões de pessoas a visitaram. E quando o príncipe de

Gales foi a Paris, subiu na Torre Eiffel. — Isso eu quero fazer também! — Larisa exclamara. — Muita gente tem medo que desabe. — Arrisco assim mesmo! — E Larisa rira. Por intermédio de leituras, ela

veio, a saber, que Paris dobrara em tamanho desde o começo do século. O barão Haussmann, sob o regime de Napoleão III, reformara

completamente a cidade. As ruelas centenárias foram destruídas e transformadas em largos boulevards.

— Quero ver a Rue de Rivoli e o Champs-Élysées — Larisa declarou a Nicky.

— E eu prefiro ir ao Folies-Bergère e ao Maxim's — ele replicou sorrindo.

— Fale-me alguma coisa sobre esses dois lugares. — Não são para mocinhas — ele caçoou —, principalmente para

austeras, corretas e empertigadas governantas. Larisa jogou-lhe uma almofada no rosto. E agora ouvira mais sobre o Folies-Bergère e o Maxim's. Nicky estava

certo, não eram lugares para ela frequentar. Estava chocada com as revelações de madame Madeleine sobre o conde

Raoul, mas, ao mesmo tempo, achava que a modista havia exagerado um pouco. Se o conde fosse tão depravado como o pintavam, lady Luddington não a teria recomendado para o emprego.

Mas, também, a condessa de Chalon nunca iria supor que o sobrinho se interessasse por uma simples governanta, quando tinha a seus pés as mais lindas mulheres de Paris.

“Como será que ele é?”, Larisa se perguntava. Conhecia tão poucos homens… Os que iam a Redmarley House ou a acompanhavam a bailes não se comportavam como “diabos”, mas também não eram atraentes a ponto de fazê-la se dar ao trabalho de ficar pensando neles.

Larisa tentava imaginar como seria o homem ideal para ela. Era difícil

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expressar em palavras o tipo de marido que desejava. Certamente ninguém que fosse como o jovem noivo de Cynthus. Jamais

falara nada à irmã, mas achava John Pirbank entediante! Não havia nada de errado com o simpático e bem-educado rapaz, não. Cavalgava bem e tinha grande senso de responsabilidade. Contudo, por ser jovem demais, obedecia ao pai em tudo, até na decisão sobre a data do casamento.

“Cynthus parece feliz!”, Larisa refletia. “Mas eu quero um homem mais autoritário, mais independente no que se refere à própria vida.”

Não obstante, esse homem ideal não podia ser também como o conde Raoul. Ter dúzias de rivais disputando o amor de seu marido era dar lugar a todo o sofrimento do qual madame Madeleine falara tanto.

Então uma pergunta veio-lhe à mente. O que seria pior, ter como rival outra mulher ou um interesse que absorvesse seu amado, como acontecera no caso do seu pai com relação à Grécia.

“Não sei o que papai amava mais, se a Grécia ou mamãe!” Mas logo Larisa considerou essa dúvida absurda. Seus pais tinham sido muito felizes, muito mesmo. Lady Stanton admirava o marido, e se às vezes ele ignorava a família que o rodeava, por estar com o pensamento longe, por outro lado, era também um homem feliz.

“Por que estou pensando nisso agora?”, Larisa se repreendeu enquanto a carruagem seguia pela escuridão da noite.

Tentando se concentrar na vida que a esperava, perguntou à empregada que viajava com ela:

— O neto do conde de Valmont já tomou aulas antes? — Sim, ele teve várias governantas, m'mselle. — Várias? — Larisa se surpreendeu. — Sim, m'mselle.

— Por que saíram? Larisa percebeu, um pouco tarde, que a pergunta fora imprudente. Não

era bom entrar nesse assunto com uma empregada. Mas a resposta veio rápida.

— Elas não ensinavam monsieur Jean-Pierre conforme o gosto de monsieur le comte.

“Ah, foi isso”, Larisa pensou, preocupada. Uma coisa porém era certa: se ela não fosse feliz lá, iria à Gare du Nord e cruzaria o canal, voltando para casa.

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Pela primeira vez teve medo, não de estar sozinha, mas de ser despedida por incompetência.

Como seriam as outras governantas de Jean-Pierre? Por que não obtiveram bons resultados?

Queria fazer outras perguntas, mas receou ser indiscreta. Era melhor aguardar para ver o que aconteceria. Acima de tudo, devia ser confiante e mostrar-se segura de si mesma.

Contudo, indagou mais uma coisa: — O petit monsieur é um bom menino? — Muito bom, m'mselle. Não causa problemas de espécie alguma.

“Nesse caso, qual será a dificuldade? Por que as governantas não agradaram a monsieur le comte?”

Pensou mais uma vez em tudo que madame Madeleine lhe dissera. Nunca alguém lhe descrevera com exatidão o château Valmont, mas com certeza era diferente do que ela imaginava. Talvez diferente de qualquer outra casa da Inglaterra, onde pudesse trabalhar como governanta.

Isso sem considerar a possibilidade de se encontrar com o conde Raoul, o famoso monsieur le diable!

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CAPÍTULO III Era noite quando eles se aproximaram do castelo. Enquanto a carruagem

percorria a longa alameda ladeada de árvores frondosas, Larisa distinguira ao longe a silhueta de um enorme edifício.

Ao chegarem mais perto, ela percebeu que o castelo era circundado com um fosso profundo, sobre o qual se estendia a ponte ornamentada por uma série de lindas esculturas de ambos os lados.

Não houve tempo para Larisa apreciar tudo como desejava. A carruagem atravessou a ponte e seguiu até o pátio, iluminado apenas pela claridade que vinha do grande portal, situado no topo da escadaria.

— Chegamos, m’mselle — falou a empregada. Um lacaio abriu a porta da carruagem e Larisa desceu. Em seguida,

subiu as escadas, sentindo-se pequena e amedrontada ao atingir o enorme hall circular, cheio de pilares e nichos com bustos de mármore.

O mordomo saudou-a: — Boa-noite, m'mselle. Vou levá-la ao encontro de madame Savigny. Larisa lembrou-se de que esse era o nome da irmã viúva do conde que

morava no castelo. Acompanhou o mordomo ao longo de corredores repletos de retratos de

velhos senhores, que supôs serem os antepassados da família Valmont. O mordomo bateu numa porta e, quando se ouviu uma voz suave dizer

“entrez”, anunciou: — M’mselle Stanton acaba de chegar, madame. Larisa entrou numa sala acolhedora, repleta de coisas que pareciam ser

os tesouros da velha senhora. Havia um papagaio na gaiola, uma cesta de costura ao lado da poltrona

e inúmeros objetos de arte sem grande valor mas conservados, talvez por razões sentimentais.

Sobre as mesas ou em pequenos cavaletes, em qualquer lugar onde a vista alcançasse, havia uma profusão de aquarelas.

Sentada numa poltrona estava uma mulher de idade, com ares de grande dama. Uma verdadeira aristocrata, Larisa concluiu. Tinha nariz afilado, pescoço longo e cabelos grisalhos, mal cobertos por uma touca de

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renda. Madame Savigny usava um broche de camafeu no vestido preto, e nos

dedos trêmulos das mãos envelhecidas, anéis de brilhantes. Larisa aproximou-se dela. Não havia nem sombra de sorriso nos lábios

pálidos da velha dama, que disse apenas, após receber sua saudação: — Chegou tarde, miss Stanton. — O vapor atracou no horário, madame, mas a viagem de trem até a Gare

du Nord levou mais tempo que o esperado. — Fala francês muito bem, mademoiselle. — Obrigada, madame. Ela não convidou Larisa a se sentar. — Monsieur le comte deseja vê-la depois que tiver trocado de roupa —

declarou —, e você encontrará algo para comer na sala de estudos. O mordomo lhe mostrará o caminho.

— Obrigada, madame. Larisa se considerou dispensada. Fez uma reverência respeitosa e saiu.

Atravessou extensos corredores e foi ao segundo andar pela escada de serviço, sempre seguindo o imponente mordomo.

Em cima, uma mulher ainda mais velha que madame Savigny a aguardava.

— Esta, m’mselle — o mordomo apresentou-a a Larisa —, é a pajem que cuida do petit monsieur. Nós a chamamos de babá.

— Bonsoir! — disse Larisa, estendendo-lhe a mão. Após segundos de hesitação, a babá apertou-lhe a mão e Larisa não viu

sorriso algum em seus lábios. — Venha por aqui, por favor — pediu a babá. — Muito obrigada — falou Larisa, dirigindo-se ao mordomo, e achou

que a pajem se surpreendeu com tanta cortesia! Sem nada dizer, a velha acompanhou Larisa à sala de estudos. O local já fora um quarto de bebê, era fácil de se deduzir. Havia uma alta

grade protetora em frente da lareira, uma mesa no centro e um cavalinho de pau com balanço; era o modelo perfeito de um quarto de criança em todas as partes do mundo.

Mas, como uma concessão à idade mais avançada de Jean-Pierre, lá estava um quadro-negro, uma pequena escrivaninha e um grande mapa da Europa suspenso na parede.

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— Penso que o menino esteja dormindo a esta hora da noite, não é mesmo? — indagou Larisa.

— Ele vai para a cama às seis horas — respondeu a babá. — Como se fazia em casa quando éramos crianças — Larisa declarou

com um sorriso. — Lembro-me de que eu sempre achava cedo demais no verão. Por segundos, Larisa julgou ver um esboço de sorriso nos lábios da

velha empregada ao replicar: — É importante para ele ter muitas horas de sono. — Claro! — Larisa concordou. Dois quartos se comunicavam com a sala de estudos. A pajem indicou a

porta de um deles e disse: — Jean-Pierre dorme aqui. Eu ocupo o quarto ao lado. Sempre dormi

neste aposento, e não vejo razão para mudar. Falava com certa determinação, quase agressividade, o que fez Larisa

deduzir que houvera discussões acerca disso com as outras governantas. Não desejo fazer troca alguma no que se refere ao lugar onde Jean-Pierre

ou a senhora dormem — ela revidou depressa. — Só quero ensiná-lo; e estou certa de que o menino prefere ter a

senhora junto dele à noite. — Vou conduzi-la a seu quarto — disse a pajem secamente. O aposento de Larisa era agradável, ainda que pequeno, e tinha janelas

que se abriam para o jardim do castelo. A vista dali devia ser linda, mas no momento estava escuro demais e

nada se podia enxergar. Nesse instante, dois lacaios entraram com as malas. — Suzanne vai ajudá-la a arrumar suas coisas — informou a pajem. — Eu mesma posso fazer isso se ela estiver ocupada — Larisa disse, e

depois perguntou: — Quem é Suzanne? — É a empregada encarregada da sala de estudos. Ela vai trazer seu

jantar aqui já. — Muito obrigada. — Larisa fez uma pausa e acrescentou: — Espero que a senhora me ajude. É meu primeiro trabalho. Estou

empenhada em fazer tudo bem, mas tenho medo de cometer faltas. A pajem encarou-a com severidade de início. Mas, de súbito, toda a

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hostilidade desapareceu como por encanto, e ela observou: — E muito jovem, m'mselle. Esperávamos uma pessoa mais velha. — E então, vai me ajudar? — pediu Larisa com olhar súplice. — Monsieur le comte fará isso — a velha empregada respondeu num tom

de voz diferente do usado há segundos —, mas não se assuste com ele, m’mselle. O Sr. conde só deseja o melhor para o neto.

— Ele o ama muito, não? — Jean-Pierre é a paixão da vida do avô. Mas ele exige demais de um

menino tão pequeno. É o que sempre digo, mas infelizmente não me ouve. Exige demais! Demais!

Enquanto falava, a mulher abriu as malas de Larisa e começou a colocar as roupas no armário.

— Que vestido devo usar para me encontrar com monsieur le comte? — Larisa perguntou, achando que a empregada parecia quase contente por se ver consultada.

— Nada muito chique, ponha uma roupa bem simples. — E depois de uma pausa:

— Ele vai achar a senhora jovem demais! — Tentarei convencer monsieur le comte de que sou boa professora. Isso é

o que importa, e não se sou velha ou moça. — As governantas anteriores foram péssimas! —Agora havia um toque

de veneno na voz da empregada. — Vinham aqui, davam ordens, movimentavam todos os lacaios para

servi-las. Não me surpreende que o menino não tenha aprendido nada! — Oh, meu Deus! Espero que consiga fazer bem meu trabalho. — Não se preocupe, m’mselle. Vá se trocar agora. Depois que tiver

comido, eu peço a Suzanne para informar monsieur le comte que a senhora está pronta para vê-lo.

Larisa sentiu-se tratada como uma criança, mas obedeceu. Aquela babá era tão semelhante a sua Nanny, que tomara conta deles desde o nascimento de Nicky! Podia-se conversar com ela com bastante naturalidade.

Larisa contou à velha empregada como achara a sala de estudos do castelo semelhante à de sua casa, na Inglaterra, e como Nanny os considerava ainda crianças e incapazes de fazer qualquer coisa sem o auxílio dela.

— Há quantos anos você está no château? — Larisa indagou. — Quarenta! Quando vim trabalhar aqui era ainda uma menina. Então,

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monsieur Raoul nasceu, e eu passei a ajudar a velha babá, já bastante idosa. Que lindo bebê ele foi! Ao morrer a babá, eu fiquei com toda a responsabilidade.

— Monsieur Raoul era um bom menino? — Sim, mas ficou mimado demais; fazia de mim o que queria. Eu não

conseguia lhe recusar nada. “A mesma coisa fazem as mulheres da vida dele!”, pensou Larisa. Quis fazer mais perguntas sobre monsieur Raoul, mas achou imprudente.

Enfim, uma vez quebrado o gelo entre ela e a velha empregada, podia em outra ocasião descobrir algo mais sem parecer curiosa.

O jantar foi servido a Larisa na sala de estudos, em baixela de prata. Estava delicioso.

— A senhora precisa informar o chef sobre suas preferências — sugeriu a empregada.

— Ele é muito atencioso, mas as últimas governantas o deixaram quase louco, pobre homem! Uma não podia comer queijo, a outra cogumelos, uma terceira nada que levasse ovos; não havia jeito de satisfazê-las plenamente.

— Eu como de tudo! E se as refeições todas forem boas como esta, vou com certeza engordar.

A empregada ficou satisfeita com o comentário. Ia se retirando da sala quando Larisa indicou-lhe uma cadeira, dizendo:

— Sente-se e fale comigo. Preciso saber tantas coisas! A menos que esteja na hora de seu jantar.

— Não, não. Nós só comemos depois que a família termina. — Quer dizer que monsieur le comte vai conversar comigo bem mais

tarde. Então, fique aqui, por favor. A empregada se alegrou muito com o convite. Larisa deduziu que as

outras governantas talvez se tivessem imposto com ar de superioridade, desde o momento em que chegaram ao castelo.

Tendo tido uma babá por anos, Larisa sabia bem como era comum uma recém-chegada tentar obter, ou mesmo roubar, os privilégios dos antigos empregados. Em sua própria casa, houvera rixas contínuas entre a babá e as várias governantas.

Larisa tinha o pressentimento de que essa velha empregada iria ser sua única amiga naquela casa. A entrevista com madame Savigny a deixara deveras deprimida.

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— Fale-me sobre Jean-Pierre — ela pediu. — Ele é uma criança feliz. — Deve sentir-se um pouco só aqui no castelo. Outras crianças vêm

brincar com ele de vez em quando? — Jean-Pierre vive muito satisfeito — a empregada respondeu depressa,

ignorando a segunda parte da questão. — Talvez ele sinta falta da mãe. O pai o visita com frequência? A babá

hesitou um pouco antes de responder: — Aquilo que uma criança nunca tem não faz falta. Jean-Pierre é

bastante feliz quando não tentam forçá-lo a fazer aquilo de que não é capaz. Larisa notou que a pergunta sobre o pai do garoto ficara sem resposta. Em poucos minutos, um lacaio chegou com o recado: — Monsieur le comte pede a m'mselle que vá imediatamente ao salão. — Não tenha medo — a babá falou baixinho, para que só ela ouvisse. — Lembre-se de que o Sr. conde ama muito o neto. As palavras dela não impediram que Larisa se sentisse nervosa

enquanto acompanhava o lacaio até o salão. Lá chegando, ele abriu duas enormes portas douradas, no estilo típico do século XVIII.

Larisa entrou no mais impressionante salão que já vira em toda a sua vida. Suntuoso, o cômodo possuía grandes janelas guarnecidas de cortinas feitas a mão. Os painéis das paredes eram dourados e o teto pintado com uma profusão de deusas e cupidos.

Havia no chão um rico tapete de Aubusson. O sofá e as poltronas de damasco dourado, num autêntico estilo Luís XIV, ocupavam um canto do salão.

O resto da mobília, do mesmo período, causaria inveja a qualquer colecionador de arte, e incluía lindas cômodas com topo de mármore e puxadores trabalhados.

Tudo isso Larisa notou numa rápida vista d'olhos, pois sua atenção logo se focalizou num homem sentado na escrivaninha, bem no centro da sala.

O conde, com seu aspecto distinto, a intimidava, mas ninguém poderia deixar de admirá-lo.

Sentindo-se como uma colegial que vai ser castigada, Larisa caminhou até a escrivaninha, consciente de que ele a fitava atentamente.

Fez uma reverência respeitosa e esperou que o nobre senhor falasse antes.

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— É miss Larisa Stanton? — perguntou ele, num inglês quase perfeito. — Sim, monsieur le comte. — Minha irmã, madame Savigny, já me preveniu de que você era bem

mais jovem do que julgávamos. — Desculpe se o desaponto, monsieur le comte. — Não disse que tinha desapontado. Apenas constatei um fato.

Governantas possuem idade indefinida, eu sei, mas geralmente têm mais que trinta anos. Sente-se. Quero falar com você.

— Obrigada, monsieur. Larisa sentou-se na beirada de uma cadeira, em frente à escrivaninha. O

conde a observava. — Você é boa professora? — ele a inquiriu. — Espero que sim. — É seu primeiro emprego? — É, monsieur. Achei que minha madrinha, lady Luddington, havia

explicado à condessa de Chalon o motivo que me forçou a trabalhar. — Fui informado apenas de que você era uma pessoa de confiança para

entrar em minha casa e falava um inglês impecável. — Acredito que sim. Meu pai, autor de vários livros sobre antiguidades

gregas, sempre insistiu em que falássemos o inglês com fluência e corretamente.

— É o que desejo para meu neto. E posso ver agora, miss Stanton, que é uma pessoa bem diferente do que eu esperava; diferente para melhor, é claro. As mulheres que estiveram aqui se rotulando de governantas não sabiam ensinar. Jean-Pierre é uma criança inteligente, mas só consegue aprender com alguém em quem confia. E é muito importante eu esclarecer desde o início que ele precisa adquirir uma educação esmerada, pois vai tomar meu lugar um dia, como o cabeça da família.

Larisa se conteve a custo para não falar que faltava ainda muito tempo para isso. O conde logo prosseguiu:

— Um dia ele se sentará onde estou agora e dirigirá esta propriedade que pertence à minha família há mais de setenta anos! Ele adicionará honrarias ao nosso nome ilustre e será um homem respeitado e admirado por todos.

O conde falava com tanto entusiasmo que ela entendeu o que a babá quisera dizer ao mencionar que ele amava demais o neto.

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— Farei o que puder para que Jean-Pierre seja digno dessas ambições. Mas no momento ele é apenas uma criança — declarou Larisa.

— Uma criança um dia se transforma num homem! Os jesuítas diziam: “Dê-nos uma criança até os sete anos de idade, e nós moldaremos seu caráter para o resto da vida!”

Larisa não soube o que responder, e o conde continuou com aspereza: — Vamos rezar para isso não ser verdade. As idiotas, as desajeitadas

governantas que tentaram ensiná-lo até agora só fizeram bobagem. Criaram nele uma antipatia ao estudo. Há uma espécie de cortina na mente das crianças que elas fecham quando não desejam aprender.

— É verdade. Mas também é inútil ensinar coisas demais, antes que a criança saiba o significado delas.

— Tem razão — o conde concordou, surpreendido com o comentário correto da jovem governanta.

— O que vou procurar fazer é motivar Jean-Pierre à aprendizagem — Larisa explicou.

— É o primeiro passo para se absorver qualquer ensinamento de valor. — É muito inteligente, miss Stanton. Mas não se esqueça de que Jean-

Pierre é um menino fora do comum. É genial em todos os aspectos! Uma alegria para a casa de Valmont!

Outra vez Larisa notou o mesmo entusiasmo fanático nos argumentos do conde, que acrescentou:

— Pode imaginar, miss Stanton, o que significa o fato de a continuação de uma dinastia estar centralizada numa criança, num menino? Só pense que, sem ele, a nossa história, que é parte da história da França, e uma herança que inspirou e me sustentou toda a vida, acabaria com minha morte!

Larisa teve vontade de perguntar por que razão todo o futuro da família repousava em Jean-Pierre. E o conde Raoul? Por certo herdaria tudo quando o velho pai morresse.

O conde Raoul era jovem. Por que não haveria de se casar outra vez e ter mais filhos? Outro filho, pelo menos?

Mas parecia que monsieur le comte ignorava a existência dele. Era impossível a Larisa pôr essas idéias em palavras. Apenas o que conseguiu dizer foi:

— Espero, monsieur, que não conte com bons resultados depressa demais. Antes preciso conhecer Jean-Pierre e ele a mim. Se o menino foi mal

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instruído no passado, seria um erro preocupá-lo com aulas nos primeiros dias de nosso relacionamento. Quero conversar e, aos poucos, despertar nele interesse pelo inglês. E, numa casa como esta, há fascinantes lições de história em cada detalhe que podemos observar.

