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Era uma vez na América do Sul

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Pesquisa FAPESP - Ed. 98

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Page 1: Era uma vez na América do Sul

Abril 2004 • N° 98

Ciência e Tecnologia

FAPESP

Grandes

E mamíferos r a

uma vez na América

do Sul

Page 2: Era uma vez na América do Sul

R IMRGEM DO MÊS ~

As mais antigas galáxias já vistas, fotografadas em março pelo telescópio Hubble, surgiram há 13 bilhões de anos, pouco depois do Big Bang.

PESQUISA FAPESP 98 • ABRIL DE 2004 • 3

Page 3: Era uma vez na América do Sul

www. revistapesquisa. fapesp. br

SEÇÕES

A IMAGEM DO MÊS .................. 3

CARTAS ........................... 6

CARTA DO EDITOR ................... 9

MEMÓRIA ....................... . 10 As sete vidas do Museu Emílio Goeldi

ESTRATÉGIAS O sonho da grama mais verde ........... 20 Oásis une Israel e Jordânia ........ . .. . 20

Revolta da vacina na Nigéria ............ 21 Os trópicos na zona de luz ..... .. . .. ... . 21 Editores na mira da ética .............. 22 Em busca da diferença ... ..... ... . .. .. 22 Vizinhos que se ajudam ................ 22 Ciência na web ...................... 22 Software livre na pesquisa agrícola ....... 23 Dupla jornada autorizada .............. 23 A marca dos 120 periódicos . ... . .. ... .. 23 A máscara carioca do carnaval paulistano .. 24

Vez da genética e do desenvolvimento ..... 24 Conhecimento compartilhado .. .. . .. .. ... 24 Lições da guerra do cupuaçu .... .... ... . 25 À procura do parceiro ideal ............ 25 Receita para vencer a poluição ....... .. . 25

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REPORTAGENS

CAPA Teoria associa a extinção dos grandes mamíferos na América do Sul a alterações na vegetação causadas pelo excesso de umidade ..... 36

As lições de literatura de Roberto Schwarz ........ 12

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

FAPs Pesquisadores se mobilizam por mais recursos para a pesquisa ........... 26

PROGRAMA ESPACIAL Falta de recursos foi responsável pelo acidente com o VLS-1 ...... . 29

INOVAÇÃO Pesquisadores criam empresa de base tecnológica ......... 30

AMBIENTE Piranhas não são tão agressivas como se imagina e, em geral, atacam em defesa da prole ............ 44

NEUROCIÊNCIAS

Experimento em pacientes com Parkinson mostra que sinais do cérebro podem mover próteses ......... ... 46

Novos compostos reduzem danos da doença de Alzheimer ............. 50

Radiação gama ajuda a tratar transtornos obsessivo-compulsivos .. ..... 53

MEDICINA Primeiras cirurgias de correção de coluna em bebês ainda no útero mostram resultados promissores ...... 56

Page 4: Era uma vez na América do Sul

REPORTAGENS

ASTROFÍSICA O telescópio Soar começa a funcionar no Chile e inaugura uma nova etapa da pesquisa brasileira .. . . ... 58

USP 70 A trajetória centenária da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz ... 62

TECNOLOGIA

ENGENHARIA CIVIL

Novas técnicas de construção e tratamento especial da matéria-prima resgatam as tradicionais pontes de madeira .......... . .... 74

METALURGIA CBA e Poli-USP desenvolvem chapas de alumínio mais finas e resistentes ...... 78

QUÍMICA

Empresa cearense transforma rejeitas de crustáceos em medicamentos .. .. ... .. . 80

ENGENHARIA ELÉTRICA Sensor eletrônico elimina prejuízos no processo de secagem da pasta de celulose, usada para fabricar papel ......... 82

HUMANIDADES

ARTES CÊNICAS

Tese revela a evolução da importância dos figurinos no desenvolvimento do teatro moderno ..... . .. . 84

CULTURA Estudo revela importância do Pensionato Artístico, bolsas de estudos que levaram modernistas à Europa ...... . 88

Livro traz radiografia das festas religiosas nacionais ......... 92

Capa: Hélio de Almeida Foto: Art Wolfe I Getty Images Tratamento de imagem: José Roberto Medda

SEÇÕES

LABORATÓRIO Amazônia mutante . .. ..•.. . . . ........ 32 Dieta reprovada ........ . . . .. ... .... . 32 Quando a alergia está no ar .. . .. .. .. .... 33 Além das aparências . .. .. . .... .. ...... 33

Os impactos sutis do ecoturismo ....... . . . 34 Problemas com as células-tronco . ... . .. . . 34 O gás da evolução . . ........... .. ..... 35 Os terremotos e os dados viciados .. . .. . . . 35 Genética contra a malária ........... . . . 35

SCIELO NOTÍCIAS .................. 68

LINHA DE PRODUÇÃO Declaração mundial dos robôs . .. . .. . .. . . 70 Esterilização elimina agentes biológicos .... 70 Rosto é senha de acesso . . ......... . . . . 70 Ônibus limpos e silenciosos ... . .. .... ... 71 Primeiro vôo do maior avião . .. . .. . .. . . . 71 Parceria entre Genius e U nicamp ..... ... 71 ~Telhas com fibras .... . .. .. .. ..... .... 72

Usina móvel visita fundições ............ 72 Carne preservada por mais tempo . . . .. ... 72

......... 73

Patentes . ... .. ... . .... ......... .. . 73

RESENHA ......................... 94 Gilberto Freyre em quatro tempos, organizado por Ethel Volfzon l<osminsky, Claude Lépine e Fernanda Arêas Peixoto

LIVROS .................. . ........ 95

CLASSIFICADOS ................. . . 96

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REPORTAGENS

ASTROFÍSICA O telescópio Soar começa a funcionar no Chile e inaugura uma nova etapa da pesquisa brasileira ....... 58

USP 70 A trajetória centenária da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz ... 62

TECNOLOGIA

ENGENHARIA CIVIL

Novas técnicas de construção e tratamento especial da matéria-prima resgatam as tradicionais pontes de madeira ............... 74

METALURGIA CBA e Poli-USP desenvolvem r chapas de alumínio mais finas e resistentes .. .... 78

QUÍMICA

Empresa cearense transforma rejeitas de crustáceos em medicamentos .......... 80

ENGENHARIA ELÉTRICA Sensor eletrônico elimina prejuízos no processo de secagem da pasta de celulose, usada para fabricar papel . . ..... .. 82

HUMANIDADES

ARTES CÊNICAS

Tese revela a evolução da importância dos figurinos no desenvolvimento do teatro moderno . .. . .. .. . 84

CULTURA Estudo revela importância do Pensionato Artístico, bolsas de estudos que levaram modernistas à Europa .. ..... 88

Livro traz radiografia das festas religiosas nacionais .. . ...... 92

Capa: Hélio de Almeida Foto: Art Wolfe I Getty Images Tratamento de imagem: José Roberto Medda

SEÇÕES

LABORATÓRIO Amazônia mutante ................. .. 32 Dieta reprovada .. . .. . .. . ... . . ....... 32 Quando a alergia está no ar . . ...... ... . . 33 Além das aparências . .. . . ..• .. ..... . .. 33

Os impactos sutis do ecoturismo . . ........ 34 Problemas com as células-tronco . .. ...... 34 O gás da evolução ... .... .. . .......... 35 Os terremotos e os dados viciados . . .. .. . . 35 Genética contra a malária .... . .. .. ..... 35

SCIELO NOTÍCIAS .................. 68

LINHA DE PRODUÇÃO Declaração mundial dos robôs . . ......... 70 Esterilização elimina agentes biológicos .... 70 Rosto é senha de acesso .... .. . .. . . .... 70 Ônibus limpos e silenciosos .. .. . .. ...... 71 Primeiro vôo do maior avião .. . ... . .. ... 71 Parceria entre Genius e U nicamp . ... . . .. 71 ~Telhas com fibras ................. ... 72

Usina móvel visita fundições .. . . . .. .. .. . 72 Carne preservada por mais tempo ........ 72

.... .... . 73

Patentes . ... .. ... . .... .. . . ... . .. . . 73

RESENHA .... . .. . ................. 94 Gilberto Freyre em quatro tempos, organizado por Ethel Volfzon l<osminsky, Claude Lépine e Fernanda Arêas Peixoto

LIVROS ........................... 95

CLASSIFICADOS ............. . ..... 96

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Page 6: Era uma vez na América do Sul

ca rt [email protected]

Biossegurança

Em Pesquisa FAPESP no 97, li o texto intitulado "Carta da FAPESP aos senadores", parte da reportagem "Lei polêmica", que fala sobre a Lei de Biossegurança, em trâmite no Congresso. Não sou da área científi­ca, mas por viver próxima a pessoas que vivem o drama da direção que a pesquisa vem tomando no nosso país (meu marido é aposen-tado da USP, mas continua trabalhando como pesqui-sador, tenho uma filha que faz doutorado na USP/São Carlos e um filho que faz mestrado na USP/Ribeirão Preto) graças às leis incon­sistentes e arbitrárias exis-tentes no Brasil, é com mui-ta admiração que li essa reportagem. Está de para-béns o Conselho Superior da FAPESP, pelo manifesto feito aos senadores. Apro-veito para agradecer o rece­bimento desta digna revista, que traz sempre em suas re­portagens assuntos tão po-lêmicos e relevantes. Aguardo-a sem­pre com muita expectativa, pois a utilizo no programa de rádio diário que faço juntamente com um con­sultor ambiental (mateiro). Posso as­sim diversificar, colocando no ar uma pessoa que entende muito de ecossistema, mas que não é pesqui­sador. A revista Pesquisa FAPESP faz isso muito bem, além de ter confia­bilidade, pois as reportagens são es­critas baseadas em pesquisas cientí­ficas. Sabem de uma coisa? Quando vejo esmorecer todo e qualquer ar­gumento na tentativa de educar nos­so povo, lembro que nem tudo está perdido. Ainda temos os senhores para defenderem com propriedade nossas riquezas naturais. Parabéns e muito obrigada.

NICETE CAMPOS

São Carlos, SP

6 • ABRIL DE 2004 • PESQUISA FAPESP 98

Água-viva

Cumprimento o Conselho Edi­torial e toda a sua equipe pelo exce­lente trabalho de divulgar o conhe­cimento científico gerado no nosso país. Isso é extremamente importan­te para valorizar a qualidade crescen­te da ciência produzida no Brasil. Gostaria de aproveitar a oportunida­de para comentar uma nota que saiu

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

lJ) N O V A R T I S Trop1Net.org

na edição no 97 de Pesquisa FAPESP, na seção Laboratório. A notícia trata de uma nova espécie de água-viva encontrada nas profundezas do lito­ral da Califórnia ( Stellamedusa venta­na). O texto inicia-se com a frase: "Por apresentar quatro braços em vez de tentáculos ... a ponto de inaugu­rar uma nova subfamília ... ". Ressal­to que essas características (quatro braços e ausência de tentáculos) não são exclusivas dessa espécie e que al­guns outros membros do grupo das águas-vivas em questão (filo Cui­daria, classe Scyphozoa, ordem Se­maeostomeae) também comparti­lham esta morfologia. A decisão dos autores para definir a espécie como nova está calcada em uma série de outras características adicionais. To­mei a liberdade de checar o press re­lease divulgado pela instituição dos

autores (MBARI) e acredito que o texto original pode não ser claro o suficiente para uma pessoa não fami­liarizada com o grupo. Parabéns no­vamente pelo excepcional trabalho na revista.

AND~ CARRARA MORANDINI

Departamento de Zoologia Instituto de Biociências/USP

São Paulo, SP

Dinossauros do Maranhão

Com relação à reporta­gem "Sob as palmeiras" (edição no 96), fico conten­te em saber que existem pesquisadores como o pro­fessor Vitorino Coelho de Sousa que, com o verdadei­ro feeling cientifico, são ca­pazes de fazer ciência, de investigar, de orientar, de educar, aqui, ali, em qual­quer lugar. Isso é possível devido à criatividade e à cu­riosidade que instiga o bom pesquisador. Quem diria que de uma aparente sim-

ples conversa algo tão valioso pode­ria ser encontrado. Parabéns à revis­ta pelo artigo e também ao professor e demais envolvidos pela desco­berta. Como aluno de licenciatura em Ciências Biológicas fico espe­cialmente entusiasmado com notí­cias dessa natureza.

LUCIANDRO SODRt

Ciências Biológicas/Unesp Botucatu, SP

Mapas de São Paulo

Manifesto minha surpresa e tris­teza diante dos erros que aparecem no mapa "Evolução da área urba­nizada- de 1949 a 1992" publicado à página 10 do suplemento especial São Paulo 450 anos. Pelo mapa, ine­xistia área urbanizada no ABC em 1949. No entanto, em 1950 (apenas

Page 7: Era uma vez na América do Sul

um ano depois), a cidade de Santo André tinha uma população recen­seada de 97.944 habitantes (popu­lação urbana do distrito de Santo André) e São Caetano do Sul, 55.399 habitantes. Com essas populações, as áreas urbanizadas dessas cidades não podiam ser desprezíveis. Ainda segundo o mapa, a quase totalidade da área urbanizada do ABCD sur­giu nos 13 anos compreendidos en­tre 1949 e 1962 e o crescimento entre 1962 e 1980 (18 anos) foi mínimo. Isso é incompatível com o cresci­mento demográfico da região, cuja população urbana mais que dobrou entre 1960 e 1980. Por outro lado, o crescimento em termos absolutos -que deve se expressar na extensão da área urbanizada - nessas duas déca­das foi muito maior que entre 1949 e 1962. Pelo mapa, Mogi das Cruzes, em 1985, também tinha área urbani­zada zero. No entanto, a população da cidade em 1980 (população urba­na do distrito da sede) não era nada desprezível, ou seja, 122.434 habi­tantes! Pelo mapa, toda a área urba­nizada da cidade de Mogi das Cru­zes só surgiu- toda ela, de repente­depois de 1985, o que é evidentemen­te um disparate. Outro erro evidente: o Parque do Estado aparece com área urbanizada em 1992! Também não são citadas as fontes desse mapa: nem o autor da delimitação dessas áreas urbanizadas, nem os mapas ou fotos aéreas por ele utilizados nas suas delimitações.

FLAVIO VILLAÇA

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP

São Paulo, SP

Resposta das pesquisadoras Regina Maria Prosperi Meyer e Marta Dora Grosteín:

A matéria foi ilustrada com ima­gens retiradas de mapas temáticos do livro São Paulo metrópole, porém publicadas de forma incorreta, isto é, sem as legendas nas quais se infor-

mam as fontes básicas consultadas. Esse procedimento prejudicou a apresentação do trabalho. As fotos aéreas das páginas 8 e 9 eram parte integrante do mapa temático "Vetor de expansão de atividades do terciá­rio" (páginas 184 e 185 do livro). Na reportagem foram incluídas apenas as imagens das fotos aéreas cuja compreensão depende da conjuga­ção com o mapa temático omitido e que as explicaria. Também foram omitidas as fontes básicas utilizadas. Os mapas que constam das páginas 10 e 11 foram reproduzidos na revis­ta sem a legenda, parte fundamental deles, fato que impediu a verificação da origem da informação mapeada. As tabelas de dados demográficos e socioeconômicos incluídas no livro fornecem os parâmetros necessários para corrigir possíveis desvios das informações espacializadas. Os da­dos populacionais apontados pelo professor Flávio Villaça em sua carta constam justamente das tabelas in­cluídas no livro. Essas tabelas res­pondem às observações sobre a área urbanizada de Mogi das Cruzes e do ABC. Lembramos que conforme consta na legenda do mapa publica­do de forma incompleta que a fonte básica utilizada no mapa da página 10 "Evolução da área urbanizada -de 1949 a 1992" é um layer forne­cido pela Emplasa. O erro apontado pelo professor da área do Parque do Estado estar indicada como urbani­zada já foi corrigido no livro.

Nota da Redação: Os mapas foram usados apenas como exemplo para ilustrar a reportagem sobre o traba­lho das pesquisadoras. Não houve preocupação em reproduzir o que já consta do livro São Paulo metrópole.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para

o e-mail car [email protected], pelo fax (11) 3838-41 81

ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP,

C E P 05468-901. As cartas poderão ser

resumidas por motivo de espaço e cl areza.

PESQUISA FAPESP 98 • ABRIL DE 2004 • 7

Page 8: Era uma vez na América do Sul

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Page 9: Era uma vez na América do Sul

Pesquisa CARLOSVOGT

PRESIDENTE

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO

CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI,

NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO

BRENTANI.VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTR ATIVO FRANCISCO ROMEU LANDI

DIRETOR PRESIDENTE

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA

COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ,

LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO,WALTERCOLLI

DIRETORA OE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HlnUHMDES),

CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICAC&T), HEITOR SHIMIZU («ERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITOR ESPECIAL MARCOS PIVETTA

EDITORES-ASSISTENTES D1NORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS

OIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHIN1

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES ALESSANDRA CHAVES PEREIRA, ANA MARIA FERRAZ,

BRAZ, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FABRtCIO MARQUES, FRANCISCO BICUDO, JOANA MONTELEONE,

LAURABEATRIZ, LUCÍLIAATAS, MARCELO HONORIO (ON-LINE), MARGÔ NEGRO, MARILI RIBEIRO, MARONI SILVA,

SAMUEL ANTENOR, SlRIO J. B. CANÇADO, RENATA SARAIVA,THIAGO ROMERO (ON-LINE)

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FAPESP RUA PIO XI, N' 1.500, CEP 05468-901

ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

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NÚMEROS ATRASADOS

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA,TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

RTfl 00 EDITOR

Cenas do passado e do futuro A reportagem de capa desta edição

de Pesquisa FAPESP aborda uma „ nova e fascinante teoria ecoló-

gica elaborada no Brasil. Ela propõe que uma significativa mudança climática no meio do Holoceno, época geológica iniciada há cerca de 11 mil anos, seria o elemento-chave para explicar o desapare- cimento, na América do Sul, e a razoável preservação, na África, de algumas das linhagens dos grandes mamíferos que geraram, entre outras espécies, os atuais elefantes, girafas e rinocerontes. Nos dois continentes, choveu horrores naquele período. Mas, segundo a nova teoria, que o editor especial Marcos Pivetta de- talha a partir da página 36, enquanto na África os formidáveis bichões conse- guiam escapar das antigas áreas de sava- na-cerrado - seu habitat por excelência, que o excesso de água tornara inóspito - e migrar para novas zonas de vegetação aberta nas extremidades norte e sul do continente, na América do Sul eles não tiveram essa chance - não encontraram nenhum ambiente próximo compatível com seu estilo de vida e pereceram. O resultado é que hoje o maior mamífero no continente em que nos encontramos é a anta, grande, sem sombra de dúvi- da, com seus até 300 quilos, mas apenas um bichinho diante do imponente ele- fante africano, que pode ser 20 vezes mais pesado que ela. A teoria é, claro, polêmi- ca, mas até por isso vale a pena mergu- lhar no delicioso texto que a apresenta.

Fronteiras que desafiam o desejo muito humano de conhecer e transfor- mar a realidade nem sempre estão situa- das a enormes distâncias no tempo ou no espaço. Às vezes é o mais próximo, mesmo o que nos constitui, que lon- gamente resiste às investidas da razão científica. Um bom exemplo? O cére- bro humano. Mas talento, persistência e uma determinação quase obsessiva de decifrar o que de fato se guarda por trás da fortaleza da caixa craniana vêm lan- çando novas luzes sobre a fisiologia, a potência e os males que acometem com freqüência o mais nobre dos órgãos do corpo humano.

É de algumas dessas luzes que trata o bloco de reportagens sobre neurociên-

cias, a partir da página 46. Na primeira, Pivetta, que no começo de março esteve em Natal acompanhando o simpósio de lançamento do ambicioso projeto de construção de um instituto internacio- nal de neurociências naquela cidade, capitaneado por Miguel Nicolelis, relata as experiências de ponta desse cientista paulistano, radicado há 15 anos nos Es- tados Unidos, onde comanda um labo- ratório com 40 pesquisadores na Uni- versidade de Duke, Carolina do Norte. A mais recente e fantástica delas, já di- vulgada pela imprensa brasileira, sugere que o homem, em tese, pode controlar robôs e próteses por meio da atividade elétrica de seus neurônios. Na segunda reportagem, o editor-assistente de Ciên- cia Ricardo Zorzetto mostra avanços pro- missores na pesquisa brasileira de novos compostos destinados a reduzir os da- nos provocados pelo mal de Alzheimer, doença que devasta o cérebro e a vida de 5% dos homens e 6% das mulheres com mais de 60 anos no mundo inteiro, atin- gindo 40 milhões de pessoas, das quais 1,5 milhão no Brasil. Na terceira re- portagem do bloco, o repórter Francis- co Bicudo narra as experiências cirúr- gicas que, valendo-se dos raios gama, vêm sendo feitas desde dezembro pas- sado no país para tratar portadores de manifestações graves do transtorno obsessivo-compulsivo. Mais conheci- do por TOC, esse problema psiquiátrico que transforma em inferno o cotidiano de seus portadores, afeta cerca de 3 mi- lhões de pessoas no Brasil.

Para finalizar, é leitura altamente re- comendável, para não dizer obrigatória, a entrevista com o crítico de literatura Roberto Schwarz (pag. 12), feita por Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor de filosofia da USP, coordenador científi- co do projeto da revista Pesquisa FAPESP, e por mim. A lucidez, o vasto conheci- mento, a inteligência aguda de Schwarz, que lhe permitem atravessar questões polêmicas modulando com mestria o tom de sua fala entre o incisivo e o suave, transformam em genuíno prazer o ato de ouvi-lo - ou ler suas palavras.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 • 9

Page 10: Era uma vez na América do Sul

MEMóRIA

useu com sete vidas

Pioneira na Amazônia, o Emílio Goeldi renasceu várias vezes em 138 anos

NELDSON MARCOLIN

Prédio da Rocinha, sede do museu desde 1895, hoje é local de exposição permanente

A lém dos conhecidos estudos sobre fauna, i^L flora e minerais, todos aqueles naturalistas L^k estrangeiros que percorreram o Brasil i ^ no século 19 deixaram uma importante

^Lm -A. contribuição para a ciência do país - a motivação para a criação de um museu de história natural na Amazônia, que poderia servir como apoio às expedições e até formar pesquisadores. Assim começou a trajetória pioneira e errática da primeira instituição científica da região e o segundo mais antigo museu de ciências do país (o primeiro é o Museu Nacional, no Rio de Janeiro). Em 1861, foi proposto um artigo aditivo à Lei do Orçamento Provincial para a criação de uma instituição desse tipo em Belém, fato só

10 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

Page 11: Era uma vez na América do Sul

Visitantes no Parque Zoobotânico, em 1905, e Emílio Goeldi (ao lado): educação e lazer para o público

Aquário do parque, em 1911: ciclos de

investimento e abandono marcam a história

do museu

concretizado em 1866 com o nome de Museu Paraense. O momento era propício: a borracha estava em alta e havia uma classe emergente interessada em ciências, publicações, e nas visitas de naturalistas e artistas estrangeiros à Amazônia. Essa atenção e apoio do governo e da sociedade para o museu duraram pouco. Extremamente dependente de seu primeiro diretor, Domingos Soares Ferreira Penna, a instituição foi fechada logo após sua morte, em 1888. Três anos depois, o museu renascia - o primeiro de vários renascimentos. Em 1894, assumiu a direção o zoólogo suíço Emílio Goeldi (1859-1917), que posteriormente viria a lhe dar o nome e a transformar o centro em uma instituição científica de fato, com uma estrutura recheada de cientistas e técnicos muito produtivos. Foram criados o Parque Zoobotânico e o Serviço Meteorológico. Goeldi iniciou a publicação de boletins científicos, excursões por toda a região amazônica e a coleta para formar as primeiras coleções zoológicas, botânicas, geológicas e etnográficas. O suíço incorporou-se à luta contra a febre amarela publicando, a partir de 1902, vários artigos sobre a classificação e biologia dos mosquitos transmissores da doença - simultaneamente, portanto, aos trabalhos de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro. O museu tornou-se pioneiro ao contratar uma mulher para uma instituição pública no Pará, em 1905, a zoóloga alemã Emília Snethlage, a última pesquisadora a sair antes da crise econômica da década de 1920. Até 1930, o museu ficou em total abandono. A partir daí começou a se reerguer e ganhou definitivamente o nome de Museu Paraense Emílio Goeldi. Outras graves crises vieram, mas a instituição se manteve ativa, criando novos programas, intensificando os estudos sobre etnologia e apostando em pesquisas arqueológicas sistemáticas. Nas últimas duas décadas do século 20, o museu recebeu investimento público, mas também buscou se expandir por meio de ajuda internacional e, em 2003, pelo segundo ano consecutivo, os recursos extra-orçamentários (R$ 6,7 milhões) superaram os repassados pelo Tesouro (R$ 4,4 milhões).

PES0UISA FAPESP < ABRIL DE 2004 ■ 11

Page 12: Era uma vez na América do Sul

1 na periferia do capitalismo Luiz HENRIQI MOURA

oberto Schwarz, 65 anos, é indiscutivelmente um crí- tico à altura de Machado de Assis. Foi com ferramen- tas cuidadosamente cinze-

ladas por ele que o grande escritor bra- sileiro, lido até então por muitos como uma espécie de inglês deslocado, emer- giu para os leitores contemporâneos, em dois ensaios magistrais - Ao vencedoras batatas, de 1977, e Um mestre na periferia do capitalismo, de 1990 -, como o autor de uma obra poderosa, cujas soluções formais são profunda e intrinsecamen- te revcladoras do processo social brasi-

século 20. Mas se o bruxo do Cosme Velho está

no centro do trabalho crítico de Rober- to Schwarz, não o esgota entretanto. En- saísta orientado pela busca tenaz de uma idéia objetiva de forma, ao mesmo tem-

cura deter seu olhar tanto em Osvvald de Andrade quanto no poeta marginal Francisco Alvim. Observador atento e preocupado com o que se passa hoje na literatura do país, que se mantém a larga distância de uma produção contí- nua e vigorosa de bons livros, decorrên- cia talvez de

entretanto assinalou de pronto a força poderosa de Cidade de Deus, "o grande achado" de Paulo Lins. E chama a aten- ção para Valdo Motta, um poeta quase desconhecido do Espírito Santo, trazido

à luz num belo ensaio de Iuma Simon, e que "é um ponto de força novo, dife- rente, na cultura brasileira".

Tranqüilo até quase a suavidade na exposição de seus pontos de vista, por mais radicais que sejam, elegante, ainda que sempre incisivo, na elucidação das polêmicas em que se envolveu no cam-

se, nesta entrevista, e no melhor sentido da expressão, o intelectual engajado que sempre foi - o que lhe valeu o exílio de 1969 a 1977, período que cobre alguns dos anos mais dramáticos da ditadura militar no país. Além de engajado, extre-

cido em Viena, Áustria, professor titular de Teoria Literária da Universidade Es- tadual de Campinas (Unicamp), aposen- tado formalmente em 1992, mas que se manteve em atividade docente como ti- tular convidado até 1997, é autor de uma dúzia de livros, entre eles dois de poesia e um de dramaturgia, mais de uma cen- tena de artigos e assina a tradução de uma dúzia de outras obras.

I Gostaria que você falasse um pouco so- bre sua formação e personagens que mais o influenciaram nessa fase. — Meus pais eram austríacos, intelec- tuais de esquerda, ateus e judeus. Quan- do a Alemanha anexou a Áustria, tive-

pai, que era um homem completamen- te literário, teria sido escritor e professor. Embora tivéssemos chegado ao Brasil sem nada, ele logo começou a refazer

uma boa biblioteca alemã, que tenho até hoje.

Ele morreu cedo, quando eu tinha 15 anos. O Anatol Rosenfeld, que era ami- go dele e da família, passou a acompa- nhar os meus estudos e a sugerir leitu- ras. Durante muitos anos ele jantou em casa aos domingos, que passaram a ser um dia obrigatório de revisão da sema- na e discussões. Apesar da grande dife- rença de idade, ficamos muito amigos.

U Anatol Unha um grupo... — Sim, ele dava um curso de filosofia na casa do Jacob Guinsburg. O grupo se reunia uma vez por semana, e eu comecei a participar também quando tinha 18 anos, pouco antes de entrar na faculdade. Isso durou muitos e muitos anos, os alunos liam um trecho de al- gum filósofo uma vez por semana e o Anatol comentava. Foi interessante essa sua maneira de arranjar a vida: em al- guns cursos ele antes ia jantar, o que era bom para a dona da casa, que tinha o jantar animado intelectualmente, e era bom para ele, que... jantava. E depois ele dava o curso.

E aí você entrou no curso de Ciências Sociais da USP. — Foi, em 1957, por sugestão também do Anatol. Eu estava no último ano do secundário, um pouco incerto se fazia Letras, Filosofia ou Ciências Sociais. O Anatol, muito objetivo, me disse que fosse à faculdade assistir a algumas au- las antes de decidir. Assisti a uma aula

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de literatura, de um professor cujo nome não vou dizer, e desisti de fazer Letras. Assisti a uma aula do Cruz Costa, que fazia piada atrás de piada e me deixou um pouco assim... E assisti a uma aula da Paula Beiguelman, em Política, mui- to bem preparada e interessante. Aí me decidi pelas Ciências Sociais.

■ Já no curso de Ciências Sociais você participou daquele grupo do seminário do Capital? — O seminário começou em 1958. Foi iniciativa de um grupo de professores jovens, vindos das Ciências Sociais, da Filosofia, da História e da Economia, que tiveram a boa idéia de incluir tam- bém alguns alunos. Com isso o semi- nário já nasceu multidisciplinar e espi- chado para a geração seguinte. Marx na época era pouco ou nada ensinado, em- bora muitos professores nessa área fos- sem de esquerda. De modo que a deci- são de estudar a sério a sua obra tinha alcance estratégico. No núcleo inicial es- tavam Ruth e Fernando Henrique Car- doso, Octávio Ianni, Fernando Novais, Paul Singer e Giannotti. Os alunos mais assíduos eram Leôncio Martins Rodri- gues, Francisco Weffort, Gabriel Bollaf- fi, Michael Lõwy, Bento Prado e eu.