O conde parecia satisfeito em ouvir isso, embora não relaxasse a severidade de sua fisionomia.

— Deixo-lhe a liberdade de usar seus próprios métodos, miss Stanton, mas espero que me mantenha informado sobre o progresso de Jean-Pierre. Não desejo ficar na ignorância, entende? E mais um aviso: recuso-me a ouvir mentiras sobre ele.

Falou essa última frase com energia, dando um soco na escrivaninha, o que fez o tinteiro chocalhar.

— Não vejo razão para enganá-lo, monsieur — Larisa protestou com dignidade. — E espero que o senhor não me amedronte com essas atitudes drásticas.

— Amedrontar você? — O conde encarou-a, espantado. — Já lhe confessei muito honestamente que este é meu primeiro

emprego. Quero me sentir confiante de que estou agindo certo, e o temor nessas horas é contraproducente.

— Tenho a impressão, miss Stanton, que a senhorita é uma governanta bem fora do comum.

— Meu pai detestava essa classe! Não pretendo ser do tipo que ele tachava de “imbecis”.

— Não há perigo, miss Stanton! Nesse momento Larisa julgou ver um traço de gentileza na expressão do

conde. Pela primeira vez. — É tudo, miss Stanton. — Assim ele pôs termo à conversa. — Vou vê-los, a você e a Jean-Pierre, amanhã na hora do almoço. Leve-o

à sala de jantar, a menos que tenhamos visitas. — Obrigada, monsieur — disse Larisa, pondo-se de pé e fazendo uma

reverência. — Bonsoir, mademoiselle. — Bonsoir, monsieur. Só depois de sair da sala ela percebeu que estivera tensa, como se

houvesse enfrentado um furacão ou um mar revolto. O conde era assustador, não havia dúvida!

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Na manhã seguinte, Larisa se levantou bem cedo e já se encontrava na sala de estudos quando a empregada levou Jean-Pierre para lá.

Ela imaginava que seu aluno fosse do tipo dos meninos de olhos brilhantes, muito levados, que vira correndo pelo cais quando o vapor atracara em Calais, ou misturados à multidão na Gare du Nord, agarrados aos pais.

O garoto que entrou na sala de estudos era pequeno para sua idade e não havia nada de especial nele. Parecia bem-comportado demais. Tinha grandes olhos castanhos, cabelos da mesma cor e pele clara. A boca pequena esboçava um sorriso constante.

— Diga “como vai, m’mselle” — mandou a babá. Obediente, ele atravessou a sala e estendeu a mão a Larisa, repetindo o que a babá dissera.

— Como vai, Jean-Pierre? — Larisa cumprimentou-o. — É um prazer estar neste lindo castelo, e espero que você me mostre

todas as coisas especiais que existem por aqui. Jean-Pierre fitou-a com seriedade; depois, virou-se para a empregada e

sorriu. — Quero ovos no breakfast, dois pequenos e de casca marrom — ele

pediu. — Vou providenciar para você, meu amor — a babá respondeu. Em

seguida, olhando para Larisa, explicou: — O menino adora ovos de galinha garnisé, e gosta de apanhá-los, ele

mesmo. — Não me surpreendo, pois ainda me lembro de como gostava de

procurar ovos no galinheiro — replicou Larisa. — Quero dois ovos marrons — Jean-Pierre insistiu. Nesse instante, dois lacaios apareceram trazendo o breakfast para o petit

monsieur. Larisa disfarçou um sorriso ao perceber que, enquanto seu jantar, trazido por Suzanne, viera numa bandeja, o garoto era servido por dois empregados, com respeito e grandiosidade.

O breakfast, de fato, parecia uma refeição completa. Os lacaios ofereciam os pratos de acordo com as ordens de Jean-Pierre, que, não obstante, não demonstrava grande interesse por quase nada.

Assim que ele terminou, Larisa disse à babá: — Acho que seria boa idéia sairmos um pouco para tomar sol. O dia está

lindo!

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— Não vai haver aula? — a babá indagou, atônita. — Não uma aula formal. Quero primeiro que ele me conheça bem, e que

goste de mim, se for possível. — Dê tempo ao menino, m'mselle. — É o que vou fazer. Jean-Pierre ficou radiante com a sugestão. Larisa levou-o à área cultivada da propriedade, um pouco distante do

château, e ao galinheiro, onde Jean-Pierre encontrou os ovos de que tanto gostava.

Como Larisa antecipara, o castelo era lindíssimo durante o dia. Fora construído no início do século XVIII, sendo um exemplar magnífico da beleza, elegância e grandeza daquele período histórico.

Na parte de trás ficavam os jardins, com seus canteiros floridos, lagos e fontes. Avistava-se a floresta mais adiante e, no alto de uma colina, ao longe, havia um templo rodeado de estátuas de pedra.

Larisa só pensava no pai, e em como ele iria admirar todas aquelas preciosidades, que, embora não fossem da época de que ele mais gostava, constituíam qualquer coisa de notável.

Jean-Pierre sabia muito pouco sobre tudo aquilo, e Larisa se propôs a descobrir toda a história do château e da família Valmont, a fim de poder interessá-lo no que seria sua herança algum dia.

Mas, à medida que foi conhecendo melhor o pequeno aluno, notou que ele era infantil demais para a idade. Qualquer coisa insignificante que surgisse no caminho chamava a atenção do menino: uma borboleta ou um pássaro faziam-no correr com grande excitação; porém, no minuto seguinte, ele se distraía com outra coisa. Não fixava a mente em nada. Ouvia tudo o que Larisa lhe dizia, ainda que pouco lhe ficasse na memória.

Ela contou histórias sobre flores e tentou fazê-lo aprender o nome de cada uma delas em inglês. Mas, depois de repetir dois ou três nomes, ele não se esforçou mais em prosseguir. Pôs seu interesse nos peixinhos do lago.

“Preciso lhe dar tempo”, pensou Larisa. “Não posso forçá-lo demais. Foi o que as outras governantas fizeram, me parece.” — Voltaram à casa com tempo suficiente para se vestirem melhor para o almoço.

Fazia calor, por isso Larisa pôs um dos vestidos de algodão, um verde-claro com gola e punhos de musselina branca. Queria ter um aspecto modesto, mas, sem dúvida, aquela cor lhe acentuava o louro dos cabelos e a

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pele alva, com toques rosados. Ao olhar-se no espelho achou-se bonita e se preocupou um pouco.

Depois, disse a si mesma: “Ninguém vai reparar em mim. Monsieur le comte

terá olhos só para o neto”. E foi verdade. Enquanto todos estavam à mesa, na régia sala de jantar, servidos pelo

mordomo e vários lacaios, o conde olhou apenas para o neto. — O que você fez esta manhã, Jean-Pierre? — ele perguntou. Houve

uma pausa, como se o garoto tivesse dificuldade em se lembrar. — Achei montes de ovos, montes, montes! Não era verdade. — Que mais? — o conde insistiu. — Vi um peixinho dourado no lago. Madame Savigny, que estava sentada na outra extremidade da mesa,

dirigiu-se a Larisa: — Não houve aula hoje? — Ensinei a Jean-Pierre o nome de algumas flores em inglês. Aliás, ele

tem pronúncia muito boa. Não contou, porém, que o menino só conseguira repetir o nome de três. — Quando Jean-Pierre for descansar depois do almoço, venha conversar

comigo em meu quarto, miss Stanton — madame Savigny sugeriu. — Falamos pouco ontem à noite, e há tantas coisas que gostaria de saber

sobre você! — Claro, madame. Será um grande prazer — disse Larisa, mas

desconfiou que iria passar por uma espécie de interrogatório. O almoço foi demorado e Jean-Pierre, depois de ter comido

satisfatoriamente, começou a ficar inquieto. Brincava com os talheres e se mexia na cadeira.

Larisa quis chamar-lhe a atenção, contudo não achou conveniente fazê-lo diante do conde.

Finalmente, o conde disse: — Jean-Pierre já terminou. Pode levá-lo para cima, miss Stanton. — Pois não, monsieur. O menino teria pulado da cadeira e corrido, mas o avô ordenou: — Agradeça a Deus pela refeição, Jean-Pierre. Você se esqueceu? O garoto juntou as mãos em prece na frente do rosto e disse algumas

palavras ininteligíveis. Em seguida, saiu em disparada e já estava no meio do

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corredor quando Larisa o alcançou. A conversa com madame Savigny não foi tensa como Larisa esperava. Na verdade, a velha dama se mostrou menos altiva depois que Larisa

lhe contou sobre sua família, e como o pai morrera sem lhes deixar nada, o que a obrigava a trabalhar a fim de manter o irmão em Oxford.

— Que bom ter tantas irmãs! — madame Savigny exclamou. — A senhora só tem uma irmã? — É, e nunca a vejo. Ela não vem aqui. Prefere Paris, onde tem uma vida

social muito ativa. — Paris é uma cidade alegre, acho. — Não segundo o ponto de vista do ancien regime. A velha guarda,

descendente da nobreza francesa, não se mistura com a burguesia que vem surgindo no mundo e que não tem direito de se impor como representante de nossa sociedade. Os verdadeiros parisienses moram no Faubourg St. Germain e sonham com a restauração da monarquia.

— Eles não gostam da nova Paris? — Detestam! Para eles é vulgar, por isso não se misturam. Vivem num

mundo apenas deles. Madame Savigny deu uma risada de desprezo e acrescentou: — Até a eletricidade é moderna demais para eles e, em muitas casas

nobres, ainda se usa o lampião a óleo em vez do novo sistema de iluminação elétrico sobre o qual se fez tanto barulho.

— E aqui no castelo, não houve mudanças, madame? — Larisa arriscou. — Não, meu irmão não admitiria. Também a vida no château Valmont é

um tipo de prisão, da qual nenhum de nós escapa. — Fez uma pausa e acrescentou, quase sussurrando:

— Exceto Raoul, ele foi embora. Larisa encarou-a espantada, e a velha senhora prosseguiu: — Você é jovem, Larisa. Divirta-se enquanto pode! A velhice vem

rapidamente e é muito triste! Nada nos espera no futuro, além do túmulo! Um dia também fui moça, não tão linda como você, mas bastante bonita, e achei que o mundo era um mar de rosas onde eu encontraria a felicidade. Mas me enganei.

— Tem sido infeliz, madame? — Larisa indagou com doçura na voz. — Infeliz? Só tive em minha vida miséria, feiúra e desespero, desde a

idade de vinte anos.

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— Mas, por quê? Por quê? — Não devia falar sobre isso, mas é que você me faz lembrar de mim

quando jovem. Além do mais, tenho necessidade de conversar. Não há ninguém para falar comigo aqui. São todos mortos-vivos. Estão contentes com o que possuem, pois não conheceram coisa melhor! Quando olho para o passado, vejo como tudo poderia ter sido diferente!

— Mas o que aconteceu? Então, madame Savigny confessou, quase falando consigo mesma: — Não havia nada a fazer exceto me separar de meu amado. Como

poderíamos fugir sem dinheiro? Sem nada, a não ser nosso amor? — Que pena! — Meu marido era um homem rico. Minha família ficou encantada

quando ele me pediu em casamento. Tudo foi arranjado antes mesmo de eu o conhecer.

Larisa ficou atônita. Parecia ser verdade o que sua mãe lhe dissera sobre os casamentos na França. Curiosa, perguntou:

— E o homem que a senhora amava, o que houve com ele? — Também se casou alguns anos mais tarde. A mulher dele é

riquíssima. Moram no Faubourg St. Germain e levam uma vida intensa na alta-sociedade.

— Sinto muito pela senhora! — Às vezes acho que seria preferível que eu tivesse morrido. Meu

marido cansou-se logo de mim, especialmente quando viu que eu não poderia ter filhos, e, ao morrer, me castigou.

— O que fez ele? — Deixou todo o seu dinheiro a um sobrinho, que usa o mesmo nome.

Fiquei com uma quantia miserável, por isso me vejo obrigada a morar aqui, no castelo Valmont. Nunca mais pude escapar!

Havia tanta infelicidade na voz cansada da velha senhora, que surgiram lágrimas nos olhos de Larisa.

— Que pena… que pena! — disse ela, mas sabia que comiseração não serviria de consolo a madame Savigny.

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CAPÍTULO IV

— Une fleur pour mademoiselle! — gritou Jean-Pierre, dando a Larisa uma flor que apanhara na floresta.

— Obrigada, Jean-Pierre — disse ela, sorrindo —, mas fale isso em inglês, por favor.

Ele a fitou por segundos, inclinando a cabeça para um lado, depois pronunciou devagar:

— Bor-bo-le-ta. — Não, não, Jean-Pierre. Está errado. Tente outra vez. — Bom-dia! Bom-dia! — ele berrou e correu. Larisa deu um suspiro,

misto de frustração e desespero. Estava no château há já duas semanas e só conseguira ensinar a Jean-Pierre duas palavras em inglês: “borboleta” e “bom-dia”. Ele chamava de “borboleta” qualquer coisa que se movia.

Quando disse “bom-dia” ao avô pela primeira vez, proporcionou ao velho grande prazer. E isso se deu logo após a chegada de Larisa ao castelo.

Também, foi tudo que disse. Ela nada mais obtivera como resultado de um trabalho extenuante, e agora tinha de enfrentar a dura realidade: Jean-Pierre não era normal.

Tratava-se de um menino adorável, com quem se lidava fácil e que expressava afeição o tempo todo, trazendo-lhe pequenos presentes. Flores, uma pedra, um pedaço de madeira! Tal qual fazia um cachorrinho, apanhando objetos atraentes para ele e os levando a seu dono.

Porém, durante as aulas, Larisa não encontrava jeito de motivá-lo ou forçá-lo a aprender coisa alguma. Tentou contar-lhe histórias mas, depois de alguns minutos, sua mente dispersiva se deslocava para longe. Não possuía capacidade de concentração. Tentou ensinar-lhe aritmética elementar contando tijolos.

— Um tijolo, dois tijolos — ela falava em francês mesmo, pois sabia ser impossível em inglês.

— Repita, Jean-Pierre: “um .. dois…” — Um… dois… — ele obedecia. — E este é três — Larisa observou, pondo o terceiro tijolo no chão. — Um… dois… um… dois… — era só o que Jean-Pierre repetia. À noite, Larisa ficava acordada durante horas, pensando se haveria

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método capaz de prender a atenção dele. No fim, concluiu que as outras governantas o tinham achado realmente incapaz de aprender. Daí todo o problema surgido com elas.

Larisa lembrou-se então de um garoto que vivia na aldeia perto de Redmarley. Era um menino forte e bonito. Passeava pelas ruas cantando e aparentava ser feliz.

Todos o chamavam de “o idiota da aldeia”, mas usavam de bondade para com ele, pois parecia absolutamente inofensivo.

Um dia, por razões que ninguém jamais pôde explicar, ele estrangulou uma criança de três anos. Foi levado para fora da cidade e não se ouviu falar mais nele.

“Jean-Pierre não pode ser assim”, ela refletia. Contudo, não havia dúvida. Ele tinha idade mental de uma criança de

quatro ou cinco anos. Larisa tentou se convencer de que estava enganada mas, com o passar

do tempo, concluiu que mais cedo ou mais tarde teria de tomar uma decisão. Se contasse a verdade ao conde, ele a dispensaria, como fizera com as

outras governantas. A alternativa seria fingir que ensinava Jean-Pierre, mesmo sabendo que seus esforços eram inúteis.

Havia tantas coisas no menino que a atraíam! Ele possuía boas maneiras. Gostava de se sentar bem junto dela, encostando a cabeça em seu ombro. Beijava-a à noite antes de dormir, e a obedecia quase sempre.

Raramente Jean-Pierre chorava e Larisa nunca o vira zangado ou fazendo caprichos de criança mimada, o que, de um certo modo, não era normal.

A babá e o conde o adoravam e pareciam não perceber nada, mas Larisa tinha suspeitas de que madame Savigny era mais astuta.

“Que posso fazer?”, ela se questionava. Estava contente no château. Não se cansava de admirar os lindos salões

repletos de tesouros ou de passear pelos jardins cujas fontes brilhavam à luz do sol, ou de apreciar os cisnes movimentando-se lentamente nas águas do lago. Sentia-se num país encantado.

Não obstante, havia segredos nesse país, emoções sufocadas que às vezes a faziam recear sombras sinistras e assustadoras escondidas por detrás de todo esse esplendor.

Larisa logo soube, pela velha empregada, da briga existente entre

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monsieur le comte e o filho, o conde Raoul. — Por que brigaram? — ela perguntou um dia. — Monsieur le comte forçou o casamento do filho, quando este tinha

apenas vinte anos. A noiva foi arranjada por ele, e o conde Raoul não gostou da escolha, mas o que poderia fazer? Muitas vezes monsieur Raoul disse a mim: “Quero conhecer um pouco do mundo antes de me estabelecer na vida, ma bonne”, que é como me chamava. “Preciso me divertir.”

— É o que todos os rapazes desejam — Larisa comentou, compreensiva. — Mas monsieur le comte não o ouviu. Obrigou-o a se casar com a jovem

escolhida por ele, que era um excelente partido: tinha um dote de 7.000 acres de terra e uma rua inteira em Paris!

— E isso devia agradar muito a monsieur le comte, posso imaginar! — Larisa exclamou.

— Ele sempre quis mais e mais terras para aumentar as propriedades. Nada lhe importa além de Valmont, que será um dia de Jean-Pierre!

— Mas você me falava sobre a briga… — A mulher de monsieur Raoul morreu ao dar à luz Jean-Pierre. Alguns

meses mais tarde, monsieur le comte já planejava um novo casamento para o filho.

— Ele queria mais terras? — Mais netos! M'mselle deve entender que ele deseja muitos netos para

garantir a continuação da estirpe Valmont. Porém, monsieur Raoul recusou-se a casar na mesma base e houve uma briga violenta. Finalmente, monsieur le

comte ameaçou o filho de não lhe dar um único franco até que ele obedecesse. — E o que fez monsieur Raoul? — Desafiou o pai e foi morar em Paris. Larisa ficou intrigada; não podia entender como ele dava aquelas festas

fantásticas descritas por madame Madeleine, se não tinha dinheiro. De que vivia? Como se mantinha?

Aquilo que a empregada dissera sobre a necessidade de se obter mais descendentes para a família Valmont foi confirmado numa conversa com madame Savigny. Esta lhe falava agora usando de muita franqueza. Aliás, insistia com Larisa para que fosse vê-la com frequência.

— Tenho vivido tão sozinha! — madame Savigny confessou-lhe certa vez. — Não posso conversar com os empregados e nossos vizinhos há muito nos abandonaram.

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— Ouvi dizer que na França os parentes moram sob o mesmo teto. — E é verdade. Quando meu pai era vivo, a casa estava sempre cheia.

Nossa avó, vários primos, três tias velhas, um capelão e um professor para meu irmão moravam aqui. Além disso, havia constantemente amigos e conhecidos passando temporadas conosco.

— E por que razão tudo isso acabou? — Porque meu irmão não quer gastar dinheiro. Sempre diz que não tem

condições para esbanjar em hospitalidade. Alguns primos que moravam aqui sentiram-se tão maltratados que juntaram algum dinheiro a fim de comprar uma casinha nos Pireneus, e para lá se foram.

— Monsieur le comte não está bem de finanças? — Larisa indagou, tendo em mente os incontáveis empregados que lotavam a casa, o batalhão de jardineiros e os trabalhadores da fazenda e da floresta.

— Assim ele fala. Quando lhe pedi dinheiro, há algumas semanas, para comprar um vestido novo, ele me disse que vendesse um de meus anéis!

Tudo era para Jean-Pierre, Larisa deduziu. Qualquer desejo que o menino manifestasse era logo satisfeito. O château precisava ser conservado intacto, para que a herança de Jean-Pierre fosse perfeita!

Certa vez, Larisa trouxe à baila com a babá um assunto que lhe queimava os lábios.

— Monsieur Raoul vem aqui às vezes? — Raramente, m’mselle, mas sempre me dá muita alegria ver meu eterno

“bebê”. Já faz dois anos que ele não aparece. — Não o culpo, pois monsieur le comte tornou bem claro que não é bem-

vindo nesta casa. — Algum dia ele herdará tudo isso. Claro que vai passar pelas mãos

dele antes de ir para Jean-Pierre, não é? — Naturalmente — confirmou a babá —, mas monsieur le comte sempre

fala como se não tivesse um filho, tentando eliminá-lo de sua vida. Era estranho, Larisa refletia, que num castelo tão lindo, rodeado de tanta

riqueza, as pessoas não pudessem ser felizes. Um dia, enquanto passeava com Jean-Pierre pela floresta, ela

arquitetava um modo de abordar o assunto do menino com o conde. A verdade provavelmente o destruiria; ele morreria de desgosto ao saber que o único neto não teria capacidade de ocupar seu lugar como chefe da família.

“Não sei o que fazer. Mas deve haver algum jeito!”

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Perdida em seus pensamentos, não notou que Jean-Pierre se distanciava muito dela. Então correu, gritando:

— Jean-Pierre! Espere por mim! Jean-Pierre sorria, divertindo-se com sua peraltice e com a aflição de

Larisa. — Tente me pegar, mademoiselle! Tente me pegar! Gradualmente, a

distância entre os dois diminuía. Ela quase o alcançava quando viu ao lado dele um cavalo e seu cavaleiro.

A aparição repentina da criança assustou o animal, um enorme garanhão preto, que empinou de repente, sendo contido a custo pelo cavaleiro.

Com esforço sobre-humano, Larisa agarrou Jean-Pierre e arrastou-o para um lado. O garoto tinha quase ficado sob as patas do cavalo.

Temendo que Jean-Pierre estivesse ferido, ela o aconchegou junto a si. O cavaleiro controlou a montaria. Depois, virando-se para Larisa, gritou: — O que, em nome de Deus, pretende, deixando esse menino correr

assim? Podia ter sido pisado pelo cavalo. Por segundos, Larisa não pôde responder. Em seguida, encarou o

cavaleiro e soube imediatamente de quem se tratava: o conde Raoul! Nunca sonhara que um homem pudesse ser tão atraente, tão sedutor e,

ao mesmo tempo, ter aquela aparência demoníaca! O conde Raoul! Quem mais poderia ser de tal maneira irresistível, apesar do ar irado e

do cenho carregado? Ele não era bonito como Nicky. Ninguém jamais o confundiria com um

deus grego ou com qualquer outro. Mas alguma coisa nele, na sua postura, no cravo da lapela, no modo

como montava seu enorme corcel fez Larisa pensar que vinha diretamente de um país de contos de fadas.

Raoul era parte de toda a estranha, encantadora, impressionante fascinação que vinha do château Valmont.

O conde apeou e se dirigiu ao garoto: — Devia ter adivinhado que só podia ser você, Jean-Pierre! Já estava na

hora de saber que não é prudente disparar assim, “a galope”. Mas Jean-Pierre não prestava atenção no que o conde Raoul falava. — Cavalo! Cavalo bonito! — ele repetia, excitado.

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O conde fez o animal baixar a cabeça para que Jean-Pierre pudesse agradá-lo. Enquanto isso, fitou Larisa e disse:

— Acho que devemos nos apresentar. Eu sou Raoul de Valmont. — E eu sou a nova governanta inglesa de Jean-Pierre, monsieur. Devido à

corrida que ela dera, seu chapéu de palha caíra da cabeça e estava pendurado nas costas, suspenso pelas fitas.

O sol refletia em seus cabelos louros e seus olhos pareciam mais azuis do que nunca.

— Governanta! — ele exclamou. — E onde meu pai foi descobrir alguém tão especial? Não é, mademoiselle, nada semelhante às suas antecessoras!

— Ouvi dizer — Larisa respondeu com modéstia. — Precisa me informar sobre os progressos de Jean-Pierre nas aulas.

Como deve saber, tenho nele um interesse especial. — Sim, monsieur. — Está aqui há muito tempo? — Há duas semanas. — Tanto assim? E ainda não foi sufocada pela poeira de antiguidade que

infesta esta casa? — Acho o château o lugar mais lindo do mundo, monsieur. — E as pessoas que o habitam? Sentindo-se sem jeito. Larisa baixou a cabeça e se ocupou em desamarrar

as fitas do chapéu. Um dos maiores atrativos dele, o mais embaraçoso, ela pensava, eram os

olhos, escuros e brilhantes, que falavam coisas que os lábios não diziam. Nunca imaginara que um homem pudesse ter o rosto tão expressivo.

Jean-Pierre corria pelo gramado. — Quer dar um passeio a cavalo, Jean-Pierre? — convidou-o o conde

Raoul. — A cavalo? — Os olhos do garoto se iluminaram. O pai colocou-o na

sela, dirigindo-se a Larisa: — Ele ainda não teve aulas de equitação? — Não que eu saiba, monsieur. — Meu pai receia que ele caia e quebre o pescoço! Mas se não fizer

algum esporte por medo de se machucar vai crescer como um verdadeiro débil mental!

“É o que ele talvez seja, de qualquer maneira”, Larisa pensou, mas

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apenas respondeu. — Jean-Pierre adora animais. Vou sugerir a monsieur le comte que compre

um pônei. — Eu posso fazer isso! Bem, se ele gosta tanto de animais, eu trouxe um

presente que vai agradá-lo muito. O conde Raoul tomou a rédea do cavalo e foi conduzindo o animal na

direção do château, que já se divisava a distancia. — Qual é o presente? — Larisa perguntou. — É segredo? — Não, não é. Penso que já esteja no castelo. Meu empregado, que veio

no faetonte trazendo minha bagagem, deve ter chegado. — O senhor veio para ficar? — Assim que Larisa falou, arrependeu-se. — Parece espantada! — o conde Raoul revidou. — Vou surpreender a meu pai também. Mas tenho negócios a tratar com

ele. — Hã… entendo! — Não venho aqui há muito tempo, contudo jamais esperei encontrar

tão interessante aquisição entre o pessoal do castelo… e tão atraente! Claro, ele se referia a Larisa, que corou até a raiz dos cabelos. Aquele era

um dos elogios contra os quais a mãe a prevenira, ela se lembrou imediatamente.

No entanto, os olhos de Raoul estavam fixos nela. — Você é linda! Incrivelmente linda! Mas com certeza muitos homens já

lhe disseram a mesma coisa! — Não, não disseram, monsieur, porque os homens com quem convivo

têm melhores maneiras. Larisa tencionava embaraçá-lo, mas o conde Raoul sorriu e comentou,

muito à vontade: — Acha que é descortês dizer a verdade? E você, na sua profissão, mais

que qualquer outra pessoa devia apreciar a franqueza e a honestidade. — Minha governanta sempre me ensinou que o excesso de franqueza é

condenável! — A minha também. Mas você não pode me censurar por me

surpreender com seu aspecto e nem com o fato de vê-la trabalhando neste lugar, um verdadeiro cemitério!

— Estou muito contente no château, monsieur. E agora, se não se importa, ponha Jean-Pierre no chão. Preciso correr de volta à casa, pois está quase na

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hora do almoço. — Levo vocês de volta, e por um caminho bem mais curto, que talvez

ainda não conheça. Sempre ouvi dizer — ele continuou após curta pausa — que as mulheres inglesas são muito reservadas e raramente trabalham fora do lar. Por isso, suponho que você não seja tão jovem como parece e nem tão ingênua. Veio para a França sozinha?

— Sim, e não tive dificuldade alguma, monsieur. — Não houve encontros românticos pelo trajeto? E se houve, gostou

deles? Garanto que dezenas de homens tentaram ajudá-la com as bagagens. — Só vi carregadores na minha frente, monsieur, e apenas interessados

nas gorjetas. — Você é prosaica demais! Não teve mesmo nenhuma aventura? “Raoul é le diable, como madame Madeleine o chamou, e eu não tenho a

mínima intenção de me deixar levar por todo esse charme!”, pensou ela. Apesar disso, na verdade Larisa sentia-se perturbada caminhando perto

de homem tão sedutor! — Fale-me sobre você — pediu o conde Raoul. — Não se interessaria por minha história, monsieur. — Mas estou… muito interessado. Quanto mais olho para você, mais

intrigado fico. Por que veio trabalhar em Valmont? — Precisava de um emprego de governanta… — Deve haver muitas outras possibilidades para uma pessoa como você. Ele falava com tanta convicção que Larisa não teve remédio senão lhe

contar a verdade. — Mas não encontrei nada mais! — Não acredito! Todos os homens da Inglaterra são porventura cegos?

Ou talvez você tenha surgido do Olimpo para confundir e desnortear a todos nós, pobres mortais, que enxergamos em sua pessoa a criatura com a qual sonhamos, mas que supusemos nunca iria se materializar?

A referência ao Olimpo fez Larisa sorrir. Nenhuma Stanton escapava de ser comparada a uma imagem de deusa grega que fora sempre a obsessão de seu pai.

— Por que está rindo? — o conde indagou, curioso. — Apenas uma brincadeira de minha família, monsieur. O senhor não

entenderia. — É por causa de minha alusão ao Olimpo? Você se parece com uma

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deusa grega, e não me diga que não sabia. É bastante inteligente! A única resposta de Larisa foi o silêncio. Finalmente, ele perguntou: — Como se chama? — Stanton. Larisa Stanton. — Então, estava certo! Já estive em Larisa, aliás uma região lindíssima

da Grécia! — Meu pai dizia o mesmo. — Você tem esse nome por causa do lugar? — Sim, monsieur. — Bem, fale-me mais alguma coisa sobre sua família. Por que seu pai foi

à Grécia…? Mon Dieu! — ele exclamou de repente. — Como você é difícil! Será que minha reputação me precedeu até no château Valmont? Devia saber que governantas não têm que dar ouvidos a fofocas. Precisam confiar em seus instintos e sua perspicácia.

— É o que estou fazendo, monsieur! — Agora está agindo maldosamente comigo — ele protestou. — Não me parece que você seja a pessoa certa para ensinar a Jean-Pierre.

Uma criança deve aprender só o que é lindo. A feiúra vem, com certeza, mais tarde e bem depressa, na idade adulta.

— E tento ensinar isso a ele: a beleza. Mas acho que, mesmo depois de adultos, podemos evitar o feio, se formos sensatos.

— Acredita mesmo nessa possibilidade? — Sim, acredito piamente. E é nosso dever não permitir que outras

pessoas destruam o que temos de bom, tornando-nos amargos e céticos. Larisa pensava em si e em sua família. Enfrentaram mil dificuldades

após a morte do pai, mas mesmo assim não se transformaram em indivíduos descrentes e desagradáveis.

— Você fala como se tivesse tido problemas pessoais e concluído que eles não a afetaram intimamente.

Larisa percebeu que o conde era mais observador do que ela supusera de início.

— É verdade — concordou —, mas talvez meus problemas não tenham sido tão complicados porque puderam ser divididos.

— Com um homem? — Não. Com minha família. — Tem sorte. Minha família não divide nada comigo.

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— Quando um não quer, dois não brigam — Larisa disse depressa, mas se arrependeu novamente por ser precipitada.

— Você diz isso porque não conhece meu pai. — Não nego que ele não é fácil — Larisa admitiu. — Todo mundo já me falou. Contudo, possui dois grandes amores na

vida: Valmont e Jean-Pierre. — E um grande ódio: eu! Larisa não fez nenhuma observação. O que poderia dizer? Após curta

pausa, ele prosseguiu: — Bem? Qual é a solução que apresenta para essa animosidade existente

entre mim e meu pai? Talvez uma deusa do Olimpo conheça alguma mágica que dê bom resultado!

— Acho que o senhor mesmo deveria tentar descobrir uma. Seria bom para ambos!

Quando terminou de falar, ela refletiu sobre a estranha conversa que estava tendo com um homem que mal conhecia! Um homem contra o qual fora bastante prevenida e que era, para muitos, a personificação do mal!

Estranhamente, Larisa sentiu pena dele! Podia ter toda Paris a seus pés, mas nesta casa, que lhe pertencia, sua chegada não seria bem-vinda e o receberiam com hostilidade!

Enquanto atravessavam a ponte sobre o fosso, Larisa viu, na porta da frente do castelo, um elegante faetonte puxado por dois magníficos cavalos.

O cocheiro usava uma libré dourada e preta, nas cores da dos empregados de monsieur le comte, porém muito mais elegante.

Havia outro homem, o valete do conde Raoul, que pulou da carruagem assim que os viu, carregando um pequeno spaniel marrom e branco.

— Aqui está seu presente, Jean-Pierre — o conde Raoul falou. — Um cachorro! — exclamou o garoto. — Um cachorrinho! — De tão

ansioso, desceu do cavalo sem esperar ajuda. O conde o apanhou quase no ar. — Um cachorro! Um cachorro! — Jean-Pierre gritava, abraçando o cãozinho sem o menor receio.

— Ele adora animais! Larisa observou. — Foi muita bondade sua dar esse cachorro a Jean-Pierre.

— Para ser honesto, miss Stanton, o bichinho foi-me dado de presente. Não podia pensar em lugar melhor para ele que Valmont.

— Jean-Pierre ficará muito feliz se puder conservá-lo.

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Mas, mesmo expressando dúvida, Larisa sabia que se o menino insistisse em ter um cachorro o avô cederia.

— Un chien, mademoiselle, un petit chien! — o garoto repetia, em êxtase. — É melhor o levarmos para a sala de estudos e mostrá-lo à babá —

sugeriu Larisa. — Agradeça a seu pai o presente e pergunte como é o nome do

cachorrinho. — Ainda não escolhi nome algum — o conde Raoul se adiantou em

responder —, mas, como me foi presenteado no Maxim's, penso que Max é um nome apropriado.

Larisa achou que ele quis provocá-la, despertar-lhe curiosidade sobre a pessoa que lhe dera o cachorro. Mas ela nem o fitou ao pegar Jean-Pierre pela mão, insistindo:

— Agradeça a seu pai. — Merci! Merci! — Jean-Pierre repetia. — Que tal falar isso em inglês? — o conde sugeriu. — Diga “obrigado” em inglês, Jean-Pierre — Larisa mandou. — Bom-dia — foi a única coisa que o menino conseguiu gaguejar e,

puxando o cachorro pela coleira, subiu as escadas correndo. — A senhorita é a mais maravilhosa aquisição deste castelo, miss

Stanton! — o conde Raoul observou, com os olhos brilhando de ironia. Larisa sentiu que ele queria deliberadamente embaraçá-la. Já no quarto, Larisa imaginava que, estando o conde Raoul presente ao

almoço, ela deveria comer com Jean-Pierre na sala de estudos. Mas a babá foi logo dizendo:

— Se monsieur le comte não o quiser à mesa, ele mesmo vai falar. É melhor vocês fazerem como de hábito.

— É melhor? — Acho que sim. Ao descer, Larisa encontrou monsieur le comte e madame Savigny no salão,

com o conde Raoul. O velho conde tinha um ar distante e desdenhoso mas, ao ver o neto

entrando com Larisa, estendeu os braços para recebê-lo. — Cachorro! Tenho um cachorro! — gritou o menino. — Assim me disseram — monsieur le comte respondeu e, com lábios

crispados, acrescentou:

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— Seu pai sabe muito bem que nunca permiti a presença desses animais no château. São destruidores.

— Podemos deixar Max na sala de estudos — sugeriu Larisa. Monsieur le comte encarou-a com severidade, como se condenasse essa

intromissão não solicitada. Mas o almoço foi anunciado no mesmo instante e ele nada disse.

Toda a família sentou-se na suntuosa sala de jantar. Larisa notou a tensão existente entre pai e filho, ainda que o conde Raoul aparentasse muita calma. Quanto a madame Savigny, estava radiante.

— Há muito tempo não o víamos, Raoul — ela observou. — Aqui em Valmont é como se estivéssemos a milhões de quilômetros

de Paris. Não sabemos coisa alguma. Você está contente lá? — Claro. Paris, tia Emilie, é uma cidade muito alegre. Há sempre

turistas que esperam se divertir à maneira parisiense. — E isso, eu suponho, significa gastar dinheiro — comentou monsieur le

comte. — Naturalmente, pai. Os teatros, os restaurantes, os cafés chantants e,

acima de tudo, o Folies-Bergère são muito caros. Mas não estou aqui para falar de Paris, pai, pois sei que o assunto o irrita. Vim para lhe propor um modo de ganhar dinheiro.

— Ganhar dinheiro? — Sim, e de um jeito que vai interessá-lo. — Que jeito? De que está falando? — Cultivamos uva para vinho aqui em nossa propriedade há gerações.

Tempos atrás fabricamos um pouco de champanhe, mas nos últimos cinquenta anos nos concentramos só na produção do vinho comum.

—Aliás muito bom, excepcionalmente bom — monsieur le comte interpôs, agressivo.

— Concordo com você, pai, mas, como deve saber, a cada ano o champanhe é mais procurado. Tenho no momento ótima chance de comprar um vinhedo. Fica perto de Épemay, no lugar conhecido como “a terra do champanhe”, e que produziu, no passado, uma bebida de excelente qualidade. Mas esse vinhedo tem sido mal administrado, o proprietário morreu e a família não se interessa em continuar com o negócio. Sou o primeiro da lista de compradores das terras que cobrem uma área de quinhentos acres.

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— Penso estar adivinhando aonde quer chegar — o velho conde disse. — Sugiro que “nós” façamos algum negócio. Trata-se de um ótimo

investimento, com lucro quase imediato. Posso conseguir o vinhedo por bom preço, e a colheita deste ano pagará a maior parte do dinheiro investido. Trouxe comigo plantas, anotações sobre o local e uma estimativa do potencial da plantação para os próximos cinco anos.

Monsieur le comte não respondeu e seu rosto se manteve inexpressivo. O conde Raoul prosseguiu:

— A demanda do champanhe francês no mundo cresce dia a dia. No ano passado foram vendidos mais ou menos vinte e cinco milhões de garrafas. Contudo, apenas 20% do que se produz é exportado. A Grã-Bretanha é o maior comprador da França, seguido pela Rússia.

— E quem o bebe? — o velho conde perguntou. — Loucos e estróinas como você! Maus indivíduos, oportunistas e jogadores! O vinho é uma bebida bastante boa para um autêntico francês como eu. Quero continuar tomando o que meu avô e o avô dele beberam antes de mim.

— Pode beber o que quiser, pai, mas por que não aumentar o capital da família, o qual, de acordo com você, diminui progressivamente? Temos uma oportunidade de adquirir um vinhedo no coração do distrito do champanhe, sabendo que podemos vender todas as garrafas antes mesmo da colheita!

— Não!! O monossílabo ecoou pela sala: agora o rosto de monsieur le comte não

estava mais inexpressivo. Irradiava ira. — Acha que vou seguir suas idéias loucas? — ele berrou. —Acha que

vou me atolar associando-me com o tipo de gente que você chama de amigos? Que vou confiar a você o patrimônio de Valmont, que venho evitando permitir que vá parar em suas mãos e seja jogado nos esgotos de Paris? Não tenho nada mais a dizer. — E, assim falando, o velho levantou-se da mesa e se retirou.

Já estava na porta quando o conde Raoul acrescentou: — Nesse caso, pai, eu mesmo vou comprar o vinhedo! Monsieur le comte

parou, atônito, e disse: — Onde vai arranjar o dinheiro? — Faço um empréstimo, pai, com a garantia de minha herança. Isso você

não pode me impedir! O rosto do velho conde era uma máscara de ódio. Por minutos, Larisa

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pensou que ele fosse agredir fisicamente o filho. Mas, com um esforço inaudito de autocontrole, ele saiu da sala de jantar.

Mais tarde, enquanto Jean-Pierre descansava, Larisa foi, como de costume, conversar com madame Savigny, que a esperava.

Logo que Larisa entrou no quarto, percebeu que ela chorava. — Deve estar sofrendo muito, madame — Larisa falou com carinho. — É sempre assim. Toda vez que Raoul vem para casa, e eu desejo tanto

vê-lo, ele irrita o pai e começam as brigas que me fazem tão infeliz! — Tente não se deixar envolver tanto! — Larisa aconselhou. — É bobagem chorar, eu sei. Mas detesto presenciar discussões. Meu

irmão jamais admite ser contrariado! — Que bom não vivermos em épocas passadas, quando bastava ao rei

dizer: “Corte a cabeça dele”, para ser obedecido de pronto. — Larisa tencionava fazer madame Savigny rir, e conseguiu.

— Tem razão — ela concordou —, é exatamente o que ele faria ao pobre Raoul.

— Quem está falando de mim? — Uma voz se fez ouvir do lado de fora do quarto, e o conde Raoul entrou. — Estão conspirando contra alguém?

Muito corada, encarou-o. Parecia impossível a qualquer outro homem ser mais elegante, mais atraente, mais sedutor.

Ela se levantou imediatamente e dirigiu-se à madame Savigny: — Vou deixá-la agora. — Oh, não, querida! Não vá! — a velha senhora suplicou. — Se vai sair por minha causa, miss Stanton, me sentirei culpado —

declarou o conde Raoul. — Talvez queira falar com sua tia em particular, monsieur. — O que tenho a dizer pode ser ouvido por você. E o conde Raoul

sentou-se e disse à tia: — Você tem alguma influência sobre meu pai, tia Emilie? O que expus

no almoço é na verdade um excelente negócio e ofereci a ele como uma espécie de tratado de paz entre nós dois. Meu pai sempre se queixa de pobreza, e um vinhedo, eu sei, dá muito dinheiro.

— Se a mesma sugestão não tivesse partido de você, Raoul, ele talvez aceitasse. Mas sabe como reage a tudo o que se refere à sua pessoa.

— Não o via há muito tempo e tinha me esquecido de como ele é beligerante. Parece incrível que, nos dias de hoje, um clima de guerra separe

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pai de filho para sempre. — Seu pai sempre foi assim. — Isso não é consolo para mim. E vou comprar o vinhedo de qualquer

jeito, tia Emilie. — Mas como? — Arranjo dinheiro, mendigo ou peço emprestado, como já fiz no

passado. — Tem certeza de que vai ser um sucesso? — Larisa entrou na conversa. — Conheço muito sobre champanhe — o conde Raoul explicou —, e não

só porque o bebo. — Ele riu. — Quando foi descoberta a fabricação do champanhe? — perguntou

Larisa. — A uva que o produz, conhecida como Vitis vinifera, é cultivada na

Europa desde a época dos fenícios. — E Raoul acrescentou, sorrindo: — Nunca contaram a você que esse vinho borbulhante, tão intimamente ligado à frivolidade, à alegria, e às mulheres bonitas, deve sua existência a um monge?

— A um monge? — Larisa exclamou, espantada. —A um monge beneditino chamado Dom Pérignon, que, em 1668, foi

designado chefe das adegas do mosteiro de Hautvillas, localizado nas montanhas de Reims.