■ E qual foi o peso do seminário em sua formação, em sua visão de mundo? — Foi decisivo. Ao contrário do que diz meu amigo Giannotti, estudar Marx na época não era assimilar um clássico entre outros. Por um lado, tratava-se de apos- tar na reflexão crítica sobre a sociedade contemporânea. Por outro, tomava-se distância da autoridade dos Partidos Co- munistas na matéria, que promoviam uma compreensão bisonha de Marx, im- posta como um dogma. Havia também a excitação de descobrir e afirmar a su- perioridade intelectual de um autor pro- fundamente incômodo para a academia bem-pensante e para a ordem em geral. Na iniciativa do seminário havia algo de inusitado e também de precário, além de premonitório. Poucos sabiam alemão, não tínhamos familiaridade com o contexto cultural de Marx, a bibliogra- fia moderna não estava disponível, para não dizer que estava desaparecida. De um ponto de vista universitário "nor- mal", não estávamos preparados para a empreitada. Em compensação havia a sintonia com a progressiva radicaliza- ção do país, que entrara em movimen-

to, e talvez com a corrente de fundo que levaria o mundo a 1968. Até certo ponto o despreparo foi uma vantagem, pois permitiu que enfrentássemos com espírito livre as dificuldades que a ex- periência brasileira opunha aos esque- mas marxistas.

■ Como era a dinâmica do seminário? — O grupo se reunia de quinze em quinze dias e discutia mais ou menos 20 páginas por vez. A discussão ia de questões elementares de compreensão a problemas cabeludos, com conseqüên- cias teóricas e políticas. Como os pro- fessores estavam em idade de escrever as suas teses, que no geral foram de as- sunto brasileiro, começou a se configurar no seminário a distância entre a cons- trução marxista e a experiência histórica do país. O seminário teve a força de não desconhecer a discrepância e, também, de não considerar que ela anulava a me- lhor teoria crítica da sociedade contem- porânea. Era preciso refletir a respeito, ver o desajuste como um problema fe- cundo e, talvez, como parte das desigual- dades do desenvolvimento do capita- lismo. Marx não podia ser aplicado tal e qual ao Brasil, que entretanto fazia parte do universo do capital. Estava sur- gindo o tema da reprodução moderna do atraso, segundo o qual há formas sociais ditas atrasadas que na verdade fazem parte da reprodução da sociedade contemporânea, em âmbito nacional e internacional. Embora a obra corres- pondente não tenha sido escrita, estas observações ligadas à experiência das nações periféricas têm relevância histó- rico-mundial, para uma apreciação só- bria e não-ideológica das realidades do progresso, o qual é mais perverso do que consta. Quando chegou a minha vez de fazer tese e de analisar os romances de Machado de Assis, eu me havia impreg- nado muito deste modo de ver.

■ Já havia seu interesse pela literatura, mas em termos formais como se deu sua ida para a teoria e a crítica literária? — Fui aluno de Antônio Cândido no segundo ano de Ciências Sociais, em 1958, no último ano em que ele deu Sociologia. No ano seguinte comecei a ficar abatido com o lado empírico da pesquisa sociológica, os levantamentos e as tabulações não eram comigo. Nessa altura, Antônio Cândido passara da So- ciologia para as Letras e estava ensi-

nando Literatura Brasileira em Assis. Ruminei o exemplo e fui até lá me queixar da vida e pedir conselho, pois gostava mesmo é de literatura. Ficou mais ou menos combinado que quan- do eu terminasse o curso faria um mes- trado em Literatura Comparada no exterior e depois iria trabalhar com ele na USP. Nessa época eu já escrevia um pouco de crítica literária para jornal.

■ Qual jornal? — Um suplemento literário da Última Hora, onde publiquei um artigo sobre O amanuense Belmiro, romance sobre o qual o Antônio Cândido havia escrito anos antes. Uma amiga espoleta levou o trabalho ao professor, contando que eu achava o artigo dele parecido com o meu. Ele achou graça, leu e me convidou pa- ra colaborar no Suplemento Literário do Estadão, que era dirigido pelo Décio de Almeida Prado. Assim, quando fui a Assis procurar conselho, ele tinha idéia do que eu andava fazendo.

■ A ida para o exterior era porque na época não havia mestrado aqui? — A pós-graduação estava começando. Na época só fazia mestrado e doutora- do o pessoal que já estava trabalhando nalguma cadeira. Como eu vinha de Ciências Sociais, para ensinar em Letras precisava de um título apropriado. Fui aos Estados Unidos fazer um mestrado em Teoria Literária e Literatura Com- parada, na Universidade de Yale. Na vol- ta, em 63, pouco antes do golpe, come- cei a trabalhar na Teoria Literária, que era uma novidade na USP.

■ E, nesse começo de trabalho com Antô- nio Cândido, como é que se delineiam seus temas de trabalho? — Os primeiros anos são sempre sua- dos. Preparar cursos, aprender o sufi- ciente para ensinar, no começo não é fácil. Mas a idéia básica de meu traba- lho eu tive cedo. Foi mais ou menos o se- guinte: eu lia Machado de Assis e achava a ironia dele especial. Tinha a impressão de que havia naquele tipo de humoris- mo, de gracinha metódica, alguma coisa brasileira. Então eu saí atrás disso. Com- binei a tentativa de descrever a ironia de Machado com a intuição de que ela seria nacional - o que restava explicar. Combinei um dose reading dessa ironia com a teoria do Brasil do seminário do Capital. A idéia de que a substância da

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ironia machadiana tinha a ver com a mis- tura de liberalismo e escravismo no Bra- sil me veio cedo, antes de 64. Agora, daí a escrever sobre isso, vai um pedaço.

■ E quanto ao doutorado? — Fiz na Universidade Paris III, Sor- bonne. O meu tema lá foi Ao vencedor, as batatas. O livro é de 1977. Quando voltei, já estava publicado.

■ A sua ida para a França decorreu, na verdade, da repressão política que a dita- dura instaurou no pais. Como foi sua experiência de exílio7. — A França foi camarada com os refu- giados, que foram chegando por ondas, conforme as ditaduras iam tomando conta da América Latina. Dentro do de- sastre geral, a verdade é que o exílio era também muito interessante, apresenta- va os latino-americanos uns aos outros, e mesmo os brasileiros das diferentes re- giões. O ar estava cheio dos événements de mai, os acontecimentos de 1968. Para quem não estivesse com a vida quebra- da, ou sob pressão material excessiva, e para quem tivesse disciplina para reto- mar os estudos, foram anos bons.

■ Para chegar ao ápice de sua investiga- ção sobre a relação entre a ironia de Ma- chado de Assis, o comportamento da elite brasileira e, enfim, a estrutura social do país, Ou em outras palavras, para chegar a Um mestre na periferia do capitalis- mo, você gastou mais uns 11 anos, não é verdade? — Sou mais lento do que devia.

■ Em alguma medida há pioneirismo no trabalho de Antônio Cândido quando ele lança um olhar para a literatura atraves- sado por uma visão mais sociológica do país? Ou isso é uma prática geral na crí- tica, que ele explicita melhor? — Eu inverteria os termos da questão: Antônio Cândido lança à visão histó- rico-sociológica do país - que conhece como poucos - um olhar atravessado pela experiência e pela análise literárias, em cujo valor de revelação ele acredita e a que deve as suas descobertas. O pio- neirismo está aí, nessa inversão, que dá cidadania plena ao ângulo estético.

Vamos por partes. Que a literatura faça parte da sociedade ou que se co- nheça a literatura através da sociedade e a sociedade através da literatura, são te- ses capitais do século XIX, sem as quais,

aliás, a importância especificamente mo- derna da literatura fica incompreensível. Elas estão na origem de visões geniais e dos piores calhamaços. Em seguida se tornaram o lugar-comum que sustenta a historiografia literária convencional. Dentro desse quadro, o traço que distin- gue a crítica dialética, e que a torna es- pecial, é que ela desbanaliza e tensiona essa inerência recíproca dos pólos, sem suprimi-la. O que for óbvio, para ela não vale a pena. Se não for preciso adi- vinhar, pesquisar, construir, recusar apa- rências, consubstanciar intuições difí- ceis, a crítica não é crítica. Para a crítica dialética o trabalho da figuração literá- ria é um modo substantivo de pensa- mento, uma via sui generis de pesquisa, que aspira à consistência e tem exigên- cia máxima. O resultado não é a sim- ples reiteração da experiência cotidia- na, a cuja prepotência se opõe, cujas contradições explicita, cujas tendências acentua, com decisivo resultado de cla- rificação. Em suma, em termos de mé- todo, o ponto de partida está na confi- guração da obra, com as luzes que lhe são próprias, e não na sociedade.

■ Ao contrário do que dizem os detrato- res dessa crítica. — É isso. Ela parte da análise estética e busca o não-evidente, o resultado do que o trabalho formal do artista configurou. Ao passo que a posição tradicional, ou positivista, que também vai se renovando e continua presente com outros nomes, se limita aos conteúdos brutos, procuran- do o mesmo na sociedade e nas obras, vistas em termos redundantes, de con- firmação recíproca direta.

■ Isso você já dizia com 23 anos, no arti- go sobre o psicologismo na poética de Mário de Andrade. — A verdade é que não lembro. Reto- mando o fio, há uma fórmula de Lu- kács, segundo a qual o social na obra está na forma. Não que os conteúdos não sejam sociais, mas a forma, ao traba- lhá-los e organizá-los, ou também ao ser infletida por eles, configura algo de mais geral, análogo à precedência da sociedade sobre os seus conteúdos sepa- rados. Se as obras interessam, é porque se organizam de um modo revelador, que algum fundamento tem na organi- zação do mundo - fundamento a des- cobrir caso a caso.

Como a maior parte da historiogra- fia literária é de inspiração nacional e como a nação até outro dia era um horizonte quase auto-evidente, criou-se uma espécie de certeza infundada, se- gundo a qual o espaço a que a literatura e as formas literárias se referem é tam- bém ele nacional. Ora, a literatura mais audaciosa, justamente por ter aversão às mentiras do oficialismo e do nacio- nalismo, e por adivinhar o avanço de dimensões extranacionais da civiliza- ção burguesa, não cabe nesse quadro. No caso brasüeiro, a referência nacional tem uma realidade própria, de tipo di- verso, que continuou efetiva (até hoje?) e catalisou uma parte importante da in- venção formal. Em parte por causa do complexo de país novo, que fazia da cria- ção de uma literatura nacional um pro- jeto deliberado. Basta lembrar o pitores- quismo programático dos românticos, ou a tentativa machadiana - descoberta por John Gledson - de maquinar intri- gas com relevância nacional, ou o Na- turalismo com o seu trópico científico- alegórico, ou a invenção modernista de logotipos nacionais, como o Pau Brasil, a Negra e Macunaíma. A questão fica mais interessante quando a reconhece-

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mos fora da esfera do projeto nacional assumido, numa certa gama de infle- xões, problemas, reações etc. É como se a matriz nacional se impusesse incons- cientemente, pela força das coisas, ou melhor, como conseqüência da peculia- ridade da estrutura social do país, que gera uma problemática social, lingüísti- ca, política e histórica singular, com a qual nos debatemos e à qual nos cabe responder, queiramos ou não.

Ao deixar de lado ou ao fazer da in- tenção do autor um ingrediente entre outros, a análise histórico-estrutural co- loca-se no terreno das configurações e dos funcionamentos objetivos, cuja dinâmica não corre em trilhos previstos, podendo levar aonde o autor não imaginava. A re- ferência é nacional, mas sem garantia de final feliz. Essa é uma consciência crítica adulta, segundo a qual não fazemos o que queremos, ou fazemos o que não quere- mos, e não obstante pagamos a conta. Uma posição esclarecida e desabusada, que se torna modelo para a compreensão estética e social quando fica evidente que a sociedade burguesa não se gover- na a não ser superficialmente, ao passo que a sua superação não está à vista.

Ainda aqui o passo à frente foi dado por Antônio Cândido, no admirável en- saio sobre O cortiço, ainda não devida- mente explorado. Ele mostrou que o autor pensava estar romanceando o processo brasileiro de guerra e acomo- dação entre as raças, em conformidade com as teorias racistas do Naturalismo, mas que na verdade, conduzido pela lógica da ficção, mostrava um processo primitivo de exploração econômica e formação de classes, que se encaminha- va de um modo bárbaro e desmentia as ilusões raciais e nacionais do romancis- ta. O curso das coisas é nacional, mas difere do previsto pelo escritor.

■ O que significa sua interrogação "até hoje?" quando aborda a pretensão de fundação nacional dos grandes textos brasileiros? — A crítica dialética supõe obras que sejam mais ou menos fechadas e alta- mente estruturadas. Na literatura brasi- leira não há muitas que convidem a uma análise desse tipo. Quando Antônio Cân- dido resolveu estudar nessa veia as Me- mórias de um sargento de milícias, estava escolhendo o caminho difícil e levando ao extremo uma posição crítica de ponta. A ousadia foi pouco notada, porque o

romance - divertido e despretensioso - não faz pensar nessa ordem de tentati- vas. Manoel Antônio de Almeida não só não queria fazer o que o crítico desco- briu, como se movia num plano incom- paravelmente mais modesto. Essa des- proporção é um erro? Pelo contrário, ela tira as conseqüências de uma certa idéia de forma objetiva, que não coin- cide com as intenções do autor, as quais pode exceder e contrariar amplamente. Uma idéia de forma e de análise que o crítico compartilha com uns poucos mestres da crítica dialética. Os dois en- saios centrais de Antônio Cândido, sobre o Sargento de milícias e O cortiço, sendo rigorosamente apoiados na análise das obras, descobrem a sua força e relevân- cia num plano que não teria ocorrido aos respectivos autores.

■ Essa é uma visão propriamente mar- xista, não? — No essencial, penso que é, embora a terminologia não seja, ou seja só em parte. A parte boa da tradição marxista manda acreditar mais na configuração objetiva das obras que nas convicções ou posições políticas dos escritores. Há uma afirmação célebre de Marx, em que ele diz ter aprendido mais com os romances de Balzac do que com a obra dos econo- mistas, isso embora Balzac seja conser- vador. Para além das preferências, há sobretudo uma afinidade de fundo na concepção da forma objetiva, seja social, seja estética: conforme o caso, o seu di- namismo interno se realiza não só con- tra, mas também através das ilusões dos interessados (o racismo de Aluísio, por exemplo, faz parte da força com que O cortiço mostra que o problema é de clas- se, e não de raça). O modelo é o ciclo do capital, que se realiza - na expressão de Marx - "atrás das costas" dos participan- tes, levados à crise contra a sua vontade.

Mas voltando à sua pergunta: esse tipo de crítica supõe obras e socieda- des muito estruturadas, com dinamis- mo próprio. Trata-se de enxergar uma na outra as lógicas da obra e da socieda- de, e de refletir a respeito. Acontece que vivemos um momento em que essa idéia de sociedade, como algo circunscri- to, com destino próprio, está posta em questão, para não dizer que está em decomposição. Já ninguém pensa que os países de periferia têm uma dialética interna forte - talvez alguns países do centro tenham, talvez nem eles. E no

campo das obras, com a entrada maci- ça do mercado e da mídia na cultura, é voz corrente que a idéia de arte mudou, e é possível que o padrão de exigência do período anterior tenha sido abando- nado. Talvez os pressupostos da crítica dialética estejam desaparecendo...

■ Penso que existe ainda a intenção dos escritores de produzirem alguma coisa que traga até as palavras o sentimento desse presente de relações e valores tão esgarça- dos, confuso, violento etc. Por que, então, não se chega a essa obra capaz de apre- sentar uma relação bem íntima entre for- ma do texto e forma social? — Também não me convenço de que não seja mais possível. Mas é fato que o processo social mudou de natureza. A circunscrição dele, no sentido em que você podia dizer "essa é a sociedade bra- sileira", está deixando de ser efetiva, de ser verdadeira. Por exemplo, o caso...

■ Vamos pegar o caso de Cidade de Deus. — Antes disso, para não perder o fio, quero falar do ensaio de Adorno sobre Beckett, para o meu gosto um dos mais brilhantes que já se escreveram sobre a literatura moderna. Em Fim de partida as personagens são figuras metidas nu- ma lata de lixo, mutiladas e falando uma linguagem limitada a quase nada, um resíduo. Isso costuma ser considerado uma redução ao essencial, um minima- lismo atemporal, para mostrar que o ser humano, mesmo na situação mais precária, conserva inteira a sua grande- za. Mas Adorno desloca a cena, lhe põe uma data e diz que, muito ao contrário, o que Beckett está descrevendo é uma sociedade "pós-catástrofe". Pós-catástro- fe nuclear, pós-Segunda Guerra Mun- dial, enfim, a época em que a civilização moderna mostrou que a sua capacida- de de autogoverno ou de auto-supe- ração não é o que se dizia. Dentro desse universo, os farrapos de filosofia, os resíduos de iniciativa, de desejo de pro- gresso, os cacoetes da esperança, repre- sentam na verdade lixo intelectual, água servida. Assim, a operação crítica consis- tiu em deslocar para um momento his- tórico preciso e bem explicado, embora imaginado, o que se costumava alegori- zar como a condição humana. O deslo- camento confere uma incrível vivacidade e particularidade artística ao que pare- ceriam alegorias e generalidades insos- sas. Do lado do referente também há des-

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locamento: a sociedade não é nacional, regional ou municipal, ela é o planeta depois do desastre. O ensaio de Adorno muda a leitura de Beckett e é um grande achado crítico. É um exemplo de como o referente social e histórico tem âmbitos inesperados e pode ser de diferentes tipos.

Retomando a sua pergunta, no caso do Paulo Lins há de fato um universo cir- cunscrito, por assim dizer policialmen- te segregado. Um universo fechado por circunstâncias "modernas", desastrosas, altamente preocupantes, que permite es- crever um romance "à antiga". Mas o ro- mance não é antigo de jeito nenhum.

■ O que despertou mais a sua atenção foi exatamente essa possibilidade? — Não. Foi, primeiro, a extrema vivaci- dade da linguagem popular, dentro da monotonia tenebrosa das barbaridades, que é um ritmo da maior verdade. De- pois, a mistura muito moderna e esteti- camente desconfortável dos registros: a montagem meio crua de sensacionalis- mo jornalístico, caderneta de campo do antropólogo, terminologia técnica dos marginais, grossura policial, efusão líri- ca, filme de ação da Metro etc. E sobre- tudo o ponto de vista narrativo, inter- no ao mundo dos bandidos, embora sem adesão, que arma um problema inédito. Há ainda o conhecimento pormenori- zado, sistematizado e refletido de um uni- verso de relações, próximo da investiga- ção científica, algo que poucos romances brasileiros têm. Enfim, é um mix pode- roso, representativo, que desmanchou a distância e a aura pitoresca de um mun- do que é nosso. É um acontecimento.

■ Em paralelo ao desenvolvimento de uma crítica dialética, florescia uma outra crí- tica bem diferente no Brasil, comandada pelos concretistas, em especial pelos irmãos Campos, e entre as duas se estabeleceu uma intensa polêmica. Gostaria que você situasse um pouco essa questão. — A oposição existe, mas no que im- porta ela não é fácil de fixar, porque foi recoberta por um fla-flu, errado em re- lação às duas partes. Até onde enten- do, as versões que ficaram foram deter- minadas pelos anos da ditadura. Numa delas, os críticos ligados à Teoria Lite- rária da USP seriam múmias conteudis- tas, professores atrasados, cegos para as questões de forma, praticantes do so- ciologuês, nacionalistas estreitos, além de censores stalinistas. Ao passo que no

campo concretista estariam os revolucio- nários da forma, atualizados com o es- truturalismo francês, o formalismo rus- so e a ciência da linguagem, conscientes de que o âmbito literário não se comu- nica com a vida social. Naturalmente a versão do campo em frente trocava os sinais desses mesmos termos e opunha, para abreviar, engajados a alienados, um pouco em paralelo - como me indicou uma amiga - com as polarizações dos festivais da canção da época. Ora, nada disso corresponde. Os críticos dialéticos eram formalistas de carteirinha, empe- nhados justamente na reflexão sobre o problema. Seu ângulo era estético, as suas simpatias eram modernistas e sua posi- ção era anti-stalinista de longa data. As linhas teóricas a que se contrapunham eram a historiografia positivista, o psi- cologismo, o marxismo vulgar e a clas- sificação das obras segundo as convicções políticas de seus autores. Para dar idéia da independência conceituai e crítica com que então se trabalhava na USP (em certos setores), não custa acompanhar alguns passos de um percurso caracte- rístico. Talvez se possa dizer que Anto-

Cidade de Deus é um acontecimento. Desmanchou a distância e a aura pitoresca de um mundo que é nosso

nio Cândido foi buscar no dose reading do New Criticism - uma técnica forma- lista, desenvolvida nos States, na década de 30, com sentido conservador - um instrumento para fazer frente ao socio- logismo e ao marxismo vulgar corren- tes na esquerda brasileira dos anos 40. Só que ele reelaborou o procedimento e o abriu em direção da história, com vistas na historicização das estruturas, o que lhe permitiu uma sondagem de no- vo tipo da literatura e da sociedade bra- sileiras. Sem alarde de terminologia, e muito menos de griffes internacionais, os ensaios de Antônio Cândido que vêm ao caso aqui são seguramente as peças mais originais de análise estrutural já feitas no Brasil. Também no campo dos concretistas a história não cabe no cha- vão. É falsa a idéia de que fossem "alie- nados" ou desinteressados do rumo da história extraliterária. Como vanguar- distas, entendiam a sua revolução formal como parte de uma revolução social em curso. Eram de esquerda e Haroldo se considerava próximo do marxismo, não sei se também nos últimos tempos. Se a pecha de pouco sociais colou neles no pré-64 foi devido aos preconceitos an- tiexperimentalistas do Partido Comu- nista, que na época dispunha de autori- dade e denunciava o "formalismo" da arte moderna. O que não impediu os concre- tistas de disputar com galhardia o seu lu- gar dentro da esquerda e de anunciar, num congresso de crítica literária em As- sis, em 1961, o seu "salto participante". Procuravam articular a invenção formal com a radicalização política do Brasil.

Em suma, contrariamente ao lugar comum, os dialéticos eram formalistas, os concretistas eram engajados, e o que nos movia a todos era a aceleração his- tórica do país.

■ Os concretistas desenvolviam a linha de Oswald de Andrade? — É o que eles dizem, embora eu ache difícil reconhecer o ar de família. Ainda quanto aos chavões, é interessante notar que ao contrário do que eles afirmam, e os outros repetem, eles são de longe os escritores brasileiros que mais se valeram da sociologia para a sua autojustifica- ção e para explicar a própria primazia. Entre nós, não há outros que depen- dam tanto da teoria social para garantir a posição a que aspiram para a sua obra. A teoria deles vale o que vale, mas a con- tradição merece registro.

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Voltando à polêmica, não é fácil en- contrar grandes razões para ela. De um lado, críticos-professores tentando uma interpretação histórico-estrutural da li- teratura brasileira, puxando para a es- querda. Do outro, à esquerda também, o grupo dos poetas concretistas, que mi- litavam para impor a sua obra, em que viam a revolução, além de teorizarem em causa própria, o que é natural igual- mente, mas nem sempre convence. Para que a história fosse outra (e ninguém fosse chamado de "vermina pestilente" ou chefe de uma "campanha de caça aos concretistas"), talvez bastasse que os pro- fessores da USP não tivessem torcido o nariz para a "tese" dos poetas, segundo a qual a linha nobre da poesia moderna, que vem de Mallarmé, passa por Oswald de Andrade, Drummond e João Cabral, culmina neles próprios. Mas pode-se imaginar também que o antagonismo tenha fundamento em idéias diferentes no que respeita à evolução das formas. Do ponto de vista dialético, a moderniza- ção formal existe, não significa o que pre- tende, e deve ser analisada não só como solução, mas também como problema. Do ponto de vista dos poetas concretos, que a buscam numa espécie de iconiza- ção e aceleração da linguagem, ela é a li- nha reta e positiva que leva a um indis- cutível plano superior. Para reflexão, não custa notar que o Movimento Concreto foi lançado na mesma época em que A- dorno assinalava, como um marco, o en- velhecimento da Música Nova, ou seja, o esvaziamento da tensão vanguardista.

■ Mas o concretismo também mudou. — A partir de 1964/68, quando a revo- lução saiu da ordem do dia no Brasil, uma parte dos escritores passou a con- siderar a linguagem como a sua única trincheira. Foi a época em que a crítica literária falava de subversão da sintaxe, das formas, dos gêneros, revolução tex- tual etc. Haveria um estudo engraçado a escrever sobre essas substituições.

■ E isso com alguns apoios teóricos inter- nacionais, não? — Claro, claro. Foi o auge do estrutu- ralismo de base lingüística, e logo do neo-estruturalismo, este especializado na dissolução das estruturas positivas. Ao passo que o estruturalismo buscado por alguns na Teoria Literária da USP era de base histórica e estava descobrin- do a potência formal, no plano estético,

da estrutura de classes do país. Pensan- do melhor, talvez houvesse mais anta- gonismo do que ficou dito até aqui.

■ E depois essa guerra repercutiu tam- bém em espaços de maior reverberação do discurso, como o da música popular bra- sileira, não é? — É um ponto que merece atenção. O livro de Caetano Veloso, Verdade tropi- cal, é muito valioso e interessante nesse sentido. Caetano tem idéia clara do que estava em jogo e tem grande capacida- de de sintetizar debates intelectuais. O livro está sempre polemizando com a esquerda, mas descreve o processo de maneira realista. A idéia de que naqui- lo tudo só se tratasse de linguagem não passa pela cabeça dele.

■ Passada a fase mais furiosa do embate entre críticos dialéticos e concretistas, apa- rentemente algumas linhas de trabalho de crítica literária no país buscam uma certa síntese entre proposições das duas tendên- cias. Em certa medida Silviano Santiago não faz isso? — Não penso que síntese seja a pala- vra. Mas Silviano escreveu na década de 70 O entre-lugar do discurso latino- americano, um ensaio de grande habili- dade estratégica, a primeira mobiliza- ção importante da obra de Derrida no quadro brasileiro. Ele usa a desconstru- ção para descrer das categorias da opres- são e fazer dela um jogo de linguagem, que certamente ela também é. Mas ela não será mais do que isso? Seja como for, também aqui não se tratava só de linguagem, pois o ensaio, até onde vejo, deveu a repercussão aos poderes a que se opunha: à prepotência dos militares, ao autoritarismo na esquerda armada, às presunções do imperialismo america- no, a nosso sentimento de inferioridade diante da primazia cultural dos grandes centros etc. Mais adiante Silviano afinou a desconstrução de Derrida com o jogo ou conflito entre os gêneros, fazendo dela um elemento de liberação sexual, em especial da homossexualidade. Que eu saiba, foi o primeiro crítico a fazer da liberação da homossexualidade um ele- mento importante de periodização da história do Brasil, ao fazer que ela con- vergisse com o tema da abertura políti- ca e da redemocratização, de que seria uma pedra de toque. Na minha opinião é um grande lance, embora a construção me pareça conformista por outro lado.

■ Como você descreveria o panorama atual da crítica literária no Brasil? Quais são seus pontos de força teóricos? — As linhas teóricas internacionais estão representadas e funcionando, há pós-graduações numerosas, com bolsas de estudo, e, não obstante, há um certo esgotamento. Com perdão da mania, o que falta é espírito dialético. Como os momentos notáveis da cultura brasileira estão consagrados, não lembramos até que ponto dependeram do contato com o avesso da sociedade. Essa é uma ver- dade insuficientemente considerada. A reflexão hoje tem que se redimensionar através do mundo que está se formando à revelia do discurso oficial sobre a mo- dernização e o progresso. Basta subir ao Alto de Santana e olhar São Paulo para saber que o que está acontecendo está fora de controle e tem pouco a ver com as grande linhas incorporadas em nossa organização mental. Nesse sentido, os cultural studies, com a sua falta de hie- rarquia, não deixam de ser uma respos- ta, embora - até onde sei - pouco crítica do capitalismo e pouco interessada em questões de estética, o que diminui muito o seu alcance.

Um trabalho que acho admirável e não teve repercussão nenhuma é o ensaio de Iumna Simon, que saiu na revista Pra- ga n° 7, sobre a poesia de Valdo Motta. Ele é um poeta negro do Espírito Santo, homossexual militante, muito pobre e dado a especulações teológicas. É uma poesia que toma o ânus do poeta como centro do universo simbólico. A partir daí, mobiliza bastante leitura bíblica, dis- posição herética, leitura dos modernis- tas, capacidade de formulação, talento retórico e fúria social. O ponto de vista e a bibliografia fogem ao corrente, mas o tratamento da opressão social, racial e sexual não tem nada de exótico. Bem, a Iumna leu o poeta por acaso, numa revis- ta, percebeu a força e a importância do que estava ocorrendo, procurou saber mais, e acabou organizando um volume de poemas para a editora da Unicamp, juntamente com Berta Waldman (Val- do Motta, Bundo e outros poemas,\996). Para fazer justiça ao poeta, que é perfei- tamente contemporâneo, ela teve que se enfronhar em áreas que desconhecia e, sobretudo, compará-lo a seus pares, refletir sobre a sua inserção na cultura atual e tirar as conseqüências estéticas que cabem. É de trabalhos assim - sem desmerecer outras linhas possíveis - que

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a crítica depende para recobrar vitali- dade e estar à altura da realidade.

■ Vou voltar a um ponto anterior: por que o New Criticism, como empreendimento nos Estados Unidos, era conservador? — O New Criticism nasceu com uma teoria de professores de Letras do sul dos Estados Unidos, o Old South antiianque. Eles viam o poema como um campo de complexidade singular, onde a lingua- gem não tem finalidade utilitária e não é abstrata, o que, de certo modo, simbo- liza uma oposição ao capital, ao mundo do Norte. Para consubstanciar essa po- sição, desenvolveram uma técnica de análise centrada em ambigüidade, ten- são e ironia, atributos estranhos à fun- cionalidade moderna. Há uma carta de Allan Tate, uma das grandes figuras do movimento, em que ele diz que acabava de ler o artigo de um alemão que des- crevia a obra de arte como eles, embora infelizmente fosse marxista. O alemão era Adorno, que era refugiado de guerra nos Estados Unidos. A anedota é interes- sante porque mostra que o anticapita- lismo de Adorno, com horizonte socia- lista, até certo ponto convergia com o anticapitalismo de um sulista católico e tradicionalista - na posição contrária à instrumentalização da linguagem. A aná- lise cerrada que o New Criticism prati- cava representou de fato um patamar novo em matéria de compreensão da complexidade interna da poesia. A téc- nica podia ser usada, é claro, de muitas maneiras. Anatol Rosenfeld, por exem- plo, dizia explicitamente que praticava o dose reading, mas informado por sua cultura filosófica, que não tinha nada que ver com a dos new critics america- nos. Eles talvez fossem provincianos, mas desenvolveram uma coisa genial.

■ O New Criticism foi bem assimilado no Brasil? — É um bom tópico de pesquisa. Nos anos 50 houve militância, em especial de Afrânio Coutinho, hoje difícil de ler. Como sempre, aproveitaram bem os que tinham projeto próprio e souberam guardar distância, como Sérgio Buarque e Antônio Cândido.

■ Não lhe parece que o mundo contem- porâneo, midiatizado, espetacularizado, oferece um ambiente pouco adequado à literatura como um exercício insistente e forte? O fenômeno é só brasileiro?

Um trabalho que acho admirável é o ensaio de Iumna Simon sobre a poesia de Valdo Motta, cuja força ela percebeu

— Certamente não. Mas de alguma maneira os intelectuais brasileiros estão cavando pouco o seu próprio terreno. Conhecemos pouco as coisas das quais dependemos nesse momento. Se você pensar no conhecimento que tinham da sua matéria Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Machado de Assis, vai ver que a escrita deles estava associada a um processo tenaz de aquisição de co- nhecimento, de verificação social e mo- ral, de experimentação. No fim de con- tas, uma das coisas que mais distingue o livro de Paulo Lins é que, como ele foi assistente de pesquisa de uma antropó- loga, tem o conhecimento exaustivo e articulado do universo dele. Isso dá ao livro uma potência própria, que falta aos colegas. O sumiço da exigência in- telectual não precisava ter ocorrido, foi uma falta de pique. Também na poesia aconteceu uma coisa assim, ela abriu mão de falar do mundo contemporâ- neo de maneira sustentada. No Brasil, por uma razão que não sei, de repente começou a surgir uma poesia curtinha, pouco reflexiva, pouco ousada. Digo isso sabendo que não é tudo, pois a poe-

sia mais minimalista dos últimos tem- pos é também - na minha opinião - a mais reflexiva e complexa - estou pen- sando no Elefante, de Francisco Alvim.

■ Quando você diz que não sabe, é ironia, ou não sabe mesmo? — Eu diria que o predomínio do con- cretismo, que atravessou a segunda metade do século passado, tornou a poesia impermeável ao pensamento, com muito prejuízo para ela. A culpa não é dos concretistas, acho natural que todo grupo poético procure se promover e valorizar. O que aconteceu de incrível foi que o mundo intelectual brasileiro pouco ou nada opôs àquele padrão. Marx diz a certa altura que o segredo da vitória de Luis Napoleão não está na força dele, mas na fraqueza da sociedade francesa do tempo. Ana- logamente, acho mesmo o caso de per- guntar pelo que aconteceu à vida cul- tural brasileira do último meio século para que algo tão limitado como a poesia concreta pudesse alcançar tanta eminência. É uma questão mais pro- funda do que pode parecer. Tem a ver com a credulidade subdesenvolvida diante do progresso.

■ Queria que você contasse o caso curio- so de Bertha Dunkel, que pouca gente conhece. — Foi o seguinte: mais ou menos em 1966 me encomendaram uma explica- ção didática da idéia marxista de mais- valia, para ser usada em aulas para um grupo operário, clandestino na época. Escrevi com a maior clareza de que era capaz. Como não saiu ruim, houve in- teresse em divulgar o folheto em âmbito maior, e o grupo da Teoria e Prática re- solveu publicá-lo na revista. Inventei uma personagem para assinar o "artigo", que era essa Bertha Dunkel. Bertha para Ro- berto, e Dunkel, que quer dizer escuro, para Schwarz, que é preto. Escrevi uma pequena biografia como introdução, ex- plicando que ela era uma escritora alemã de vanguarda, que nos anos 20, tocada pela proximidade da revolução, resolve- ra se dedicar ao didatismo político, no qual via uma forma literária e um pro- blema estético. É claro que eram questões que estavam interessando a mim. A coisa teve um desdobramento engraçado por- que um intelectual de renome, que co- nhecia tudo do movimento operário ale- mão, tinha lembrança de Bertha. •

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■ POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATéGIAS MUNDO

■ O sonho da grama mais verde

Uma onda de protestos varreu as universidades européias e culminou no afastamento voluntário de cerca de 2 mil pesquisadores franceses de seus cargos administrativos. Os motivos alegados nas ma- nifestações foram os salários estagnados, a falta de pers- pectiva na carreira acadêmica, cortes e queixas contra a for- ma negligente como os gover- nos vêm tratando a educação superior. O protesto começou na Inglaterra com uma gre- ve convocada pela Associação dos Professores Universitários, entidade que congrega 48 mil membros. A paralisação, ocor- rida em fevereiro, teve 90%

de adesão. Os franceses apre- sentaram suas reivindicações por meio de um abaixo-assi-

nado que obteve 65 mil assi- naturas para a causa "Salve a pesquisa!". Reclamavam do

Oásis une Israel e Jordânia

Num esforço para estimu- lar a colaboração científica entre árabes e israelenses, os governos de Israel e da Jordânia reservaram uma área, na fronteira dos dois países, para construir um centro de pesquisa ambien- tal, em parceria com as uni- versidades Stanford e Cor- nell (Nature, 4 de março). Quando o Bridging the Rift Center estiver pronto, den- tro de cinco anos, um pe- daço do deserto será trans- formado em megainstituto

de pesquisa, especializado em ecologia do deserto. A primeira tarefa do institu- to será compilar um catá- logo de micróbios, insetos e vertebrados que habitam a região do mar Morto. A Bridging the Rift Foun- dation, criada por Mati Kochavi, israelense com interesse em investir em tecnologia, já levantou dinheiro suficiente para construir laboratórios e cobrir os custos da em- preitada por cinco anos. •

corte de 30% no orçamento da pesquisa em 2002. O si- lêncio das autoridades levou diretores de institutos e pes- quisadores a abandonar suas funções burocráticas. O afas- tamento dos cargos deve re- sultar em lentidão nas pes- quisas, pois os diretores são responsáveis pela coordena- ção do trabalho. A crise, de acordo com os pesquisado- res, tem provocado uma fuga de cérebros, sobretudo para os Estados Unidos, onde os salários são maiores, assim como as chances de fazer carreira. "A grama é mais ver- de nos Estados Unidos", disse à revista Nature (11 de mar- ço) Peter Cotgreave, diretor do grupo Salve a Ciência Britânica. •

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■ Revolta da vacina na Nigéria

A campanha da Organização Mundial da Saúde (OMS) para erradicação total da poliomi- elite até o final de 2004 sofreu um sério revés na Nigéria, com o boicote à vacinação em dois estados, Kano e Zamfara. Re- ligiosos muçulmanos inven- taram que a vacina, que tem como alvo 63 milhões de cri- anças, está contaminada com contraceptivos, contém HIV e é um complô ocidental con- tra a população. O porta-voz da OMS, Oliver Rosenbauer, reconhece que a controvérsia segundo a qual a Aids teria se originado da vacina, hipótese descartada, povoa a imagina- ção de líderes comunitários. Atribui-se ao boicote a eclosão de um número crescente de casos na Nigéria, 347 do iní- cio de 2003 a fevereiro de 2004, quase metade de todas as ocor- rências no mundo (Nature, 11 de março). Desde que o boi- cote começou, surgiram 20 ca- sos da doença em oito países africanos que pareciam livres da pólio: Benin, Burkina Fasso, Camarões, República Cen- tro-Africana, Chade, Costa do Marfim, Gana e Togo. •

■ Os trópicos na zona de luz

Os trópicos começam a sair da zona de sombra a que têm sido relegados pela indústria farmacêutica. Em parte, os responsáveis pela mudança são grupos sem fins lucrativo que vêm se dedicando ao combate de doenças tropicais, ao mesmo tempo que denun- ciam o descaso das multina- cionais com as moléstias do Terceiro Mundo Em feverei- ro, voluntários da St. Louis University, no Missouri, Esta- dos Unidos, receberam doses de um novo tipo de vacina contra a tuberculose (Finan- cial Times, 2 de março). A ex- periência é coordenada pela Fundação da Vacina contra Tu-

berculose Aeras Global, que recebeu subvenção de US$ 83 milhões da Fundação Bill & Melinda Gates para conduzir o estudo. "A doação é para o desenvolvimento de um pro- duto e não para a pesquisa básica que normalmente ga- nha as manchetes", diz Jerry Sadoff, presidente da Aeras. Esses grupos tentam com- pensar uma terrível mazela do mercado. Segundo a orga- nização Médicos Sem Fron- teiras (MSF), apenas 13 dos 1.400 remédios desenvolvi- dos entre 1975 e 2000 tinham como alvo doenças tropicais - na lógica da indústria, não vale a pena investir em drogas para doentes que não têm di- nheiro para comprá-las. A tu- berculose, por exemplo, caiu

nesse limbo, embora tenha matado 2 milhões de pessoas em 2003. Como o tratamento é o mesmo há 30 anos, as va- cinas e as drogas já não têm o mesmo poder de antes. A Ae- ras congrega parceiros públi- cos e privados que levantam doações e financiam projetos. A condição para receber a verba é garantir que o produ- to final seja vendido a preços baixos nos países em desen- volvimento. As acusações de descaso incomodaram algu- mas indústrias farmacêuticas - e a boa notícia é que algu- mas delas tentam combater a má fama. A GlaxoSmithKline e a AstraZeneca abriram la- boratórios para combater do- enças infecciosas tropicais, enquanto a Novartis contra- tou um instituto de pesquisa em Cingapura para trabalhar com tuberculose e dengue. "Está havendo uma mudança de mentalidade", garante Paul Herring, executivo da Novar- tis responsável pelo centro de Cingapura. "Percebemos que não podemos ignorar o que está acontecendo nos trópi- cos ou isso se voltará contra nós, uma visão que a epide- mia de pneumonia asiática veio reavivar." •

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ESTRATéGIAS MUNDO

■ Editores na mira da ética

Os editores de revistas mé- dicas estão na alça de mira do Comitê de Ética nas Pu- blicações (Cope), organismo baseado em Londres, na In- glaterra. O Cope delineou um código de conduta ética estabelecendo que os editores têm tanta responsabilidade pelo que é publicado quanto os autores. "Parecemos mais interessados na culpa dos ou- tros do que na nossa", disse Richard Smith à revista Nature (4 de março). Ele é editor do British Medicai Journal e ajudou a redigir o código. O manual pede ri- gidez no caso de suspeita de procedimentos antiéticos. Relatório do Cope informa que essas situações ocorrem com freqüência, como num estudo que utilizou amostras de sangue de bebês sem au- torização. Ou de um pacien- te grave tratado com extrato de plantas, quando a terapia convencional e eficaz estava disponível. •

■ Em busca da diferença

O Instituto Norueguês de Ecologia do Gene (GeneOk), baseado na Universidade de Tromso, e o Instituto de Eco- logia do Gene da Nova Zelân- dia, da Universidade de Can- terbury, em Christchurch, assinaram um acordo com o Programa Ambiental das Na- ções Unidas a fim de ajudar os países pobres a ter infra- estrutura necessária para tes- tar organismos modificados geneticamente e avaliar se são seguros. Ambos os institutos

são pioneiros nessa nova dis- ciplina, que inclui o estudo de como o consumo de ali- mentos transgênicos afeta os genes e, a longo prazo, a saú- de dos animais. "Procuramos as diferenças onde outros grupos acham que tudo será igual", diz Terje Traavik (Na- ture, 4 de março), diretor científico do GeneOk. A área do conhecimento combina genética, bioquímica, eco- logia e ciências sociais. Os participantes do projeto re- ceberam do governo norue- guês US$ 700 mil para o pri- meiro ano de pesquisas. •

■ Vizinhos que se ajudam

índia e Paquistão, vizinhos que vivem às turras e até ameaçam a segurança do planeta com pesquisas nu- cleares, decidiram estabelecer projetos conjuntos na área de biotecnologia. Durante o encontro BioAsia 2004, a de- legação paquistanesa assi- nou cinco acordos, três com companhias de biotecnolo- gia indianas e dois com a Ali índia Biotech Association (Aiba). "Queremos colabo- rar com as companhias india- nas nas áreas de vacinas, kits de diagnóstico e agricultura transgênica", disse à revista Nature (11 de março) o presi- dente da Comissão Nacional Paquistanesa de Biotecnolo- gia, Anwar Nasim. A parceria deverá beneficiar ambos os países. A tecnologia indiana ajudará a reduzir os preços dos medicamentos paquista- neses até sete vezes mais caros que no país vizinho. Para os indianos, o acordo abre um novo mercado. •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para [email protected]

janus.astro.umd.edu/ Site sobre astronomia para todas as idades, cheio de informações e curiosidades. Em inglês.

wwwp.fc.unesp.br/~edvaldo/ Apresentação de tecnologias desenvolvidas a partir de software para o auxílio à aprendizagem.

www.sbmp.org.br/ Novo portal da Sociedade Brasileira de Melhoramento de Plantas, com rtigos sobre OGMs, entre outros.

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ESTRATéGIAS BRASIL

Software livre na pesquisa agrícola

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em- brapa) acaba de lançar a Rede de Software Livre para Agropecuária (AgroLivre), que coloca à disposição de pesquisadores e produto- res, gratuitamente, aplicati- vos de gestão, controle e de apoio à pesquisa científica. "Tivemos de investir em re- cursos humanos para desen- volver esses programas, que são de alta qualidade técni- ca. E eles são apenas o come- ço do projeto. Vamos ofere- cer outras ferramentas", diz

Sônia Temes, chefe-adjunta de pesquisa e desenvolvimen- to da Embrapa Informática Agropecuária. Os usuários podem entrar no site da Rede AgroLivre (www.agro- livre. gov.br) e baixar os có- digos-fonte dos programas. Como se enquadram no conceito de software livre, é possível copiá-los e distri- buí-los, além de modificar e aperfeiçoar seus códigos- fonte, sem necessidade de autorização prévia dos au- tores. Os programas dispo- níveis para utilização são

os aplicativos Lactus, sis- tema para gerenciar e con- trolar o rebanho de gado leiteiro, o HiperEditor e o HiperVisual, que permitem organizar e visualizar infor- mações na web, e o Software Científico, que tem módulos para tratamento de dados, ta- belas de freqüência e gráfi- cos. Para desenvolver o Hi- perEditor e o HiperVisual, a Embrapa chegou a negociar uma parceria com uma em- presa norte-americana que já dispunha de ferramen- tas nos moldes desejados.

"Quando soubemos que o custo de um kit seria de US$ 20 mil, resolvemos começar do zero e fazer por nossa con- ta", diz Sônia. "Os softwares ficaram mais leves e fáceis de executar que o similar nor- te-americano." O programa de computador Lactus atende a uma necessidade dos pecua- ristas. Os outros três softwa- res são voltados para pes- quisadores. "Nossa intenção é de que a Rede AgroLivre se torne um repositório de soft- wares livres desenvolvidos por outras instituições." •

■ Desenvolvimento do semi-árido

O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) vai apor- tar R$ 1 mihão do CT-Mine- ral para o desenvolvimento em rede do Arranjo Produti- vo Local para o desenvolvi- mento do semi-árido dos es- tados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. O projeto tem como objetivo promo-

ver o aproveitamento de to- dos os minerais de valor eco- nômico contidos nas rochas pegmatíticas - como os in- dustriais, metálicos e gemas - por meio da transferência de tecnologias adequadas ao contexto social e econômico local e não agressivas ao meio ambiente. O projeto terá co- mo parceiros universidades, empresas, cooperativas, mu- nicípios, entre outros. •

■ A marca dos 120 periódicos

A FAPESP e o Centro Latino- Americano e do Caribe de In- formação em Ciências da Saú- de (Bireme) comemoram em abril a marca de 120 periódi- cos disponíveis no programa Scientific Electronic Library Online (SciELO). Como par- te da comemoração, as duas instituições apresentaram o

primeiro artigo com um mapa genético completo já publi- cado por um periódico bra- sileiro. Trata-se do Genome features of leptospira interro- gam serovar Copenhageni, so- bre um dos tipos de bactéria causadores da leptospirose. O mapa é divulgado pela revis- ta Brasilian Journal of Medicai and Biological Research, edita- da pela Associação Brasileira de Divulgação Científica. •

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ESTRATéGIAS BRASI-

A máscara carioca do carnaval paulistano

Na primeira metade do sé- culo 20, o carnaval popular de São Paulo dividia-se en- tre os cordões dos descen- dentes de escravos e dos imigrantes que habitavam os bairros do Brás, da Moo- ca e da Lapa, na maioria italianos. A evolução das manifestações populares desde o século 19 até o atual desfile de escolas de samba será abordada num livro, Carnaval em branco e ne- gro, que a Editora Unicamp prepara-se para publicar. A obra, ilustrada com ima- gens e fotos de várias épo- cas, é o resultado de uma tese da doutorado de Olga Rodrigues de Moraes Von Simson, do Centro de Me- mória da Universidade Es- tadual de Campinas (Uni- camp), defendida em 1990. Na época em que foi feita, nenhuma editora interes-

sou-se em publicá-la devi- do ao alto custo de impres- são das imagens. "O merca- do editorial mudou e agora há uma demanda por obras bem ilustradas, voltadas para um leitor habituado à Internet", diz. Entre outras curiosidades, a tese mostra como o carnaval de São Paulo inspirou-se no for- mato dos desfiles do Rio de Janeiro. Em 1968, o então prefeito paulistano Faria Li- ma, que era carioca, instituiu uma subvenção para os desfiles e convocou um car- navalesco carioca para criar as regras do carnaval paulis- tano. Foi assim que os anti- gos cordões migraram para o formado das atuais es- colas de samba. A Nenê de Vila Matilde venceu os pri- meiros desfiles - seu presi- dente, carioca, tinha fami- liaridade com as regras. •

■ Vez da genética e do desenvolvimento

A genética e o desenvolvi- mento sustentável são as áreas contempladas pelo 49° Prêmio Moinho Santista e o 25° Prêmio Moinho Santis- ta Juventude. Universidades e entidades científicas e cultu- rais podem indicar candida- tos para a Fundação Bunge até 30 de maio. Em agosto, saem os vencedores. O Prê- mio Moinho Santista home- nageia personalidades que se destaquem no universo das ciências, letras ou artes - o

tema muda a cada ano. No Prêmio Moinho Santista Ju- ventude, os laureados têm no máximo 35 anos de idade. •

■ Conhecimento compartilhado

A Cooperativa de Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Cope- sucar) está abrindo o seu Centro de Tecnologia à par- ticipação do mercado. A ins- tituição, rebatizada de Cen- tro de Tecnologia Canavieira (CTC), ganha status de enti- dade de direito privado e será

mantida com a contribuição de produtores de todo o país, além de convênios, prestação de serviços, direitos autorais e royalties de patentes. A pro- posta de orçamento prevê aporte de R$ 42 milhões, ao longo de cinco anos, a partir da safra 2004/2005. A maior parte dos recursos será desti- nada a pesquisas na área agrí- cola, com R$ 31,5 milhões. "A vantagem de operar como as- sociação civil é a garantia de acesso a novos recursos, in- clusive dos fundos setoriais", diz Cássio Domingues, dire- tor-presidente da Copersu-

car. Criado há 25 anos, o CTC teve papel importante no de- senvolvimento de variedades de cana que permitiram au- mentar a produtividade dos canaviais. O centro é parceiro da FAPESP no mapeamento da cana e inicia, também com apoio da Fundação, pesqui- sas sobre o genoma funcional da planta. "A Copersucar che- gou a investir no Centro R$ 60 milhões por ano, quando era responsável por 80% da pro- dução nacional. Hoje, temos 20% do mercado e não é jus- to bancar tudo", diz Cássio Domingues. •

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■ Lições da guerra do cupuaçu

Ambientalistas tiram lições da vitoriosa batalha do cu- puaçu, fruta amazônica que virou marca em vários países, mas teve o registro cassado em um deles, o Japão. A cam- panha, liderada pela rede Grupo de Trabalho Amazô- nico (GTA), teve sucesso por- que contou com o empenho do governo brasileiro e con- seguiu reunir US$ 20 mil pa- ra as despesas nas cortes ni- pônicas. Em parceria com a ONG Amazonlink, o GTA es- tuda a viabilidade de novas batalhas. Entre os alvos pos- síveis, há o caso da empresa norte-americana ZymoGe- netics, que detém a patente de dois princípios ativos, um analgésico e outro vasodila- tador, retirados da secreção de um sapo da Amazônia. A empresa extraiu as substân- cias do animal e patenteou-as, passando a produzi-las sinte- ticamente. Mas as dificulda- des são grandes na Justiça dos Estados Unidos, país que não ratificou a Convenção da Di- versidade Biológica e não se dispõe a pagar pelo conheci- mento tradicional de que se apropriou. "Procuramos um escritório de advocacia ame- ricano que nos pediu US$ 150 mil só para iniciar a ação. Está fora das nossas possibili- dades", diz Eugênio Pantoja,

Após a campanha do cupuaçu; ecologistas buscam novos alvos

da Amazonlink. Outras pos- sibilidades são as patentes do cunani, substância anestésica usada em ferramentas de pes- ca de índios, e do jambu, erva que serve de matéria-prima para um creme dental. •

■ À procura do parceiro ideal

A Rede Brasil de Tecnologia (RBT) foi criada em 2003 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia para promover parcerias entre empresas e pesquisadores - e estimular o desenvolvimento de tecnolo- gia nacional para substituir importações. Em poucos me- ses, já se cadastraram na rede 239 empresas e 355 laborató- rios. O cadastro está aberto para consulta no site www.re- debrasil.gov.br. A RBT pre- para agora o lançamento de suas ferramentas. Em breve,

empresas com demandas tec- nológicas poderão encami- nhar pedidos para a Rede, que procurará centros de pesquisa capazes de desen- volver os produtos almeja- dos. Para evitar o vazamento de segredos industriais, os pesquisadores mobilizados pela RBT só conhecerão o nome da empresa depois de a parceria se mostrar viável. Outra iniciativa será a in- termediação de eventuais pedidos de empresas ou ins- tituições estrangeiras, que queiram ajuda de institui- ções brasileiras para desen- volver produtos. "Mas essa ferramenta só servirá para vender tecnologia, não para comprá-la", diz Marcelo de Carvalho Lopes, secretário- executivo da RBT. O objetivo da Rede, além de substituir importações, é agregar valor às exportações brasileiras. •

■ Receita para vencer a poluição

Uma boa notícia emerge das águas da baía de Santos, que por décadas sofreu com a poluição. Uma pesquisa do professor Eurico Cabral de Oliveira Filho, da Universi- dade de São Paulo (USP), re- vela que algumas espécies ve- getais estão reaparecendo na baía. Dois estudos que avalia- ram a flora marinha em 1957 e em 1977 mostraram que o número de espécies caiu de 105 para 69 no período. Mas a repetição dessa pesquisa, entre 1998 e 1999, registrou a presença de mais de uma cen- tena de espécies, inclusive sete tipos de algas marrons observadas em 1957, mas su- midas desde então. O mérito é de uma articulação do po- der público em vários níveis. Foi construído um emissário submarino para lançar o es- goto em alto mar. A prefeitu- ra colaborou controlando a passagem para o mar da água dos canais da cidade, conta- minada por esgoto clandesti- no. Até mesmo a melhoria da qualidade do ar da vizinha Cu- batão teve um papel, uma vez que as chuvas levavam a su- jeira do ar para o mar. "O mais importante é mostrar que, com uma ação do poder pú- blico articulada, é possível re- verter os danos da poluição", diz o professor Eurico. •

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

FAPs

Hora de cobrar Pesquisadores se mobilizam para exigir dos estados repasses definidos em lei

CLAUDIA IZIQUE

Há sete anos, as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) es- tavam implantadas em apenas dez estados brasileiros. Hoje, estão organizadas em 22 esta-

dos. Essa rede começa - ainda com grandes diferenças entre elas - a consolidar sua articu- lação com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e está preparada para respaldar o desen- volvimento científico regional. Seu maior pro- blema, entretanto, é que, na grande maioria dos casos, os governos estaduais não cumprem as exigências constitucionais e não repassam às fun- dações os recursos previstos na lei. Esse não é o caso da FAPESP, já que o repasse de 1% da re- ceita tributária é regularmente transferido. Nos demais estados, a comunidade científica já se mobiliza para garantir orçamentos compatíveis com as exigência da pesquisa e as demandas das empresas por inovação.

A Fundação de Amparo à Pesquisa de Mi- nas Gerais (Fapemig), por exemplo, negocia a conversão de uma dívida de R$ 300 milhões em ações ou participação em empresas do governo estadual. Esse valor corresponde à diferença acu- mulada do percentual de 1% dos recursos tribu- tários do estado que não são repassados desde 1986, quando foi criada a fundação. No ano passado, de um orçamento previsto de R$ 91 mi- lhões, a Fapemig recebeu apenas R$ 25 milhões. "As novas bolsas estão congeladas, assim como os auxílios a projetos de demanda espontânea de pesquisadores já aprovados. Só temos recur- sos para material de consumo", diz José Geral- do Freitas Drumond, presidente da Fapemig.

Em Pernambuco, a comunidade científica também começa se articular para pedir ao Tri- bunal de Contas uma interpretação definitiva da lei que regulamentou o repasse do governo estadual à Fundação de Amparo à Ciência e

Tecnologia do Estado de Pernambuco (Face- pe). A Constituição estadual estabeleceu em 1988 esse valor em 1% da receita tributária, mas a lei - editada no ano seguinte - excluiu do cálcu- lo os valores relativos a 25% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), 50% do Imposto sobre a Propriedade de Veícu- los Automotores (IPVA), recursos de convênios e receitas próprias, reduzindo o orçamento da Facepe a um décimo do que lhe seria devido. "Vivemos a seguinte situação: ou a lei que regu- lamentou o repasse é constitucional e precisa ser reformulada, ou o estado tem que repor o que deve", afirma Fernando Machado, diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação da Facepe.

Mobilização de pesquisadores - Em todo o país, pesquisadores ligados às FAPs começam a se mobilizar para garantir acesso aos recursos cons- titucionalmente estabelecidos e a consolidar um sistema nacional de ciência e tecnologia no país. "É preciso fortalecer as FAPs, que são responsá- veis pela operação desse sistema", afirma Fran- cisco Romeu Landi, diretor-presidente da FA- PESP e presidente do Fórum das FAPs. Além de um efetivo repasse de recursos, sublinha Landi, o principal pleito das fundações é a autonomia financeira e administrativa e o respeito ao mandato dos seus conselheiros e diretores. "A substituição desses cargos não deveria coinci- dir com as eleições", ele diz.

A expectativa é de que o MCT interceda junto aos governos estaduais para fazer cumprir os repasses legais de recursos de forma a supe- rar situações consideradas "dramáticas", como a da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs). A fundação, que deveria contar com 1,5% da receita tri- butária do estado - algo em torno de R$ 94 mi- lhões, em valores atuais -, nunca recebeu mais

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que 30% desse valor. "Estamos apre- sentando proposta para o governo do estado, sugerindo um patamar fixo de repasse, mesmo que inferior ao percen- tual legal", diz Carlos Nelson dos Reis, diretor científico da entidade. A estra- tégia é garantir um orçamento de R$ 40 milhões, de forma a cobrir "alguns pro- gramas", como diz Reis. "Mas, até o pre- sente momento, não temos respostas."

Para assegurar um melhor fluxo de recursos à Funda- ção Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Es- tado do Rio de Janeiro (Fa-

perj) e garantir o cumprimento da lei, o Rio de Janeiro aprovou, no final do ano passado, emenda constitucional al- terando o percentual de repasse de 2% - que jamais foi cumprido - para 1% da receita. Neste ano, a fundação espe- ra ter a maior execução orçamentária de sua história: R$ 120 milhões.

Os pesquisadores também se mobi- lizam por uma melhor estruturação das fundações. No Ceará, por exemplo, os repasses - correspondentes a 2% da re- ceita líquida do estado - são cumpridos, "ainda que com alguns contingencia- mentos", como diz o diretor científico da Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (Funcap). O problema é que esses recursos, que somam algo em tor- no de R$ 27 milhões, têm que ser com- partilhados, desde 2001, com 41 centros de formação em tecnologia. "Estamos nos esforçando para conseguir que todo o percentual seja gasto em pequi- sa", diz Souza, garantindo que a pro- posta tem boa receptividade do estado.

Pressão e diálogo - Os diretores das fundações consultadas reconhecem que os governos estaduais sofrem com a falta de recursos. "No Rio Grande do Sul, o governo teve que parcelar o pa- gamento de salários", justifica o diretor científico da Fapergs. "A pesquisa, no en- tanto, deveria ser prioridade. Em 2003, recebemos R$ 12 milhões e tivemos que cortar tudo. Só mantivemos as bol- sas, eventos e auxílio a congressos, que- remos abrir editais para outros proje- tos, mas não adianta nem tentar." Em Minas Gerais, o governo do estado ope- ra com um déficit de R$ 1,7 bilhão, re- conhece Drumond. "Mas já estamos no segundo ano de governo e é tempo de resolver a situação financeira do esta-

do", ressalva. A comunidade científica mineira, afirma, "faz pressão" e pede para que seja cumprido 40% a 50% do orçamento. "Estamos preocupados com a contrapartida do estado nos convênios firmados com o MCT, como os do Pro- nex, por exemplo. O Estado não pode deixar de cumprir sua parte", observa.

Para o presidente do Fórum das FAPs, aos poucos, a comunidade acadêmica dos diversos estados começa a se dar conta de que será preciso "pressão e diá- logo" para ampliar os recursos destina- dos à pesquisa. "Essa consciência pre- cisa ser ampliada para acadêmicos e empresários, afinal eles são os princi- pais interessados na inovação", afirma.