— Que interessante! — Passou pela cabeça desse religioso que era possível desenvolver uma

efervescência natural no vinho, e ele se dedicou a tentativas experimentais por vinte anos.

— E venceu? — Em 1690 satisfez sua ambição produzindo uma garrafa do verdadeiro

champanhe espumante. — Muitas pessoas devem ser gratas a ele. — E são! O champanhe foi bebido pela primeira vez em sociedade no

extravagante e devasso reinado do regente Philippe, duque de Orleans. As orgias do Palácio Real foram notáveis… como as minhas. — O conde Raoul sorriu malicioso antes de continuar:

— Numa festa dada perto de Paris pelo duque de Vendôme, em 1716, doze deliciosas donzelas, vestidas de bacantes, com muito pouca roupa, portanto, ofereceram champanhe a cada convidado, numa garrafa em forma de pêra.

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— E eles gostaram da bebida? — Larisa indagou. — Até o fim da festa o sucesso do borbulhante champanhe estava

consagrado! O abade Chaulieu escreveu: “Assim que me foi servido, passou de minha boca direto ao coração!”

Larisa bateu palmas. — Que homenagem! — Não somente aqueceu corações! — o conde Raoul exclamou. —

Encheu o bolso dos fabricantes também! — Se eu tivesse dinheiro, Raoul, ajudaria você a comprar o vinhedo —

madame Savigny declarou. — Eu sei, tia Emilie. Você sempre me protege e encontra desculpas

mesmo para meus piores defeitos. — Jamais acreditei nas coisas que falam sobre você. — Mas pode acreditar na maior parte delas, tia Emilie. Porém agora

estou ficando mais velho. Procuro interesses fora das vãs frivolidades de Paris. Tive esperança, e fui tolo, vejo, de que meu pai comprasse o vinhedo e me deixasse tomar conta do negócio.

— Então o que vai fazer? — Eu mesmo compro. Não vai ser fácil! E não consistirá, no momento,

de uma parte do patrimônio Valmont. — Você ainda se interessa… por Valmont, Raoul? — Se me interesso? É minha propriedade e um pedaço de mim. Não

tenho nenhuma dúvida, tia Emilie, e não importa o que meu pai diga, de que algum dia morarei aqui. Algum dia poderei pensar no castelo como meu lar.

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CAPÍTULO V Larisa entrou na sala de estudos, pronta para o jantar. A velha

empregada estava lá, e ambas se entreolharam significativamente. — Os dois conversaram durante toda a tarde — a babá sussurrou, e

Larisa sabia a quem ela se referia. — Acho que a situação melhorou um pouco. Bernard me disse agora

mesmo que monsieur Raoul pediu ao pai uma caixa do vinho de Valmont. Monsieur le comte sugeriu que ele levasse uma da colheita de 1874, que tinha sido guardada para ocasiões especiais.

Bernard era o empregado de confiança do velho conde, sobre o qual Larisa fora informada logo ao chegar ao château.

— Espero que você tenha razão quanto à melhora no relacionamento entre pai e filho — ela observou.

Achava difícil acreditar que, tendo em vista a maneira como o velho conde se comportara no almoço, ele tivesse cedido tão facilmente ao pedido do filho. Ao mesmo tempo, tinha certeza de que o conde Raoul podia ser muito convincente, quando desejava.

Se ao menos pudéssemos ter paz nesta casa! — a velha empregada murmurou.

— Quando monsieur Raoul veio me ver hoje, ele disse: “Gostaria de ser uma criança outra vez, ma bonne, da mesma idade de Jean-Pierre, e de ter você a meu lado para decidir tudo. Como era fácil!”

A empregada disse essas palavras e saiu correndo da sala para esconder as lágrimas.

Larisa comeu muito pouco do excelente jantar que lhe fora levado ao quarto. Não tinha fome, pois sentia-se envolvida no drama daquele lar, ainda que não fosse de sua conta.

Por outro lado, mais cedo ou mais tarde o conde Raoul tomaria conhecimento, por si próprio ou por intermédio dela, da incapacidade de Jean-Pierre. Qual seria a reação dele?

Terminado o jantar, Larisa tentou ler um pouco, mas não conseguiu se concentrar.

Alguém bateu à porta.

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— Entrez! — ela disse. O lacaio obedeceu e entrou. — Monsieur quer falar com mademoiselle na sala azul. — Desço já — respondeu Larisa, dirigindo-se ao quarto para ver se seu

cabelo estava em ordem. Ela usava um vestido de fina musselina estampada com pequenas flores

azuis, feito por ela mesma. Na cintura, uma faixa também azul combinava com a cor de seus olhos.

Ao encaminhar-se para a sala referida, estranhou que monsieur le comte

não lhe tivesse pedido para ir ao salão, onde habitualmente ficava. De súbito, lembrou-se de que o lacaio não dissera monsieur le comte. Será

que se tratava de monsieur Raoul? Logo que entrou na sala, constatou que sua dúvida se confirmava. Ficou parada no meio do recinto, sem idéia de como parecia jovem,

linda e vulnerável. Seus cabelos louros contrastavam com o azul das paredes e os olhos tinham uma expressão de medo.

Por segundos, o conde Raoul a fitou, sem falar nada. Em seguida, disse: — Quero conversar com você. Vamos sair um pouco? É um maravilhoso

fim de tarde! O tom sério na voz dele fez Larisa anuir ao convite sem pestanejar. Ambos saíram. Havia uma pequena ponte naquela ala do château que se

comunicava com o lindo jardim, do outro lado do fosso. Sem falar, eles atravessaram a ponte e seguiram na direção do templo grego, no alto da colina.

Quando chegaram ao topo do monte, o conde Raoul convidou-a a sentar-se num banco de pedra, e acomodou-se perto dela.

A vista do château era magnífica! A luz difusa do sol que se punha no horizonte refletia nas janelas do edifício. Com sua simetria perfeita, sua cúpula, suas pedras esculpidas, era difícil crer que o castelo fosse real, e não parte de um sonho.

O conde Raoul ainda não dizia nada, apenas apreciava a paisagem. Finalmente Larisa arriscou:

— Por que não faz… o que seu pai… deseja? — Casar-me outra vez? — Você não acha que Valmont merece… uma senhora? — Não da escolha de meu pai! Não, nunca, nunca mais! Falou com tanta

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veemência que Larisa concluiu que seu primeiro casamento não somente fora um desastre na ocasião mas que a ferida ainda perdurava.

— Sinto muito — ela murmurou. — Tem pena de mim? Não quero sua piedade! — Não é pena do senhor só, mas de Valmont. É uma propriedade tão

linda! Parece-me que o château foi construído para abrigar… a felicidade… Se ao menos se pudesse descobrir a solução adequada!

— Estou assustado! — o conde Raoul exclamou após pequena pausa. — Assustado? Mas, por quê? — Algo estranho se passa comigo. Algo inesperado. Difícil de acreditar! — Vai me contar… o que o atemoriza? — Quando nos encontramos esta manhã, gritei com você porque Jean-

Pierre espantou meu cavalo. Que juízo fez de mim? — Achei que você se comportava tal qual era de se esperar — ela

respondeu, sorrindo. — Sabia quem eu era? — Sim, claro. Nenhum outro homem podia ter… aquele aspecto. — Que aspecto? Larisa não atinava com o que dizer. Parecia embaraçoso confessar que o

achava elegante e atraente. E, ao mesmo tempo, diabólico! Ela não respondeu nada e o conde disse:

— Imagino como me achou desagradável! E me reconheceu? — Sim, sem a menor dúvida! — E eu também a você. Larisa fitou-o, perplexa. — Como é possível? Nunca ouviu falar de mim! — Contudo, a reconheci, pois não ignorava que em algum lugar do

mundo havia alguém como você! — Não… entendo, monsieur. — Nem eu. E quase impossível pôr isso em palavras, mas sempre soube

que você existia e, quando a vi, concluí que era exatamente como eu julgava. Ao olhar para você, com os braços em volta de Jean-Pierre, tive certeza de ter encontrado a”pessoa que procuro. Você!

— Penso que o senhor… esteja imaginando… coisas. — E o que tenho dito a mim mesmo, mas não me convenci ainda. Talvez

tenhamos nos conhecido em uma vida anterior. Talvez você já tenha ocupado um lugar em meu coração. Não sei. Não entendo. Quem sabe pode me

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explicar! Larisa lembrou-se de sua conversa com Nicky sobre o assunto, mas

agora lhe parecia absurdo acreditar nessa teoria. — Não tenho explicação… alguma — ela replicou. — O que disseram a você sobre mim? — Encontrei uma mulher no trem, uma costureira chamada madame

Madeleine, que me falou… de suas festas. — E a preveniu contra mim, não foi? —… foi. — Posso adivinhar o que ela lhe disse. Mas agora, vendo-me aqui em

minha própria casa, o que acha de mim? — Tenho pena do senhor. Mas também acho que talvez seu pai…

possua boas razões para condenar… a vida que leva. — Papai tem toda a razão, mas ele mesmo me forçou a isso. Não

compreende que não tive outro remédio senão obedecê-lo, casando-me com a mulher errada?

— Não pode convencer seu pai a se esquecer do passado e começar tudo de novo? Essa briga não magoa só vocês dois, mas todos os que vivem em Valmont.

— Sei disso, e eles são minha gente, moram aqui há tempos. São tão meus como os que têm o sangue Valmont correndo pelas veias.

— Entendo. — Meu pai é muito retrógrado. Há poucas horas visitei os vinhedos de

nossa fazenda, sem o conhecimento dele. Pois bem; ainda se usam métodos de cultura antiquados. Não há máquinas de espécie alguma. Precisamos de mais empregados. Mas, de que adianta falar? O velho não me atende.

— Tenho impressão de que as coisas melhoraram um pouco esta tarde. A babá me disse que monsieur le comte deu ao senhor uma caixa de seu melhor vinho.

— É verdade. Eu lhe pedi uma caixa, não apenas para agradá-lo, mas também porque desejava beber o vinho produzido em minha propriedade, com uvas de meu vinhedo.

— E ele ficou contente? — Para surpresa minha, me deu uma caixa da colheita de 74, nosso

melhor ano. — É bom sinal, não é? Quem sabe agora ele compra o vinhedo que o

senhor quer.

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— Talvez. Preciso ir amanhã para Paris, mas voltarei no dia seguinte. Tenho ainda cinco dias para levantar o dinheiro, se meu pai recusar.

— É possível que ele não tenha o suficiente. — Será fácil fazer um empréstimo no banco. Mas agora, falemos sobre

você. — Acho… que devo… entrar. — Por que tanta pressa? Está com medo de mim? — Ainda não sei. Mas, por favor… não me assuste. — Não é minha intenção. Só quero lhe dizer como é incrivelmente linda

e diferente de todas as mulheres que já conheci. Sei que esse palavreado é banal e corriqueiro, mas é a pura verdade. Você é diferente, e o que se passa entre nós é diferente também!

— Como pode ter tanta certeza? Neste jardim, tudo parece irreal, porque…—… porque estamos juntos! — o conde terminou carinhosamente. — Já percebeu que lugar é este, Larisa?

Ele a chamou pelo nome de batismo. Foi a primeira vez. — O templo acima de nós — o conde prosseguiu — é dedicado a Vênus,

e as estátuas agrupadas em volta são todas de Vênus, em suas várias formas e diversas denominações. Bem atrás está Afrodite, minha favorita desde menino. Por isso trouxe você para cá, a fim de que pudéssemos conversar junto de Afrodite, a deusa grega do AMOR.

Ele se demorou na última palavra, fazendo um estremecimento percorrer o corpo de Larisa.

— Não quero escutar… mais nada — ela declarou. — E por que não? — Porque prometi a mamãe não dar ouvidos a elogios… vindos de

qualquer homem… francês. — Bom conselho! Mas não para o nosso caso, pois, como lhe disse, você

é diferente! Já foi beijada, Larisa? — Não… claro que não! — Então, eu serei o primeiro. E para lhe provar que o que está

acontecendo entre nós é diferente de qualquer outra experiência minha do passado, e sua também, querida Afrodite, não vou beijá-la esta noite!

Os olhos de Raoul estavam fixos nos lábios de Larisa. Uma sensação estranha invadiu-lhe o corpo. Algo tão excitante que a fez tremer e, ao mesmo tempo, tão intenso que quase doía.

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De súbito, o conde Raoul se levantou. — Venha — ordenou. — Vou levá-la de volta ao château. Larisa ergueu-

se automaticamente e ambos voltaram para casa sem dizer uma única palavra, como na ida.

Ela se imaginava abraçada pelo conde, controlando seus impulsos amorosos, por razões inexplicáveis.

Quando chegaram à ponte sobre o fosso, estava bem escuro já; apenas algumas estrelas começavam a aparecer num céu de breu.

O conde Raoul parou, olhando para Larisa. — Você é tudo com o que um homem pode sonhar, querida. Agora vou

dar um passeio pela floresta e pensar em você. Acho que também vai pensar em mim. É só o que lhe peço no momento, que pense em mim. Promete?

— Desconfio que vai ser difícil… fazer o contrário. — Larisa respondeu quase num sussurro.

— Quero apenas isso. Boa noite, minha linda deusa. Nós já nos encontramos, é o primeiro passo.

Raoul tomou a mão de Larisa e pousou os lábios quentes e ávidos na sua pele macia. Depois, quase de imediato, desapareceu por entre as árvores.

Larisa atravessou a ponte e entrou no château. Subiu para seu quarto com a mente tumultuada. Não entendia bem o que estava acontecendo.

Fora tudo tão inesperado! Como era possível que o conde Raoul, tão sério, pudesse ser o mesmo homem conhecido como monsieur le diable? Não fazia sentido! Deveria ou não acreditar nele?

Lembrou-se novamente dos conselhos da mãe e de Nicky, e das palavras de madame Madeleine: “Se se encontrar com o Raoul, vai ser um desastre”.

Quando chegou ao quarto, tentou analisar os acontecimentos. Seria aquilo amor? Ele a elogiara, mas ela não sentira vergonha ou

medo. Ao contrário, seu corpo vibrara a cada olhar do conde. Conseguira interpretar os pensamentos mais profundos e mais

apaixonados de Raoul. Mas, que sabia ela do amor? Como podia adivinhar o que um homem

como o conde Raoul diria a uma mulher que considerasse atraente? Talvez suas palavras fossem um tipo de declaração estudada, para fazê-

la se interessar por ele: uma técnica usada antes e comprovada-mente eficiente.

No entanto, o conde parecia ter falado a verdade. Não, não era apenas

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um flerte. Ele usara de sinceridade, uma sinceridade inconfundível. Havia até em sua voz uma nota de tristeza: mas Larisa não sabia qual o motivo.

Ela cobriu o rosto com as mãos: suas faces pegavam fogo. Desde o instante em que conhecera o conde Raoul, seu coração palpitava com mais força.

“Por que tudo isso?”, perguntava-se, e tinha medo de saber a resposta. Larisa despiu-se e foi deitar-se, mas ficou acordada por muito tempo,

pensando no conde Raoul, e certa de que ele também pensava nela. “Preciso ser sensata!”, dizia a si mesma. Mas sabia não haver nada de

sensatez naquilo que vibrava em seu íntimo e no caos existente em seu cérebro.

Uma ansiedade incontrolável a fez desejar que a manhã chegasse logo, para poder vê-lo mais uma vez.

Larisa levou Jean-Pierre ao passeio matutino antes da hora costumeira. Tentava convencer-se de que a razão disso era o fato de o sol da manhã ser melhor.

Mas, no fundo do coração, esperava encontrar-se com o conde Raoul antes de ele ir a Paris.

Quem viu no sopé da escada, porém, foi monsieur le comte. Ele sorriu para o neto, que levava o cachorrinho pela coleira.

— Max vai dar um passeio, grand-père — Jean-Pierre disse. — Estou vendo. É um cachorro bem-comportado, miss Stanton? — Muito, monsieur, e Jean-Pierre é louco por ele. — Tome cuidado para que não estrague nada aqui em casa — monsieur

le comte advertiu. — Nunca o deixamos solto, a não ser na sala de estudos, monsieur. O

velho conde conduziu o neto pela mão até a porta da casa e disse, com voz solene:

— Isto é Valmont, seu lar, Jean-Pierre. Estes jardins são seus, esta terra é sua, tudo pertence a você.

— Max quer correr, mademoiselle — Jean-Pierre declarou, parecendo não ter ouvido nada do que o avô dissera.

— Ele pode correr assim que chegarmos à floresta — Larisa respondeu depressa. — Ouça agora o que seu avô está falando.

— Ele é jovem demais para entender; algum dia compreenderá — monsieur le comte observou, e foi caminhando com passo firme, o corpo bem

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ereto. “Parece um soldado indo ao campo de batalha”, Larisa pensou. Jean-Pierre saiu correndo na direção oposta, e ela o seguiu. Foi difícil para Larisa concentrar-se no menino, contar-lhe histórias. Seus

pensamentos iam todos para o conde Raoul. Rememorou a conversa da véspera e, embora chocada com suas

próprias sensações, teve de confessar que desejara os beijos que não vieram. “Como posso ter idéias tão ousadas?” Todo o seu senso prático parecia haver sumido e ela só pensava na

expressão dos olhos e no tom da voz dele, que lhe provocavam estranhas e excitantes emoções.

Larisa passou o dia todo sonhadora. Finalmente, depois que Jean-Pierre terminou de jantar e Suzanne levou-o para a cama, ela foi para o próprio quarto. Alguém bateu à porta.

Antes mesmo que Larisa pudesse atender, a babá entrou. Ao fitar a velha governanta, ela concluiu que algo muito grave se passara.

— O que houve? O que aconteceu? A empregada fechou a porta e caiu em pranto. — O que a preocupa? O que a aborrece? — Larisa continuou indagando.

— Por favor, conte. Não aguento vê-la sofrendo assim. — Meu bebê. Meu pobre senhor — a empregada repetia, chorando

sempre. — Algum… acidente? Larisa sabia a quem a babá se referia ao dizer “meu bebê”, e sentiu como

se uma mão de gelo lhe comprimisse o coração. Não conseguia falar. — Não vou dizer nada — a empregada soluçava —, ninguém pode

descobrir… Mas oh! Meu senhor! Meu pobre senhor! — Fale! — Larisa ordenou, quase com rispidez. — Conte-me o que se

passou! Preciso saber! — Bernard se vangloriava… Ouvi quando falou… Mas ele desconhecia

que eu estava escutando… — O que foi que Bernard disse? — Não posso… repetir — a babá sussurrou. — Talvez nem seja verdade.

Meu Raoul! Meu senhor! Eu o amo tanto! — Fale de uma vez! — O vinho! — a empregada obedeceu, soluçando. — Estava…

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envenenado! — Monsieur le comte quer matá-lo? Larisa mal podia acreditar. Como era possível que um pai planejasse um

ato tão vil? — Ele sempre o detestou! Mas nunca imaginei… que chegasse ao ponto

de… matar seu próprio filho! Larisa não podia crer também! Em seguida, lembrou-se do tom fanático

da voz do velho conde ao declarar: “Jean-Pierre vai tomar meu lugar. Valmont será dele!”

Só podia estar louco! Mas essa conclusão a que chegou não iria salvar a vida do conde Raoul!

Dirigindo-se à mulher que soluçava, ela propôs: — Ouça! Preciso socorrer o conde Raoul! E você vai me ajudar! — Que posso fazer, m'mselle? — Vou a Paris — Larisa respondeu —, mas ninguém deve saber. Há na

estrebaria uma pessoa de confiança? — Sim, é Léon. Pode confiar nele. Mas não lhe diga para onde vai,

apenas informe que pretende dar um passeio. — Muito bem — Larisa concordou. — E você fale a Suzanne e às

empregadas encarregadas de arrumar meu quarto que estou com muita dor de cabeça e não quero ser incomodada.

Larisa foi ao guarda-roupa e pegou um vestido que pertencera a sua mãe. Tratava-se de um traje de montaria bastante elegante e adequado para o verão. Preto, com alguns enfeites brancos no decote, ajustava-se ao corpo dela como uma luva.

O chapéu era simples; mais muito atraente. Larisa penteou o cabelo para trás, formando um coque na nuca, e pôs o chapéu a fim de que não ficasse empoeirado. Pretendia viajar em grande velocidade.

Numa gaveta encontrou as luvas de montaria e um chicote de cabo de prata, que seu pai lhe dera num aniversário.

— Agora, tenho que sair do château sem ser vista — ela disse à velha pajem.

— Vou mostrar o caminho para m’mselle. As duas atravessaram vários corredores e foram ter a uma ala do castelo

pouco usada. Enfim, depois de andarem o que pareceu a Larisa uma longa distância, chegaram a uma porta que dava para o pátio bem próximo dos

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estábulos. — Procure Léon — a babá sussurrou — e vá com Deus. — Reze para que eu encontre monsieur Raoul a tempo. Dito isso, Larisa correu para as estrebarias. Um quarto de hora mais

tarde, estava a caminho de Paris. Tudo fora surpreendentemente fácil. Léon selara um cavalo para ela,

bastante ligeiro, mas também fácil de ser conduzido. Larisa montava muito bem e os cavalos de monsieur le comte eram bem

superiores aos do estábulo de seu pai. Se ela não estivesse tão nervosa por não saber o que a esperava em Paris,

teria adorado cavalgar aquele animal maravilhoso que respondia ao mais leve toque da mão. Mas Larisa só pensava em chegar a Paris o mais rápido possível, e encontrar o conde.

“E se for tarde demais?” Era inadmissível encontrar morto um homem tão cheio de vida! Recordou-se da voz de Raoul quando conversaram na noite anterior e

do calor dos lábios dele de encontro a seus dedos. Havia só alegria, despreocupação, naquele rosto expressivo.

Ela o conhecia há pouquíssimo tempo, mas era como se ele tivesse feito parte de sua existência por anos a fio.

O conde tinha razão: estavam destinados um ao outro. E ela o salvaria pela força do mesmo destino.

Esporeou o cavalo, ansiosa por vê-lo depressa. Sabia onde ele morava por informação de madame Madeleine.

— Não é necessário dizer que Raoul mora na avenida Champs-Élysées, o lugar mais elegante de Paris — ela declarara.

— No número vinte e quatro, ao lado da fantástica mansão construída para La Marquise de Pravda.

Larisa nunca ouvira falar antes na mais extravagante e depravada cortesã do Segundo Império, que havia escandalizado Paris anteriormente à ocupação alemã em 1871.

Assim que viu as luzes de Paris, a distância, Larisa pensou que não teria mais problemas em encontrar a avenida. Mas havia mais ruas nos subúrbios da cidade do que ela supusera, e teve que pedir auxílio aos transeuntes mais de uma dúzia de vezes.

Finalmente a avenida apareceu, suntuosa, feericamente iluminada,

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estendendo-se diante de seus olhos até a praça da Concórdia. Depois disso, não foi difícil achar o número vinte e quatro. Quando

apeou à porta da mansão, um rapazinho que passava ofereceu-se para segurar o cavalo.

Larisa aceitou e tocou a sineta de ferro colocada ao lado do impressionante e majestoso portal.

Um empregado, usando a libré dos Valmont, apareceu, e ela pediu: — Posso falar com o conde Raoul? — Monsieur não está em casa, madame. — Não está em casa? — Larisa repetiu, desanimada. Admitira a

possibilidade dessa resposta; porém, mesmo assim, foi um choque. Ela sabia que o conde tinha um compromisso para aquela noite, mas julgou que fosse em sua própria casa.

— Onde está ele? — Não tenho certeza de onde monsieur se encontra, madame — o lacaio

replicou cortesmente. — Penso que foi ao Folies-Bergère e mais tarde talvez vá ao Maxim's. — O valete do conde está em casa? — Não, madame, Henri saiu. Larisa ficou em pé no hall, indecisa. O que deveria fazer? Esperar pelo

conde Raoul? Mas, e se ele estivesse numa festa? Podia até beber o vinho! Resolveu

tentar descobrir algo através do lacaio. — Quando o conde Raoul voltou do campo hoje, trouxe consigo uma

caixa de vinho. Sabe o que ele fez com ela? — Não, madame, eu não estava a serviço quando monsieur chegou. Mas

eu o ouvi falar sobre um vinho especial que iria servir num jantar hoje à noite.

O coração de Larisa palpitou mais forte. — Preciso encontrá-lo! — ela exclamou. — Acha que ele ainda está no Folies-Bergère? Larisa não tinha muita noção da hora, mas calculava que fossem quase

onze. — Oh, sim, madame, o Folies-Bergère só fecha depois da meia-noite. — Então, é para lá que eu vou. Por favor, leve meu cavalo à estrebaria e

me arranje uma voiture.

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O empregado encarou-a surpreso. Contudo, tantas coisas estranhas vinham acontecendo desde que ele entrara a serviço do conde que resolveu fazer o que lhe foi solicitado.

Quando Larisa entrou na carruagem, ela pediu ao lacaio: — Diga ao cocheiro que desejo ir ao Folies-Bergère. “Se o conde Raoul já tiver saído, irei ao restaurante onde ele pretende

oferecer o jantar”, ela pensou. No momento, percorriam o Champs-Élysées, mas Larisa não estava mais

muito interessada em apreciar a decantada avenida, como quando desembarcara na Gare du Nord.

Arrumou um pouco os cabelos e se perguntou o que o conde Raoul diria ao vê-la, tão inesperadamente, vestida em traje de montaria, num lugar onde todo mundo deveria estar com roupa de rigor.

Mas nada disso era importante; a única coisa necessária seria achá-lo antes que bebesse o vinho envenenado.

Parecia-lhe incrível que um pai tentasse assassinar seu próprio filho. Não obstante, não era também provável que a babá tivesse entendido mal.

Bernard, um homem antipático que Larisa encontrara várias vezes pelos corredores da casa, mal respondia aos seus cumprimentos. Tinha aparência não apenas grosseira mas dissimulada. Fazia-a lembrar um empregado medieval, sempre obedecendo às ordens do patrão, quaisquer que fossem elas.

A carruagem deixou os largos boulevards e enveredou por ruelas escuras, de aspecto sórdido.

Larisa sentiu-se um pouco apreensiva até que viu finalmente, do lado esquerdo da rua, as luzes do Folies-Bergère. A voiture parou.

Havia muita gente na calçada, em frente da entrada iluminada a eletricidade. Enormes posters de mulheres dançando, com as pernas para o alto, de um modo que Larisa achou indecente, decoravam as paredes.

De súbito, ela sentiu-se embaraçada. Como entrar num lugar daqueles? E sozinha?

Paciência! Era imprescindível prevenir o conde Raoul sobre o vinho; pois, quando ele saísse do Folies-Bergère, seria muito mais difícil encontrá-lo.

Larisa desceu da carruagem, pagou o cocheiro e forçou sua passagem em meio à multidão.

Todos a olhavam com curiosidade. Um homem dirigiu-lhe um gracejo

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que provocou gargalhadas de todos, mas ela não entendeu o significado. Na recepção havia dois empregados. Larisa disse a um deles: — Pardon, monsieur, mas preciso falar com o conde Raoul de Valmont, e

fui informada de que ele estava aqui. Tenho um recado de grande urgência para lhe dar.

— Um recado, é, madame. O homem fitou-a com insolência, mas Larisa insistiu: — É questão de vida ou morte! Falou com tanta convicção que deixou o recepcionista impressionado. — Encaminhe madame ao conde Raoul de Valmont — ele ordenou ao

companheiro. — Monsieur está no camarote habitual. — Venha por aqui, madame —— disse o empregado, e Larisa o seguiu

através do famoso saguão do Folies-Bergère. Enorme, com um longo bar situado num dos lados, havia lá uma

profusão de mesinhas, em volta das quais sentavam-se as mais elegantes mulheres que ela jamais vira.

Usavam avantajados chapéus enfeitados com plumas coloridas e, nos ombros, boás também de plumas. Jóias fabulosas brilhavam nos decotes exagerados dos vestidos.

Os homens estavam igualmente em traje de gala. Larisa notou que muitas mulheres passeavam sozinhas. Pintadas com

exagero, fitavam os homens de maneira ousada, com olhos convidativos. Na extremidade do saguão ficava o teatro, e uma representação tinha

lugar no palco naquele instante. A música era alegre e alta, porém não mais alta que as vozes animadas

das pessoas. Tal como nos posters da entrada, as artistas do palco dançavam

levantando as pernas para o ar, exibindo suas anáguas de renda. Mas não houve muito tempo para Larisa apreciar tudo. Precisava

acompanhar o lacaio que abria passagem entre os homens debruçados nas grades para ver o show.

Larisa e o empregado subiram alguns degraus e andaram por detrás do que pareceu a ela ser uma série de compartimentos reservados, construídos num plano ligeiramente mais alto que o da platéia.

O lacaio parou no camarote mais próximo do palco onde, com imenso

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alívio, Larisa viu o homem que procurava! Raoul estava vivo! Ele estava lá! Sentado bem na frente, observava o

show. Ao lado dele havia duas mulheres morenas e lindíssimas. Uma delas usava um vestido vermelho e um chapéu enfeitado com

plumas de avestruz, vermelhas também. A outra estava de amarelo, com duas penas de aves-do-paraíso no chapéu que chegavam até seus ombros nus.

— Espere um momento, madame — disse o lacaio a Larisa, dirigindo-se depois ao conde.

Inclinou-se um pouco e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O conde Raoul ergueu a cabeça e Larisa acreditou ter visto uma

expressão de desagrado em sua face, como se se ressentisse por ser incomodado. Mas ele se levantou imediatamente e pediu licença às pessoas que o cercavam.

A mulher de vermelho pôs a mão no braço dele, como para retê-lo, e Larisa pôde ver-lhe bem o rosto; ela era linda, com seus lábios muito pintados e os cílios escurecidos artificialmente.

O conde disse algo que a fez sorrir e se retirou. Foi só quando saiu do camarote que viu Larisa. Encarou-a com surpresa por segundos e depois indagou, conduzindo-a para fora do local:

— O que está fazendo aqui? O que houve? Como chegou até Paris? — Eu vim… a cavalo. — Sozinha? — Precisava falar com o senhor! Tenho que lhe revelar… uma coisa…

muito grave. — Parece impossível que você esteja mesmo aqui! — ele continuou. — Diga-me agora por que veio a Paris! — O vinho que o senhor trouxe de Valmont esta manhã… está…

envenenado — declarou Larisa, gaguejando. Por instantes o conde a fitou como se acreditasse que ela estava fora de

si. Depois, disse: — E você viajou sozinha de Valmont a Paris para me dizer isso? — Receei que o senhor bebesse o vinho e… morresse. — Quer dizer que veio para me salvar? — Foi! — disse ela, encarando-o. Nesse instante teve a impressão de que toda aquela multidão, o barulho,

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a música tinham desaparecido como por encanto: eles pareciam estar sós, duas pessoas unidas, caminhando juntas até a eternidade!

— Espere um pouco aqui — pediu o conde e voltou ao camarote. Conversou por segundos com um cavalheiro de seu grupo e voltou para junto de Larisa. Pegando-a pelo braço, falou com suavidade:

— Vai me contar tudo, e depois a levarei para casa.

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CAPÍTULO VI Larisa e o conde Raoul atravessaram o saguão rapidamente, por entre as

mulheres de chapéus fantásticos e os homens encostados no bar com seus drinques na mão. Eles flertavam com a loura e atraente garçonete que os servia, e que fora imortalizada alguns anos antes numa tela de Manet.

Na porta, o conde mandou que um lacaio fosse buscar sua carruagem. Minutos depois, o empregado anunciou:

— A carruagem o espera, monsieur. Os dois entraram num elegante carro fechado, guiado por um co-cheiro

e um lacaio, ambos usando a libré da casa de Valmont. Só naquele momento Larisa caiu em si, envergonhando-se do que fizera. Ao saber, no château, que o conde morreria se tomasse o vinho

envenenado, achara natural e imperativo empreender a viagem a Paris para salvar-lhe a vida. Mas agora, estando ele fora de perigo, ficava de um momento para outro consciente de sua audácia. Além do mais, sentia-se embaraçada por havê-lo privado da companhia dos amigos.

Estaria sendo um transtorno? Pensava na maneira de convencê-lo a não se ocupar dela, quando o conde disse:

— Você já jantou, Larisa? — Não. Começava a me preparar para jantar, quando a babá entrou em

meu quarto a fim de me informar sobre o vinho. — Foi o que imaginei. Portanto, antes de levá-la de volta, vamos comer

alguma coisa. — Não precisa se incomodar comigo. Meu cavalo está nos seus

estábulos no Champs-Élysées, e posso facilmente achar… O caminho de casa. — Acha mesmo que a deixarei regressar sozinha? Já fez muito vindo até

aqui desacompanhada. Mas, afinal, como encontrou minha casa? — Foi mais difícil do que pensei. Paris é grande demais, e há tantas

ruazinhas nos subúrbios que me perdi uma meia dúzia de vezes. — Preciso achar um jeito de agradecer a você por ter sido tão corajosa.

Por agora, vamos procurar um restaurante. Deve estar exausta! Havia carinho na voz dele, o que a fez considerar-se protegida. Ela havia

achado que seria muito fácil deitar a cabeça no ombro do conde e contar-lhe

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como se apavorara ante a possibilidade de não chegar a tempo. Agora, passada a tensão, sentia-se não apenas cansada mas vacilante e

indefesa. Depois de curto trajeto, eles chegaram a uma praça cheia de árvores

floridas e a carruagem parou à porta de um pequeno restaurante. Havia um toldo listrado acima da porta de entrada e a luz das janelas clareava a calçada.

— Não é… muito chique, não é mesmo? — Larisa perguntou, um pouco nervosa.

— Não quero que o senhor tenha vergonha de mim por eu não estar vestida adequadamente.

— Jamais teria vergonha de você, Larisa, aonde quer que fôssemos. Mas este lugar é muito quieto e achei interessante virmos aqui para que possa me contar tudo mais à vontade.

De fato, o restaurante era bem pequeno e constava de duas salas. Os clientes sentavam-se em sofás encostados nas paredes, e havia espaço suficiente apenas para que os garçons se movimentassem entre as mesas.

Viam-se flores por toda parte e, nas paredes, telas de pintores impressionistas, muito criticados na época e sobre os quais as opiniões eram as mais controvertidas.

Uma senhora de idade apressou-se em recebê-los. — Que honra, monsieur! O senhor não vem nos visitar há muito tempo. — É verdade, madame, e hoje quero o mais delicioso jantar para uma

pessoa faminta! — Terei muito prazer em servi-los, monsieur! Ela os conduziu a uma mesa situada num canto da sala, separada das

outras por vasos de flores. — Por que não tira o chapéu, a fim de ficar mais à vontade? — o conde

aconselhou Larisa. — Posso? — E por que não? — Venha por aqui, m'mselle — a mulher disse, e levou Larisa ao toalete. Lá, ela tirou o chapéu e se olhou no espelho. Lamentou não estar usando

o vestido branco de noite, a confecção na qual ela e a mãe puseram tanto esmero. Infelizmente, ia agora jantar com o conde trajando aquela severa roupa de montaria.

“Quero que ele me ache bonita”, Larisa confessou a si mesma.

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Imediatamente lembrou-se das mulheres do Folies-Bergère e achou que a comparação entre elas era de provocar risos.

Como o conde Raoul devia estar amolado por ter sido forçado a abandonar aquela companhia alegre e elegante! E por quê? Só para matar a fome de uma simples governanta.

Todos esses pensamentos não saíam da cabeça de Larisa. Contudo, ao voltar para a mesa, ela não tinha idéia de como estava cativante com aquela roupa preta, que punha em evidência sua pele alva e os cabelos dourados!

Seus olhos azuis tinham uma expressão suplicante, parecendo pedir desculpas pelo inconveniente causado.

Quando o conde a encarou, Larisa sentiu um frenesi percorrer-lhe o corpo, tal qual na noite anterior, e o nó da garganta voltou.

— Vou comer bem depressa, assim o senhor poderá voltar… à companhia de seus amigos.

— Não tenho intenção de me encontrar com eles outra vez esta noite. Quero levar você a Valmont, e passarei a noite lá.

— Mas, seu pai… — ela começou a falar, hesitante. — Desejo que você me conte exatamente o que aconteceu, mas antes

disso coma alguma coisa e beba um pouco de vinho. Um garçom trouxe uma garrafa de champanhe à mesa. — É seu champanhe preferido, monsieur, um Dom Pérignon — ele

informou —, e madame mandou que lhe servisse uma garrafa da colheita de 74. Temos muito poucas agora.

— O ano de 74 foi ótimo para o vinho, especialmente para o champanhe — o conde Raoul explicou a Larisa.

O garçom serviu um pouco do líquido dourado no copo de Raoul, que exclamou assim que bebeu:

— Excelente! E na temperatura exata! Larisa provou e, com um sorriso nos lábios, também disse: — É delicioso! — O rei dos champanhes! — o conde Raoul explicou. Beba um pouco

mais, Larisa. Ela obedeceu e logo se descontraiu. — Você precisa saber que foi uma coisa inédita na vida social de Paris

uma “senhora” ir ao Folies-Bergère sozinha! — o conde falou. — Mas o que poderia fazer? Em sua casa o lacaio me informou ser esse o

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lugar mais garantido para encontrá-lo. Não quis me demorar pois temia… que ficasse tarde demais.

— Você achou que o vinho seria servido na festa que eu pretendia dar? — Achei. Seu lacaio ouviu o senhor discutir sobre o menu da festa e o

vinho. — Não daria o melhor vinho de Valmont para minhas visitas desta

noite. Pela expressão do rosto, Larisa demonstrou o desaponto de quem

concluíra que sua viagem talvez tivesse sido desnecessária. Mas o conde logo acrescentou:

— Contudo, era muito provável que bebesse um copo antes de ir me deitar. Para dizer a verdade, quase abri uma garrafa enquanto me preparava para sair.

Larisa deu um suspiro de alívio e ele sorriu, terminando: — Desconfio que desisti de beber justamente na hora em que você soube

que minha vida estava em perigo. Seus pensamentos e suas preces me salvaram!

— Espero que tenha sido isso, porque eu e sua velha governanta rezamos muito!

— Sou um homem feliz por ter vocês cuidando de mim. Depois, para desviar a mente de Larisa daqueles problemas, ele mudou de assunto enquanto jantavam.

— Você sabe por que aquela casa de diversões se chama Folies-Bergère? — Não. Por quê? — E por causa da rua Bergère, que por sua vez deve esse nome a um

tintureiro muito conhecido, que tinha uma loja na mesma rua. — Que interessante! — Larisa sorriu. — A palavra folie foi usada durante muitos anos para descrever um certo

gramado cheio de flores, local preferido dos casais de namorados! Mais tarde, a palavra passou a ser empregada para designar um lugar público onde os parisienses do século XVIII dançavam, bebiam e apreciavam shows ao ar livre.

— O Folies-Bergère é muito conhecido na Inglaterra também — comentou Larisa.

— Em todo o mundo. Foi a primeira casa de diversões aberta em Paris. Entre uma infinidade de atrações, havia uma mulher com duas cabeças e um mágico que engolia serpentes vivas, abria o estômago e tirava pérolas de lá

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de dentro, com as quais presenteava as mulheres da audiência! — Mas muitas pessoas desta noite não estavam assistindo ao show, e

havia grande número de mulheres desacompanhadas. — No entanto, Larisa, o Folies-Bergère não é lugar para uma “senhora”

ir sozinha, e nem mesmo acompanhada! — Mas o senhor levou suas amigas lá! — Larisa contestou, os olhos

arregalados de espanto. — Minhas convidadas não são mulheres como você! Tenho amigas,

Larisa, que eu não ousaria levar a Valmont, e nem tampouco seriam recebidas por tia Emilie.

— Madame Madeleine me falou qualquer coisa sobre… demi-monde. É isso que elas… são?

— Boa palavra para designá-las! — o conde Raoul concordou, sorrindo. — Elas são lindas e atraentes! Até me fazem sentir… insignificante… e

quase desprezível! — Acha? Quer que lhe diga que aspecto tinha quando voltou à mesa,

depois de tirar o chapéu? Parecia a aurora varrendo a escuridão da noite, naquele exato momento em que o sol começa a aparecer com seus raios dourados e as estrelas vão sumindo, uma a uma.

— Obrigada… — Larisa murmurou — mas o senhor me deixa sem jeito. — E eu adoro você quando fica sem jeito. Tinha mesmo me esquecido de

que uma mulher pode ainda corar ou ter olhos inocentes como os de uma criança. Oh, minha cara, gostaria que não tivesse vindo a Paris esta noite!

— Mas… por quê? — Larisa indagou, consternada. — Por que não queria que você presenciasse o feio, o sujo e o sórdido.

Desejo que permaneça como é, uma Afrodite acordando para a beleza do amor e ignorante das emoções vis que empanam e deformam algo divino!

Larisa o encarava, confusa. Não entendia o sentido do que ele estava falando, mas ao mesmo tempo sentia-se enlevada com aqueles comentários.

Como poderia imaginar que o conde Raoul — monsieur le diable! — tivesse essas idéias sobre o amor?

Ela sempre pensara que o amor, o verdadeiro amor, era parte de Deus, mas receava revelar isso a ele. Não obstante, tinha a impressão de que Raoul a entenderia.

— Agora fale-me de sua casa e de sua família. Larisa começou por descrever o interesse do pai pela Grécia.

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— Por isso sorri quando o senhor disse que eu parecia ter vindo do Olimpo. Minhas irmãs e eu nunca pudemos escapar dessa comparação com imagens gregas.

— Você tem irmãs? — Três. — Lindas como você? — Papai nos chamava de suas quatro Vênus. — Gostaria de vê-las. — Talvez se viesse a conhecer Athene e Delos, não me admirasse mais

tanto! O conde Raoul fitou-a longamente e em seguida replicou: — Olhe bem para mim, Larisa. Acha, na verdade, que o que sinto por

você é provocado apenas por sua aparência maravilhosa? Ambos sabemos que o meu sentimento é alguma coisa muito mais profunda. Adoro seu rosto, os olhos azuis, o nariz perfeito, a curva de seus lábios. Mas meu coração está ligado ao seu, minha alma é sua. Sinto o magnetismo de seu espírito, o caráter, a personalidade. Tudo isso faz parte de meu amor por você.

Larisa tremia de emoção. Não eram só as palavras que a emocionavam, mas aquilo que não fora dito, e que existia entre eles, como um ímã que os conduzia mais para perto um do outro, a cada minuto que passava.

Então ela lhe contou sobre Nicky, sobre o esforço que toda a família estava fazendo para mantê-lo em Oxford.

Finalmente, quando havia apenas duas xícaras de café diante deles e um cálice de conhaque para o conde, ele a interrompeu para perguntar:

— Agora, conte-me exatamente o que houve em Valmont. Larisa explicou tudo em detalhes, desde o momento em que a velha governanta entrou no quarto em pranto.