Agências federais - Para grande parte das fundações, os convênios com a Fi-

nanciadora de Estudos e Projetos (Fi- nep) e o Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológi- co (CNPq) firmados no ano passado - diante das dificuldades orçamentárias - tiveram efeito de solução de emergên- cia. Foi o caso da Facepe. Ali, os acordos firmados no âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pap- pe), da Finep, acrescentarão mais R$ 15 milhões ao orçamento nos próximos três anos. Outro programa, o PPP, ga- rantiu mais R$ 7 milhões, também para os próximos três anos. E uma parceria entre o estado e o Banco Interamerica- no de Desenvolvimento (BID), para o programa Promata, de apoio à pesqui- sa, desenvolvimento tecnológico e difu- são na Zona da Mata, trará outros R$ 8 milhões para garantir o melhor apro-

l^É^o

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veitamento da produção caprina e ovi- na, e da agricultura familiar. "Mas, ain- da assim, a situação está complicada, já que a pesquisa de balcão está compro- metida, apesar dos bons projetos em parceria", diz o diretor de Ciência, Tec- nologia e Inovação da Facepe.

A Faperj também procura ã^L ampliar, neste ano, os con- L^^ vênios firmados com o

È m MCT, no ano passado, ^L JL. para duplicar os recur- sos a serem aplicados em programas como o de Apoio a Núcleos de Ex- celência (Pronex), de Apoio à Infra- Estrutura de Ciências, Tecnologia e Inovação para Jovens Pesquisadores (Primeiros Projetos), de Rede de Pro- teômica e do Programa Rio Inovação, lançado em parceria como a Finep. "A proposta é obter contrapartidas no mesmo valor aplicado pela Faperj", afirma Pedricto Rocha Filho, dire- tor-presidente da entidade.

Além de complementar o orçamen- to com verbas do governo federal, algu- mas FAPs buscam novas fontes de re- cursos. "Pretendemos buscar parcerias com instituições internacionais e com os municípios fluminenses", conta Ro- cha Filho. Em Pernambuco, considera- se a possibilidade de criar "fundos seto- riais regionais", reunindo empresas que atuam no estado em setores como, por exemplo, o sucroalcooleiro ou de gesso, para financiar projetos de pesquisa, se- gundo revela o diretor da Facepe.

Parcerias estratégicas - Apesar dos pro- blemas orçamentários decorrentes do não cumprimento da legislação por par-

te dos governos estaduais, a representa- ção das FAPs no país cresce significati- vamente. Quando foi criado o Fórum das FAPs, em 1997, elas não passavam de dez. "Hoje são 22", diz o presidente do Fórum das FAPs. Só falta organizar as fundações em Roraima, Rondônia, Amapá e Espírito Santo. "Foi um cres- cimento significativo", ele reconhece.

As novas fundações, como a da Ba- hia, por exemplo, nascem com bastan- te fôlego. A lei que criou a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), em 2001, previa que, no pri- meiro ano de operação, a fundação con- taria com 0,6% da receita estadual. Este percentual cresce, gradativamente, até chegar a 1%, em 2007. "Neste ano, o orçamento previsto é de R$ 25,8 mi- lhões", diz Alexandre Pauperio, dire- tor-geral da Fapesb. No ano passado, ele comemora, o estado cumpriu inte- gralmente o repasse. O resultado é que, diferentemente do Rio Grande do Sul, a pesquisa na Bahia "vive um grande crescimento", como ele diz. O número de solicitações de bolsas, em 2004, por exemplo, triplicou em relação ao ano passado. Os recursos também permiti- ram à fundação criar mais três modali- dades de apoio: produtividade de pes- quisa, apoio técnico e gestão de ciência e tecnologia em projetos estratégicos. Dentre as 14 modalidades de apoio ofe- recidas, a mais procurada foi a de ini- ciação científica, com 451 inscritos na disputa de 70 bolsas. "Mas isso ainda não é suficiente", ressalva Pauperio. As parcerias firmadas com o CNPq e a Fi- nep injetaram mais R$ 9 milhões no orçamento do ano passado. Este ano, a expectativa é ampliar o convênio para

Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) Repasses dos governos estaduais

Funcap

2003 Previsto em lei

27 milhões

[em R$) Realizado

24 milhões

% sobre a rece Previsto em lei

2

ita tributária Realizado

1,8

2004 (em R$) Previsto em lei

30 milhões

Facepe 30 milhões 3 milhões 1 0,1 3 milhões

Fapesb 23 milhões 23 milhões 0,7 0,7 25,8 milhões

Faperj 260 milhões 80 milhões 2 0,6 120 milhões

Fapemig 91 milhões 25 milhões 1 0,2 "

FAPESP 315 milhões 320 milhões 1 1 339 milhões

Fapergs 94 milhões 12 milhões 1,5 0,34 40 milhões

garantir um volume maior de aporte das agências federais.

Indicadores de C&T - O quadro da si- tuação das fundações, portanto, con- tém boas e más notícias. A primeira boa notícia é que, em oito anos, foi pos- sível criar e implantar um sistema de apoio estadual à pesquisa em quase todo o país e estimular a investigação regional. A segunda, é que, na expecta- tiva de ver funcionar o modelo e fazer avançar a pesquisa, os pesquisadores começam a se mobilizar para reivindi- car dos estados a transferência dos re- cursos devidos. Os acordos com o MCT, por meio de programas do CNPq e da Finep - alguns deles com exigência de contrapartidas estaduais -, também foram positivos, principalmente para as fundações dos estados do Nordes- te, já que promoveram um arranque no desenvolvimento de projetos, prin- cipalmente na área de inovação e de formação de doutores. "As ações de co- operação entre o MCT e os estados per- mitiram a consolidação dos sistemas estaduais, constituindo-se em elemento decisivo para a criação de novas FAPs e o aumento dos repasses de recursos", consta no documento elaborado pelas fundações do Nordeste que foi entre- gue ao ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos. Mas, para a efetiva operação do sistema, elas reivindicam que o ministério priorize os projetos regionais e projetos estratégicos esta- duais. Solicitam ainda o apoio para a implantação de um sistema único inte- grado de informações e indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação. "Com isso, seria possível criar uma forma de comparar desempenho, carências, além da evolução do trabalho das FAPs e das demandas regionais", detalha Acá- cio Salvador Veras e Silva, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (Fapepi).

Para o presidente do Fórum das FAPs, no entanto, é preciso articular um sistema nacional de inovação. "O sis- tema atual é centralizado, apoiado no CNPq e na Finep. Os recursos precisam ser mais bem distribuídos, já que são os operadores locais que conhecem a clientela", observa. "É preciso pensar em parcerias de grupos de pesquisa organi- zados, com grupos em organização. Ao invés de desconcentração, deveríamos pensar em integração." •

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■ POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

PROGRAMA ESPACIAL

Radiografia de uma tragédia Escassez de recursos humanos e materiais foram responsáveis pelo acidente com o VLS-1

O relatório sobre as causas do acidente com o Veí- culo Lançador de Satéli- tes (VLS) - ocorrido em 22 de agosto do ano pas-

sado no Centro de Lançamento de Al- cântara no Maranhão - expôs a fragili- dade do Programa Espacial Brasileiro. A comissão responsável pela investiga- ção concluiu que o acidente teve início com o funcionamento "intempestivo" de um propulsor do primeiro estágio, acio- nado por corrente elétrica ou descarga eletrostática, sem no entanto identificar "falha ativa", ou seja, erros ou violação com resultados imediatos. Constatou, no entanto, que "falhas latentes", rela- cionadas a medidas tomadas antes do acidente, além da escassez de recursos humanos e materiais, contribuíram for- temente para a consumar a tragédia que matou 21 técnicos.

A comissão fez uma série de reco- mendações para a retomada do projeto e a continuidade do programa espacial, como, por exemplo, maior investimen- to em especialização, treinamento e reciclagem de servidores, intercâmbio com instituições externas, entre outras. Recomenda, "obrigatoriamente", o aper- feiçoamento do modelo de gestão in- tegrada de sistemas e a análise organi- zacional do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), vinculado ao Centro Téc- nico Aeroespacial (CTA).

"Alguns dos órgãos que fazem parte do programa, como o IAE, se beneficia- riam se tivessem um relacionamento de maior intensidade com outros institutos, universidades e empresas no nível de pro- jeto. Isso ajudaria a avançar mais rapida- mente e a identificar dificuldades antes de ocorrerem problemas", diz Carlos Hen- rique de Brito Cruz, reitor da Universi- dade Estadual de Campinas (Unicamp), que integrou a comissão de investigação.

Explosão do VLS-1 em agosto do ano passado, matou 21 técnicos em Alcântara, no Maranhão

Brito acrescenta que também seria "desejável" que a Agência Espacial Brasi- leira (AEB) tivesse uma posição de "mais destaque" no programa espacial bra- sileiro. E sugere que a agência, que hoje integra o Ministério da Ciência e Tecno- logia (MCT), fique vinculada à Presi- dência da República. "Fica complicado gerir órgãos de outros ministérios", ar- gumenta Brito Cruz.

Modelo defasado - O modelo institu- cional do programa brasileiro está defa- sado, avalia Carlos Américo Pacheco, que foi secretário-executivo do MCT no governo de Fernando Henrique Car- doso, quando também fracassaram duas tentativas de lançamento do VLS.

"O desenho do CTA tem que ser rea- valiado, já que há uma obsolescência institucional. É preciso avaliar quais novas instituições poderiam estar a ele vinculadas", ele diz. Sugere a institucio- nalização de um plano de carreiras de

ciência e o desenvolvimento de proje- tos em conjunto com empresas. Dis- corda, no entanto, da sugestão de Brito Cruz sobre as mudanças de vínculo institucional da AEB. "Assisti à migra- ção da agência, antes ligada à Presidên- cia da República, para o MCT. Na pre- sidência havia grandes dificuldades de orçamento porque ali as restrições fis- cais são enormes. É ilusão imaginar que funcionaria melhor lá."

A AEB conta com a liberação de R$ 100 milhões para retomar o projeto e re- construir a infra-estrutura do Centro de Alcântara. Algumas medidas já estão sendo tomadas: o governo abriu con- curso para preencher 167 vagas no CTA para completar o quadro de funcioná- rios e repor a mão-de-obra perdida com o acidente. "O caminho é investir mais re- cursos em tecnologia e material humano, além de dar continuidade aos programas de cooperação com outros países", diz o ministro da Defesa, José Viegas. •

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I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

INOVAÇÃO

O conhecimento é o imeriiu e u ■ i

capital Pesquisadores se associam para criar empresa de base tecnológica

MARILI RIBEIRO

mmjfaàgr' *T

Uma empresa de tecno- logia e consultoria com nítidos contornos co- merciais e ambições de conquistar fatias de mer-

cado, constituída apenas por mestres e doutores dedicados à pesquisa, come- ça a mostrar a que veio. Em abril, três protótipos de projetos em desenvolvi- mento pelos pesquisadores ligados a Cientistas Associados serão apresenta- dos aos potenciais clientes, alguns de- les já contatados ainda durante a fase de experimentação. Fundada há pouco mais de um ano por iniciativa de cinco jovens doutores com experiências pro- fissionais em empresas de tecnologia, a Cientistas Associados, com sede e par- ceria da Fundação Parque de Alta Tec- nologia de São Carlos (ParqTec), já reú- ne 33 membros e pretende trabalhar com diferentes áreas para o desenvolvi- mento de produtos e serviços em ro- bótica, automação, sistemas interativos, sistemas inteligentes, óptica, fotônica, engenharia biomédica e bioengenharia.

"O maior capital da nossa empresa é o conhecimento", enfatiza empolgado o gerente da Divisão de Sistemas Inte- rativos da Cientistas Associados, Antô- nio Valerio Netto, doutor em Ciência

da Computação e Matemática Com- putacional pela Universidade de São Paulo (USP) e um dos fundadores da iniciativa. "Tenho 31 anos e acredito que devo apostar no sonho de viabilizar idéias aqui no Brasil em vez de ir para o exterior, ou me limitar à carreira aca- dêmica", acrescenta. E, como sonhar não paga imposto, Valerio, demonstran- do sua fé no atual projeto, prevê que se tudo se encaminhar bem em dez anos a Cientistas Associados poderá fa- zer frente às grandes multinacionais do segmento de alta tecnologia. "Quem sabe não nos tornaremos uma IBM na- tiva?", fantasia, levando em considera- ção não apenas o seu empenho pessoal, mas o fato de a Cientistas Associados incentivar uma política de valorização do capital humano entre seus colabo- radores, de forma a agregar intelec- tos, incentivando o crescimento da ins- tituição paralelamente.

A empresa possui uma estrutura hierárquica composta por uma gerên- cia técnica e por equipes de desenvol- vimento em cada especialidade. Cada equipe é responsável pelo desenvol- vimento de um produto ou serviço e conta com um coordenador técnico res- ponsável. A sustentação dessa estrutu-

ra se dá por meio das diretorias jurídi- ca, financeira e gestão de pessoas, além da diretoria de negócios, marketing e inteligência de mercado. Esta última é responsável por ir ao mercado em busca de interessados no que a empre- sa tem a oferecer.

Entre as características administra- tivas que a Cientistas Associados esti- mula está o cooperativismo competitivo entre seus colaboradores. Para o ocupar o cargo de diretor-presidente o candi- dato precisa ter título de doutor e con- dição de sócio-fundador ou emérito. O cargo, escolhido por aclamação pelo Conselho de Associados, tem manda- to de três anos. Ao final desse prazo, há nova eleição, da qual participam os membros do Conselho de Associados. Dos atuais 33 membros, cinco são dou- tores, seis doutorandos, sete mestres e 15 mestrandos e graduandos.

Dos projetos em fase avançada es- tão propostas desenvolvidas com o apoio do Programa de Inovação Tecnológi- ca em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP, assim como com o apoio de parcerias com o Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, da USP, com a Universidade Federal de São Car- los (UFSCar), com a Escola de Enge-

30 • ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

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nharia de São Carlos, também da USP, e ainda com a colaboração da Absolut Technologies, empresa nacional forne- cedora de hardware e software na área de realidade virtual e sistemas. Os três projetos, que inauguram a atuação da Cientistas Associados, propõem inovações nas áreas de energia, treina- mento e robótica.

Energia elétrica - O projeto relacio- nado com o mercado de energia pre- tende oferecer a empresas do porte de uma Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) sistemas computacionais para redução de perdas em redes de distri- buição de energia com interface em realidade virtual. O enfoque está em trabalhar com avançados algoritmos computacionais de reconfiguração de circuitos. Entre os resultados decorren- tes da aplicação do sistema proposto estão desde o aumento do faturamen- to para as companhias distribuidoras de energia até a melhora da qualidade da energia fornecida ao consumidor.

A proposta busca uma interface que permita manipulação dos recursos do sistema, tornando o aplicativo atrativo comercialmente. Para alcançar o obje- tivo, foi utilizada uma solução baseada em ambientes virtuais, que têm permi- tido grandes revoluções no que se refe- re a relação homem-máquina, tanto na solução de problemas científicos quanto industriais. Além da facilidade para lidar com grandes quantidades de dados, uma interface como a proposta permi- te uma maior contextualização do sis- tema elétrico. Dados como localização de auto-estradas, ferrovias, rios, pontes, hospitais, grandes indústrias etc. são im- portantes na operação de um sistema elétrico de distribuição de energia.

Para ilustrar a importância desse tipo de informação, Valerio lembra que é preciso considerar os dados sobre a localização de hospitais. "A qualidade da energia na região de um hospital não pode ser degradada, em hipótese nenhuma, em benefício de uma re- dução de perdas energéticas. Equi- pamentos caros e de alta tecnologia poderiam ser danificados e, por con- seqüência, tratamentos poderiam ser prejudicados, colocando pacientes em risco. Portanto, o desenvolvimento de uma interface interativa produzirá avanços técnicos na manipulação de sistemas elétricos de distribuição tan-

to com relação à quantidade de in- formação a ser considerada quanto à qualidade", explica ele.

O principal resultado esperado com esse projeto é a criação de condi- ções para comercialização não apenas no mercado interno, mas também na ex- portação para América Latina no final dos dois anos. Há ainda a possibilidade de, como subprodutos, vislumbrar a uti- lização dos módulos do sistema inteli- gente e da interface gráfica para otimizar e manipular diversos tipos de informa- ções relacionadas a outros serviços pú- blicos, como água e esgoto, telefonia e tráfego rodoviário, com o objetivo de planejamento desses sistemas.

O trabalho da Cientistas Associados focado em treinamento é voltado para empresas de segu- rança em geral e tam-

bém para órgãos públicos de prestação de serviços na área de segurança pú- blica. O projeto desenvolve um siste- ma interativo que "transporta" os pro- fissionais da área para uma realidade mais próxima do cotidiano de traba- lho, permitindo assim um desempe- nho das funções de forma "real" com medida mais eficiente das condições de segurança. Esse sistema promove um grau de assimilação muito maior do conhecimento transmitido, pois um sistema que promove estímulos visuais, sonoros e interativos viabiliza um ganho de qualidade no aprendiza- do do usuário.

Os sistemas de treinamento na área de segurança utilizados atualmente não permitem muita interatividade. Os profissionais são colocados em situa- ções onde os alvos são fixos ou imó- veis, não transmitindo a sensação de realidade com a qual o profissional irá realmente se defrontar no momento em que estiver prestando seus serviços. Sistemas mais sofisticados são encon- trados apenas nos Estados Unidos e Eu- ropa a preços ainda muito altos para o mercado nacional. Dados do Sindica- to das Empresas de Segurança Priva- da, Segurança Eletrônica, Serviços de Escolta e Cursos de Formação do Esta- do de São Paulo indicam a existência de cerca de 1.600 empresas de vigilân- cia patrimonial, segurança e escolta armada, sendo 25% concentradas no Estado de São Paulo.

Na área de robótica, as ambições da Cientistas Associados é atingir o merca- do de entretenimento e educação num primeiro momento. "O projeto prevê um ambiente integrado com robôs móveis e software de apoio à programação e ao desenvolvimento de suas aplicações. Esse ambiente envolverá o desenvolvi- mento, a aplicação e a transferência de tecnologia de três subáreas da Tecno- logia da Informação, que são: Robóti- ca Inteligente (RI), Visão Artificial (VA) e Processamento Automático da Fala (PAF). Nessas áreas, pesquisam-se as tecnologias mais avançadas com relação à comunicação homem-máquina pela voz e visão artificial para o meio cientí- fico e industrial. A relevância desse pro- jeto consiste na combinação inovadora de tecnologias no estado-da-arte de RI, VA e PAF para o desenvolvimento de um kit nacional de software e hardware aplicado à robótica educacional e de entretenimento", explica Valerio.

Entretenimento - Robôs têm sido fa- bricados há bastante tempo para apli- cações industriais. Porém, devido ao alto grau de autonomia necessário, somen- te nos últimos anos essa tecnologia está sendo aplicada ao desenvolvimento de robôs domésticos. O produto preten- dido pela Cientistas Associados com- põe-se, inicialmente, de um pacote de software e uma plataforma básica, constituída de um robô móvel autôno- mo com processador de 16 bits e 8 MHz, um rádio-modem de 160Kbps e moto- res. O robô poderá ser configurado pelo usuário por meio de outros módulos com diferentes sensores, atuadores, gar- ras, mecanismos de chute para o fute- bol de robôs e câmera de vídeo, entre outros. O software de controle será ba- seado em uma interface gráfica, conce- bida para permitir a programação do controle dos robôs por usuários leigos, mas com grau de liberdade tal que tor- nará possível a utilização de técnicas de Inteligência Artificial por usuários mais experientes. Este fato facilitará a aplica- ção do produto em ambientes tanto edu- cacionais quanto de pesquisa. O sistema permitirá a utilização de vários robôs, que se conectarão uns aos outros e a um computador central por meio de rádio-modem. Do computador central, o usuário poderá programar e contro- lar remotamente os robôs por meio de uma interface computacional. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 31

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LABORATóRIO BRHSI

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Amazônia mutante

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Dieta reprovada Mesmo em regiões intocadas pelo homem, a com- posição da Floresta Amazônica está mudando. Cres- ceu a densidade dos representantes de alguns gêneros de árvores como o Parkia, ao qual perti gueiro e a faveira-benguê, e o Sclérolobium, com as ár- vores conhecidas como tachi ou taxi. Ao mesmo tem- po, é hoje menor o espaço ocupado por outros gêneros, como o Croton, que abriga a dima, e o Oeno-

i carpus, com a palmeira bacaba. Essas alterações apare- cem em um estudo realizado ao longo de 20 anos sob a coordenação de William Laurance, do Instituto

ISmithsonian, Estados Unidos, com a participação de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Universidade de São Paulo (USP) (NatuiT, 11 de março). Os pesquisadores acom- panharam a taxa de crescimento e de mortalidade de 13.700 árvores. Dos 115 gêneros estudados, houve mudanças em 31, dos quais 13 encorparam e ocu- param mais espaço, enquanto outros 13 encolheram. Houve avanços e recuos expressivos: a densidade das

', árvores do gênero Croton caiu 35% e a do Oenocarpus, 32,3%; já a dos representantes do gênero Sderobium cresceu 76% e a do Parkia, 22%. Esse fenômeno parece refletir as secas decorrentes do El Nino, as alterações nos regimes de chuva ou, o mais provável, a crescente participação de gás carbônico (CO,) na atmosfera, cuja quantidade aumentou 30% nos últimos 20 anos

' como resultado das emissões de automóveis e indús- trias e queimadas. Uma das conseqüências mais im- portantes é a diminuição na capacidade de retenção de CO,. "As árvores cuja população está aumentando têm em geral madeiras menos densas, que retêm me- nos carbono", comenta Alexandre Oliveira, da USP,

i que participou do estudo. Segundo ele, tende a se re- duzir a diversidade de polinizadores, dispersores, her-

Os estudantes mineiros não estão se alimentando direi- to. Uma equipe da Universidade Federal de Minas Ge- rais (UFMG) visitou seis municípios do estado e entre- vistou 1.807 alunos de escolas públicas, com idade entre

prevalência de possíveis distúrbios ahmentares e de há- ." bitos de alimentação inapropriados. Desse total, 1.059 (59%) estavam insatisfeitos com sua imagem corporal, 1.014 (56%) exercitavam-se para perder peso e 731 (40%) faziam dieta, nem sempre com acompanhamen- f to médico. De acordo com esse estudo, publicado no Jornal de Pediatria, 241 (13,3%) estudantes, maioria mulheres, apresentaram hábitos inapropriados de ali- '< mentação, 175 (10%) usavam métodos purgativas como forma de reduzir peso e 19 (1,1%) apresentaram f* suspeita de bulimia nervosa. •

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vivem à sombra de outras.

Efeitos das mudanças climáticas: umas árvores crescem mais, outras menos

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Quando a alergia está no ar Trabalhar com ar-condicio- nado aumenta em 40% o ris- co de uma pessoa apresentar irritação nos olhos, no nariz e na garganta ou inflama- ções como rinite e conjun- tivite. As conclusões são de um estudo feito por Gusta- vo Graudenz, da Faculdade de Medicina da Universida- de de São Paulo (USP), com 2 mil paulistanos - dois tcr-

tilação artificial e os demais com ventilação natural. Há algumas pistas sobre as cau- sas desses problemas. Em outro estudo, a equipe da USP avaliou as queixas de

| 330 pessoas que trabalhavam ', em três edifícios do Centro

de São Paulo, um deles com os aparelhos e os dutos de ventilação com mais de 20 anos de uso, outro com o equipamento antigo, mas a tubulação com menos de dois anos, e o terceiro com aparelho e dutos trocados ha- via menos de dois anos. Duas de cada três pessoas do primeiro prédio tinham ri- nite ou sinusitc. O sistema de ventilação mais antigo não

Temperatura e umidade em ambientes fechados: irritações e inflamações

filtrava o ar direito e lançava uma quantidade maior de fragmentos de fungos capa- zes de provocar alergia. Mas só a quantidade de partí- culas não explicava os sin- tomas: nos edifícios com aparelhos mais novos havia menos fungos que no am- biente externo. Como a tem-

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Além das aparências

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Há diferenças externas visí- veis entre um pé de milho e um tomateiro ou entre uma cana-de-açúcar e um feijoei- ro. No entanto, o material genético das plantas classi- ficadas como monocotile- dôneas (milho, cana, trigo, aveia e arroz) e o das dico- tiledôneas (tomate, feijão, soja e batata) apresenta uma similaridade de 72,5%, mes- mo depois de 200 milhões de anos, quando se separa- ram de um único ancestral, de acordo com um estudo feito por pesquisadores pau- listas a ser publicado na Plant Physiology. Em relação à Arabidopsis thatiana, uma dicotiledónea usada como planta-modelo, as proteínas da cana mostraram uma si- milaridade de 70,5%. "Os 2% encontrados apenas em outras dicotiledóneas cor-

Angiospermas: 72,5% do material genético em comum

respondem a genes perdidos da Arabidopsis, que prova- velmente não são essenciais, mas constituíram uma van- tagem evolutiva para outras espécies" diz Michel Vin- centz, da Universidade Es- tadual de Campinas (Uni- camp). Da parte restante, 14% são genes ou conjuntos de genes específicos das mo-

nocoüledôneas, alguns com alta taxa de evolução. "Pode- mos agora trabalhar melhor as hipóteses sobre os proces- sos específicos que gover- nam as monocotiledôneas", comenta Carlos Menck, da Universidade de São Paulo (USP). Os 13,5% finais são exclusivos da cana e, de cer- to modo, respondem a per-

• * *•'*•

hrf

variavam muito mais no edi-

tilação antigo que nos outros dois, Graudenz concluiu: "Aparentemente, os indiví- duos alérgicos são mais sen- síveis às variações de tempe- ratura e umidade". •

e dinâmico", diz Menck,"mas

tura básica, com um núme- ro similar de genes." «

gunta que motivou essas comparações - o que faz da cana uma cana? -, embo- ra ainda não se conheça a função desses 5.812 grupos de genes. Os pesquisadores também descobriram cerca de 800 genes ainda não des- critos de Arabidopsis, a plan- ta mais estudada em genéti- ca, com estimados 26 mil genes. Constataram ainda que o genoma da cana é 30 K ~i vezes maior que o da Arabi- i ^> dopsis e que o genoma das «•«-' angiospermas - as plantas | com flores, com cerca de ' 250 mil espécies, divididas •' #| em mono e dicotiledóneas - «f, deve ser constituído de um valor entre 35 mil e 38 mil

Page 34: Era uma vez na América do Sul

LABORATóRIO

Os impactos sutis do ecoturismo O turismo ecológico, cujo pressuposto é a preserva- ção dos recursos naturais, tem um custo alto. E quem paga são os animais, que, a princípio, deveriam ser pro- tegidos. Biólogos e ecólo- gos, preocupados com o crescimento dessa ativida- de, afirmam que o assédio à fauna provoca prejuízos já observáveis em diversas es- pécies: a presença de tu- ristas tem estressado ursos polares e pingüins, nas re- giões polares, pássaros das florestas tropicais e até os dingos, uma espécie de ca- chorro selvagem da Aus- trália. A influência da ação humana nos ambientes sel- vagens se faz notar por meio de mudanças nos bati- mentos cardíacos, nos ní-

veis hormonais e no com- portamento dos bichos. Resultado: os animais per- dem peso e muitos morrem. É claro que não há só pre- juízo. Países pobres, mas ri- cos em biodiversidade, dão as boas-vindas ao dinhei- ro dos turistas que visitam suas belezas naturais, supos- tamente sem prejudicar o ambiente. Com o tempo, porém, a presença crescen- te dos observadores pode colocar em perigo aquilo que eles tanto desejam pre- servar. "O ecoturismo é uma atividade alternativa ao uso indiscriminado dos re- cursos naturais", diz Geof- frey Howard, do escritó- rio da União de Preservação Mundial (IUCN) em Nai- róbi, Quênia (New Scientist,

4 de março). Enquanto a IUCN e governos, como da Austrália e da Nova Zelân- dia, sustentam que seus projetos de ecoturismo são viáveis do ponto de vista ecológico, vários pesqui- sadores chamam a atenção para os impactos mais sutis dessa atividade. "A trans- missão de doenças aos ani- mais silvestres ou as alte- rações de saúde causadas pela perturbação das roti- nas diárias ou pelo aumen- to do nível de estresse po- dem não ser aparentes para um observador casual, mas se traduzem em uma redu- ção da capacidade de so- breviverem e procriarem", lembra Philip Seddon, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia. •

Pingüins: estresse causado pelas incessantes visitas

■ Problemas com as células-tronco

Estudos feitos nos últimos anos mostram que o implan- te de células-tronco no cora- ção de pessoas que sofreram infarto ajuda a regenerar a área danificada. Agora, pes- quisadores da Universidade Nacional de Seul, na Coréia do Sul, descobriram que esse tratamento também provoca efeitos indesejados, graves o suficiente para encerrar um estudo antes de sua conclusão. A equipe de Hyo-Soo Kim aplicou em 20 pacientes uma substância chamada fator de estimulação de colônia de granulócitos (G-CSF), que es- timula a medula dos ossos a liberar células-tronco, capazes de se transformar em células de diversos tecidos do corpo. Em metade dos casos, os mé- dicos filtraram e purificaram as células-tronco dos pacientes e as injetaram na coronária, a artéria que irriga o coração. Passados seis meses, os que re- ceberam o implante de células apresentaram desempenho fí- sico invejável, com batimento cardíaco mais forte que os do grupo tratado só com G-CSF (Lancet, 6 de março). Mas, nos voluntários que receberam G-CSF, notou-se um cresci- mento anormal de células no interior dos stents, pequenas malhas metálicas em forma de cilindro que mantêm a coronária aberta de forma apropriada. Estimuladas pelo G-CSF, as células-tronco po- dem ter se acumulado no in- terior dos stents. "É preocu- pante", diz John Martin, da University College London, que também conduz experi- mentos com células-tronco. •

34 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

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O gás da evolução As formas de vida mais complexas demoraram bi- lhões de anos para surgir, provavelmente porque os oceanos primitivos conti- nham menos oxigênio, que pode ter se tornado co- mum um bilhão de anos mais tarde do que se ima- ginava (Science Express, 4 de março). Pesquisadores das universidades de Ro- chester e de Missouri, Es- tados Unidos, chegaram a essa conclusão após anali- sar o teor de outro elemen- to químico retirado de ro- chas do fundo do oceano, o molibdênio, um excelente indicador por permanecer dissolvido durante milhões

de anos. Oceanos sem oxi- gênio trazem sérias conse- qüências à evolução. Os re- presentantes mais simples de eucariontes - organis- mos formados por células com núcleo - surgiram há 2,7 bilhões de anos, mas os multicelulares, ances- trais das plantas e animais, só apareceram meio bilhão de anos atrás, quando os oceanos se tornaram ricos em oxigênio. A explicação é o extenso período que os oceanos passaram despro- vidos de oxigênio. •