— A babá garantiu ter ouvido isso da boca de Bernard? — ele indagou. — Sim, sem nenhuma hesitação. — E você crê que meu pai faria tal coisa? — No primeiro dia em que cheguei no château, monsieur le comte falou-

me sobre Valmont, e a continuação da família através de Jean-Pierre. Parecia ignorar a existência de seu próprio filho. Mas eu sabia que a herança devia passar por suas mãos antes de ir para Jean-Pierre. Mais tarde, perguntei a madame Savigny se eu estava certa, e ela me respondeu afirmativamente.

— Então você acha que meu pai já tentava me eliminar dos planos dele

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há muito tempo? — Ainda que seja difícil de acreditar, me parece que sim. O único

interesse de monsieur le comte reside em Jean-Pierre. — Sei disso — confirmou o conde —, mas não posso admitir que ele

chegue ao ponto de praticar um assassinato! — E eu temo que, por ter falhado desta vez… ele tente uma segunda! — É provável. — Então, não volte a Valmont — suplicou Larisa. — Fique em Paris, por

favor, é mais seguro aqui. — Isso não é uma solução. Tenho que encarar os fatos. Existe um

problema a ser resolvido entre mim e meu pai. — Mas pode ser arriscado para o senhor voltar a Valmont. — Já enfrentei um perigo e me saí dele, com sua ajuda. Acha que posso

me esquecer, por um segundo sequer, que você veio até Paris a cavalo para me proteger? Vou levá-la de volta, quanto a isso não há a menor dúvida. Quem sabe que você saiu do château além da babá?

— Só Léon. Eu lhe disse que ia dar um passeio a cavalo. — Ele demonstrou surpresa? — Não. Expliquei que precisava de um pouco de exercício e não tinha

tido chance de pedir a monsieur le comte para montar um dos cavalos dele. Posso estar enganada, mas acho que Léon não vai me trair.

— Esperemos que não. Não quero ver você envolvida nisso tudo. Se meu pai suspeitar que veio me prevenir, será despedida na certa.

Larisa assustou-se. O conde falava a verdade, e seria doloroso ter de voltar à Inglaterra sem saber o que iria acontecer com ele, sem saber o fim do drama do qual, ainda que não intencionalmente, ela fazia parte.

O conde Raoul pagou a conta e já tinha se levantado quando, no outro extremo do restaurante, apareceu uma mulher lindíssima, de olhos brilhantes e, como as demais do Folies-Bergère, com os lábios rubros e os cílios pintados.

Sobre o cabelo raivo havia um pequeno chapéu de plumas. O vestido era bem decotado e um colar de esmeraldas, valendo com certeza uma fortuna, adornava-lhe o pescoço.

Ela já estava de saída quando viu o conde. Deu um grito de alegria e estendeu-lhe ambas as mãos.

— Raoul! Que delícia encontrar você aqui!

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— O prazer é todo meu! — o conde replicou, levando a mão dela aos lábios.

— Não o vejo há semanas, talvez meses! — Tem havido uma terrível omissão de minha parte, que devo corrigir

num futuro próximo, Odette. — Por favor, venha me visitar! Quero tanto estar com você! Antes que o

conde pudesse responder, um homem de meia-idade, o amigo que acompanhava Odette, aproximou-se deles.

— Estou esperando, Odette — ele disse. — Vou já — respondeu ela, um pouco impaciente, e acrescentou: —

Vossa Alteza Serena conhece o conde Raoul de Valmont? — Já fomos apresentados — o homem respondeu friamente. — Acho que sim, Vossa Alteza Serena — confirmou o conde. — Não se esqueça, Raoul, aguardo sua visita — Odette insistiu com

doçura. Depois, pegou no braço do amigo e saiu do restaurante. Larisa não se moveu de seu lugar. Apenas observava aquele encontro

casual, encantada com a beleza, o charme e, acima de tudo, a elegância daquela mulher. Notara a expressão dos olhos dela ao conversar com o conde.

“Ela o ama”, Larisa disse a si mesma, e essa conclusão causou-lhe uma profunda dor.

De repente foi como se o restaurante ficasse muito escuro, e toda a excitação que sentira durante o jantar desapareceu, deixando nela um vácuo e imensa agonia.

“Como pude pensar, por um instante sequer, que ele tivesse interesse em mim, quando pode estar com uma pessoa tão bela e sedutora? Devo parecer insípida e enfadonha, apesar de tudo o que ele me disse.”

Sabia que seus lábios eram pálidos demais comparados aos de Odette e aos das outras mulheres do Folies-Bergère.

Não admirava ele ter querido vir a um restaurante discreto, estando com uma insignificante governanta vestida em roupa de montaria preta, em vez de na companhia de mulheres que usavam ousados modelos de Paris.

O conde Raoul voltou à mesa para apanhar Larisa. Seu primeiro jantar sozinha com um homem chegava ao fim!

Foram momentos de imensa alegria, em que falara, rira, ouvira e vibrara

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sob a influência de estranhas emoções. Agora só lhe restava a longa viagem de volta a Valmont, com um

sentimento de culpa por afastar o conde Raoul de seus divertimentos e das mulheres que o amavam.

— Gostou do jantar, monsieur? Era a madame que vinha se despedir deles; o chef, usando seu longo gorro

branco, também se acercou do conde para cumprimentá-lo. — Ficou satisfeito, monsieur? — indagou. — Como sempre, tudo foi ótimo, e o champanhe, fantástico! — E m'mselle, gostou? — o chef inquiriu. — Foi meu melhor jantar! — Larisa respondeu timidamente. A dona do

restaurante exclamou, satisfeita: — E o que gosto de ouvir! Por favor, monsieur, traga m'mselle aqui mais

vezes. — Prometo — replicou o conde. Larisa teve vontade de acrescentar, com tristeza, que isso era algo

impossível de acontecer novamente. Mas apenas sorriu para madame e para o chef, e acompanhou o conde.

Lá fora, em vez da carruagem que os trouxera, um faetonte esperava por eles. Assim que viu o patrão, o cavalariço saltou da boléia e o conde Raoul tomou o seu lugar. Larisa sentou-se ao lado dele.

— Leve minhas roupas para Valmont — falou o conde, dirigindo-se ao empregado.

— Pois não, monsieur. — E meu cavalo? — Larisa perguntou. — Não vamos passar por sua

casa? — Não, é impossível. E seu cavalo já foi para Valmont. Estará esperando

por você nas proximidades do castelo. — Por que não podemos parar em sua casa? — perguntou Larisa,

intrigada. — A resposta é simples. Trata-se da residência de um homem solteiro. — Quer dizer que mulher nenhuma vai a sua casa? O conde sorriu. — Não disse bem isso, mas com certeza mulher nenhuma do beau-

monde. Larisa não respondeu nada e ficou contente por se ver incluída no beau-

monde. Mas lhe parecia, contudo, que o demi-monde gozava de privilégios

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especiais que lhe eram negados totalmente. Pensou nas mulheres que encontrara naquela noite, e desejou, então,

pertencer ao demi-monde. Devia ser difícil para o conde resistir aos encantos e à astúcia daquelas

criaturas. De outro lado, era fácil entediar-se com as que madame Savigny classificava de mulheres do ancien regime, que não iam ao Folies-Bergère ou aos alegres clubes noturnos de Paris, e só sentavam-se em seus salões, criticando todo o mundo.

Não surpreendia a Larisa que alguém como o conde Raoul achasse as luzes brilhantes de Paris mais tentadoras que a vida da casa onde nascera.

Valmont podia ser lindo, mas ele o havia descrito como um “cemitério”. O conde era jovem, alegre, despreocupado, atraente e aventureiro! Não conseguiria passar a vida pensando apenas na economia de uma

casa, contando moeda por moeda o tempo inteiro, falando apenas sobre as famílias de sangue azul como a sua própria, e que achavam o resto do mundo vulgar e de nouveaux riches!

— Gostaria de ser homem! — Larisa falou em voz alta. — Eu, como homem, fico muito contente de que seja mulher! — Ele

sorriu. — Mas por que esse desejo assim de repente? — Refletia em sua vida alegre aqui, mesmo considerando-se que

algumas pessoas a achem repreensível. Madame Savigny, por exemplo, me explicou que os amigos dela desaprovam qualquer inovação, até a luz elétrica!

— E você também acha que meu procedimento deixa muito a desejar? Havia ironia na voz dele, e Larisa respondeu: — Naturalmente não estou a par de tudo o que as pessoas censuram no

senhor, mas todos os homens desejam se divertir, e entendo que não seja possível resistir a mulheres lindas e sedutoras como as que vi esta noite!

— Você tem ciúme delas? — Não é tanto ciúme, é mais inveja! Suponho que todas as mulheres

queiram ser bonitas e bem-vestidas, usar jóias caras e ter a seus pés homens como o senhor, admirando-as.

— Eu por acaso disse que as admiro? — Mas é evidente, nem precisa falar. O senhor mesmo convidou as duas

que estavam em seu camarote esta noite no Folies-Bergère, penso, e a linda

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mulher do restaurante parece ansiosa por revê-lo. O conde Raoul não deu nenhuma resposta. O faetonte seguia pelas ruas estreitas dos subúrbios de Paris. Em poucos

minutos estariam fora da cidade, em pleno campo. Afinal, por que se preocupar com outras coisas, Larisa pensou, em vez

de se concentrar na alegria de ficar ao lado do conde, de observá-lo dirigindo os cavalos com tanta habilidade? Ele era, de fato, o homem mais atraente de Paris!

E naquele momento, ao menos, não havia mulheres bonitas para tentá-lo ou distrair-lhe a atenção.

Estava sozinha com o conde, e era essa uma viagem da qual se recordaria para sempre.

“Para que tentar descobrir coisas?”, ela se questionava. “Não há explicações ou respostas a tudo o que me intriga. Nunca entenderei o tipo de vida que ele leva e só posso ser grata por toda a gentileza que me vem prodigalizando durante o tempo que passamos juntos.”

Como poderia sonhar, dois dias atrás, que teria a seu lado um homem como o conde Raoul, falando sobre amor e jantando com ela?

Mesmo que não o visse nunca mais, sabia que os instantes vividos juntos, perto da estátua de Afrodite e no restaurante, nunca seriam esquecidos. Pertenciam a ela por toda a vida.

“Ninguém pode roubá-los de mim, aconteça o que acontecer.” Teria algo de que se lembrar, algo que, de maneira estranha e

inexplicável, fazia agora parte dela mesma. Aproximava-se de Valmont. Larisa fazia esforço para não pensar na

hora da separação, no momento de entrar sozinha em casa, e no que se passaria entre pai e filho.

Procurava se convencer de que o problema de Valmont não era seu. Mas sentia-se incluída nos terríveis eventos que aconteciam no château, não se considerando mais uma estranha a tudo aquilo.

A floresta que circundava a propriedade Valmont já estava à vista. Alguns minutos após, eles atingiram o suntuoso portão de ferro encimado pelo brasão da família e entraram pela longa avenida ladeada de árvores frondosas.

Com grande surpresa, Larisa viu que o conde dirigia os cavalos para o lado da pista, estacionando em cima do acostamento de grama.

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— Por que paramos? Seu cavalariço vai trazer meu cavalo aqui? — Não, eu lhe disse para nos esperar no fim da avenida. De lá; você

pode seguir para as estrebarias e explicar que se perdeu, por isso chegou tarde.

Assim falando, ele prendeu as rédeas na carruagem, virou-se para Larisa e abraçou-a.

— Antes de deixá-la, quero agradecer por ter me salvado a vida — declarou carinhosamente.

A lua, que estivera escondida por detrás das nuvens desde que eles saíram de Paris, emergiu de repente no céu, e sua claridade, infiltrando-se por entre a escuridão das árvores, refletiu no rosto de Larisa quando ela olhou para o conde.

Achou que deveria resistir um pouco e impedi-lo de se aproximar tanto dela. Mas lhe pareceu inevitável que isso acontecesse; era alguma coisa que até mesmo esperara.

— Você é tão linda, minha pequena Afrodite! — ela ouviu o conde Raoul dizer. — Quando está presente, as outras mulheres parecem vulgares e sem atração alguma.

Ele percebeu que Larisa tremia e, muito gentilmente, encostou os lábios nos dela.

Larisa sentiu uma onda de calor invadir-lhe o corpo, e experimentou um êxtase indescritível.

Foi algo que jamais imaginara existir, um encantamento que parecia vir do luar. Havia uma chama se consumindo dentro dela.

O mundo ao redor desapareceu, dando-lhe uma sensação de ser uma parte do homem que a amava. Estavam a sós, longe de tudo, num céu cheio de estrelas habitado apenas por eles.

Larisa não tinha idéia de quanto tempo seus lábios ficaram unidos aos de Raoul.

Apenas sabia que a cada segundo o enlevo aumentava. Quando enfim ele levantou a cabeça e a fitou, ela mal podia respirar.

— La première fois, meu amor! — o conde murmurou com voz insegura. — A primeira vez para você e, juro, para mim também. Nunca antes um beijo teve esse significado, provocou-me um êxtase tão grande, tão desconhecido.

Larisa escondeu o rosto no ombro dele. Raoul abraçou-a com mais força, declarando:

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— Eu disse a você que éramos diferentes. Agora acredita? Larisa não conseguia responder. Então Raoul pôs-lhe os dedos sob o queixo e a fez olhar para ele.

— Eu te amo, querida, e não sabia que o amor podia ser um sentimento tão poderoso a ponto de não me permitir pensar em outra coisa além de você!

— Como é possível… que me ame… tanto? — ela indagou, ainda duvidosa.

— É uma pergunta que faço a mim mesmo. Sei tudo o que se pode argumentar contra o nosso amor: que apenas nos encontramos; que mal nos conhecemos; que vivemos em mundos diferentes. Mas a realidade persiste, eu te amo! E acho que você já me ama um pouco também, não é mesmo?

Embaraçada, Larisa quis esconder o rosto novamente, mas Raoul não permitiu.

— Fale a verdade, amor. Apesar de seus lábios terem-me dito o que quero saber, preciso ouvir de viva voz.

— Eu… amo… você! — Larisa sussurrou. — Mas… — Não há “mas” — ele a interrompeu. — Ao menos por agora, não

pense em nada além desse amor. As dificuldades e os problemas ficarão para depois. O que importa no momento é o nosso afeto mútuo. Eu te adoro!

— Eu adoro você também. Os lábios de Raoul colaram-se aos dela de novo, porém mais insistentes,

mais possessivos, ávidos, e um êxtase enorme tomou conta de Larisa pela segunda vez. Em seguida, ele disse:

— Precisa ir agora, amor. Já é bastante tarde. Não quero que tenha necessidade de dar explicações demasiadas devido ao atraso.

Larisa não disse nada. Era impossível, pois estava ainda sob a influência da emoção que o conde provocara nela.

Ele tomou as rédeas dos cavalos e ambos prosseguiram até o local onde o cavalariço os esperava.

— Vá para casa agora, querida. Vá para a cama descansar, e não se preocupe com coisa alguma.

— A que horas você pretende entrar? — Daqui a pouco, para que ninguém desconfie que chegamos juntos. Havia dezenas de perguntas que Larisa queria fazer: “Que vai dizer a seu pai? Pretende obrigá-lo a confessar que envenenou

o vinho? Tenciona lhe pedir explicações?”

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No entanto, sem falar, ela desceu do faetonte e o conde a ergueu, colocando-a sobre a sela.

—Você vai ter cuidado, não vai? — Larisa indagou com voz muito baixa para que o empregado não ouvisse.

— Por certo. E não esquecerei de que me salvou a vida. Raoul arrumou-lhe a saia, puxando-a para um lado da montaria.

Havia tanto carinho nesse gesto que ela se sentiu emocionada. O conde cuidava dela com amor e Larisa, por sua vez, imaginava como

as mulheres de Paris ficariam radiantes se pudessem estar em seu lugar, recebendo atenções de um homem tão irresistível.

Ele lhe tomou a mão e, baixando um pouco a luva, levou-a aos lábios, beijando as pequeninas veias azuladas na altura do pulso.

A seguir, Larisa cavalgou até o castelo sem olhar para trás. Sentia ainda o calor dos lábios dele em sua mão, no ponto em que a

tocaram. “Eu o amo! Oh, Deus, como eu o amo!”

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CAPÍTULO VII Quando Larisa levava Jean-Pierre e Max para o passeio habitual, viu, do

topo da escada, que o conde Raoul estava lá embaixo, no hall. O dia estava lindo! E, para ser franca consigo mesma, ela devia admitir

que apressara o breakfast por querer com desespero encontrar-se com Raoul outra vez.

Na noite anterior, Larisa entrara sorrateiramente na casa, após haver deixado o cavalo com Léon. Julgou que todos estivessem dormindo, mas a velha governanta a aguardava, cochilando na sala de estudos, e acordou assustada.

— Tudo está bem — Larisa se apressou em acalmá-la. — Cheguei a tempo. Ele ainda não tinha aberto a garrafa de vinho. Viu lágrimas nos olhos da empregada e concluiu que a pobre mulher

sofrerá muito durante as longas horas de espera. — Ah, graças ao bon Dieu misericordioso! — a babá exclamou. — Eu não devia ter deixado você ir sozinha a Paris, mas não consegui

encontrar outra solução. — Se eu não tivesse ido, o conde Raoul teria tomado o vinho ontem

mesmo, antes de dormir, ele disse. — Notre bon Dieu é misericordioso! Escutou minhas preces. Rezei para

meu senhor e para você. — E ambos estamos bem. Porém, por quanto tempo Raoul estaria a salvo? Estando exausta e não

querendo preocupar a empregada, Larisa foi para a cama sem comentar coisa alguma. Dormiu como uma pedra.

Ao acordar, a primeira coisa que lhe veio à mente foi a lembrança do beijo que ele lhe dera e o prazer que sentira ao ser abraçada, ouvindo-o dizer que a amava muito. Depois, lembrou-se do perigo a que o conde ainda estava exposto.

Monsieur le comte pairava sobre ele como uma cruel ave de rapina. Larisa e Jean-Pierre estavam ainda no meio da escada quando uma voz

se fez ouvir atrás deles. Era o velho conde que tomara seu café da manhã no próprio quarto e que só agora ia se encontrar com o filho.

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— Bom dia, Raoul! Soube que você chegou ontem à noite. — Bom dia, pai! Preciso falar com você. — Assim me disseram. E terei muito prazer em ouvi-lo. Mas antes quero

lhe fazer um pedido de suma importância. — O que é? — Fui informado de que uma raposa pegou mais dois de nossos

cordeiros, cinco já numa semana! Isso não pode continuar! — É verdade! Mas com certeza Gascoyne tomou providências, pai. — Infelizmente Gascoyne machucou a mão, e ele é o único homem a

quem eu confiaria o uso de uma espingarda, nesta parte da propriedade. O conde Raoul não respondeu e monsieur le comte continuou: — O que eu quero de você, Raoul, é que mate a raposa antes que nos

traga maiores prejuízos. Nosso pastor desconfia que ela tenha filhotes. Nesse caso, a toca deve ficar no fosso de areia, naquela elevação bem no meio da floresta. As raposas se escondem sempre lá, todos os anos.

— E, eu sei. Só não consigo entender por que razão Gascoyne não viu isso antes.

— Ele está com muita falta de auxiliares, e as raposas fazem verdadeiros massacres. Não somente matam os cordeiros como também assustam as ovelhas.

— Vou ver o que posso fazer — o conde Raoul prometeu. — Tinha certeza de que você me ajudaria. Se não o fizesse, teria de

cuidar disso eu mesmo. — Não, pai, é muito longe para andar até lá. — Pedi a Bernard que preparasse uma arma para você. O conde Raoul pegou o rifle que fora colocado no hall para ele.

Apanhou também uma cartucheira com munição e se pôs a caminho. — Não vou me demorar, pai. Na volta conversaremos. — Fico esperando por você. Pareceu a Larisa que, ao passar por perto, Raoul se demorou olhando

para ela. Foi como se a houvesse tocado. Monsieur le comte dirigiu a palavra ao neto, com o carinho de sempre: — O que você vai fazer esta manhã, Jean-Pierre? O garoto brincava com Max e nem deu resposta. Larisa o fez em lugar

dele: — Vamos passear um pouco, monsieur. O velho conde hesitou. Depois

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disse: — É melhor não saírem já. Meu filho vai usar a arma e Bernard preparou

uma armadilha para apanhar a raposa. Mais tarde levo Jean-Pierre a um passeio de carruagem.

— Ele vai adorar, monsieur. — Podemos decidir sobre isso na hora do almoço. Fazendo um agrado na cabeça do neto, o conde se retirou para o salão,

onde geralmente ficava. — Vamos dar uma volta com Max? — Jean-Pierre perguntou. — Não, esta manhã não — Larisa replicou. — Seu avô prefere que a

gente fique em casa. — Max quer sair, mademoiselle! — Jean-Pierre insistiu obstinadamente. Larisa olhou pela porta aberta e viu que o sol brilhava lá fora. Estava tão

desapontada quanto Jean-Pierre por serem obrigados a permanecer entre quatro paredes.

Depois, teve uma idéia. — Ouça, Jean-Pierre, que tal irmos à torre? Você nunca me mostrou a

vista daquele lugar. Jean-Pierre se encantou com o programa. Os dois subiram então por uma escada em caracol até chegarem à parte

plana da torre, bem próxima à cúpula do castelo. Havia uma grade protetora em toda a volta do mirante, o que o fazia

bastante seguro. A vista era impressionante e abrangia imensa área, em quase todas as direções. Podia-se ver o jardim do templo de Vênus e a estátua de Afrodite.

Larisa olhou na direção de Paris e se lembrou da viagem da véspera. Logo viu Raoul, sem grande dificuldade. Ele já tinha cruzado os jardins

cercados por muros e atravessava no momento um capinzal onde os carneiros pastavam.

O campo era rodeado de pinheiros e, através dessas árvores, raposa devia entrar a fim de pegar os cordeirinhos.

O atalho pelo qual o conde Raoul seguia agora chegava até o meio da floresta. Uma suave colina o levaria ao lugar onde talvez estivesse localizada a toca da raposa.

Um ruído estranho e repentino a fez virar-se para trás. Cansado de apreciar a vista, Jean-Pierre brincava com Max. Naquele instante, porém, ele

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tinha ambas as mãos em volta do pescoço do cãozinho e o apertava fortemente, quase estrangulando o pobre animal.

Max se debatia em vão. — Jean-Pierre! Pare com isso! Já disse a você antes que não deve

maltratar Max desse jeito. Com relutância, o garoto soltou sua vítima, mas Larisa viu uma

expressão esquisita nos olhos dele que não lhe agradou. Era a segunda vez que Jean-Pierre tentava estrangular o animal, por isso

ela concluiu que precisava falar com monsieur le comte sobre o assunto. Recordou-se então do idiota de Redmarley, que estrangulara uma

menina de três anos. Seria necessário talvez consultar um médico! Max, aparentemente não muito afetado pelo mau trato, balançava a

cauda e corria, feliz por brincar com seu dono. “Talvez eu esteja exagerando uma coisa que não passa de peraltice de

criança”, ela tentou se convencer. De qualquer maneira, tinha de discutir sobre Jean-Pierre com alguém.

Não podia continuar por muito tempo mais fingindo que ele era normal. Então, pensou no conde Raoul.

Procurou-o novamente, mas ele estava fora do alcance de sua vista. Porém, alguém mais passava do jardim para o pasto dos carneiros. Era

um homem: Bernard! De início, Larisa não se interessou por ele; segundos após, viu-o abaixar-

se, pegar um cordeiro e seguir na direção do caminho por onde Raoul fora antes.

A mais ou menos dez metros de distância do atalho, Bernard colocou o cordeiro no chão, dentro de algum buraco, Larisa deduziu, pois não podia mais ver o animalzinho.

Logo depois, o empregado pôs um objeto escuro no solo e cobriu-o de grama.

Aí Larisa entendeu! Devia ser o rifle da armadilha que monsieur le comte

mencionara. Ela já ouvira falar sobre esse tipo de armadilha, mas nunca imaginaria

que fosse posta tão perto de uma residência. Era pouco usada na Inglaterra, devido ao perigo que representava. Consistia num rifle carregado, que se punha no lugar por onde o animal passaria. Quando ele chegasse bem perto e

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encostasse num dispositivo qualquer, uma corda geralmente, essa armadilha acionava o gatilho da arma dirigida para a vítima. O resultado era sempre a morte.

Bernard terminou o trabalho e voltou às pressas para a casa. Larisa estranhou tanta correria! Será que monsieur le comte precisava dele com urgência? Não, não podia ser isso!

A armadilha não se destinava à raposa; talvez ao conde Raoul? Raposa alguma se aproximaria de casas durante o dia. Mas o conde

Raoul voltaria por esse mesmo caminho a fim de entrar no jardim e, com certeza, ouviria o balido do cordeiro dentro do buraco.

Claro, ele iria investigar! Foi então que Larisa chegou à conclusão de que o rifle tinha sido posto lá não para matar a raposa, mas para atingir o coração de Raoul!

Precisava salvá-lo mais uma vez! — Venha, Jean-Pierre. Temos que procurar seu pai! Pensou depois em deixar o menino e Max na sala de estudos, mas

despertaria suspeitas. Como era possível sair e deixar Jean-Pierre em casa? Ela o levaria junto e mais tarde pensaria numa desculpa para dar ao

velho conde, por ter saído apesar da proibição. Pegando na mão de Jean-Pierre, Larisa desceu depressa e atravessou o

jardim até o pasto dos carneiros. Max foi com eles. Assim que ela chegou lá, ouviu os berros do cordeirinho. — Venha, Jean-Pierre — repetiu, nervosa. Os gritos do cordeiro a

comoviam, embora não perturbassem Jean-Pierre. — Temos que achar seu pai. Entraram pela floresta. Larisa estava apreensiva. Como poderia ter

certeza de que o conde Raoul voltaria pelo mesmo caminho? Por algum tempo, ficou parada indecisa. A única coisa que podia fazer

era olhar em todas as direções. De repente, ouviu um ruído por entre as árvores. Para seu grande alívio, enxergou o conde Raoul, vindo na direção deles. — Não sei como começar. — Ele suspirou. — Ainda me custa crer que tudo seja verdade; que meu pai realmente

me odeie a ponto de desejar dar fim à minha vida! — E Bernard está envolvido nisso também. Parecia incrível que monsieur le comte, com sua dignidade, grandeza,

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inegável autoridade, usasse como cúmplice um empregado para assassinar seu próprio filho! A trama tornava-se ainda mais perigosa.

Bernard envenenara o vinho; Bernard colocara a armadilha. Era óbvio que, se os planos tivessem surtido efeito, matando Raoul, Bernard poderia chantagear o velho conde pelo resto da vida.

Que faria ele então? Mataria o empregado também? A coisa toda assemelhava-se a um pesadelo do qual Larisa queria

acordar e descobrir que não passara de um sonho. Mas não, era mesmo verdade. Pura verdade. Se o conde Raoul tivesse

bebido o vinho na noite anterior, e se ela não o prevenisse sobre a armadilha, ele não estaria nesse momento a seu lado.

Aproximavam-se agora da armadilha e podiam ouvir o cordeirinho balindo.

O conde virou a cabeça na direção de onde vinha o som, e Larisa pôde ver a súbita expressão de mágoa nos olhos dele.

“Imaginar que o pai deseja destruí-lo o machuca. Afinal, o mesmo sangue corre nas veias dos dois.”

Esse pai, que talvez tivesse dado a Raoul o sentido de segurança na vida; esse pai, do qual Raoul talvez sentira orgulho em épocas passadas!

A constatação do crime paterno o feria, o que era fácil de entender. Apesar de ter uma reputação que chocava e horrorizava a muita gente, Raoul parecia ser o homem mais sensível do mundo.

Nesse instante, o jardim já estava à vista. Um coelho surgiu pulando na frente do grupo. Max deu um latido e escapou da mão de Jean-Pierre.

— Espere, Max! Espere! — o garoto berrou e saiu correndo atrás do cão. Tudo aconteceu num segundo. Larisa só se deu conta do fato quando

Jean-Pierre já se achava longe, perseguindo Max, que latia sem parar. — A armadilha! A armadilha! — ela gritou então, tentando alcançar

Jean-Pierre. O conde Raoul fez o mesmo, mas não deu tempo. Tudo se passou num

instante. De repente, uma violenta explosão ecoou pelo espaço. O barulho foi ensurdecedor. Larisa viu Jean-Pierre caído no chão.

Tentou alcançá-lo, mas Raoul se antecipou. Ele se inclinou sobre o menino e, quando Larisa quis ajudá-lo, disse:

— Não olhe! Vá ao château buscar auxílio. No começo, ela não pôde entender a razão daquela ordem, e não

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obedeceu. Mas Raoul pôs-lhe a mão no ombro e virou-lhe o corpo. Então, Larisa concluiu que ele não queria que ela visse Jean-Pierre.

— Faça o que estou mandando! — insistiu ele. — Vá chamar dois homens para virem aqui imediatamente! Ela correu para o château. Ainda no jardim, deu com a figura sinistra de

Bernard. — Que houve, m'mselle? — ele indagou. — Vá já para o pasto e leve alguém mais com você. A armadilha. — Há feridos? — o empregado perguntou, fingindo surpresa. — Le petit monsieur! Jean-Pierre! O rosto de Bernard transformou-se numa máscara de horror. — Monsieur Jean-Pierre? — ele repetiu com voz rouca. — Procure outro homem e vá para lá. Bernard entrou no castelo e Larisa não conseguiu se mover. Tinha um

pressentimento de que Jean-Pierre estava morto. Morrera na armadilha preparada para o pai.

Dois lacaios vieram correndo. — Soubemos que houve um acidente, m'mselle. Onde foi? Para onde

devemos ir? — Ao pasto — Larisa fez grande esforço para responder —, e depressa.

Monsieur Raoul está lá. Os dois empregados desapareceram e Larisa, andando como se tivesse

noventa anos, entrou no château. Segurando no corrimão, ela subiu as escadas com dificuldade e foi até

seu quarto. Queria se encontrar com a babá. Precisava dizer a ela o que acontecera e

prepará-la para receber o corpo do pequeno Jean-Pierre, que os lacaios e o conde Raoul logo trariam para a casa.

A empregada estava na sala de estudos, conforme previra. Cerzia as meias de Jean-Pierre. Olhou para Larisa e, pela expressão dos olhos da jovem, adivinhou que algo de anormal se passara.

— O que aconteceu? — perguntou. — Ele… está morto. — E, vendo o desespero estampado no rosto da

velha governanta, disse logo: — Não o conde Raoul… mas… Jean-Pierre. — Jean-Pierre? — Ele correu e foi apanhado na armadilha preparada por Bernard…

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para o conde Raoul. Ninguém me falou nada, mas sei que Jean-Pierre… está morto!

As palavras saíam-lhe aos soluços. Ela sentou-se à mesa, pondo a cabeça entre as mãos.

— Não devia tê-lo levado lá fora. Monsieur le comte me ordenou que ficássemos em casa. Mas tinha que salvar… o conde Raoul — murmurou.

A empregada pôs a mão no ombro de Larisa. Percebendo que a jovem lutava para não perder os sentidos, insistiu para que tomasse alguma coisa.

— Beba, m’mselle — ela disse, apresentando-lhe um copo d'água. — Vou lhe preparar o chá.

Larisa levantou a cabeça e só então as lágrimas começaram a lhe correr pelas faces, copiosamente.

— Foi horrível! Tão brutal! Tão… desnecessário! A babá não respondeu nada mas, estranhamente, não chorava enquanto

fervia a água para o chá. — Monsieur le comte pretendia… matar o conde Raoul — Larisa parecia

falar consigo mesma. — Tinha certeza de que ele faria isso de novo, após a primeira tentativa

— a babá opinou. — Ele não está em pleno uso da razão. Temos que encarar os fatos. Monsieur le comte tem a mente perturbada.

— Como vamos comunicar a ele… que Jean-Pierre… morreu? — Quem já sabe? — Encontrei Bernard no jardim. Ele esperava receber a notícia da morte

do conde Raoul. — Contou a ele que Jean-Pierre tinha morrido? — Só lhe pedi que fosse ajudar o conde Raoul. Depois, vim para cá. — Então provavelmente Bernard já sabe de tudo; ele mesmo contará a

monsieur le comte. Não é necessário que você faça isso. — Como o velho conde vai suportar… essa dor? Ele gostava tanto do

menino! — Mas odiava o filho — a empregada contestou logo, num tom amargo. — Tudo por minha culpa. Se eu não o tivesse levado comigo, ele estaria

vivo agora. — Foi um acidente? — Max corria atrás de um coelho, e Jean-Pierre atrás do cachorro. Acho

que nada aconteceu a Max, mas Jean-Pierre deve ter encostado na

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armadilha… que puxou o gatilho do rifle. Larisa soluçou, quase sem poder falar. Mesmo agora, era-lhe difícil crer

no que sucedera. Num dado momento, Jean-Pierre segurava sua mão, e ambos

caminhavam ao lado de Raoul. No minuto seguinte, ela e o conde corriam desesperadamente atrás do menino, para salvá-lo do diabólico instrumento de morte armado por Bernard.

“Como puderam monsieur le comte e seu empregado forjar algo tão cruel e tão horrível?”, Larisa se questionava. “Contudo, se Raoul tivesse morrido, seria fácil provar que fora um acidente.”

Ela podia ver as coisas bem claramente agora! O modo como o velho conde mandara Raoul matar a raposa; como ele a prevenira para não ir ao jardim com Jean-Pierre!

Quem provaria que não recomendara o mesmo ao filho? Que não dissera a ele para tomar cuidado com a armadilha?

Ninguém duvidaria da palavra do conde e, se os planos dele tivessem dado certo, seria o corpo de Raoul que os empregados trariam para casa. Jean-Pierre se tornaria o herdeiro direto do avô.

Se as consequências não houvessem sido tão trágicas, o velho conde teria recebido um castigo merecido! Destruíra a pessoa que mais amava, e pela qual arquitetara aquele crime hediondo!

Mesmo reconhecendo que Jean-Pierre não era um menino normal, Larisa preferia vê-lo correndo pela casa.

Ela amara o garoto. Apenas sentia-se apreensiva pelo futuro dele. Nesse instante, a babá lhe trouxe uma xícara de chá bem forte,

fumegante, que Larisa bebeu só para satisfazer a velha empregada. Enxugando as lágrimas, decidiu agir com sensatez e sangue-frio. Tinha

que pensar não apenas em si, mas no conde Raoul. O que diria ele ao pai? Será que o enfrentaria, acusando-o de ter tentado

matá-lo por duas vezes? Ela gostaria muito de ajudá-lo. — O que está acontecendo lá embaixo? — Larisa perguntou à

empregada. — Vou dar um jeito de descobrir. Fique aqui, m’mselle. Deixe tudo por

minha conta, não se preocupe. — Mas penso que devo ir com você — Larisa sugeriu.

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— Não. Monsieur não aprovaria. Eu sei. A velha governanta falou com tanta convicção que Larisa cedeu.

Continuou sentada à mesa, com a cabeça entre as mãos. A empregada estava certa; Raoul não desejaria que ela visse Jean-Pierre morto. Ele a protegia sempre contra tudo o que era feio e bestial. Ademais, não sendo membro da família, sua presença parecia desnecessária num momento daqueles.

Era uma estranha, e somente alguém como a babá, que trabalhava com os Valmont há anos, teria direito de testemunhar o sofrimento da família.

Mas ela não achava justo também esperar, inativa, o desenrolar dos acontecimentos. Trariam Jean-Pierre para casa? Talvez o pusessem no próprio quarto dele!

Larisa não queria ficar sozinha. Pensou em ir conversar com ma-dame

Savigny. Mas haveria tantas perguntas a responder, tantas explicações a dar! Ela se levantou e abriu as janelas. O jardim, naquele lado da casa, parecia bastante acolhedor. Quieto,

verde, lindo! Era incrível imaginar que tanto drama, tanta tragédia tinha lugar na

outra ala do chateou. “Devem estar trazendo Jean-Pierre para casa agora”, Larisa deduziu. Oh, por que ninguém vinha contar nada a ela? Não conseguia mais

aguentar aquela expectativa. Porém, tinha medo de confrontar Raoul, pois talvez ele a culpasse pelo ocorrido, por ter largado a mão de Jean-Pierre.

Não obstante, como prever o que iria acontecer? Fora tão repentino! Tudo teria sido diferente se o coelho não tivesse pulado na frente de Max.

Contudo, nada é mais natural que um animalzinho saltar na frente de um cachorro. Ocorre dezenas de vezes por dia. Mas esse fato resultar na morte de Jean-Pierre era difícil de se admitir!

“Vou ao jardim a fim de descobrir se, por algum milagre, Jean-Pierre está vivo!”, decidiu ela, afinal.

Nesse momento, a babá apareceu na porta do quarto. — Onde ele está? Onde o puseram? Jean-Pierre morreu… de verdade?

— Larisa indagou, aflita. — Jean-Pierre está morto — a empregada respondeu com voz grave — e

monsieur le comte suicidou-se.

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CAPÍTULO VIII A velha governanta entrou na sala de estudos e Larisa fitou-a de

maneira interrogativa. Esperara a manhã toda por algum recado, mas nada! E agora, vendo a babá, seu coração batia mais forte. — Madame Savigny deseja falar com m’mselle — ela disse. Não era o que Larisa desejava ouvir. Enfim, antes isso que ficar sentada

naquela sala, hora após hora, desejando ver o conde Raoul, que, com muita probabilidade, não a mandaria chamar.

Soubera pela empregada o que havia acontecido na tarde da véspera. Os dois corpos, o de monsieur le comte e o de Jean-Pierre, tinham sido

levados para a capela do castelo, onde ficariam até a hora do funeral. Antes disso, o conde Raoul mandara chamar o médico da aldeia e o

informara de que um acidente com o rifle de monsieur le comte o vitimara, como também a Jean-Pierre.

O médico assinou ambos os certificados de óbito prontamente. Então, o conde Raoul começou a cuidar dos preparativos para o sepultamento. Toda a enorme família do conde deveria comparecer.

Depois de relatar o que se passara, a babá convenceu Larisa a se deitar, pois esta não conseguia segurar o pranto ao ouvir a narrativa dos acontecimentos.

O choque pela morte de Jean-Pierre adicionado ao pavor que sentira na véspera, pensando não ser possível chegar a tempo para salvar Raoul da armadilha, a deixou esgotada moralmente. Além disso, estava cansada da viagem a Paris, pois não montava já há algum tempo.

Todos esses fatores combinados a deixaram sem energia e muito deprimida.

Condenava-se pela morte de Jean-Pierre e, no íntimo, temia que o conde Raoul a culpasse por isso.

— Como vai ele? — Larisa perguntara à empregada ao se levantar na manhã seguinte.

— Monsieur Raoul acordou muito cedo hoje. Está pálido, parece fatigado, mas cuida de tudo. Há milhões de coisas a fazer, e providências a tomar.

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— E Bernard? O que houve com Bernard? — Sumiu! — a babá replicou. — A maneira como ele contou a monsieur

le comte que Jean-Pierre estava morto deve ter provocado o suicídio do velho homem. Um dos lacaios ouviu Bernard aos berros dando a notícia. Devia estar apavorado, sabendo como o conde amava o garoto. E agora ele desapareceu. Foi bom, porque monsieur Raoul o mandaria embora de qualquer jeito.

— Ou o levaria a um tribunal! — observou Larisa. — Monsieur Raoul faz questão de insistir que o que houve foi um

acidente com a arma. Ele declarou que monsieur le comte manuseava seu rifle quando este disparou!

Era uma história bastante improvável, mas os parentes de Raoul aceitariam qualquer razão que ele apresentasse como verdadeira. Não haveria perguntas.

Ao descer, atendendo ao chamado de madame Savigny, Larisa se perguntava se a velha senhora conhecia a verdade toda.

Num quarto quase às escuras, com as persianas fechadas, madame, toda de preto, esperava por Larisa em sua poltrona habitual.

Sorriu quando a viu entrar. — Pedi para lhe falar, porque a babá me disse que você estava muito

deprimida — declarou ela. — E como poderia me sentir? Larisa sentou-se na cadeira que madame Savigny lhe ofereceu. — Foi a vontade de Deus, mademoiselle. E talvez, para melhor. Larisa

percebeu que ela se referia a Jean-Pierre, mas não encontrou jeito de encetar o assunto da deficiência intelectual do menino.

— Ambas sabemos que Jean-Pierre não era normal — madame

prosseguiu. — Nunca… ousei falar sobre isso. — E, se o tivesse feito, meu irmão a demitiria imediatamente. Mas o fato

viria à tona, mais cedo ou mais tarde. Por essa razão, digo que Deus, na sua misericórdia infinita, fez o melhor para todos nós.

— Espero que sim — murmurou Larisa humildemente. — Além disso, há muitas coisas que Raoul pode realizar agora para o

bem da propriedade. Ele se irritava muito porque o pai não admitia quaisquer inovações. Meu sobrinho é jovem e entusiasta, vai fazer Valmont

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voltar ao que era nos velhos tempos, um modelo para nossos vizinhos. E, o mais importante de tudo, se casará com uma mulher de sua escolha e rica.

Larisa ficou petrificada. — A senhora quer dizer… — ela começou a falar, hesitante. — Que Raoul pode escolher uma noiva, entre as jovens nobres de Paris,

que lhe traga um bom dote. Não há família na França que não fique orgulhosa em ver a filha casada com o comte de Valmont.

— Ah, entendo… — Até já preparei uma lista de debutantes cujos pais receberiam Raoul

de braços abertos. Há muitas. Não ignoro que ele vem mantendo relacionamento íntimo com várias mulheres, mas, para um francês, chère amie

é uma coisa, esposa é outra. — Isso significa que mesmo amando uma mulher… ele não pode se

casar com ela, se não for de posição adequada… ou se não tiver uma fortuna conveniente? — Larisa indagou com voz sumida.

— Claro que não! Suponho que os ingleses não entendam, mas um francês nunca se casa com sua amante, e todos os casamentos do ancien regime

são mariages de convenance. Houve um longo silêncio antes de Larisa conseguir falar. — Estou pensando, madame, que eu devo voltar… para casa. Meu

trabalho aqui terminou. O funeral a ser realizado, segundo me disseram, depois de amanhã… é uma cerimônia de família. Minha presença não será necessária.

— Tem razão, minha cara. O château vai ficar cheio de parentes. Muitos começam a chegar amanhã.

— Eu sei… — Larisa levantou-se para sair. — Se madame pudesse providenciar o pagamento dos dias que trabalhei… eu ficaria muito grata. Do contrário, não terei com o que pagar… minha passagem de volta.