Oceano primitivo: oxigênio favorece

seres multicelulares

■ Os terremotos e os dados viciados

Os terremotos seguem a lei das probabilidades, de acor- do com o físico Álvaro Cor- ral, da Universidade Autô- noma de Barcelona. Após analisar os catálogos de ocor- rências dos tremores, Corral constatou que o risco de um terremoto voltar a sacudir uma região diminui confor- me aumenta o tempo trans- corrido desde o último tre- mor (Physical Review Letters, 12 de março). A lógica é si- milar à que governa os dados viciados. Para quem joga um dado desses uma única vez, é impossível prever o resul- tado, que se dará ao acaso, mas, se os dados forem rola- dos muitas vezes, prevalece- rá um resultado específico. Embora o processo seja alea- tório, há uma distribuição de probabilidades que favorece um resultado sobre os de- mais. Com os tremores de

terra, a distribuição de pro- babilidades é semelhante: fa- vorece a ocorrência de even- tos em intervalos de tempo pequenos, mas só se torna evidente quando se analisam os registros de períodos lon- gos. Os pesquisadores ana-

lisavam os intervalos entre os sismos diferenciando o tremor principal de suas ré- plicas. Corral tratou os dois tipos como sendo um só e concluiu que, apesar de alea- tórios, eles obedecem a uma lei universal. •

San Fernando, Califórnia, 1971: o próximo deve demorar

■ Genética contra a malária

Pesquisadores do Laborató- rio Europeu de Biologia Mo- lecular (EMBL), um instituto que congrega especialistas de 17 países-membros, identifi- caram quatro novos genes que regulam a habilidade do protozoário da malária, Plas- modium, de sobreviver e de- senvolver-se em uma espécie de mosquitos transmissores, o Anopheles gambiae, respon- sável pela maioria dos casos registrados na África, a região mais atingida - no mundo todo, a malária mata anual- mente cerca de 1 milhão de pessoas. As descobertas, des- critas nas revistas Cell (5 de março) e Science (26 de mar- ço), poderiam ser usadas para bloquear a propagação dos parasitas, que se repro- duzem no interior dos inse- tos antes de contaminar os se- res humanos. Dois dos quatro genes, chamados de TEP1 e de LRIM1, matam o parasita no intestino do inseto. Os ou- tros dois, CTL4 e CTLMA2, protegem o parasita - se es- ses genes são inativados, os parasitas morrem. "Muitos pesquisadores se concentram nos efeitos do Plasmodium no organismo humano, mas o inseto transmissor é um campo de batalha igualmente importante na luta contra a malária", comentou Fotis Ka- fatos, diretor-geral do EMBL e coordenador do grupo de trabalho sobre malária. "Ago- ra", diz George Christophides, chefe da equipe, "há a possi- bilidade de desenvolver me- dicamentos que possam blo- quear a atividade das proteínas que protegem o protozoá- rio." No total, os pesquisado- res descobriram 242 genes responsáveis pela defesa do inseto contra o protozoário causador da malária. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 35

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CAPA CIÊNCIA

MARCOS PIVETTA

Extinção peso Teoria propõe que umidade excessiva alterou vegetação e eliminou grandes mamíferos na América do Sul, mas os preservou na África

Dê uma boa olhada nos dois paquidermes desta página, uma anta e um elefante. Apesar da visível diferença de porte, am- bos são animais superlativos em seus continentes. Com no máximo 300 quilos

e 2 metros de comprimento, a anta é o maior mamífe- ro terrestre da América do Sul. Em seu habitat natural, suas medidas não são igualadas por ninguém. Ainda assim, sua configuração física é tímida perto da exibi- da por seu vizinho de página. Até 20 vinte vezes mais pesado que seu colega sul-americano, e com pelo me- nos o triplo do seu tamanho, o elefante é o ser não- marinho mais colossal da África - na verdade, de todo o mundo. Na savana, a pescoçuda girafa é mais alta, o

A anta e o elefante: depois da chuva abundante de cerca de 5 mil anos atrás, os maiores mamíferos terrestres de cada lado do Atlântico

Page 37: Era uma vez na América do Sul
Page 38: Era uma vez na América do Sul

feroz leão carrega o título de rei dos animais, mas majestoso mesmo é o ele- fante. Por que o maior mamífero ter- restre da América do Sul é tão menor do que o seu congênere africano? Por- que aqui, como na maior parte do pla- neta, a chamada megafauna se extin- guiu por completo, de forma ainda não muito bem explicada, em algum mo- mento da história recente, enquanto lá algumas de suas linhagens, como as que geraram os atuais elefantes, girafas e rinocerontes, encontraram formas de se preservar ao longo do tempo. Certo, mas aí vem a verdadeira pergunta: se a América do Sul tinha, há uns 15 mil anos, uma fauna de mamíferos com di- versidade e porte semelhantes à da África, por que, afinal, nossa megafau- na pereceu e a deles não?

Segundo uma nova teoria, for- mulada pelo pesquisador Ma- rio de Vivo, do Museu de Zoo- logia da Universidade de São Paulo (USP), com a colabora-

ção da bióloga e estudante de doutora- do Ana Paula Carmignotto, uma signi- ficativa mudança climática pode ter sido o elemento-chave para explicar tanto o desaparecimento da megafauna na América do Sul como a sua razoável preservação na África: a quantidade acima do normal de água que despen- cou sobre os dois continentes no meio do Holoceno, época geológica (mais quente) iniciada há cerca de 11 mil anos, após o fim da última Era do Gelo, e que se estende até os dias de hoje. Choveu demais, as antigas áreas de sa- vana-cerrado - o habitat por excelência

dos grandes e médios mamíferos, geral- mente situado em áreas tropicais de umidade moderada para baixa - torna- ram-se extremamente densas e fecha- das, com muitas árvores, e pratica- mente viraram extensões das vizinhas florestas tropicais. Na África, a maioria dos mamíferos de grande porte, geral- mente herbívoros que viviam em ban- dos, conseguiu migrar para novas zo- nas de vegetação aberta, com poucas árvores e alguma pastagem. Em função da alteração climática, esse tipo de for- mação vegetal surgiu em áreas hoje de- sérticas, situadas nas extremidades nor- te e sul do continente. Aqui os maiores bichos, concentrados na porção cen- tro-norte da América do Sul, não en- contraram um ambiente próximo compatível com seu estilo de vida. Fal-

Macrauchenia

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~s

Page 39: Era uma vez na América do Sul

tou savana para eles. "A maioria dos au- tores costuma dizer que a manutenção de exemplares da megafauna na África se deu por um motivo que não teve nada a ver com o seu desaparecimento na América do Sul", afirma De Vivo. "Discordo dessa visão e acho que os dois processos foram conseqüência da mesma causa, o excesso de umidade que alterou a vegetação em ambos os continentes."

Clima e vegetação - Para bolar sua teo- ria sobre a megafauna, que será publi- cada em breve num artigo científico no Journal ofBiogeography, professor e alu- na da USP fizeram uma detalhada pes- quisa multidisciplicar sobre os mamífe- ros, extintos e vivos, da América do Sul e da África. Também levantaram dados

sobre como eram - ou podem ter sido - o clima e a vegetação nesses dois con- tinentes nos últimos 20 mil anos. Gran- de parte dos trabalhos se deu no âmbito de um projeto temático financiado pela FAPESP e coordenado por De Vivo, que estuda a evolução e a conservação dos mamíferos presentes atualmente no les- te do Brasil. O zoólogo é o primeiro a admitir que seu modelo não é perfeito, tampouco é capaz de responder a todas as perguntas sobre a megafauna. Ainda assim, acredita que sua teoria, apesar das limitações, pára em pé. "A explica- ção faz sentido quando se olha para o passado e o presente dos mamíferos na África e na América do Sul", diz ele.

A lógica do ponto de vista defendi- do pela dupla da USP baseia-se numa seqüência relativamente simples, mas

engenhosa, de deduções e conclusões a partir da análise de uma série de da- dos e trabalhos sobre as megafaunas sul-americana e africana. De Vivo viu que os maiores mamíferos terrestres de ambos os continentes - aqueles ex- tintos na América do Sul e os de gran- de porte ainda presentes na África, co- mo elefantes, rinocerontes e girafas - precisam de grandes áreas abertas, com pastagem e sem muitas árvores, para manter o seu modo de vida. "Na África, ainda existem espécies de elefantes e de búfalos que moram dentro da flo- resta, na verdade em áreas de clareiras no meio da mata fechada", pondera o zoólogo. "Mas esses animais vivem em bandos pequenos e são bem menores do que os típicos elefantes e búfalos da savana." Portanto, se hoje os gran-

Grandes mamíferas sul-americanos extintos, em representação artística: expulsos da savana

Page 40: Era uma vez na América do Sul

Antes e depois da grande chuva Megafauna teria sido eliminada da América do Sul pelos efeitosda forte mudança climática

cv Savana aberta

Floresta aberta com f enclaves de savana

Entre 20 mil e 13 mil anos

Os dois continentes eram extremamente secos, com vastas áreas de savanas e florestas formadas por árvores esparsas e gramíneas. Clima e vegetação eram ótimos para os grandes mamíferos terrestres.

esta aberta com enclaves de savana

Fonte: Mario de Vivo/USP

des mamíferos habitam pradarias com árvores esparsas, esse também deve ter sido há alguns milhares de anos o ambiente natural da megafauna.

Até aí não há nada de muito novo. Todos os registros fósseis levam a esse tipo de raciocínio. O passo seguinte foi criar um modelo climático-vegetativo razoavelmente confiável que indicasse onde pode ter havido savanas, ou algo próximo disso, na África e na América do Sul entre o final da época geológica chamada Pleistoceno - mais ou menos entre 20 e 13 mil anos atrás, no auge da última grande glaciação - e o meio do Holoceno, há cerca de 5 mil anos. O único parâmetro encontrado por De Vivo foram os índices de umidade, de pluviosidade, dos dois continentes, um dos fatores, ao lado da temperatura, mais importantes na caracterização do clima - e, por extensão, da vegetação - de uma região durante um período de tempo. Com os indícios pré-históricos sobre a quantidade de chuva que atin- giu os dois blocos de terra firme sepa-

rados pelo Atlântico sul, o pesquisador construiu dois cenários esquemáticos e radicalmente opostos sobre como as variações climáticas podem ter promo- vido mudanças radicais em seus tipos de vegetação. Essa é grande contribui- ção do seu trabalho.

O primeiro cenário se situa no cha- mado Último Máximo Glacial, entre aproximadamente 20 mil e 13 mil anos atrás, no final do Pleistoceno. Dentro da Era do Gelo, quando boa parte do globo foi coberta por geleiras, esse é o momento em que, tomando por base os índices contemporâneos de pluvio- sidade, registrou-se a menor quanti- dade de umidade na África e na Amé- rica do Sul. Foi o ápice da estiagem (e do frio). O ambiente extremamente seco garantia a existência de vastas áreas de savana aberta, com árvores esparsas e muitas gramíneas, e de mosaicos de floresta aberta com en- claves de savana na maior parte do território dos dois continentes (veja mapas acima). Se em algumas regiões

a seca foi extremamente forte, em ou- tras ainda choveu bastante para man- ter muita vegetação, mesmo que aber- ta. Não faltavam, portanto, comida e espaço para a manutenção do estilo de vida da megafauna tanto na África como na América do Sul. "Não é pos- sível precisar qual era o nível exato de umidade no último Glacial Máximo", comenta De Vivo. "Mas deve ter cho- vido anualmente menos do que 1.500 milímetros em muitas áreas."

Hoje áreas com esse índi- ce de pluviosidade não comportam florestas tropicais extremamen- te densas - e o mesmo

deve ter acontecido no passado. Al- guns autores acham que o frio e a seca ainda mais intensa dessa fase glacial podem ter sido os responsáveis pela mor- te da megafauna na América do Norte. Para o pesquisador da USP, isso pode ter sido verdade lá em cima, mas não aqui em baixo. Na verdade, ele pensa

40 ■ ABRIL DE 2004 ■ PES0.UISA FAPESP 98

Page 41: Era uma vez na América do Sul

Entre 8 mil e 3 mil anos

O clima tornou-se mais quente e úmido. Foi a época em que mais choveu em ambos os continentes.

Na América do Sul, a vegetaçãose adensou e se tornou imprópria para os grandes mamíferos. No sul, surgiu um refúgio de savana, mas era muito frio e de difícil acesso Sem ter para onde fugir, as espécies de maior porte foram extintas.

A vegetação também se adensou na África, mas linhagens de grandes mamíferos encontraram refúgio em antigas áreas desérticas como o Saara, ao norte, e o Kalahari, ao sul, que se transformaram em savanas com a umidade elevada.

justamente o contrário. "Nessa fase, as condições de vida para os grandes ma- míferos na América do Sul e na África devem ter sido ótimas, pois deveria haver muitas áreas de savana para esses animais", diz De Vivo. Não se deve esquecer que, devido à sua posi- ção geográfica eminentemente entre os trópicos, os dois continentes aus- trais foram menos afetados pela gla- ciação do que, por exemplo, a Europa e a América do Norte, situadas em zo- nas temperadas.

O segundo cenário localiza-se no Ótimo Climático do Holoceno, entre 8 mil e 3 mil anos atrás. Nesse momen- to, tudo mudou em relação à fase an- teriormente descrita: o clima é úmido como nunca, talvez uns 30% a mais do que hoje, e a vegetação da América do Sul e da África sofre mutações radi- cais. Segundo De Vivo, é agora que o cerco sobre a megafauna se fecha de vez, em especial aqui. O excesso de umidade transformou a América do Sul, quase de ponta a ponta, num con-

tinente com formações vegetais tão densas e fechadas que inviabilizaram a manutenção das maiores linhagens de mamíferos terrestres. Expulsa de seu ambiente original pelo avanço da mata cerrada, a megafauna teve de procurar novas áreas de savana para garantir a sua sobrevivência. "Mas na América do Sul, ao contrário do que ocorreu na África, não restaram áreas de cerrado- savana próximas aos locais onde vi- viam os grandes mamíferos", afirma a bióloga Ana Paula Carmignotto. "Nessa fase, a única região com essas caracte- rísticas era a Patagônia, no sul da Ar- gentina e Chile, mas essa área era mui- to fria e de difícil acesso." E os maiores mamíferos não devem ter conseguido fazer a migração e ficaram pelo cami- nho. Por falta de espaço físico para se mover e de gramíneas para comer, fa- bulosos animais pereceram em terras sul-americanas. Adeus preguiças gi- gantes, gliptodontes (que lembravam grandes tatus), mastodontes e tigres- dentes-de-sabre. Sobraram apenas bi-

chos de tamanho médio para baixo, o que explicaria o fato de a modesta anta ser atualmente o maior mamífero do continente.

Salvos pelo Saara - Na outra margem do Atlântico Sul, houve um proces- so semelhante, mas as conseqüências foram bem menos trágicas. Na África Central, a chuva abundante do Holoce- no médio também metamorfoseou as savanas e florestas abertas em matas mais cerradas, impróprias para a vida das espécies que compunham a mega- fauna. Mas, em compensação, a umi- dade extra do período conferiu feições mais amenas, de savana, a duas áreas então áridas e semi-áridas do conti- nente, os desertos do Saara, ao norte, e do Kalahari, ao sul. Na prática, sempre segundo o modelo proposto por De Vivo, as extremidades da África servi- ram de refúgio, durante esse período mais chuvoso, para os mamíferos de maior porte que tinham sido expulsos da porção central do continente pelo

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 41

Page 42: Era uma vez na América do Sul

avanço da floresta sobre as antigas savanas. "Uma série de pinturas rupes- tres de até 8 mil anos de idade mostra que o Saara (com áreas de savana) já abrigou populações de girafas", co- menta De Vivo. Anos mais tarde, quando a umidade deixou de ser exces- siva, e o clima assumiu feições pare- cidas com as atuais, os desertos que haviam virado savana voltaram a ser desertos e as savanas que haviam se transformado em floresta retornaram à condição de savana. Então, as linha- gens sobreviventes de megafauna e de outros mamíferos de porte médio, que haviam encontrado seu oásis nos de- sertos do Ótimo Climático do Holoce- no, puderam retornar ao seu ambiente clássico, as savanas da África Central. Segundo o modelo de Vivo/Carmig- notto, é por isso que hoje há elefantes, rinocerontes, girafas, hipopótamos na África - e não na América do Sul.

N ão e a primeira vez que um especialista atribui o desaparecimento da me- gafauna sul-americana a alterações climáticas - e

não a outras razões, como a chegada do homem ou de novas doenças ao conti- nente. Isso não quer dizer que as idéias dos pesquisadores da USP sejam exata- mente iguais às de outros estudiosos do assunto. Na verdade, pelo menos dois pontos em sua teoria são distintos das demais hipóteses que apontam o clima como maior vilão dessa história. Dife- rença número um: o momento em que foi dado o golpe final nos grandes mamíferos da América do Sul. Para De Vivo, o último so- pro de vida desses ani- mais ocorreu entre 8 e 3 mil anos atrás, no meio do Holoceno, depois do término da última grande glaciação. Para outros autores, a extin- ção se deu um pouco an- tes, há mais de 11 mil anos, ainda no Pleistoceno, época geológica que an- tecedeu ao Holoceno e popularmente é cha- mada de a Era do Ge- lo. Diferença número dois: a mudança climá- tica que inviabilizou a vi- da da megafauna daqui foi o

42 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQ.UISA FAPESP 98

excesso de umidade do meio do Holo- ceno, época em que vivemos hoje - e não a sua falta do final do Pleistoceno, como advogam outros pesquisadores. "Muitos pesquisadores acreditam que foi o período mais seco e frio (do Pleis- toceno) que matou a megafauna da América do Norte, mas acreditamos que, na América do Sul, ocorreu justa- mente o contrário", afirma Ana Paula.

As hipóteses formuladas para expli- car a extinção da megafauna na maior parte do globo podem ser agrupadas em três grandes categorias, que for- mam um jogo de palavras em inglês: overkill (os homens caçaram em de- masia os bichos), overill (a culpa foi do surgimento de novas e letais doenças) e overchill (o intenso frio seco no fim da última glaciação congelou os bichos). No Brasil, é difícil encontrar quem de- fenda as duas primeiras teorias. "Já vi

0 PROJETO

Sistemática, Evolução e Conservação de Mamíferos do Leste do Brasil

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR MARIO DE VIVO - Museu de Zoologia/USP

INVESTIMENTO RS$ 789.083,78

Tigre-dentes-de-sabre: carnívoro entre herbívoros

150 mil peças (ossos e artefatos) do Pleis- toceno brasileiro e só encontrei indícios de marcas intencionalmente causadas pelo homem em uma delas", diz o pa- leontólogo Castor Cartelle, da Univer- sidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC-MG), um dos maio- res especialistas em megafauna do país. "Honestamente, essa história de over- kill é uma idiotice. Também não co-

nheço nenhum caso histó- rico de zoonose que

tenha eliminado uma espécie (de mega- fauna) de um con- tinente inteiro."

Paleontólogo aposentado da Uni- versidade Federal

do Acre (Ufac), Al- ceu Ranzi acredita, a

exemplo de Cartelle, que o elemento - chave para o

sumiço da megafauna sul-americana foi algum tipo de alteração climática, durante o Pleistoceno ou na transição desta época para o Holoceno. "Como a entrada do homem nas Américas (há cerca de 11 mil anos) foi mais ou me- nos contemporânea à extinção dos grandes mamíferos, alguns pesquisa- dores dizem que uma coisa levou ne- cessariamente à outra", afirma Ranzi. "A megafauna até pode ter sido alvo de caça, mas não deve ter sido isso que a levou à extinção. Não há cemitério desses bichos cheios de flechas huma- nas." Anos atrás, Ranzi encontrou ca- melídeos (guanacos, alpacas, lhamas) de 18 mil anos de idade na Amazônia, uma evidência de que deve ter havido ali, pouco antes do fim do Pleistoceno, um tipo de ambiente mais próximo

Page 43: Era uma vez na América do Sul

das savanas do que da atual floresta tropical. Mais ou menos como afirma De Vivo em seu modelo climático- vegetativo para a América do Sul e África.

Os mamíferos surgiram prova- velmente há cerca de 220 milhões de anos, no período geológico deno- minado Triássico Superior, mais ou menos no mesmo momento da pré- história em que apareceram os dinos- sauros. Seus primeiros exemplares eram animais muito pequenos, de uns pou- cos centímetros, parecidos com mo- dernos ratos ou esquilos selvagens. Aparentemente comiam insetos e ti-

nham hábitos noturnos. Sua evolução foi lenta e durante aproximadamente 150 milhões de anos viveram aos pés dos grandes répteis. Somente depois do misterioso desaparecimento dos dinossauros, há 65 milhões de anos, no final do período Cretáceo, passa- ram a assumir formas e tamanhos variados. Com o tempo, os maiores se transformaram em criaturas quase tão avantajadas quanto os colossais répteis que os precederam, como pre- guiças e camelídeos gigantes, mamu- tes, mastodontes e gliptodontes, às vezes com alguns metros de altura e toneladas de peso.

Preguiça gigante: hábitos terrestres

A literatura científica mostra i^L que, embora sempre tenham

^^A contado com espécies par- m ^ ticulares, próprias de seus

-JL. _m^ continentes, a América do Sul e a África tiveram faunas de mamíferos terrestres com semelhante grau de diversidade até um passado relativamente recente. Ao longo de todo o período Terciário (entre 65 mi- lhões e 1,8 milhão de anos atrás) e de boa parte do Quaternário (entre 1,8 mi- lhão de anos atrás até os dias de hoje), havia até, segundo alguns autores, mais formas de mamíferos não-voadores e não-aquáticos aqui do que lá. "A Amé- rica do Sul tinha 20 ordens de mamí- feros (terrestres) e a África, apenas 13", conta De Vivo. Na linguagem dos ta- xonomistas, uma ordem é uma cate- goria de classificação de organismos que compreende uma ou várias famí- lias similares ou intimamente relacio- nadas de seres vivos. Dentro da ordem dos primatas, por exemplo, figuram várias famílias de mamíferos, como a dos Hominidae (grandes macacos e humanos), dos Callitrichidae (sagüis e micos) e dos Lemuridae (lêmures), en- tre outras. Hoje, a África apresenta 11 ordens de mamíferos terrestres, uma a menos do que a América do Sul.

Por algum motivo, ou mesmo vá- rios, oito ordens desaparecem da mar- gem esquerda do Atlântico Sul, sobre- tudo as de animais de grande e médio porte que moravam em áreas de vege-

tação aberta, e somente duas na margem direita. Não por acaso,

se for adotado o peso dos animais como um indica- dor de seu tamanho, a ca- tegoria dos mamíferos terrestres com menos de 5 quilos é a única em que há mais espécies na América do Sul do que na África (622 contra 587). Em todas as demais, o continen- te das girafas e elefan- tes apresenta mais es- pécies de animais de

sangue quente do que o Brasil e seus vizinhos

hispânicos. "Ficamos ba- sicamente com os bichos

de floresta, pequenos, e eles com os de savana, maiores",

resume De Vivo. •

PESOUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 43

Page 44: Era uma vez na América do Sul

i CIÊNCIA

AMBIENTE

Mordidas de mãe Piranhas não são tão agressivas como se imagina e, em geral, atacam em defesa da prole

D epois de assistir a Pira- nha, filme de terror nor- te-americano lançado em 1978, é fácil deixar- se dominar pelo medo

de mergulhar mesmo em um rio tran- qüilo como o Tietê, o maior rio paulis- ta, que a menos de 200 quilômetros da capital deixa de ser poluído e volta a ter peixes. No cinema, as vorazes piranhas, com seus dentes triangulares e pontiagu- dos, devoram os desavisados banhistas em minutos e a água se torna turva de sangue. É impossível não pensar no ris- co de ser a próxima vítima mal se mo- lhe os pés no rio.

Mas pesquisas recentes mostram que essa imagem de devorador sangui- nário é mesmo infundada. Vidal Had- dad Júnior, médico dermatologista da Faculdade de Medicina da Universida- de Estadual Paulista (Unesp), em Botu- catu, estudou os ataques de piranhas a banhistas no interior de São Paulo e, em parceria com o zoólogo Ivan Sa- zima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), chegou a con- clusões que desfazem o preconceito contra esses peixes carnívoros, de cor- po oval e achatado, encontrados ape- nas na América do Sul. Embora es- tejam se espalhando pelos rios do estado, elas geralmente atacam para defender a prole (ovos e larvas) e suas mordidas não causam grandes feri- mentos. Os casos estudados até agora consistem apenas de uma única mor- dida na perna ou no pé - o ferimento

sangra, mas o membro continua intei- ro. Até agora não há registro confiável da morte de uma só pessoa provocada por ataque de piranhas. Mesmo assim, é bom ficar longe delas.

Fama indevida - O interesse de Haddad pelos acidentes provocados por ani- mais aquáticos surgiu há dez anos, quando percebeu que pouco se sabia sobre como cuidar dos ferimentos que eles causavam. Só depois de publicar em 2000 o Atlas de animais aquáti- cos perigosos do Brasil: Guia médico de identificação e tratamento (160 pági- nas, Editora Roca), em que trata prin- cipalmente das espécies marítimas como ouriço e água-viva, é que ele co- meçou a se dedicar às de água doce e conseguiu demonstrar que as investi- das das piranhas eram menos graves do que se supunha.

Em março e abril de 2002, Haddad foi a Santa Cruz da Conceição, cidade de 3.500 habitantes a 200 quilômetros da capital, investigar os ataques de pi- ranhas aos banhistas que tiravam o domingo para se divertir na praia de águas calmas e rasas, às margens do

Filhote de piranha entre os aguapés: a razão dos ataques aos banhistas. Ao fundo, a Serrasalmus, em desenho de Alfred Wallace feito em 1851

rio Mogi-Guaçu. Em cinco domingos, em um posto de saúde próximo à praia, ele atendeu 38 pessoas mordidas por esses peixes enquanto nadavam.

Em geral, quem chegava ao posto de saúde apresentava um único feri- mento, com cerca de 2 centímetros de diâmetro - o mesmo da mandíbula da piranha -, em forma de uma cratera. Sangrava bastante e os banhistas se impressionavam, o que certamente contribuiu para alimentar o mito da ferocidade desses peixes. Mas não houve caso fatal. Metade das pessoas feridas fora mordida na perna e outros 40%, no pé, próximo ao calcanhar. Apenas um banhista foi ferido no bra- ço e outros três, na mão. Das 38 pesso- as mordidas, cinco precisaram ser transferidas para a cidade vizinha, Le- me, por apresentarem sangramento mais intenso, e apenas uma sofreu a ampu- tação de um dedo. O maior número de acidentes (16) ocorreu justamente no

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final de semana em que mais banhis- tas entraram na água. De modo geral, o tratamento indicado é bastante sim- ples e inclui a limpeza do ferimento por cerca de dez minutos com água e sabão, para eliminar a possibilidade de contaminação por bactérias. Em caso de mordidas mais profundas, reco- menda-se tomar vacina antitetânica.

Sinal de alerta - "Os ferimentos causa- dos pelas piranhas são menos graves que os provocados pelo ferrão de peixes como o mandi ou a arraia", diz Had- dad. Formado também em biologia, ele identificou a espécie que rondava as águas de Santa Cruz da Conceição: pi- ranha-pequena, piranha-doce ou pi- rambeba (Serrasalmus spilopleura ou Serrasalmus maculatus). Comum em to- do o país, essa espécie, quando jovem, apresenta a cauda amarela com uma listra negra, o dorso de prateado a dou- rado e o ventre amarelado, coberto de pintas escuras. Já adulta, o corpo se tor- na cinza escuro, com até 26 centímetros de comprimento. Mas faltava saber por que a Serrasalmus spilopleura - hoje co- mum nas praias que se formaram ao longo do rio Tietê após seu represa- mento - estava atacando as pessoas.

A resposta veio pouco tempo de- pois, quando Haddad conheceu Ivan Sazima, especialista no comportamen- to de peixes que, desde a década de 1980, estuda os hábitos das piranhas como parte de um projeto temático coordenado por Mareio Roberto Cos- ta Martins, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Sazima já havia investigado a fama de devoradores de pessoas atribuída a es- ses peixes por meio do relato de três casos em que corpos humanos haviam sido encontrados com mordidas e até mesmo inteiramente descarnados por piranhas. Em todos eles, porém, a pes- soa já havia morrido por afogamento ou infarto antes do ataque dos peixes.

Após um ano de visitas a Santa Cruz da Conceição, os pesquisadores conse- guiram associar as características dos ferimentos às do ambiente em que ocor- reram. Com apenas 300 metros de ex- tensão, a praia do município fica em um trecho de águas calmas do rio Mo- gi-Guaçu, onde proliferam os aguapés (Eichhornia crassipes), plantas aquáti- cas flutuantes de folhas arredondadas verde-escuro e flores lilás. Não foi difí-

0 PROJETO

História Natural, Ecologia e Evolução de Vertebrados Brasileiros

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR MáRCIO ROBERTO COSTA MARTINS - Universidade de São Paulo

INVESTIMENTO R$ 851.027,74

cil estabelecer a relação. Em 1985, Sa- zima havia descoberto que a Serra- salmus spilopleura deposita seus ovos próximos ou em meio às raízes dos aguapés, que, mais tarde, fornecem abri- go e alimento para a cria. Outros es- tudos também mostravam que, para proteger a prole, o macho ou a fêmea dessa espécie atacam os possíveis pre- dadores da cria com uma mordida de advertência. "É apenas um alerta", diz Sazima, co-autor de Haddad no artigo sobre os ataques de Santa Cruz da Con- ceição publicado no final do ano pas- sado na revista Wilderness and Envi- ronmental Medicine. "As piranhas estão indicando: afaste-se do ninho", afirma o zoólogo da Unicamp.

Pouco agressiva, a S. spilo- pleura é em geral um ani- mal solitário, que se alimen- ta de pequenas porções de nadadeiras e músculos de

outros peixes. Além de comerem inse- tos, crustáceos e pedaços de aves, rãs e cobras, as pirambebas costumam roubar a isca de pescadores, por vezes levando linha, anzol e isca numa só mordida. De acordo com Sazima, so- mente em casos extremos uma pessoa correria o risco de ser devorada - por exemplo, se entrasse com um feri- mento sangrando em um trecho de rio isolado pela seca e com cardumes de piranhas ou em uma porção de um rio na qual há descarte de carcaças de matadouros. Mesmo assim, o mais provável é que o ataque fatal fosse provocado por outra espécie, maior e mais robusta, a Pygocentrus nattereri ou piranha-queixuda, cujo ventre avermelhado lhe valeu o nome de pi- ranha-caju, encontrada em cardumes maiores.