— Naturalmente! E eu compreendo que você não queira incomodar meu sobrinho numa situação dessas. Vou falar com o secretário dele. O dinheiro será entregue em seu quarto, enquanto você prepara a bagagem.

— Obrigada, madame, por toda a sua bondade durante minha temporada nesta casa.

— Vou sentir falta de você, minha cara. Mas tenho a impressão de que minha vida será diferente daqui por diante. Raoul cuidará de mim e não me sentirei mais tão confinada.

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— Estou certa disso. Larisa saudou-a e saiu do quarto, certa de que madame Savigny não tinha

mais interesse algum em sua presença. Foi para seu quarto e começou a fazer as malas.

Depois, pediu à camareira que providenciasse uma carruagem para levá-la a Paris.

Assim que tudo ficou arranjado, Larisa se retirou pela porta de serviço, não se considerando uma pessoa de qualidade para usar a entrada principal.

A velha governanta foi se despedir de Larisa. — Não quer dizer adeus a monsieur Raoul? — ela indagou. — Não, e prometa-me que não vai lhe falar nada sobre minha partida, a

menos que ele pergunte. — Não quer que monsieur saiba? Por quê? — A babá estava atônita. — Não desejo que ele se sinta meu devedor por eu ter ido a Paris a fim

de salvar-lhe a vida. Ele agora tem tudo de que precisa para ser feliz. Não tem necessidade de mim.

— Talvez esteja certa, m'mselle. — Sei que estou. Então, por favor, não mencione sobre minha partida a

ninguém. Deve haver algum trem para Calais hoje, e, se chegar lá tarde demais para apanhar o vapor, posso pernoitar numa pensão.

— Tem dinheiro suficiente? — perguntou a empregada. — Sim, tenho, obrigada. Madame Savigny me pagou pelas semanas que

trabalhei. — Vá com Deus. Quando chegar em sua casa, não pense mais no que

aconteceu aqui. — Vou tentar — respondeu Larisa, sabendo porém ser impossível não

lembrar, não pensar, e sobretudo não sentir! Mas, para que confessar isso? Beijou a velha amiga, dizendo apenas: — Obrigada por tudo. Jamais me esquecerei de você, e nem de Valmont! Só quando a carruagem começou a se mover, ela olhou para trás, as

lágrimas correndo-lhe pelas faces. O château, iluminado pelo sol, apresentava-se incrivelmente lindo.

Nunca imaginara que uma casa pudesse ser tão perfeita. Contudo, não era à casa que ela dizia “adeus”, mas a seu proprietário!

Tentou controlar o pranto e refletir sobre o futuro. Chegando à Inglaterra, procuraria outro emprego para poder ajudar

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Nicky. Não encontraria um tão bem pago como o que acabava de deixar! Seria feliz novamente? Mas… fora feliz? Ela se apaixonara perdidamente por um homem com quem não poderia

se casar. Estava com o coração partido! Porém, era porventura possível resistir a alguém tão sedutor como o

conde Raoul? Jamais conseguiria ser indiferente ao charme dele, às coisas que dissera!

As palavras a fizeram vibrar de emoção, e os beijos lhe proporcionaram um êxtase nunca experimentado!

Larisa sabia que, ao se afastar de Valmont, deixava para trás tudo o que lhe importava na vida!

Por que fingir? Era a pura verdade. Nunca mais outro homem significaria o mesmo para ela.

O amor do conde Raoul e a chama que ele acendera dentro dela a conduziram às estrelas. Esse amor era como a luz do sol, parte mesmo do céu, e tudo o mais em comparação a ele parecia banal e rotineiro.

“Eu o amarei pelo resto de minha vida!” Larisa estremeceu, e seus lábios desejaram o toque dos lábios dele. Refletiu no que acontecera entre os dois, desde a noite em que se

sentaram perto da estátua de Afrodite e ele lhe beijara a mão, dizendo que o que sentiam um pelo outro era “diferente”.

“Talvez ele se lembre disso algum dia… Será?” Talvez pensasse nela até enquanto escolhia uma esposa que contribuísse

para a prosperidade de Valmont e lhe fornecesse meios de adquirir o vinhedo que desejava tanto!

Larisa não tinha raiva dele por isso, não. O conde Raoul a amara a seu modo, e muito! Mas o dever o chamava. As obrigações para com Valmont e a família estavam no sangue dele, e em primeiro lugar!

Larisa recordou-se também de que sua mãe a prevenira sobre o fato. O dever de um francês vinha antes de tudo, só que ela aprendera isso à custa de seu próprio coração.

A carruagem atravessava agora os subúrbios de Paris, e Larisa lembrou-se de sua primeira passagem por lá, quando tentava encontrar o caminho para o Champs-Élysées.

Saberiam os alegres amigos do Folies-Bergère que Raoul se tornara monsieur le comte, o dono de Valmont? E a atraente Odette, estaria a par dos

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acontecimentos? Larisa concluiu que, se eles já não tivessem recebido a notícia, a leriam

nos jornais com certeza. Era possível que estivessem com medo de perdê-lo como amigo, agora que ele ficara mais importante, numa posição de responsabilidade.

Madame Savigny tinha dito claramente que os dois mundos nunca se misturavam.

Entre o beau-monde e o demi-monde havia uma grande barreira, um abismo que não podia ser atravessado, exceto por um homem de extrema habilidade.

Mais uma vez Larisa teve dificuldade em entender o exato sentido disso. Considerava-se ignorante e sem nenhuma sofisticação.

Imaginava que uma das lindas mulheres do Folies-Bergère fosse amante do conde Raoul. Talvez a de vermelho.

Odette devia também ser do demi-monde, Larisa pensou. Não estava por certo casada com Sua Alteza Serena; contudo, ele parecia ter um interesse de proprietário nela. Sendo verdade, então por que ela fitara o conde Raoul com amor? Larisa achava tudo muito difícil e complicado de se entender.

A carruagem parou na Gare du Nord. A viagem levara pouco menos de uma hora.

Larisa se dirigiu ao guichê de passagens e foi informada de que havia um trem dali a três quartos de hora. Não era expresso e talvez chegasse a Calais bastante tarde.

Ela comprou um bilhete de segunda classe e, contando o dinheiro restante, viu que possuía o suficiente para passar a noite em Calais, numa pensão barata. Porém não poderia gastar muito em comida.

Pôs a passagem na bolsa e acompanhou o carregador, que transportava suas malas à plataforma. Ali ficou observando a chegada de outros trens.

O barulho era ensurdecedor; locomotivas chiando; apitos, e os gritos inconfundíveis dos carregadores ecoavam pela gare.

Em qualquer outra ocasião Larisa teria se interessado pelas crianças francesas, pelos vendedores de jornais e pelos passageiros. Agora, apenas pensava no que deixara atrás de si.

O tempo escoava vagarosamente. Enfim, o carregador se aproximou, dizendo:

— O trem chegou, madame.

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De tato, a locomotiva entrou silvando na estação, soltando nuvens de fumaça negra, e uma multidão de passageiros pareceu vir de não-sei-onde, falando alto e empurrando uns aos outros, para tomar os diversos vagões.

Vou conseguir um lugar para a senhora, madame, e depois acomodo a bagagem — o carregador disse a Larisa.

— Merci bien! Ela se virou para segui-lo e deu com um vulto alto, que lhe barrava a

passagem. Encarou-o e ficou gelada. Era o conde Raoul, com a mesma feição que mostrara no primeiro

encontro dos dois. Parecia o próprio diabo! — Aonde pensa que vai? — ele indagou, num tom de voz que se

assemelhava a uma chicotada. — Em…bora. — Isso é evidente! Mas, por quê? — Preciso… ir. Não sou mais… necessária em Valmont. — Quem lhe disse tal coisa? — Não há nada para eu fazer lá… — Sou eu quem decide, não você. Ela baixou os olhos para não ver aquele rosto furioso. — Preciso… ir — Larisa insistia. — Não antes de conversarmos. — Não há nada para discutirmos — ela reiterou, agora mais calma. —

Tenho que ir. Tenho que… ir. — Há outros trens! Dito isso, o conde dirigiu-se ao carregador, que nesse instante chegava,

informando: — Consegui um lugar para madame. — Madame não vai embarcar nesse trem — o conde Raoul declarou. — Leve as malas para a carruagem. Acompanhe-nos. O carregador atendeu imediatamente àquela voz de comando. Larisa quis protestar, insistir, mas não conseguia encontrar palavras. Caminhou ao lado do conde Raoul, como uma criança que se

comportara mal e ia ser castigada. Contudo, adivinhava o que ele ia sugerir: torná-la sua amante, situação

com a qual jamais concordaria.

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“Preciso ser firme”, pensava ela. No entanto, tremia de desejo só porque o conde estava perto. Sentia-se

fraca, tomada daquele encantamento sempre provocado pela presença dele. Fora, o faetonte os esperava e, pelo aspecto dos cavalos, suados, Larisa

deduziu que tinham vindo de Valmont a grande velocidade. O cavalariço entregou as rédeas ao conde, que tomou seu lugar no carro,

juntamente com Larisa. — Leve-nos para casa, Jacques — ele ordenou ao lacaio, e partiu. Larisa

percebeu logo para onde iam, o que confirmava seu receio sobre as intenções do conde.

Uma vez ele lhe dissera que não podia levá-la à casa de um homem solteiro, porque ela pertencia ao beau-monde. Agora, mudava de idéia e Larisa concluiu que ele decidira colocá-la em outra categoria.

Pensou na mãe; porém sua família se encontrava tão distante! No momento, havia apenas o conde! E ela estava bem consciente das

vibrações que emanavam da pessoa dele. Arriscou fitá-lo com o canto dos olhos e viu que ainda tinha aspecto

assustador. Não obstante, com o chapéu alto, colocado um pouco de lado sobre os

cabelos escuros, o colarinho engomado, aqueles ombros largos, parecia mais irresistível do que nunca.

“Eu o amo!”, ela dizia a si mesma, em desespero, “mas preciso ser forte, e dizer não''.

Eles atravessaram a praça da Concórdia e subiram a avenida Champs-Élysées. Os castanheiros começavam a florir e os botões rosados e brancos contrastavam com o escuro da folhagem, parecendo velas numa árvore de Natal.

As bolas de gás, nas mãos dos vendedores, nas mais diversas cores, davam um ar de alegria ao local.

Finalmente, a carruagem parou à porta da casa do conde Raoul, que desceu logo e ajudou Larisa a fazer o mesmo. Só o contato com a mão dele a fez vibrar de emoção.

Entraram no hall, o mesmo hall onde ela estivera falando com o empregado naquela noite em que tentava encontrar Raoul.

Ambos se dirigiram a um encantador salão, com portas-janelas que se abriam para um pequeno terraço de mármore, cheio de flores, decorado com

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o mesmo gosto aprimorado de Valmont. Mas Larisa apenas tinha olhos para o conde, que lhe disse, assim que

ficaram a sós: — Quero uma explicação! — Fiz o que julguei… certo. Achei que seria o melhor para mim… e para

você. Ela o amava com todo o seu coração, com seu corpo, sua alma mas, não

importava o que o conde lhe dissesse, não poderia se tornar amante dele. Isso mancharia, estragaria o amor dos dois tão lindo! Destruiria a beleza e a magia que os envolvera como uma auréola

quando conversaram sob a estátua de Afrodite e quando ele a beijara na chegada a Valmont.

Tudo parecera tão perfeito, de tal forma identificado com sua crença em Deus, que ela não queria arruinar aqueles momentos de ventura, jamais.

— Posso ser muito tolo, mas não entendo o que você quer dizer com “o melhor para mim” — o conde protestou.

— Você tem… que se casar — ela replicou, timidamente. — Agora pode escolher uma noiva… que lhe traga um bom dote. Do

contrário… Valmont não sobreviverá. — Quem lhe disse isso? — Sempre soube, e hoje mesmo sua tia me revelou que é o que todos

esperam de você. — E nem por um segundo lhe passou pela cabeça que devia me

consultar antes de sair de Valmont, sem ao menos se despedir de mim? — Não conseguiria dizer adeus… a você — Larisa sussurrou. — Há muitas coisas que preciso lhe explicar, Larisa; mas espero que

entenda que precisava primeiro arranjar as coisas para o funeral de meu pai e de Jean-Pierre.

— Eu… entendo; mas também desconfiei que estava furioso… comigo, por não ter cuidado bem de Jean-Pierre. Foi minha culpa… não o segurar com mais força.

— Não foi culpa sua, Larisa. E penso que ambos podemos falar com franqueza. Não havia futuro para Jean-Pierre.

— Então, você… sabia? — Uma das muitas governantas que meu pai dispensou por lhe contar a

verdade veio me ver aqui em Paris.

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— E você não tomou nenhuma providência? — O que poderia fazer? Sabe tão bem quanto eu que meu pai estava

convencido de que Jean-Pierre era normal. Ele jamais acreditaria em médico algum que lhe afirmasse o contrário, e muito menos em mim.

— Sinto muito. Deve ter sido um grande sofrimento para você… ter um filho… assim.

Houve uns segundos de silêncio antes de o conde Raoul confessar: — Jean-Pierre não era meu filho. Eu pretendia contar isso a você quando

houvesse oportunidade. — Mas… como? — Larisa gaguejou. — Meu pai me obrigou a casar porque aquela união trazia vantagens à

nossa propriedade. Minha esposa também não teve escolha e, na noite de nosso casamento, ela declarou que me detestava. Amava outro homem e estava grávida do filho dele. Eu nunca a toquei.

— E não revelou nada a seu pai? — Você pensa que ele me ouviria? Tinha o neto desejado. Era a única

coisa importante da vida dele. — Tudo é tão estranho! Difícil de… entender. — É demais para você, acrescido ao que aconteceu ontem. Pensei que

estivesse descansando depois do acidente. Quando me disseram que tinha partido, quase enlouqueci!

Os olhos de ambos se encontraram e, por segundos, pareceu que nenhum dos dois podia respirar, e que mais explicações seriam supérfluas.

Sem perceber, Larisa sentou-se, desarrumou as fitas do chapéu e tirou-o da cabeça.

O conde admirou aquela massa de cabelos louros contrastando com o veludo negro da cadeira. Depois, falou:

— Você ainda não me disse por que achou melhor partir. — Sei o que você talvez vá me sugerir; e isso estragaria o que sentimos

um pelo outro. Admito que se case com a pessoa certa mas… não posso aceitar a única posição em sua vida… que sobra para mim.

Ela se expressou com hesitação e, ao terminar, encarou-o. Os olhos dele brilhavam de ira, o que o fazia mais assustador que antes.

— Como ousa! — o conde exclamou, quase gritando. — Como ousa pensar, e pior ainda, dizer, que eu ia lhe pedir para ser minha amante?! Não lhe disse que o que sentia por você era diferente? Ainda não sabe que a amo

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como nunca amei mulher alguma no mundo? O tom da voz dele encerrava tanta fúria que Larisa estremeceu; contudo,

uma estranha chama de excitação tremulou dentro dela. — Mas… os franceses… não se casam por amor! Aí ele sorriu, e seu semblante se transformou de imediato. — Você pensa que sabe tudo, Larisa. Oh, minha tolinha, ingênua

Afrodite, será que preciso lhe dizer sílaba por sílaba que “este” francês é diferente?

Ele a ergueu da cadeira e a abraçou. — Estou pedindo-a em casamento, amor! — o conde se declarou com

uma voz que mais parecia uma carícia. Larisa vibrou de felicidade. Toda a sala parecia agora inundada pelo sol,

cheia de luz dourada e ofuscante. Mas então ela sussurrou, temerosa: — Mas você precisa se casar… por dinheiro! — Tem receio de viver na pobreza comigo? ele indagou. — Não, claro que não! — Você ficaria em Valmont, se privaria de festas principescas, de lindos

vestidos, e de jóias fabulosas? — Desejei essas coisas só para que você me admirasse, mas não posso

visualizar lugar mais próximo do céu que Valmont… com você. Ele inclinou a cabeça e procurou os lábios de Larisa. Só por um momento ela tentou resistir, depois cedeu, e mais uma vez o

êxtase e o encantamento que conhecera antes percorreram-lhe o corpo e a alma.

O conde a levava para um céu cheio de estrelas, de encontro ao sol, e Larisa se achegava a ele cada vez mais, sentindo-se, juntamente com o homem amado, uma só pessoa.

Quando Raoul ergueu a cabeça e viu os olhos brilhantes, os lábios quentes e trêmulos de Larisa, declarou:

— Eu amo você, e o resto não me interessa! — Não devia ter vindo atrás de mim. Há tanto a fazer em Valmont. Sua

família vai chegar em poucas horas. — Pensa que isso é mais importante que o fato de perder você? E já

compreendeu, meu tesouro, que não escapará mais de mim? — Mas… e o vinhedo? — Larisa murmurou, apreensiva. — E os novos

investimentos para a fazenda? Esqueceu?

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— Comprei o vinhedo! E quanto às terras, você vai me ajudar a dirigi-las a partir da próxima semana.

Larisa fitou-o incrédula. — Eu sou um homem rico, meu amor! Não que isso faça diferença para

você, pois já me confessou que ficaria comigo mesmo sendo eu pobre. — Mas… como…? — Meu pai economizou, amealhou cada franco, e o dinheiro foi se

acumulando. Nunca pude entender por que ele se dizia tão pobre, pois meu avô lhe deixou uma fortuna considerável. Agora posso fazer tudo o que quero. E você comprará os vestidos de Worth e as jóias necessárias para acompanhá-los.

— Tem… certeza que pode se casar… comigo? — Larisa perguntou. — O que sua família vai dizer? Afinal de contas, para seus parentes eu não passo de uma simples governanta!

— Seu status como governanta, minha linda deusa, não é, socialmente, inferior ao de um propagandista de champanhe.

— Não… entendo. — Como você supõe que sobrevivi todos esses anos, sem receber um

único franco de meu pai, e sem ter renda própria? — Havia o dote… de sua esposa. — Devolvi tudo à família dela. Isso foi outra coisa que enfureceu meu

pai. Depois que ela morreu, mandei de volta não somente o dinheiro como as terras. Não quis tirar proveito de uma união que fora uma verdadeira farsa! Mas tinha de continuar vivendo! Quando cheguei em Paris, espalhou-se logo a fama de que eu era um playboy inveterado.

Larisa o encarou, espantada. — Por causa dessa estranha reputação — ele prosseguiu —

representantes da firma de champanhe Moét e Chandon vieram falar comigo. — Que desejavam? — Apenas que eu promovesse o champanhe produzido por eles,

especialmente o Dom Pérignon, bebendo sempre essa marca. Simples, não? — E eles pagavam todas as despesas de suas festas? — Sim, de minhas festas, dos cavalos, da casa, as roupas, tudo! Raoul

deu um suspiro antes de continuar: — Eles foram muito amáveis. Mas eu estava cansado dessas festas, de

pensar em como entreter meus convidados com fins puramente de

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publicidade. Não bebíamos nada além do champanhe Dom Pérignon, aliás excelente!

— Por isso quis uma caixa do vinho de Valmont? A fim de variar um pouco?

— Foi. Era para mim só, e, se você não tivesse vindo em meu socorro, um copo causaria minha morte!

Larisa escondeu o rosto no ombro dele, ainda assustada. — Mas estou vivo, amor! — ele disse. — E, logo que a cerimônia do

funeral terminar, e meus parentes se retirarem, nós nos casaremos sem grande pompa, em Valmont ou na Inglaterra. A escolha é sua.

— Mesmo? — Larisa exultou de alegria. — Adoraria que mamãe e minhas irmãs viessem ver Valmont, e que Nicky me conduzisse ao altar.

De repente, lembrando-se do irmão, exclamou: — Nicky! Prometi trabalhar para ajudá-lo… — … a se manter em Oxford! — o conde terminou. — Acho que posso arranjar um jeito de conseguir dinheiro a fim de

evitar que minha mulher trabalhe. Exceto para mim, é claro! — Sabe que eu farei qualquer coisa… que você me pedir! — Larisa

murmurou. — É uma promessa! Não vou me esquecer disso! Ele a beijou carinhosamente. — Vou levar uma vida inteira, querida, para lhe explicar como nosso

amor é diferente dos demais, e o quanto você significa para mim. Ela pensou que o conde fosse beijá-la mais uma vez, e seus lábios já

estavam prontos para recebê-lo. Porém, ele apenas a repreendeu: — Estou ainda zangado por você não ter tido confiança em mim, por

acreditar que eu destruiria o que existe entre nós dois, tratando-a como uma mulher do demi-monde.

— É que você… me trouxe para cá… — Ah, lembra-se disso, não? Pois bem, deixe-me sossegá-la contando

que minha avó materna está aqui em casa, onde veio passar a noite; é muito velha para continuar a viagem até Valmont, o que fará amanhã apenas. Vai ser, portanto, sua companhia.

— Você pensa em tudo, não? — Sim, no que se refere a sua pessoa. Contudo a previno de que, se

tentar fugir de novo, vou lhe provar que meu apelido é justificado. Você é

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minha, Larisa, minha agora e para sempre. Nunca a deixarei se separar de mim.

Ela se emocionou com a profunda sinceridade daquelas palavras. Depois, o conde abraçou-a fortemente, colando os lábios nos dela. Beijou-a com imensa paixão. Não havia mais suavidade naqueles beijos,

mas a insistência de um conquistador que venceu todos os inimigos e usufrui seu triunfo.

O fogo que ardia dentro dele juntou-se à chama crescente em Larisa. Ela não tinha mais medo, pois pertenciam um ao outro.

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