Antes incomuns no Estado de São Paulo, os ataques de pirambebas a ba- nhistas se tornaram freqüentes nos úl- timos cinco anos. Os pesquisadores atribuem esses episódios à soma de uma série de fatores. Um dos mais im- portantes é o represamento dos rios paulistas para navegação, produção de energia elétrica e abastecimento de ci- dades, que origina os remansos - luga- res favoráveis à procriação de peixes e à proliferação dos aguapés, onde as pi- ranhas depositam seus ovos -, e as praias. Além disso, o ciclo de reprodu- ção das piranhas coincide com o ve- rão, quando aumenta a freqüência de banhistas nas praias de rio.

Arraias nos rios - Depois dos ataques em Santa Cruz da Conceição, Haddad constatou pessoalmente cerca de cem outros acidentes por mordida de pi- rambeba nos municípios de Iacanga e Itapuí, próximos a Bauru, na região noroeste de São Paulo. Em cada uma dessas cidades banhadas pelo rio Tie- tê, o pesquisador da Unesp observou 50 ataques a banhistas em apenas dois finais de semana. Haddad e Sazima alertam para o risco de um outro tipo de acidente muito mais grave: os pro- vocados pelo ferrão de arraias de água doce do gênero Potamotrygon. Peixes cartilaginosos aparentados dos tuba- rões, as arraias apresentam o corpo em forma de um disco de até 50 cen- tímetros de diâmetro. Sua cauda lon- ga tem um ferrão ósseo serrilhado, ro- deado por gládulas produtoras de um potente veneno que provoca a morte dos tecidos.

As arraias migraram há 20 mi- lhões de anos da região Amazônica para os rios do interior do país. Os pes- quisadores acreditam que a constru- ção de barragens, como a de Itaipu, favoreceu a proliferação e a migração de arraias, permitindo que atingis- sem o rio Paraná. Haddad, que no ano passado detalhou o tratamento de fe- rimentos por arraias no livro Animais peçonhentos no Brasil: Biologia, clíni- ca e terapêutica dos acidentes (468 pá- ginas, Editora Sarvier), já ouviu pes- cadores relatando a captura de arraias em Ilha Solteira, próximo à região em que o rio Paraná recebe as águas do Tietê. "Em poucos anos", diz ele, "as ar- raias podem se tornar comuns nos rios paulistas." •

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■ CIÊNCIA

'EUROCIÊNCIAS

O cérebro „ 1

Experimento em pacientes com Parkinson sugere que atividadade elétrica dos neurônios pode mover próteses

adicado há uma década e meia nos Estados Uni- dos, onde se destaca como um dos expoentes da criação de interfaces para o controle de próteses e máquinas por sinais do cérebro, o paulistano Mi-

nguei Nicolelis, 43 anos, viu no mês passado dois dos seus maiores sonhos darem um passo à frente para se tor- nar realidade. No começo de março, o cientista promoveu um bem-sucedido simpósio sobre neurociências em Natal que reu- niu cerca de 700 participantes, daqui e do exterior, entre os quais o alemão Erwin Neher, do Instituto Max Planck de Quí- mica Biofísica, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1991. Na prática, o evento serviu para lançar ofi- cialmente o seu projeto de construção de um instituto interna- cional de neurociências na capital do Rio Grande do Norte. No dia 23, já de volta à Universidade de Duke, na Carolina do Nor- te, onde comanda um laboratório com 40 pesquisadores, o neurologista anunciou os resultados de um experimento feito recentemente em seres humanos por sua equipe. Tema de um artigo científico a ser publicado em julho na revista Neurosur- gery, o trabalho sinaliza que o homem, a exemplo do já de- monstrado concretamente em macacos, também pode, em tese, controlar robôs e próteses por meio da atividade elétrica de seus neurônios. Pela força do pensamento, diria um leigo.

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raças a 32 microeletrodos temporariamente im- plantados numa região do cérebro de 11 indiví- duos com mal de Parkin-

son que se submetiam a uma neuroci- rurgia destinada a reduzir os sintomas da doença, os pesquisadores consegui- ram registrar, durante cinco minutos em cada doente, os sinais emitidos por até 50 células nervosas enquanto os pacien- tes acionavam com uma das mãos o controle de um videogame muito ele- mentar. "Aproveitamos essa operação de rotina, na qual os pacientes ficam acordados e conscientes, para realizar nosso experimento", conta Nicolelis.

O conjunto de sinais gravados é a assinatura elétrica que antecede e dire- ciona os movimentos feitos pela mão dos doentes para executar a tarefa em ques- tão. Em termos nada científicos, poderia ser descrito como a ordem - ou as ordens - que uma porção do sistema nervoso envia quando quer mover uma determi- nada parte do corpo. Segundo o brasi- leiro, eis a boa notícia: a gravação da ati- vidade elétrica dessa meia centena de neurônios, situados numa região pro- funda do cérebro chamada núcleos da base, carrega informação suficiente para que um computador, municiado com os programas matemáticos criados pela equipe da Duke, consiga antever o tipo de movimento mecânico ordenado pelo cérebro. "Com isso, a gente mostrou que o nosso método também pode funcio- nar em seres humanos", afirma Nicolelis.

Existe uma ínfima diferença de tem- po, de alguns milissegundos, entre o momento em que a ordem deixa o sis- tema nervoso central e o gesto motor, requisitado pelo cérebro, é efetivamen- te executado. Para que uma prótese im- plantada num ser humano, digamos um braço mecânico, funcione de forma se- melhante ao órgão substituído, a in- terface entre o cérebro e a máquina precisa prever com exatidão os movi- mentos requisitados e repassar, quase

instantaneamente, adiante o pedido. Aparentemente, o experimento com os pacientes com o mal de Parkinson mos- trou que a quantidade de informação fornecida pela atividade elétrica de meia centena de neurônios humanos, cap- tada pelo arranjo de microeletrodos, basta para que o sistema funcione a con- tento. O passo seguinte será repetir em humanos o que já foi feito em macacos: movimentar, em tempo real, um braço mecânico apenas com a atividade elé- trica de um grupo de células nervo- sas. Nos animais, os microeletrodos de Duke captaram os sinais de 300 neu- rônios do córtex motor, que se mos- traram eficientes em mover um braço mecânico necessário para jogar um vi- deogame. A autorização para a reali- zação de um experimento semelhante com voluntários humanos deve sair até o final deste ano.

Otimista e entusiasmado por natu- reza, Nicolelis acredita que, em menos de uma década, tetraplégicos ou pessoas com paralisias decorrentes de proble- mas de saúde, como um derrame, po- derão se beneficiar de próteses e má- quinas que serão movidas por sinais do cérebro. "Dois anos atrás, achava que isso só iria acontecer daqui a dez anos. Agora estimo esse prazo em cinco anos", diz o brasileiro. Em sua visão, as maiores dificuldades para que o ho- mem comece a comandar máquinas com o seu cérebro no futuro próxi- mo residem hoje mais no campo da bioengenharia do que propriamente da neurologia. A miniaturização ainda maior dos microeletrodos e a criação de interfaces máquina-homem sem fios são pontos a ser atacados com mais ênfase daqui para frente. Afinal, nin- guém imagina que os candidatos a usuários de hipotéticos artefatos mo- vidos por sinais cerebrais sejam cons- trangidos a sair à rua com a cabeça re- pleta de fios à mostra. O implante de arranjos de microeletrodos em regiões do cérebro, um procedimento invasivo

numa área delicada do corpo huma- no, pode provocar algum tipo de rea- ção adversa, infeção ou danificar al- guma função nervosa. Ainda assim, Nicolelis está convencido de que esse problema também será superado. "Os implantes (de eletrodos) serão conside- rados tão invasivos como um dia tam- bém o foram os marcapassos", argu- menta o neurologista.

Neurociências em Natal - Pode parecer que o sonho de movimentar máquinas com a atividade elétrica dos neurônios, um objetivo igualmente perseguido por outros grupos de pesquisa nos Es- tados Unidos, fora da Universidade de Duke, não tenha nada a ver com a idéia de criar um instituto internacional de neurociências na capital do Rio Grande do Norte, um sonho de Nicolelis de or- dem mais pessoal. O pesquisador Idan Segev, da Universidade Hebraica de Jerusalém, que participou do simpósio de neurociências realizado mês passado em Natal, acha que uma coisa tem tudo a ver com a outra. "As pessoas só levam a sério o projeto de criar um institu- to aqui porque respeitam e admiram o trabalho do Miguel", disse Segev, durante sua estada no Nordeste. "Com pouco mais de 40 anos, ele é um cien- tista fantástico. Ninguém daria muito atenção a ele se as suas pesquisas não fossem brilhantes." A opinião de Segev é a de um renomado colega de profis- são - e também a de um amigo muito próximo do brasileiro.

Além de exibir uma eloqüência con- tagiante, Nicolelis tem muitas conexões. Não só as do cérebro, mas também as da vida social. Sabe fazer amigos e in- fluenciar as pessoas, para usar uma expressão surrada. O israelense Segev, por exemplo, foi quem convenceu Er- win Neher, o prêmio Nobel alemão, que nem conhecia pessoalmente o brasilei- ro, a pegar um avião até Natal para participar do simpósio e emprestar seu apoio ao projeto do instituto de neuro-

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ciências. "É uma idéia ou- sada", opinou Neher. "Já vi um projeto semelhante no Chile, mas lá não ha- via todo esse lado social." O lado social é a escola para crianças carentes e o centro de saúde mental previstos para funcionar na mesma área que de- verá abrigar o centro de pesquisas em neurociên- cias. Isso se o projeto re- almente sair do papel daqui a três anos, como prevê seu idealizador. De acordo com Nicolelis, o custo de implantação da empreitada gira em tor- no de US$ 30 milhões, uma verba considerável no mundo da ciência brasileira.

P or ora, o bra- sileiro já conseguiu alguns apoios de peso para a ini- ciativa, que visa descentra- lizar a produção científica

na área de neurociências do Sul-Su- deste. O governo do Rio Grande do Norte se comprometeu a implantar a infra-estrutura necessária (luz, água, estrada) no local onde deverá funcio- nar o instituto. A Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN), que possui um núcleo de pesquisa em neurociên- cias, cedeu um terreno de 100 hectares vizinho à sua escola agrícola. O lugar não se situa exatamente de frente para o mar. Fica no município de Macaíba, na região metropolitana de Natal, a meia hora da capital potiguar. Juntan- do toda a verba obtida junto a agên- cias de fomentos e ministérios do go- verno federal, Nicolelis contabiliza R$ 4,5 milhões para o projeto do ins- tituto. Certamente influenciado pelo exemplo de fundações norte-ameri- canas de pesquisa, que obtêm gordas

Nicolelis com braço mecânico: uso de sinais elétricos do cérebro para mover próteses

doações de empresas privadas e parti- culares para os seus cofres, o brasileiro criou a Fundação Alberto Santos Du- mont, entidade privada sem fins lucra- tivos, e aposta na captação de recur- sos não-públicos para o seu projeto. Até agora, a maior doação privada con- seguida foi da Universidade de Du- ke, o empregador de Nicolelis, que deu US$ 50 mil.

Conta com assento no conselho da fundação o presidente do Banco Cen- tral do Brasil, Henrique Meirelles, que tem laços de amizade com o neurocien- tista brasiliense Cláudio Mello, da Uni- versidade de Saúde e Ciência do Ore- gon. Radicado há 15 anos nos Estados Unidos, Mello é uma espécie de braço direito de Nicolelis no projeto de cria- ção do instituto internacional em Natal, ao lado do também brasiliense Sidarta Ribeiro, da Universidade de Duke. Nu- ma prova do prestígio de Nicolelis, Mei- relles esteve no simpósio de neuro- ciências na capital potiguar. O ministro

da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, tam- bém compareceu ao even- to. E, poucos dias após o término do simpósio, Ni- colelis foi recebido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto, em Brasília. Além de ciência, devem ter falado de uma paixão co- mum, o futebol. O pesqui- sador é torcedor fanático do Palmeiras. Lula é corin- tiano roxo, mas isso não deve ter sido motivo de divergência grave.

Por sua inegável com- petência científica, per- sonalidade envolvente e ótimas conexões, dentro e fora do laboratório, o brasileiro que faz maca- cos jogarem em videoga- me com a força do pen-

samento aposta incondicionalmente na concretização do sonho de se fazer um instituto internarcional de neu- rociências em solo potiguar. Às vezes, fala como se o projeto já fosse reali- dade. Anunciou até que pretende fazer uma rede de institutos pelo Nor- te-Nordeste, especializados em outras áreas científicas. Antes disso, no en- tanto, alguns detalhes sobre o (possível) funcionamento do centro de neuro- ciências em Natal terão de ser deba- tidos e esclarecidos com a comuni- dade científica. Quais serão as suas linhas de pesquisa? Quem vai traba- lhar no instituto? Como vai ser a sua relação com a UFRN, que estará ali ao lado, e com outros centros de pes- quisa do Brasil e do exterior? "O Nico- lelis é muito persistente e nós apoiamos o seu projeto", diz Maria Bernadete de Sousa, pró-reitora adjunta de Pes- quisa da UFRN. "Mas ainda precisa- mos discutir muito como vai funcio- nar o instituto." •

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Lembranças preservadas

Novos compostos reduzem danos da doença de Alzheimer

RICARDO ZORZETTO*

D esde o nascimento, o cérebro humano enco- lhe um pouquinho a cada dia, com a morte de quase 400 mil células

nervosas que não são repostas. É uma taxa normal que, sem que se note, con- some 10 bilhões delas até o final da vida. Comum no envelhecimento normal, a perda dessas células conhecidas como neurônios só se torna mais evidente quando se instala no organismo uma doença tão sorrateira quanto cruel: o Alzheimer, que acelera brutalmente a morte das células do sistema nervoso. Devastadora, essa doença se anuncia de modo sutil, na forma de pequenos es- quecimentos, como não se lembrar do local em que deixou os óculos ou as cha- ves do carro, mas, em questão de anos, pode levar uma pessoa ainda produtiva aos 70 anos a perder progressivamente sua capacidade intelectual e apresentar níveis de habilidade semelhantes aos de recém-nascidos - a pessoa se torna in- capaz de andar, alimentar-se sozinha, reconhecer familiares e amigos e até

^Colaborou Francisco Bicudo

de falar. Descrita em 1906 pelo médico alemão Alois Alzheimer, essa enfermi- dade atinge 5% dos homens e 6% das mulheres com mais de 60 anos - num total de 40 milhões de pessoas no mundo e cerca de 1,5 milhão no Brasil -, e ainda hoje permanece sem cura. Até o ano pas- sado, os únicos medicamentos dispo- níveis para tratar essa enfermidade que destrói de modo progressivo o sistema nervoso central agiam apenas de modo paliativo: ajudavam a reduzir de forma temporária a perda de memória, mas sem evitar a eliminação dos neurônios.

Mas estudos recentes apontam o sur- gimento de compostos com uma ação complementar, capazes de reduzir ou mesmo impedir a morte das células ner- vosas. E parte importante desse progresso se deve ao trabalho de pesquisadores brasileiros. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a equipe do bio- químico Sérgio Teixeira Ferreira iden- tificou nos últimos três anos nove substâncias - algumas delas produzi- das pelo próprio organismo, como a melatonina e a taurina - que, em testes de laboratório, retardaram ou mesmo bloquearam a eliminação dos neurô-

nios. Na Universidade Estadual Paulis- ta (Unesp) em Araraquara, no interior de São Paulo, a equipe da farmacêutica Vanderlan da Silva Bolzani extraiu da Senna spectabilis - uma árvore de até 6 metros de altura, com folhas verdes miúdas e flores amarelo-ouro, conheci- da como cássia-do-nordeste ou tula- de-besouro - uma substância chamada spectalina, cujos derivados atuam con- tra o Alzheimer.

Mais acetilcolina - Embora não impe- çam a morte das células nervosas, três compostos derivados da spectalina im- pedem a destruição de uma substância que faz a comunicação entre os neurô- nios - o neurotransmissor acetücolina, associado à formação da memória -, aumentando sua quantidade no sis- tema nervoso. A vantagem é que esses compostos não são tóxicos como a ta- crina e a rivastigmina, dois dos medica- mentos ainda usados no combate aos danos do Alzheimer. Como agem sobre a enzima que degrada a acetilcolina, es- ses compostos podem ainda auxiliar no tratamento de outras doenças neuroló- gicas, como o mal de Parkinson.

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"O Alzheimer é uma doença com- plexa, cujo tratamento exigirá o uso de estratégias múltiplas. Não acredito que seja dominada com um único medica- mento", diz Ferreira, coordenador da equipe, que, nos últimos dois anos, des- cobriu o papel protetor da taurina e desvendou como esse composto e o hor- mônio melatonina evitam a destrui- ção dos neurônios: ambos combatem a ação tóxica disparada por uma molé- cula fabricada em grande quantidade no cérebro de pessoas com Alzheimer, o peptídio beta-amilóide. No estudo mais recente, publicado no mês passa- do no Faseb Journal, a revista da Fe- deração Americana de Sociedades de Biologia Experimental, a equipe do Rio de Janeiro constatou que a taurina, um aminoácido encontrado em geral em grande quantidade no sistema nervoso, reverte o desequilíbrio químico carac- terístico dessa doença. É um efeito se- melhante ao obtido com a memantina - composto cujo uso contra o Alzhei- mer foi liberado em 2003 na Europa e, somente neste ano, nos Estados Uni- dos - que, no entanto, funciona de for- ma diferente.

Essencial para a absorção de gorduras pelo intestino, a taurina funciona no sistema nervoso como um antídoto contra os efeitos do peptí-

dio beta-amilóide, que em baixíssimas quantidades, aparentemente estimula o crescimento dos neurônios, mas, no Alzheimer, sua produção foge ao con- trole e gera danos que atingem milhares de células nervosas. Gerado pela de- gradação anormal de uma proteína importante para o funcionamento dos neurônios - a proteína precursora de amilóide ou simplesmente APP, na si- gla em inglês -, o peptídio beta-amilói- de se liga com outras moléculas iguais a ele no exterior das células. Dessa união, surgem inicialmente agregados quase esféricos, os oligômeros, e, numa fase se- guinte, longos cordões conhecidos como fibras amilóides. Em contato com a su- perfície externa das células nervosas, as fibras de beta-amilóide se conectam a várias proteínas, uma delas em especial, o receptor de glutamato, associada à aprendizagem e à formação da memó- ria. É o início de uma reação fatal: essa conexão provoca a abertura de peque-

nos canais nas paredes dos neurônios e permite a entrada nessas células de íons de cálcio, de carga elétrica positiva. Essa enxurrada de partículas positivas alte- ra por um período prolongado a carga elétrica do interior dos neurônios (nor- malmente negativa), matando-os.

Diante desse curto-circuito celular, Ferreira decidiu procurar compostos ca- pazes de restabelecer o equilíbrio de car- gas elétricas dos neurônios e encontrou a taurina, aminoácido componente das bebidas energéticas, em moda nos últi- mos anos. Estudos realizados em ou- tros países já sugeriam que a taurina se ligava a um outro tipo de proteína da superfície dos neurônios: os receptores do ácido gama-aminobutírico (Gaba) que regulam a entrada na célula de par- tículas de carga elétrica negativa, os íons cloreto. O grupo do Rio decidiu ver co- mo as previsões teóricas se confirma- vam na prática. Sob a coordenação de Ferreira, os pesquisadores Paulo Lou- zada, Andréa Paula Lima, Dayde Silva, François Noêl e Fernando de Mello rea- lizaram uma bateria de testes de labora- tório com neurônios da refina de pinti- nhos, cultivados em pequenas placas

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de vidro. Os achados são estimulantes: os efeitos tóxicos do beta-amilóide eli- minaram apenas 15% das células ner- vosas tratadas com pequenas doses de taurina, enquanto 65% dos neurônios que não receberam o aminoácido mor- reram. Essa ação protetora também foi observada com a substituição da tau- rina por uma droga usada no combate à epilepsia, o fenobarbital, que tem a desvantagem de provocar dependên- cia e efeitos indesejados como sonolên- cia e confusão mental.

É claro que não se deve sair por aí ingerindo bebidas energéticas na expec- tativa de prevenir o Alzheimer. Ainda é necessário identificar a dose adequada e a melhor forma de administrá-la em uma série de estudos com seres huma- nos, antes que o uso da taurina seja in- dicado para combater essa doença neu- rológica. Mesmo assim, Ferreira está otimista. "Como a taurina não é tóxica para os seres humanos, será possível iniciar ensaios clínicos em uma escala de tempo relativamente curta, possivel- mente no próximo ano", explica o bio- químico. Essa não é a única alternativa para contrabalançar o desequilíbrio de cargas elétricas gerado pelo beta-ami- lóide. Em outro artigo, publicado em dezembro de 2003 na Neurotoxicity Research, a equipe da UFRJ demonstrou que a melatonina - hormônio respon-

sável pela indução ao sono, liberado principalmente à noite pela glândula pi- neal e vendido em alguns países como complemento alimentar, ou seja, sem receita médica - também evita a morte dos neurônios por agir de modo seme- lhante à taurina.

Ferreira tenta ainda estraté- gias complementares que possam frear o progresso do Alzheimer em outros está- gios, antes que o beta-ami-

lóide se conecte aos receptores de gluta- mato. Em parceria com Fernanda De Felice, Jean-Christophe Houzel, José Gar- cia-Abreu, Vivaldo Moura Neto e Ro- berto Lent, o bioquímico da UFRJ reve- lou em 2001, também no Faseb Journal, dois compostos orgânicos - o 2,4-dini- trofenol (DNP) e o 3-nitrofenol (NP) - que impedem a morte dos neurônios por bloquear a formação das fibras beta- amilóide ou mesmo por desfazê-las de- pois de prontas. Há três meses, o escri- tório de patentes dos Estados Unidos concedeu a patente de uso de um deles, o 2,4 dinitrofenol, para a UFRJ. A uni- versidade carioca licenciou a exploração da patente para o laboratório farmacêu- tico nacional Eurofarma, que se prepara para iniciar a avaliação da toxicidade desse composto em animais. Nos pró- ximos meses, a equipe do Rio pretende

OS PROJETOS

Abordagens Terapêuticas Inovadoras em Doenças Amiloidogênicas Humanas

COORDENADOR SéRGIO TEIXEIRA FERREIRA - UFRJ

INVESTIMENTO US$ 350.000,00 (Howard Hughes Medicai Institute) R$ 310.000,00 (Finep, Fundo Verde-Amarelo e Eurofarma) R$160.000,00 (CNPq) R$ 72.000, 00 (Faperj)

Conservation and Sustainable Use of the Plant Biodiversity from the Cerrado and the Atlantic Forest: Chemical Diversity and Prospecting for Potencial Drugs

MODALIDADE Programa Biota

COORDENADOR VANDERLAN DA SILVA BOLZANI - Unesp

INVESTIMENTO R$ 1.659.568,47 (FAPESP)

apresentar outros cinco compostos que se mostraram capazes de impedir a for- mação tanto das fibras longas de beta- amilóide como dos oligômeros, que, ape- sar de menores, são muito mais tóxicos.

Analgésico - Os compostos identifica- dos pela equipe do Rio devem ainda ganhar o reforço das moléculas desco- bertas pela equipe da Unesp em Ara- raquara. Nos últimos cinco anos, a equipe de Vanderlan da Silva Bolzani analisou 1.677 extratos de 709 espécies de plantas da flora paulista, coletadas em um projeto que integra o Biota-FA- PESR programa que realiza o levanta- mento da biodiversidade de São Paulo. Entre as 150 substâncias já isoladas es- tão a spectalina e seus derivados que, em experimentos de laboratório e em testes com ratos, apresentaram ações bas- tante específicas. No sistema nervoso, dois derivados de spectalina impedem a eliminação da acetilcolina e, como conseqüência, melhoram a capacidade de reter informação sem interagir com outras substâncias do sistema nervoso central - mecanismo semelhante ao de outro composto natural, a galantami- na, isolada da Galanthus nirvalis, uma planta de até 1 metro de altura e flores brancas, hoje usada no tratamento do Alzheimer. Já no restante do organis- mo, as moléculas da Senna spectabilis funcionam como um potente analgésico.

"O mais interessante é que, além de melhorar a memória, os derivados da spectalina não são tóxicos como a ta- crina, o medicamento mais utilizado no tratamento do Alzheimer", afirma Van- derlan. Recentemente, a equipe da Unesp obteve o registro provisório de patente no Brasil do uso de todos os derivados de spectalina. Em conjunto com duas equipes da UFRJ, a de Eliezer Barreiros e a de Newton de Castro, Vanderlan tra- balha agora no desenvolvimento de um medicamento à base dos derivados de spectalina que possa ser testado em se- res humanos. •

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Cirurgia sem sangue

Raios gama ajudam a tratar transtornos obsessivo-compulsivos

FRANCISCO BICUDO

J^ cirurgia durou cerca de 12 ho- g^L ras. Os preparativos para a £^^k cirurgia começaram logo i ^L pela manhã, quando os

■JL JL. últimos exames de resso- nância magnética determinaram a área exata do cérebro a ser atingida. Com o mapa em mãos, os médicos levaram o paciente à sala de operações: era um portador de um sério problema psi- quiátrico, o transtorno obsessivo-com- pulsivo, mais conhecido como TOC, que não era controlado de nenhuma outra forma. O paciente deitou-se na maça de uma câmara de cobalto radioativo, parecida com um aparelho de ressonân- cia magnética, e foi sedado. Já estava dormindo quando lhe colocaram uma redoma de metal que lembra um capa- cete, com 201 furos milimétricos. Por

esses orifícios é que passaram os raios gama vindos do aparelho, em direção a um único ponto do cérebro. A radiação, em intensidades variáveis, eliminou um grupo específico de neurônios envolvi- dos no problema. O paciente voltou pa- ra casa no dia seguinte, sem ter sofrido nenhum corte.

Desde dezembro, quando cinco ci- rurgias desse tipo foram feitas pela pri- meira vez no Brasil em pessoas cujos nomes são mantidos em sigilo, uma mistura de sentimentos - cautela, ansi- edade e satisfação - acompanha a equi- pe de Eurípedes Constantino Miguel no Instituto de Psiquiatria da Faculda- de de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Embora as cinco opera- ções tenham sido seguidas por especia- listas da Universidade de Brown, nos

Estados Unidos, onde pelo menos 50 pessoas já passaram por esse mesmo procedimento, persiste a dúvida: será que vai dar certo? Até agora, de acordo com os primeiros exames, todos os pa- cientes operados passam bem. Mas os resultados definitivos só serão conheci- dos no final do ano, uma vez que os efei- tos da radiação só se tornam mais mar- cantes a partir do terceiro mês após a operação. Se tudo correr bem nesses es- tudos experimentais, o grupo da USP poderá anunciar uma alternativa de tra- tamento para os portadores das mani- festações mais graves do transtorno ob- sessivo-compulsivo, que afeta cerca de 2% da população mundial - no Brasil, são pouco mais de 3 milhões de pesso- as com esse problema. Os pacientes operados pertencem ao grupo de cerca

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de 10% dos casos diagnosticados que, por alguma razão desconhecida, havi- am passado por pelo menos cinco anos de tratamento sem nenhum resultado positivo.

O cotidiano dos portadores de TOC é um sofrimen- to contínuo. Perseguidos por pensamentos irre- freáveis, são capazes de

dar voltas no quarteirão durante ho- ras, com medo de terem atropelado al- guém sem perceber. Por vezes, sentem necessidade de lavar as mãos centenas de vezes, até elas sangrarem, pois acham que estão sempre sujas. Têm mania de arrumação e não podem ver objetos de- salinhados ou fora do lugar. Colecionam pilhas de papel sem valor. No auge do desespero e do descontrole, chegam a pensar em suicídio. "As obsessões, que são os pensamentos estranhos e as ima- gens absurdas que se manifestam cons- tantemente, causam intenso tormento e levam às práticas repetitivas", diz An- tônio Carlos Lopes, um dos médicos da equipe da USP Segundo ele, os porta- dores de TOC têm consciência dos exa- geros, mas não conseguem se livrar de- les. Por essa razão, normalmente param de estudar, deixam de ter vida social e vivem brigando com os familiares, que nem sempre compreendem a necessi- dade de seus rituais.

Com as outras possibilidades de tra- tamento esgotadas, a alternativa ainda experimental para os casos mais resisten- tes é um tipo de neurocirurgia conheci- da como capsulotomia anterior estere- otáxica por Gamma-knife: pequenas doses de radiação gama, por si só inca- pazes de danificar as células do sistema nervoso, convergem para um ponto, que, de acordo com os exames, tem um padrão de funcionamento anormal. Aí sim, ao se cruzarem, esses raios se tornam letais. Colocado em prática para casos de TOC há quase dez anos na Universi- dade de Brown, esse tipo de radiocirur-

ê ê ê UMÍKM'* ;

gia tem sido utilizada no combate a tu- mores, com quase 200 mil casos já tra- tados, e como alternativa para tratar epilepsia e doença de Parkinson resis- tentes às terapias convencionais. Confi- antes nos resultados, os pesquisadores da USP começam a pensar na próxima etapa: um estudo em larga escala, com pelo menos 48 portadores de TOC di- vididos em dois grupos - um seria sub- metido à neurocirurgia e outro, a uma falsa operação, com todos os procedi- mentos, mas sem a liberação dos raios gama. As conclusões definitivas sobre a eficiência dessa abordagem só poderão ser conhecidas em cinco anos.

Acredita-se que os transtornos ob- sessivo-compulsivos resultem do funcio- namento anormal de circuitos que co- nectam estruturas localizadas próximas à base do cérebro (os núcleos da base) ao córtex, a camada mais externa. Ou- tra possível causa são falhas na comu- nicação entre os neurônios feita por meio da serotonina, um dos neuro- transmissores existentes no sistema nervoso. Quando se constata a ineficá- cia das duas abordagens convencionais - à base de medicamentos antidepressi- vos, que aumentam a quantidade de se-

rotonina nas conexões nervosas, ou de terapia comportamental -, outra técni- ca cirúrgica adotada com freqüência é a chamada cingulotomia anterior: por uma abertura no crânio, coloca-se um eletrodo com o formato de um fio, que, por meio de ondas de rádio, queima os neurônios de um trecho específico do cérebro integrante do circuito envolvi- do no TOC, como giro do cíngulo.

Já a técnica de Gamma-knife atua sobre áreas profundas do cérebro. Os raios gama eliminam as células de uma estrutura chamada cápsula interna, formada por fibras nervosas que atra- vessam os núcleos da base e ligam o tá-

0 PROJETO

Patogênese e Tratamento do Transtorno Obsessivo-Compulsivo

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR EURIPEOES CONSTANTINO MlGUEL FILHO - Universidade de São Paulo

INVESTIMENTO

R$ 677.449,05

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lamo (responsável por interpretar as sensações de tato, dor e temperatura) ao córtex frontal. A intenção é a mesma - destruir neurônios que antes funcio- navam em excesso -, com a vantagem de que o crânio não precisa ser aberto e os efeitos colaterais são menores. "Nos pacientes operados, não observamos hemorragias, infecções nem convulsõ- es, que podem ocorrer em outras neu- rocirurgias", relata Miguel Canteras, o neurocirurgião do projeto. O efeito mais temido é o inchaço do cérebro, controlado com antiinflamatórios.

Canteras preocupa-se em desfazer qualquer associação desses dois proce- dimentos com a lobotomia, a primeira técnica cirúrgica empregada para tratar problemas mentais. Criada na década de 30 do século passado, foi empregada amplamente em indivíduos com esqui- zofrenia ou mesmo com ansiedade ou agressividade exacerbada. A lobotomia consiste na lesão de áreas extensas que ligam os lobos frontais ao restante do sistema nervoso, com impactos graves: era quase impossível evitar alterações de personalidade e distúrbios cogniti- vos. "Não havia noção das conseqüênci- as das lesões provocadas pela loboto-

mia", diz ele. "Hoje estamos em outro estágio e as neurocirurgias são feitas de acordo com as normas clínicas e éticas."

Origens - Além de buscar opções de tratamento, a equipe da USP tem estu- dado a própria origem do TOC. Um dos principais trabalhos desse grupo confirmou a relação, até então apenas suspeitada, entre os sintomas obsessi- vo-compulsivos e a febre reumática, doença auto-imune provocada por an- ticorpos produzidos pelo próprio orga- nismo para combater bactérias. A febre reumática causa dor de garganta, ver- melhidão da pele e, em estágio mais avançado, pode atingir o sistema ner- voso central - é quando está associada a outro problema neurológico, a coréia de Sydenham, com movimentos invo- luntários de braços e pernas, associado ao mau funcionamento dos núcleos da base. Os pesquisadores avaliaram 22 crianças que apresentavam febre reu- mática e coréia e outras 20 apenas com febre reumática. Depois, compararam os dados com os de 20 integrantes do grupo controle, crianças sem doenças auto-imunes. No primeiro grupo, qua- se metade das crianças sofria de TOC

ou apresentava sintomas obsessivo- compulsivos, mas ainda não intensos o bastante para caracterizar o quadro tí- pico de TOC. No grupo com febre reu- mática, também foi elevada (35%) a taxa de portadores de TOC ou traços obses- sivo-compulsivos, enquanto não houve casos dessa doença psiquiátrica entre as crianças sem doença auto-imune. "A fe- bre reumática, associada ou não à coréia de Sydenham, é um fator de risco para o TOC", diz Marcos Mercadante, outro pesquisador do grupo. Sua colega Ana Hounie constatou que, em famílias de crianças com febre reumática (com ou sem coréia), a probabilidade de encon- trar um parente de primeiro grau tam- bém com obsessões e compulsões era três vezes maior do que no grupo de contro- le, formado por familiares de crianças sem febre reumática. "O trabalho suge- re que a febre reumática pode estar ge- neticamente ligada ao TOC", afirma Ana, cujos resultados devem sair em breve no Journal of Clinicai Psychiatry.

Em outra linha de trabalho, a equi- pe de Euripedes primeiro desconfiou, e depois confirmou, que o TOC não é uma doença única, mas um grupo de enfermidades semelhantes, que dife- rem na intensidade e no tipo de sinal apresentado. Os pesquisadores da USP acompanharam 42 pacientes com TOC, divididos em dois grupos, de acordo com a idade de início dos sintomas. Nos pacientes chamados precoces (início da doença até os 10 anos), a intensidade e a gravidade dos problemas eram bem maiores do que no chamado grupo de início tardio, a partir dos 17 anos. "Nos mais jovens, manias como o colecionis- mo e as repetições eram mais intensas, os tiques eram constantes e a resposta ao tratamento com medicamentos, menor", explica Maria Conceição Ro- sário Campos. Os resultados reforçam a hipótese de que não existe um único tipo de TOC, mas subgrupos especí- ficos, com características e manifesta- ções diversas. ■

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1 CIÊNCIA

MEDICINA

Alternativa em gestação

Primeiras cirurgias de correção de coluna em bebês ainda no útero mostram resultados promissores

A ntes de agosto de 2003, Ra- g^L quel, Nicole, Verônica, Ga- L^L briel, Lucas, Vitória e Ga-

È ^ briela seriam crianças com ^L. JL. grande risco de apresen- tar retardo mental e paralisia total ou parcial das pernas. Esses problemas re- sultam de uma malformação que pode ser identificada pelos médicos duran- te a gravidez, a mielomeningocele, que impede o desenvolvimento completo da coluna e deixa a medula espinhal do feto exposta. Em uma cirurgia de uma hora e meia, o obstetra faz um corte como o de uma cesárea no ventre e outro de 9 centímetros no útero mater- no. Em seguida, por meio dessa abertu- ra, outro médico, um neurocirurgião, corrige o defeito na coluna do bebê, que continua na barriga da mãe até o nascimento.

O Brasil é o segundo país, além dos Estados Unidos, a fazer esse tipo de operação, chamada de cirurgia fetal a céu aberto. Feito pela primeira vez no país no ano retrasado, o procedimen- to é experimental: nem os médicos bra- sileiros nem os norte-americanos têm certeza de que seus benefícios sejam maiores que os riscos. Duas equipes distintas, uma da Universidade Esta- dual de Campinas (Unicamp) e outra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), já realizaram oito cirurgias a céu aberto: seis bebês nasceram e es- tão bem e um deve nascer ainda este mês. O outro, o primeiro que passou por esse tipo de cirurgia no Brasil, em 2002, morreu.

Mesmo que o sucesso não tenha sido total, os resultados obtidos até agora podem ser considerados promis- sores. As complicações existem, mas

são muito mais amenas do que se os bebês só tivessem passado pela cirurgia para corrigir o defeito na coluna após o nascimento, a única alternativa de tra- tamento possível até nove meses atrás. Além dessa correção da coluna, feita no dia do parto, a maior parte dessas cri- anças provavelmente necessitaria de outra cirurgia, três dias depois, para implantar uma válvula permanente no cérebro, destinada a eliminar o acúmu- lo no crânio do líquido que banha o sistema nervoso central, a chamada hi- drocefalia, a principal conseqüência da mielomeningocele, uma doença comum que afeta uma em cada mil crianças - o equivalente a 300 bebês por ano apenas no município de São Paulo.

Passos firmes - No hospital da Uni- fesp, a equipe do obstetra Antônio Fer- nandes Moron operou seis bebês, dos quais cinco já nasceram. Quatro deles movimentam bem as pernas e estão livres da hidrocefalia, que prejudica o desenvolvimento do sistema nervoso e pode provocar retardo mental. O quin- to bebê apresenta um nível moderado de hidrocefalia e recebeu o implante de uma válvula, segundo o neurocirurgião infantil Sérgio Cavalheiro. Por si só, es- ses resultados são um indício de viabi- lidade da nova técnica, pois de 85% a 90% dos bebês que nascem com a colu- na aberta têm hidrocefalia e precisam do implante de um dreno no cérebro para restabelecer a circulação normal desse líquido, conhecido como líquor ou líquido cefalorraquidiano. A coloca- ção desse dreno não é inofensiva: reduz em 20% a capacidade mental da crian- ça, segundo estudos de Joseph Bruner, da Universidade Vanderbilt, nos Esta-

dos Unidos, coordenador de uma das três equipes norte-americanas capaci- tadas para tratar bebês dentro do útero.

Por fechar mais cedo a abertura na coluna, a cirurgia a céu aberto diminui a exposição da medula espinhal e dos nervos ligados à mobilidade das pernas ao líquido que envolve o bebê no útero - o líquido amniótico, que, por razões desconhecidas, pode danificar a medu- la e os nervos. Assim, é possível reduzir o risco de paralisia desses membros. É por essa razão que Raquel, o primeiro bebê brasileiro nascido após uma cirur- gia a céu aberto, talvez consiga andar sem precisar de aparelhos. Se passasse pela cirurgia só após o nascimento, te- ria uma chance de 45% de conseguir se locomover com cadeira de rodas e de apenas 7% de andar sem a ajuda de um andador ou de muletas. "Se o benefício não é total, ao menos as complicações foram amenizadas", afirma Moron, que, com o médico Carlos Almodin, da equi- pe da Unifesp, desenvolveu uma ver- são brasileira e reutilizável do trocáter, equipamento usado para fazer a aber- tura no útero, atualmente importado a um custo de até US$ 500.

No dia Io de março, Lucas nasceu em Campinas, quatro meses depois de ser operado pela equipe do obstetra Ri- cardo Barini, da Unicamp. A primeira cirurgia feita pelo grupo, em dezembro de 2002, não foi bem-sucedida: a pla- centa descolou e o feto morreu logo após o parto. No caso de Lucas, a cirur- gia reduziu o dano causado pela mielo- meningocele e impediu o avanço da hi- drocefalia. Ele nasceu na 35a semana da gravidez, com quase nove meses, en- quanto a maioria das crianças com esse defeito congênito nasce ainda mais pre-

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matura, com cerca de 32 semanas - o risco de parto prematuro é uma das razões que le- vam os médicos a he- sitar em fazer a cirur- gia a céu aberto. "Se a lesão inicial não fosse corrigida, Lucas certamente nunca movimentaria as pernas", diz Louren- ço Sbragia Neto, coordenador cirúrgi- co da equipe. "Agora, temos esperança até de que ele possa andar."

Embora persigam o mesmo objetivo, as duas equipes adotam critérios distintos para selecionar os bebês que cumprem os requisitos ne-

cessários para a operação. O grupo da Unicamp segue as normas estabeleci- das pelos Institutos Nacionais de Saú- de (NIH) dos Estados Unidos, que só recomendam a cirurgia a céu aberto para mielomeningocele quando a mãe é saudável e se encontra entre a 19a e 25a

semana de gestação (final do quarto e o início do sexto mês). No caso do bebê, a lesão da coluna deve localizar-se entre a primeira vértebra torácica, na altura dos ombros, e a primeira sacral, próxi- ma à cintura. "A melhora da hidrocefa- lia é pequena após as 25 semanas", diz Sbragia. "Depois desse período, é me- lhor esperar o bebê nascer para operar", acrescenta o pesquisador, que dirige o laboratório de cirurgia experimental fetal da Unicamp - ali, um dos estudos em andamento trata do efeito inflama- tório do líquido amniótico sobre a me- dula espinhal de fetos de ratas.

Em um estudo feito com 104 crianças submetidas à cirurgia fetal a

Um dos recém-nascidos já operados: perspectiva de uma vida quase normal

céu aberto e outras 189 tratadas da maneira convencional, médicos nor- te-americanos da Universidade Van- derbilt e do Hospital Infantil da Fila- délfia constataram que a incidência da hidrocefalia é similar entre os be- bês operados no útero depois de 25 semanas de gravidez e os submetidos à cirurgia para corrigir a coluna após o nascimento.

Outra conclusão: 75% dos fetos operados na barriga da mãe depois da 25a semana necessitaram do implante da válvula no cérebro depois do nas- cimento, enquanto só metade dos ope- rados antes da 25a semana de gravidez precisou passar pela segunda cirur-

0 PROJETO

Avaliação Morfológica, Histológica e Bioquímica de Fetos de Ratas Spreague-Dowley, Submetidos a Gastrosquise Experimental Intra-útero, em Diferentes Idades Gestacionais

MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa

COORDENADOR LOURENçO SBRAGIA NETO - Unicamp

INVESTIMENTO R$ 226.889,18

gia. Esse número so- be para 85% entre os bebês que só são operados depois do nascimento. Já os mé- dicos da Unifesp rea- lizam a cirurgia do feto no útero mater-

no até a 27a semana de gestação (fi- nal do sexto mês).

Em avaliação - Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde estão financiando um estudo de porte, com um orçamento de US$ 25 milhões, destinado a desfazer as dúvidas sobre qual tipo de cirurgia - a céu aberto ou após o nascimento - é mais eficaz para corrigir a mielomeningocele. O proje- to Management of Myelomeningoce- le Study (Moms) deve avaliar até agos- to de 2008 os resultados apresentados por cem crianças que passaram pela correção da coluna no útero e outras cem operadas após o parto.

Enquanto não saem os resultados do Moms, melhor do que tentar mini- mizar os danos provocados pela mie- lomeningocele é prevenir seu apareci- mento, associado a defeitos genéticos e à dieta pobre em ácido fólico, encon- trado em verduras e em carnes verme- lhas. Por essa razão, os médicos acon- selham às mulheres que desejam ter filhos que, dois meses antes de engra- vidar, tomem doses suplementares de ácido fólico, numa terapia preventiva que deve durar até o final do primeiro trimestre da gestação. O consumo extra de ácido fólico evita a recorrência da mielomeningocele em até 72% dos ca- sos de famílias que já tiveram um bebê com o problema. •

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i CIÊNCIA

ASTROFÍSICA

Em boa companhia 0 telescópio Soar começa a funcionar e põe o país lado a lado com os maiores centros de observação do mundo

CARLOS FIORAVANTI

A lexandre Soares de Oliveira /% mudou-se com a mulher e o

L^k filho de 3 anos para o Chile È % há duas semanas. Junto com

*Á- _m_ seu colega Eduardo Cypria- no, também casado, mas sem filhos, que embarcou para lá em janeiro, Oliveira vai formar a equipe brasileira de apoio do Soar, um telescópio financiado por insti- tuições brasileiras e norte-americanas que começa a funcionar este mês. Ainda em fase experimental, está instalado no alto de uma montanha dos Andes chilenos, a 2.701 metros de altitude, no começo do deserto do Atacama, e tomou dez anos de projeto e construção. Os dois jovens físi- cos - Oliveira tem 34 anos e Cypriano, 30 - sabem que estão mergulhando em um projeto histórico, que representa um no- tável salto de qualidade para a pesquisa astrofísica brasileira.

Em dois ou três meses, quando estiver em operação, o Soar - sigla de Southern Observatory for Astrophysical Research ou Observatório do Sul para Pesquisa Astro- física - deverá fornecer imagens muito mais precisas e abundantes que as obti- das até agora pelos equipamentos em uso no país para estudar o Universo. Provido de um espelho principal de 4,2 metros de diâmetro, o Soar será 1.600 vezes mais po- tente que o maior dos telescópios brasi- leiros, com um espelho de 1,6 metro de diâmetro, em operação desde fevereiro de 1981 no Observatório do Pico dos Dias, no município de Brasópolis, Minas Gerais, a 1.860 metros de altitude.

Além de eliminar a defasagem da ins- trumentação básica da pesquisa dessa área

no Brasil, que já durava dez anos, o Soar põe o país literalmente ao lado dos maio- res centros de observação astronômica do mundo. Distante 400 metros, na mesma montanha, o Cerro Pachon, encontra-se uma das unidades do Observatório Gemi- ni, com um dos mais potentes telescópios do mundo, que começou a operar há qua- se três anos como resultado de acordo en- tre sete países, incluindo o Brasil, com uma participação modesta, que dá direito a no máximo 17 noites de observação por ano. Dessa montanha de solo pedregoso e sem nenhuma vegetação, ao menos alguns dias por ano coberto de neve, pode-se ver também, a cerca de 15 quilômetros a no- roeste, o Observatório Inter-Americano Cerro Tololo (CTIO), administrado pelos Estados Unidos, dotado de quase uma dezena de telescópios - o maior deles do mesmo porte que o do Soar, mas com re- cursos tecnológicos de 40 anos atrás.

O telescópio que será inaugurado no dia 17 deste mês, em uma cerimônia com cerca de cem convidados, iguala-se tam- bém, em muitos aspectos, aos telescópios espaciais: seu espelho é quase duas vezes

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Nos Andes, a 2.701 metros: entre os maiores centros de observação do Universo

maior que o do Hubble e a imagem, de qualidade equivalente. Devido a um conjunto de espelhos complemen- tares, o Soar deverá eliminar as distor- ções da luz causadas pela atmosfera terrestre, das quais o Hubble consegue escapar por estar no espaço, em ór- bita a 500 quilômetros da Terra - uma vantagem obtida a um custo próximo a US$ 2 bilhões.

O Soar, evidentemente, custou bem menos: US$ 28 milhões. O Brasil con- tribuiu com US$ 12 milhões, divididos entre o Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que destinou US$ 10 milhões ao projeto, e a FAPESP, que participou com US$ 2 milhões. Em conseqüência da participação nos custos, os pesqui- sadores brasileiros terão direito a 34% do tempo de uso, o equivalente a 127 noites por ano de observação em um céu quase sempre claro, seco e limpo - outra vantagem sobre os três telescó-

pios do Pico dos Dias, sujeito a chu- vas freqüentes no verão. Os outros três parceiros são norte-americanos: a Na- tional Optical Astronomy Observatories (Noao), a mesma instituição responsá- vel pelo observatório vizinho, em Cer- ro Tololo, que terá 33% do tempo de uso do Soar; a Universidade da Ca- rolina do Norte (UCN), com 16% do tempo; e a Universidade Estadual de Michigan (MSU), com 14%. Cada par- ticipante doará 10% de seu tempo para os astrônomos do Chile, em troca da cessão do território, como é comum em quase uma dezena de telescópios estrangeiros construídos nos Andes.

Instrumentos complementares - "Com o início da operação do Soar e o aces- so ao Gemini, a comunidade científica brasileira contará com um leque de ins- trumentos que permitirão a integra- ção e a complementação dos projetos de pesquisa", diz Albert Bruch, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), a instituição responsável pela administração dos três telescópios de

Brasópolis que gerencia também a par- ticipação brasileira no Gemini e no Soar. O Observatório do Pico dos Dias, que ajudou a criar a base da astrofísica brasileira, não será esquecido, assegura ele: "Vamos precisar de todos os teles- cópios para satisfazer as necessidades da pesquisa astronômica no Brasil".

Construído para atender as neces- sidades dos cerca de 200 grupos brasi- leiros de pesquisa em astrofísica, dis- tribuídos por universidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Paraná, o Soar, que Bruch de- fine como "um salto quântico para a pesquisa brasileira", vai investigar o céu na faixa de luz visível ao começo do infravermelho, em comprimentos de onda de 6 mil a 22 mil angstrons (1 angstrom corresponde a 1 bilionésimo do metro). E deverá ser bastante útil, em primeiro lugar, no estudo da ori- gem de estrelas, galáxias e do próprio Universo. Deverá ser usado também na pesquisa sobre buracos negros -

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 59

Page 60: Era uma vez na América do Sul

corpos celestes que se compor- tam como arquétipos de mons- tros famintos, capazes de devo- rar tudo o que encontram, até mesmo a luz. Investigados inten- samente por equipes gaúchas, paulistas e catarinenses, pare- cem ser mais numerosos do que se pensava e capazes até mesmo de influenciar o destino das ga- láxias (ver Pesquisa FAPESP n° 96, de fevereiro de 2004). Outro provável tema de trabalho são as lentes gravitacionais, como são chamadas as galáxias que des- viam a luz emitida por outras galáxias ainda mais distantes. Só depois de se conhecer o efeito das lentes gravitacionais é que se pode determinar com preci- são a origem das distorções da luz que chega à Terra.

novo telescópio será especialmen- te útil em pes- quisas que exi- jam observações

contínuas ou de uma ampla área do céu e em projetos de fôlego, a exemplo dos levantamentos de estrelas ou de galáxias de uma região, independentemente do tipo a que pertencem. O Gemini, constituí- do por dois telescópios mais potentes, com espelhos de 8,1 metros - um no Chile e outro no Havaí, a 4.220 metros de altitude -, vai complementar as pesquisas, mas dificilmente permiti- rá observações repetitivas ou abran- gentes, porque seu tempo é dividido por equipes dos sete países que finan- ciaram a construção - Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Chile, Austrá- lia, Argentina e Brasil.

É comum, hoje, uma mesma pes- quisa exigir o uso de mais de um teles- cópio. Só foi possível descobrir a estrela de mais baixa quantidade de elemen- tos químicos com massa maior que a do hidrogênio ou hélio - a mais anti- ga já encontrada, com 12 a 15 bilhões de anos - porque uma equipe multi- nacional de pesquisadores, incluindo a brasileira Silvia Rossi, espalhou-se por quatro telescópios, nos Estados Unidos, no Chile e na Austrália (ver Pesquisa FAPESP n° 83, de janeiro de 2003). "As observações feitas em telescópios com espelhos de 2,2 ou 4 metros selecionam

Empreitada nos Andes: anel com 20 metros.

alvos para observações mais detalha- das, em telescópios maiores, cuja noite de observação é concorrida e cara, como no VLT (Very Large Telescope, no Chi- le) ou no Gemini", comenta Silvia.

Orgulho e estresse - "Entramos na primeira divisão da pesquisa mundial. Até agora tínhamos excelentes jogado- res, mas permanecíamos na segun- da divisão", comemora o astrofísico João Evangelista Steiner, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Consórcio e do Conse- lho Diretor do Soar. A palavra é exa- tamente essa - comemorar -, porque Steiner participou do projeto do teles- cópio, em 1993, "desde as primeiras idéias", como ele próprio diz. Pouco mais de uma década mais tarde, aos 54 anos, depois de ajudar a vencer as dificuldades de logística, de projeto e de contratação de empresas e equipa- mentos, ele agora não disfarça a satis- fação e o orgulho de ver o projeto fi- nalmente concluído. "Construir um telescópio como esse", diz ele, "é expe- riência única na vida." Mas, claro, teve

um preço. Em março de 1999, quando as obras do Soar ainda estavam no meio, o que ele cha- ma de "uma quantidade indes- critível de problemas" corroeu sua habitual paciência e o levou ao hospital, vítima de severo estresse.

Em 1993, ainda com a saú- de em dia, Steiner era o repre- sentante brasileiro do projeto Gemini numa reunião realiza- da em Tucson, Arizona, Estados Unidos. Num dos intervalos, ele apresentou à astrofísica Sidney Wolff, que estava ali em nome do Noao, a idéia de construir outro telescópio para não dei- xar a pesquisa brasileira ficar para trás. "O Observatório do Pico dos Dias era a base e o Ge- mini, o topo, mas faltava o cor- po, que atendesse às demandas futuras da pesquisa no Brasil", conta Steiner. "Não seria possí- vel sustentar os programas de pós-graduação no Brasil a lon- go prazo apenas com esses te- lescópios."

Sidney gostou da idéia. Ela já havia feito um projeto seme- lhante com uma universidade

norte-americana, mas não haviam avançado. De volta ao Brasil, Steiner levantou argumentos para convencer as agências de financiamento da im- portância desse novo telescópio para a pesquisa brasileira. "Não encampa- mos projetos preexistentes, mas defi- nimos um a partir das necessidades dos grupos de pesquisa do Brasil e os parceiros norte-americanos aceita- ram, porque também atendia ao que eles queriam", diz ele. "Não abrimos mão de nada no desenho do projeto." Aprovados o anteprojeto e os pedidos de financiamento, começou a constru- ção, no final de 1997.

A primeira tarefa era preparar o terreno - algo não muito simples por se tratar do topo de uma montanha, distante 80 quilômetros de La Sere- na, a cidade mais próxima, à beira do oceano Pacífico, com aeroporto pró- prio e escalas diárias para Santiago, a capital. Ao longo de um ano, os trato- res cortaram a ponta do cone, remo- veram 13 mil metros cúbicos de pedra e criaram uma área plana de 3.600 me- tros quadrados. Ali tomou forma o

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prédio com o telescópio e as sa- las de controle, dotado de pare- des de aço - aço brasileiro, por sinal - para evitar a interferên- cia de fontes de calor na luz que vem das estrelas e, ao mesmo tempo, resistir à variação de tem- peratura, que por lá oscila de 25 °C negativos a 30 °C positi- vos, e mesmo a terremotos. So- bre a estrutura metálica assen- tou-se um anel de 20 metros de diâmetro e 50 toneladas, fabri- cado pela Santin, de Piracicaba, interior paulista, usinado na Metalúrgica Atlas, na capital, e transportado para o alto do Cer- ro Pachon em partes, de uma só vez, em quatro carretas.

Foi sobre esse anel que os guindastes, cuida- dosamente, deposita- ram a cúpula - ou domo -, uma semi-

esfera com 14 metros de altura, cuja produção foi coordenada pela Equatorial, de São José dos Campos. Na última quinta-feira de fevereiro, dois dias depois do Carnaval, foi colocado sobre outra estrutura metálica, debai- xo da cúpula, o espelho principal, com 4,2 metros de diâmetro e apenas 10 centímetros de espessura, fabricado e polido nos Estados Unidos. É uma peça fascinante. Em forma de uma gigan- tesca lente de contato, é quase perfei- tamente liso: a rugosidade é tão insig- nificante que, se fosse esticado a ponto de ficar com uma área equivalente à do Brasil inteiro, a maior elevação não teria mais de 2 centímetros.

O espelho principal do Soar é tão fino para evitar que as dilatações e contrações do vidro possam interferir na luz que chega das estrelas, um pro- blema comum em outros espelhos de telescópio, alguns com até meio metro de espessura. Por ser tão fino, é flexí- vel, outra característica igualmente in- desejável, mas contornada por meio de 220 apoios - ou atuadores - sobre os quais descansa a delicada peça de vidro. Os apoios procuram assegurar, com uma precisão admirável, a forma ideal do espelho: o máximo que cada um desses pontos pode se mover eqüi- vale a cem milionésimos da espessura de um fio de cabelo.

.de diâmetro e domo com 14 metros de altura

Esse espelho vai funcionar em con- junto com outros dois, que podem ser ajustados, em busca de uma melhor qualidade de imagem, de acordo com um mecanismo conhecido como óptica ativa. Há ainda mais dois espelhos com- plementares, capazes de corrigir a luz es- telar das distorções geradas pela atmos- fera terrestre. Por meio desse segundo jogo de espelhos - a chamada óptica adaptativa, já adotada em outros teles- cópios, como o Gemini - pretende-se chegar à mesma qualidade de imagem do Hubble, que escapa da interferência da atmosfera pela simples razão de es-

0 PROJETO

Telescópio Soar

MODALIDADE Projeto Especial

COORDENADOR JOãO STEINER-IAG/USP

INVESTIMENTO US$10 milhões (CNPq) e US$2 milhões (FAPESP)

tar no espaço. A partir do pró- ximo ano, o Soar deverá contar também com um aparelho que decompõe e analisa a luz - um espectrógrafo -, que está sendo construído por uma equipe da USP e do LNA, no âmbito de um projeto temático coordenado por Beatriz Barbuy e apoiado pela FAPESP, com um financiamento de cerca de US$ 1 milhão. De acor- do com o projeto, realizado sob a responsabilidade técnica de Jac- ques Lepine, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciên- cias Atmosféricas (IAG) da USP, a versão final desse espectrógrafo - cujo protótipo está em opera- ção, desde o ano passado, no Pi- co dos Dias - terá cerca de 1.300 pontos de captação, constituídos por fibras ópticas, que a cada instante vão mostrar as variações de cada freqüência de luz de ga- láxias, aglomerados de galáxias e nebulosas, entre outros objetos astronômicos.

0 imprevisível à vista - As pri- meiras imagens do Soar servirão apenas para ajustes dos equipa- mentos, dos espelhos e dos pro-

gramas de computador - o chamado comissionamento, no qual os dois bra- sileiros que já estão lá deverão trabalhar, além de dar apoio às equipes que che- garem e, quando possível, cuidar de suas próprias pesquisas. Só em dois ou três meses é que o observatório começará a atender diretamente os projetos de pes- quisa, de acordo com uma programa- ção a ser definida pelo LNA, a partir das solicitações dos físicos. Por ano, Se- gundo Bruch, o Soar deverá abrigar cer- ca de 50 projetos, a metade do volume de trabalho no Pico dos Dias, enquan- to o Gemini atende cerca de 15 projetos de pesquisadores brasileiros.

Para Steiner, o Soar representa a pers- pectiva de ampliar, sobretudo em qua- lidade, a produção científica brasileira, hoje responsável por 2% da pesquisa astrofísica mundial, o equivalente a 250 artigos. Mas há algo ainda mais atraente: a perspectiva de descobrir o que nem se- quer foi imaginado. "Estamos diante do imprevisível", diz ele, "sem a menor idéia do pode surgir, e geralmente surge, quan- do um telescópio com novas tecnologias começa a funcionar." •

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USP ru

Terra produtiva Na série de reportagens sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, Pesquisa FAPESP mostra a trajetória da centenária Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, que mudou hábitos alimentares dos brasileiros e hoje lidera pesquisas em biotecnologia

FABRíCIO MARQUES

São européias as raízes da centenária Esco- la Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), unidade da Universidade de São Paulo (USP) que se tornou a principal refe- rência em ensino de Ciências Agrárias no país. O conceito acadêmico, com prédios de arquitetura refinada entremeados por cam- pos experimentais, foi inspirado nas esco- las agrícolas de Grignon, na França, e de Zu- rique, na Suíça, freqüentadas na segunda

metade do século 19 por Luiz de Queiroz (1849-1898), riquís- simo herdeiro paulista. De volta ao Brasil formado em Agro- nomia, ele decidiu fundar uma escola seguindo os moldes eu- ropeus. Comprou uma fazenda para erguê-la, nos arredores do município de Constituição, hoje Piracicaba, e pediu ajuda ao governo republicano para construir os prédios. A subvenção, porém, foi negada. Para não deixar a idéia morrer, Luiz de Quei- roz decidiu doar a fazenda ao governo com a condição de que a escola, pública, surgisse ali. Ela seria fundada como escola práti- ca de nível médio, em 1901, já depois da morte do idealizador, mas respeitou o sonho europeu. Em 1907, a fazenda transfor- mou-se em parque, raro exemplo do estilo inglês de paisagismo no Brasil. Os grandes gramados, alamedas de linhas curvas e maciços de árvores em pontos estratégicos são hoje uma jóia do ambiente urbano de Piracicaba. É assinado pelo belga Ar- sênio Puttemans, também criador dos jardins do Museu do Ipiranga, em São Paulo.

Transformada em escola superior e integrada à estrutura da USP quando a instituição foi fundada há 70 anos, a Esalq seguiu bebendo da fonte européia. Seu patriarca acadêmico é o geneti- cista Friedrich Gustav Brieger, judeu alemão que migrou para o Brasil na leva de pesquisadores estrangeiros que fundaram a USP. Pois foi nesse cenário de país temperado que se consolidou um panteão científico da agricultura tropical. Sobretudo nos primeiros 60 anos de atividade, a Esalq liderou pesquisas que mudaram os hábitos alimentares dos brasileiros. Muitas horta- liças, por serem de variedades européias, produziam bem no in- verno, mas eram escassas e caras no verão. O brasileiro passou a comer salada o ano inteiro graças a pesquisas de melhora- mento genético de alface, repolho, brócolis, couve-flor, cebola e berinjela feitas na Esalq. A instituição teve papel-chave no de- senvolvimento de variedades de milho mais nutritivas e ricas em aminoácidos. E também na pesquisa de propriedades do solo e nutrição de plantas que transformou o cerrado brasilei- ro, antes imprestável para o plantio, em celeiro de 30% da pro-

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Ceres, deusa da agricultura, orna a sala da diretoria da Esalq, em pintura de 1916

dução de grãos. Não dá para escapar do clichê: a Esalq muitas vezes foi a salvação da lavoura para os agricultores. Certa vez, no final dos anos 1950, um grupo de produtores do cinturão verde de Mogi das Cruzes, de origem nipônica, levou ao então governador Jânio Quadros um pedido inusitado. Queriam que o governo concedesse o regime de tempo integral - e o respec- tivo salário maior - ao professor Marcílio de Souza Dias, artífi- ce de pesquisas de melhoramento genético. Figura lendária, Marcílio foi escolhido o Pesquisador do Centenário da Esalq, em 2001. Avesso aos trâmites normais da carreira acadêmica, vivia nos campos, fazendo cruzamentos de plantas e avaliando os re- sultados. Com produção científica escassa, nem sequer tinha doutoramento. Jânio promoveu o professor.

O perfil da escola mudou nas últimas décadas. O ensino, é certo, continua de boa qualidade. Os seis cursos de graduação oferecidos (Agronomia, Engenharia Florestal, Ciências Eco- nômicas, Ciências Biológicas, Ciências dos Alimentos e Gestão Ambiental) são freqüentados por 1.830 alunos. No último Pro- vão, Éverton Yoshiaki Hiraoka, da Esalq, recebeu a nota mais alta entre todos estudantes de Engenharia Agronômica do país. Mas a escola já não é um celeiro isolado de bons profissionais, como chegou a acontecer no passado. Divide o topo da gra- duação com instituições como a Universidade Federal de Vi- çosa (UFV) ou as unidades da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu e Jaboticabal. Aquele tipo de trabalho de campo em que se destacava o professor Marcílio de Souza Dias passou a ser liderado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- pecuária, a Embrapa (onde, aliás, centenas de ex-alunos da Esalq atuam como pesquisadores). A pesquisa aplicada da Esalq

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O Departamento de Genética conseguiu desenvolver eucaliptos transgênicos, que prometem mais celulose por árvore

tem espaço agora em áreas emergentes como controle biológico de pragas. A escola desenvolveu uma armadi- lha natural para capturar mariposas conhecidas como bicho-furão, que na fase de lagarta ataca frutas cítri- cas. A armadilha revela o grau de infestação dos cítricos e aponta a hora adequada de aplicar inseticidas. Esta pesquisa foi desenvolvida por José Roberto Postali Par- ra, atual diretor da escola, e José Maurício Simões Ben- to, em colaboração com a UFV e a Universidade da Ca- lifórnia, Davis.

escola passou a investir fortemente em outra vocação: a pós-graduação, que já conferiu 5.300 títulos de mestrado e doutorado desde 1964, quando foi cria- da. Seus 16 programas, atualmente fre- qüentados por 1.117 alunos, foram responsáveis pela formação de 70%

dos doutores brasileiros em Ciências Agrárias. No cam- pus de Piracicaba, surgiria nos anos 1960 outra institui- ção de pesquisa e pós-graduação, o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), também vinculado à USP, mas com administração própria. O resultado dessa nova estratégia na Esalq foi a expansão de laboratórios e o investimento em fronteiras do conhecimento que nem sempre geram aplicações imediatas. O exemplo mais elo- qüente é o da área de biotecnologia. "No início dos anos 1990, tivemos a sensibilidade de atrair um grupo de jovens doutores que voltavam do exterior e, com eles, avançamos em biotecnologia" diz Raul Machado Neto,

vice-diretor da Esalq e presidente da Comissão de Pes- quisa. Apoiados no Núcleo de Apoio à Pesquisa em Bio- logia Celular e Molecular na Agropecuária, os pesquisa- dores participaram dos projetos Genoma da Xylella, da cana-de-açúcar, da Xanthomonas, do câncer, do café e do eucalipto, entre outros.

Há dez anos, a Esalq foi pioneira na pesquisa de bio- tecnologia aplicada a animais. Hoje, o Departamento de Zootecnia está integrado a dois grandes projetos de se- qüenciamento genético. Um deles é o Genoma Frango, em parceria com a Embrapa Suínos e Aves. O projeto começou há três anos e já identificou diversos genes re- lacionados ao desenvolvimento muscular do frango. O objetivo é encontrar a raiz genética que leva frangos a acumular mais proteína do que gordura, a fim de me- lhorar a qualidade da carne. O outro projeto é o Geno- ma Funcional do Boi, realizado em colaboração com a Unesp de Botucatu, financiado pela FAPESP e a Cen- tral Bela Vista Genética Bovina, empresa que comercia- liza sêmen e embriões bovinos. O projeto está concluindo a fase de seqüenciamento e sairá em busca da identifica- ção de genes relacionados à resistência a parasitas, à efi- ciência reprodutiva e à qualidade do couro.

O único laboratório de biotecnologia animal a par- ticipar da rede que seqüenciou o genoma da Xylella fastidiosa, a praga do amarelinho nos laranjais, foi a Zo- otecnia da Esalq. "A oportunidade de participar do projeto em parceria com outras instituições nos ajudou a criar competência na área genômica, que agora com- partilhamos com outras instituições", diz Luiz Leh-

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O vitral no prédio principal virou logomarca da Esalq e pôsteres com a imagem espalham-se pela instituição

mann Coutinho, professor-associado da Esalq e responsável pelo laboratório, refe- rindo-se a professores, pesquisadores e es- tudantes de pós-graduação de várias insti- tuições que passam pela Esalq. Lehmann é um dos pesquisadores que chegaram à escola no início dos anos 1990, depois de fazer mestrado e doutorado em Zootecnia na Universidade de Michigan e pós-dou- toramento em genética molecular. Nem só de pesquisa básica vive o laboratório. São oferecidos a produtores diversos testes ge- néticos antes disponíveis apenas no exteri- or. Suinocultores enviam à Esalq amostras de pêlo ou sangue de seus animais, para pesquisar a incidência de um gene rela- cionado à má qualidade da carne e outro ligado à capacidade de gerar mais filho- tes em cada gestação. O resultado dos tes- tes determina a escolha dos porcos para reprodução. O laboratório também faz exames de DNA em bois. Para quê? Para garantir que um boi é mesmo o filho de animais reconhecidamente superiores, pois isso tem alto valor comercial. O erro no diagnóstico de paternidade chega a 30% nas fazendas de corte.

utro projeto de des- taque é o desenvolvi- mento de eucaliptos modificados geneti- camente. Uma equi- pe do Departamento de Genética da Esalq

conseguiu introduzir no eucalipto, maté- ria-prima da celulose, um gene de ervilha ligado à fotossíntese. O objetivo é melho- rar a captação de luz solar, aumentar a bio- massa da árvore e produzir mais celulose. A Companhia Suzano de Papel e Celulose, que tem interesse nessa investigação, doou R$ 585 mil para reforma e compra de equi- pamentos do Laboratório de Genética de Plantas (rebatizado como Max Feffer, pio- neiro no uso do eucalipto para produção de celulose e filho do fundador da Suzano, Leon Feffer). "A produtividade do euca- lipto pode aumentar em 2% a 3 % e será possível obter mais celulose com menos processos químicos e custo reduzido", diz Carlos Alberto Labate, professor do Depar- tamento de Genética e coordenador do la- boratório. As primeiras avaliações sobre a eficiência do processo devem despontar

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USP 7G em 2005. A Esalq aguarda autorização da Comissão Técnica Nacional de Bios- segurança (CTNBio) para levar as mudas transgênicas a campos experimentais. O laboratório tem objetivos de longo pra- zo: buscar genes envolvidos na formação e na qualidade da madeira. Não é novi- dade o interesse da iniciativa privada na massa crítica gerada pela Esalq. Mas as parcerias, que se concentravam na área de assistência técnica, andam cada vez mais sofisticadas. Na pesquisa do euca- lipto, busca-se um produto - a madeira com mais celulose. E, para chegar a ele, desenvolve-se pesquisa básica e aplicada. "As coisas andam juntas", diz Labate. "Para alcançar a aplicação é preciso fazer pesquisa básica e a empresa que nos pa- trocina sabe disso. Nossos alunos de ini- ciação científica e de doutorado enrique- cem sua formação nesse ambiente."

A escola tem outras parcerias ^^ célebres. A Bolsa de Mer-

m ^^ cadorias & Futuros fi- È ^ nanciou a construção

F^^^^L do prédio do Centro È ^^ de Estudos Avança-

^L> «^^^ dos em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq, com a qual mantém um acordo para produção de indicadores agrícolas. Outro trabalho importante é o monitoramento de microbacias hidrográficas, coor- denado pelo professor Walter de Paula Lima, do De- partamento de Ciências Florestais, em convênio com o Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais (Ipef). Esse programa teve início em 1987 e já estabeleceu estações em vários estados, a pedido de empresas florestais, como a Votorantim Celulose e Papel, Aracruz, Eucatex e Cope- brás. O objetivo é acompanhar o impacto da exploração nas bacias atingidas e obter indicadores para subsidiar o manejo sustentável das florestas. Esse trabalho, que per- mite às empresas corrigir agressões ao ambiente, tam- bém produz conhecimento científico. Com informações colhidas numa área explorada pela Votorantim Celulose e Papel, os pesquisadores da Esalq e do Ipef concluíram que a falta de cálcio numa área de reflorestamento de eucaliptos podia ser resolvida com uma medida simples: deixando-se a casca das árvores, que é rica em cálcio, no solo, em vez de levar embora as árvores com casca. "Nos- so trabalho permite às empresas calibrar seus indicado- res ambientais", diz o professor Walter de Paula Lima.

A mudança no perfil da Escola Luiz de Queiroz refle- te, de certo modo, a transformação do mercado de tra- balho das Ciências Agrárias. Até 20 anos atrás, os agrôno- mos formados pela escola tinham o clássico perfil do extensionista, aquele que visita propriedades e dá assis-

tência individualizada. Essa formação generalista, hoje, está longe de ser suficiente. De um lado, a proliferação de escolas de agronomia tornou a competição entre os profissionais mais acirrada. De outro, a agricultura mu- dou numa velocidade enorme, ganhou produtividade e escala econômica, e se tornou mais dependente de tec- nologia. Isso exige do profissional uma especialização muito maior. A Esalq começa a apostar, por exemplo, na agricultura de precisão, conceito que balança alicerces da pesquisa agronômica. A agricultura de precisão pon- tifica que cada região de uma área de plantio carece de quantidades peculiares de adubos e corretivos. Essa idéia, que já existe há muito tempo, tomou forma na Eu- ropa, em especial na Dinamarca, devido a uma limitação legal da aplicação de fertilizantes. Avaliam-se essas ne- cessidades medindo a produtividade de cada pedaço do terreno. Depois, aplica-se mais adubo nas partes que renderam mais (pois elas tiraram mais nutrientes do solo). Colheitadeiras ligadas a um sistema de geoproces- samento por satélite, o GPS, marcam os locais em que a produção é maior e registram esse desempenho num mapa, que servirá de guia para a aplicação do adubo. A agricultura de precisão já produziu economia de até 30% em insumos e vem ganhando espaço nos Estados Unidos e na Europa. Mas desafia, de certo modo, toda a pesquisa agronômica, pois ela tira conclusões partindo do pressuposto de que um terreno contínuo tem neces- sidades uniformes de nutrientes.

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José Paulo Molin, professor do Departamento de Engenharia Rural, lidera a pesquisa em agricultura de precisão na Esalq, que, com a ajuda de outros departamentos e instituições, busca desenvolver uma tecnologia mais barata e adaptada à realidade nacional. Uma das al- ternativas é delimitar pedaços do terreno e avaliar a quantidade de nutrientes em cada

um deles, sem a necessidade do GPS. Com base nas in- formações, criam-se mapas para lançar adubo. "A agri- cultura de precisão teve altos e baixos nos Estados Unidos, devido ao excesso de promessas. Não é uma panacéia, mas não se pode fechar os olhos para ela", diz Molin, que participa da organização do Io Congresso Brasileiro de Agricultura de Precisão, programado para maio.

O interesse pela Matemática e Estatística, inaugura- do na Esalq pelo geneticista Friedrich Gustav Brieger nos anos 1930 e difundida por Francisco Pimentel Go- mes, hoje produz ferramentas na área de Logística. Pro- fessores e alunos do Grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial (Esalq-Log) dedicam-se a criar sistemas de informação e modelos matemáticos que au- xiliem na gestão dos agronegócios. Liderado por José Vi- cente Caixeta Filho, a equipe desenvolveu, em meados dos anos 1990, o pioneiro Sistema de Informações sobre Fretes (Sifreca), disponibilizando os preços de fretes de 50 produtos agrícolas praticados em mais de 5 mil rotas. Até o advento do Sifreca, os preços de frete no Brasil

eram acompanhados por meio de tabelas de sindicatos patronais e de caminhoneiros. Os valores tornaram-se a principal referência em modelos matemáticos para racionalizar rotei- ros de cargas agrícolas. O levantamento é pu- blicado gratuitamente num pequeno jornal e disponibilizado no site do Esalq-Log, no ende- reço eletrônico http:// log.esalq.usp.br. O gru- po trabalha em outras frentes. Um caso exem- plar foi o modelo cria- do para uma empresa produtora de lírios em Holambra, interior pau- lista. A logística do ne- gócio envolvia a melhor hora de importar os bulbos da Holanda e cultivá-los em estufa em quantidade maior para a demanda atípica das datas comemorativas. O modelo matemático, com 120 mil variáveis e

400 mil restrições, gerou um mapa diário com ordens de importação e de produção que levou a um aumento de faturamento de 26% na empresa, sem novos inves- timentos. "Nosso desafio é mostrar aos profissionais de Ciências Agrárias que eles podem gerar ganhos até com modelos matemáticos muito simples", afirma Cai- xeta Filho.

Aposentado há 20 anos, o professor de Genética Er- nesto Paterniani, hoje ouvidor do campus Luiz de Que- roz, que congrega a Esalq e o Cena, lembra com certa nostalgia dos tempos em que pesquisa se fazia nos cam- pos experimentais, não nos laboratórios ou na frente de computadores. "Corríamos um risco maior", brinca ele. "Quando apresentávamos uma novidade a ser aplicada a um legume ou hortaliça, ela era testada imediatamen- te por milhares de agricultores e, se estivéssemos erra- dos, as reclamações vinham de todo lado." Paterniani teme que o futuro da pesquisa agrícola brasileira esteja ameaçado, devido à limitação de recursos da Embrapa e à escalada de restrições legais aos produtos biotecnoló- gicos. Acha que a Esalq deveria calibrar melhor seus es- forços de pesquisa para impedir que isso aconteça. "Se a pesquisa no Brasil parasse hoje, isso só seria sentido em alguns anos, quando viesse uma praga nova ou a produ- tividade de outros países aumentasse", afirma ele. Caso o cenário se confirme, os agricultores sabem onde procu- rar ajuda, como os hortelões japoneses que foram bater à porta do governador Jânio Quadros. .

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

Notícias

■ Obesidade

Epidemia de gordura

O título de uma canção escrita por John Lennon e Paul McCartney, Here, there and everywhere, serviu de inspiração para um estudo que revelou o quanto a obesidade se encontra presente na sociedade brasileira. Atualmente, esse é um dos mais graves problemas de saúde pública no mundo, e está avançando de forma rápida e progressiva, sem diferenciar raça, sexo, idade ou nível social. O assunto, que vem cada vez mais cha- mando a atenção da comunidade científica, é o fio condutor do artigo Prevalência, riscos e soluções na obe- sidade e sobrepeso: Here, there and everywhere, de Giu- seppe Repetto, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso), Jacqueline Rizzo- Ui, médica endocrinologista do Centro de Obesidade Mórbida, em Porto Alegre, e Cassiane Bonatto, médi- ca residente do Serviço de Endocrinologia do Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). "Ao longo da história da Humanidade, ganho de peso e depósitos exagerados de gordura foram vistos como sinais de saúde e pros- peridade", aponta o estudo. Porém o artigo revela que, nos últimos anos, a obesidade deixou de ser um mero problema estético para tornar-se uma questão de saú- de. "Como existe facilidade para se obter alimentos e o padrão de vida está cada vez mais sedentário, as pes- soas comem cada vez mais e se movimentam cada vez menos, levando a um superávit calórico e favorecendo a obesidade nas pessoas predispostas geneticamente." Hoje no Brasil, principalmente nas classes menos favo- recidas, a população está passando da desnutrição para o excesso de peso e obesidade. "Se não forem tomadas atitudes eficientes para conter este surto, dentro de 20 anos os brasileiros estarão na atual circunstância dos Estados Unidos, onde a obesidade e suas complicações constituem um dos maiores problemas de saúde pú- blica do país", alertam os pesquisadores.

ARQUIVOS BRASILEIROS DE ENDOCRINOLOGIA E METABO-

LOGIA - VOL. 47 - N° 6 - SãO PAULO - DEZ. 2003

www,scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004- 27302003000600001&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Emprego

Trabalho adolescente

Analisar as conseqüências do trabalho para as con- dições de vida, saúde e desenvolvimento psicossocial de adolescentes, alunos do ensino médio de uma esco- la pública estadual do município de São Paulo foi o objetivo do estudo Efeitos do trabalho sobre a saúde de adolescentes, desenvolvido em conjunto por pesqui- sadores da Faculdade de Saúde Pública da Universida- de de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). "A presença de adolescentes na força de trabalho tem sido encorajada pela sociedade, inclusive sendo prática incentivada pela política gover- namental expressa no Programa Primeiro Emprego. O ingresso precoce de jovens no trabalho é legalizado pela legislação brasileira", lembra o estudo. Participa- ram da pesquisa 354 estudantes de 14 a 18 anos, do pe- ríodo noturno. A pesquisa verificou que no trabalho dos adolescentes freqüentemente prevalece o aspecto produtivo sobre o educativo. "Em metrópoles como São Paulo, muitos adolescentes que freqüentam o ensi- no público precisam trabalhar para ajudar a compor o orçamento familiar, colocando a atividade escolar em segundo plano." O estudo sugere a necessidade de in- tervenção na estrutura social, principalmente na or- ganização escolar. Alterações nos horários escolares, como, por exemplo, aulas aos sábados para os estu- dantes trabalhadores e início mais tardio das aulas no período noturno, são importantes para o melhor aproveitamento escolar.

CIêNCIA E SAúDE COLETIVA

JANEIRO - 2003 VOL. 8 - N° 4 - Rio DE

www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1413- 81232003000400019&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Turismo

Conversão do patrimônio

O artigo O mar por tradição: o patrimônio e a cons- trução das imagens do turismo, de Elsa Peralta, da Uni- versidade Técnica de Lisboa, em Portugal, mostra como o patrimônio cultural tem um valor que é debitado pelos seus usos simbólico, político e econômico. O es- tudo tem como base a argumentação de que os turis- tas são "estruturalistas arquetípicos" em busca de ima- gens autênticas de um tempo mítico. "Existe uma

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reciprocidade entre estes usos, porque não existe patri- mônio simbólico que não seja também político. Além disso, o patrimônio só terá um valor econômico, por via da sua comercialização no mercado turístico, se ti- ver um valor simbólico elevado", diz Peralta. São ana- lisadas na pesquisa as formas como o patrimônio é utilizado para fornecer o suporte cenográfico necessá- rio à construção dos destinos turísticos. A autora utiliza como exemplo um caso de ativação patrimonial numa localidade de forte tradição do litoral português. Ao definir-se como a terra que tem o "mar por tradição", a região de Ilhavo se apresenta como um destino onde todos os portugueses podem reinventar o "eu autênti- co" que os liga às suas origens e que desejam ser para o futuro, como num jogo de espelhos, que põe em con- fronto a imagem que temos e a imagem que julgamos e desejamos ter. Nesse sentido, ao ser integrado no mercado turístico, o patrimônio marítimo é resgatado e reinventado, se adequando em outras dinâmicas e significações.

HORIZONTES ANTROPOLóGICOS

PORTO ALEGRE - OUT. 2003 VOL. 9 - N° 20 -

www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S0104-

71832003000200005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Enfermagem

Acidentes de trânsito

O objetivo do arti- go Acidentes de trân- sito: uma análise a partir da perspectiva das vítimas em Cam- pinas, de Marcos Queiroz e Patrícia Oliveira, pesquisado- res da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é abordar o problema dos acidentes de trânsito a par- tir da visão de 20 vítimas hospitalizadas na Enferma- ria do Trauma do Hospital das Clínicas da Unicamp. Foram analisados dados obtidos por meio de entrevis- tas, características sociais do acidentado e as circuns- tâncias gerais do acidente. A pesquisa focalizou as re- presentações sociais do acidentado sobre vários temas, tais como o hospital, as causas do acidente, o trânsito, o trabalho, o sistema de transporte coletivo e as perspec- tivas para o futuro. O roteiro das entrevistas limitou- se ao próprio acidente de trânsito e à crise pessoal proporcionada por ele. Ao serem perguntados sobre a causa principal do acidente, 11 entrevistados conside- raram imperícia ou falha humana, seis falta de sorte e três "inveja ou mau-olhado de outras pessoas". O estu- do alerta que mudanças de atitudes em relação à segu- rança no trânsito implicam mudanças em outras áre- as do comportamento, como o uso de bebida alcoólica e o consumo de drogas, especialmente entre adoles- centes. "Há estudos indicando que 50% dos acidentes graves de trânsito se associam com o uso de drogas ou

de álcool", apontam os pesquisadores. A solução para o problema dos acidentes de trânsito requer a imple- mentação de políticas públicas que levem em conta a dimensão cultural dos envolvidos e enfatizem progra- mas de educação. "Seria necessário um conhecimento maior dos contextos socioculturais e psicológicos para o desenvolvimento de programas de capacitação, reabi- litação e educação, que promovam um comportamen- to mais adequado no trânsito, tendo em vista as graves conseqüências dos acidentes e o alto custo social que eles representam."

PSICOLOGIA B SOCIEDADE - VOL. 15 - N° 2 - GRE - JUL./DEZ. 2003

PORTO ALE-

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

71822003000200008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Adolescência

Grávidas pré-maturas

O estudo Adolescência e reprodução no Brasil: a hete- rogeneidade dos perfis sociais, realizado por pesquisa- dores das universidades Federal da Bahia, do Estado do Rio de Janeiro, Federal do Rio Grande do Sul e do Institut National d'Études Démographiques, em Paris, na França, mostrou os resultados de uma estimativa sobre a prevalência de gravidez na adolescência (GA). A pesquisa foi feita em três capitais brasileiras: Salva- dor, Rio de Janeiro e Porto Alegre, cidades com con- textos socioculturais distintos. O estudo, que analisou o perfil de quem engravida e os resultados da gestação, realizou um inquérito domiciliar, com entrevistas de uma amostra de homens e mulheres entre 18 e 24 anos, para a avaliação retrospectiva da GA. "A gravidez na ado- lescência não é um fenômeno recente. Historicamente, as mulheres vêm tendo filhos nessa etapa e, mesmo em um contexto de intensa redução da fecundidade, não se constatou no Brasil um deslocamento correspon- dente da reprodução para faixas etárias mais velhas, tal como ocorreu em países industrializados", diz o artigo, sendo que a maioria das mulheres brasileiras vem ten- do dois filhos em média. Ao todo, foram entrevistados 4.634 jovens (47,2% homens e 52,8% mulheres), sen- do que a gravidez entre adolescentes foi relatada por 55,1% dos homens e 27,9% das mulheres. A maioria das mulheres engravidou em relacionamento estável com parceiro mais velho (79,8%). O estudo verificou que a experiência de gravidez antes dos 20 anos foi re- latada por 21,4% dos homens e 29,5% das mulheres. E, para piorar a situação, a maior parte das gestações se deu fora de uma união conjugai: 86,6% dos homens e 74,2% das mulheres, que moravam ainda com suas fa- mílias de origem.

CADERNOS DE SAüDE PUBLICA - DE JANEIRO - 2003

VOL. 19 - SUPL. 2 - Rio

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

311X2003000800019&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 69

Page 70: Era uma vez na América do Sul

ITECNOLOGIA

LINHHBE PRODUçãO j MUNDO

Declaração mundial dos robôs A proliferação de robôs nas indústrias ou como concor- rentes dos bichos de estima- ção levou o comitê organiza- dor da Feira Internacional de Robôs (International Robot Fair 2004), realizada no final de fevereiro na cidade japo- nesa de Fukuoka, a formu-

lar uma curiosa Declaração Mundial do Robô (Agência PRNewswirè). Confiantes nas contribuições futuras desses engenhos à espécie humana, os organizadores dividiram o documento em dois capí- tulos que indicam as expec- tativas em relação aos robôs

e à criação de novos merca- dos por meio das tecnologias robóticas. No primeiro, a de- claração diz que os robôs da próxima geração vão coexis- tir e serão parceiros dos hu- manos, além de auxiliá-los em atividades físicas e no apoio psicológico. No âmbito

do mercado, a declaração in- dica que a resolução de ques- tões técnicas deve ser feita por meio de Zonas Especiais para o Desenvolvimento e Teste de Robôs. Os humanos deverão também estimular a adoção de robôs em orga- nizações públicas. •

■ Esterilização elimina agentes biológicos

Os agentes biológicos que se disseminam pelo ar, como antraz, gripe, síndrome respi- ratória aguda grave (Sars) e tuberculose, agora podem ser eliminados em minutos. Uma equipe da Universidade de Buffalo, dos Estados Unidos, criou um equipamento, deno- minado BioBlower, que des- trói os organismos tóxicos ao aquecer rapidamente o ar con- taminado. O aparelho pode ser usado como unidade portá- til de esterilização no caso de ataque biológico ou mesmo ser instalado em sistemas de ar de edifícios e ativado assim que toxinas sejam detectadas. "O BioBlower destrói agentes biológicos esterilizando o ar", explica Jim Garvey, professor

de Química da Universidade de Buffalo. O ar é rapidamen- te comprimido e aquecido entre 200 e 250 °C, depois é expandido e esfriado antes de ser devolvido ao ambiente. O aparelho simplesmente reduz os microorganismos a cinzas, comparou o pesquisador. Nu- ma série de testes, o equipa- mento destruiu 99,9% dos es- poros (células reprodutivas)

do Bacillus globicii (Bg), bac- téria que simula o antraz. "Es- poros de Bg são o grande re- ferencial dos biotestes", afirma Garvey. "Agora que consegui- mos eliminar completamente uma bactéria tão difícil, po- demos matar qualquer outra toxina biológica aérea." Segun- do o pesquisador, o aparelho está um passo à frente em re- lação ao sistema existente: fil-

tros usados para capturar os esporos disseminados pelo ar, que têm de ser trocados com freqüência, armazenados com cuidado e destruídos. •

■ Rosto é senha de acesso

A cena pode parecer futu- rista, mas não é. Você entra no carro e uma câmera reco-

Esporos da bactéria Bacillus globicii (Bg) Resíduos após aplicação de ar esterilizado

70 ■ ABRIL DE 2004 ■ PES0.UISA FAPESP 98

Page 71: Era uma vez na América do Sul

nhece seu rosto. Em seguida, automaticamente são feitos os ajustes de assento, espelhos, ar-condicionado e estação de rádio favorita. Tudo isso pode ser feito com o sistema de identificação visual que aca- ba de ser desenvolvido pela OmniPerception, empresa in- glesa especializada em segu- rança formada por três enge- nheiros do Centro de Visão, Fala e Processamento de Si- nais da Universidade Surrey. A novidade, batizada de Affi- nity, marca o início de uma nova era da biometria facial, a identificação de pessoas por meio da codificação e da gra- vação, em um computador,

das características faciais. A tecnologia deve revolucionar cartões de crédito, identida- des e passaportes. Ela abre as portas para muitas possibi- lidades, mas sua maior atra- ção é o mercado de seguran- ça, com o rosto tornando-se a própria senha NIP (núme- ro de identificação pessoal). "O OmniPerception Facial NIP é um código digital tão longo e complexo que seria impossível memorizá-lo. Ao mesmo tempo, não há como esquecê-lo e ele sempre esta- rá com você. Assim, as for- mas de identificação conven-

cionais logo se tornarão coi- sas do passado. O rosto de cada um será um passaporte único", prevê o executivo-che- fe da companhia, David Mcln- tosh, em entrevista à London Press Service. O grande feito da OmniPerception foi que- brar a barreira da tecnologia de reconhecimento facial, que chegou a um nível só com- parável à técnica de checagem de digitais. O interesse da co- munidade internacional já se manifestou, diz o diretor de marketing da companhia, Martyn Gates. "Vai de passa- portes a computadores e con- troles de acesso seguros." Ou- tra vantagem da identificação facial é que basta um clique - e o viajante não precisa per- der tempo em aeroportos, por exemplo. •

■ Ônibus limpos e silenciosos

Um ônibus que para se loco- mover joga no ar apenas va- por de água. Assim é o veículo experimental movido a célula a combustível, equipamento que transforma o hidrogênio em energia elétrica, que está em teste em Londres, na In- glaterra, como parte de um projeto europeu destinado a reduzir a poluição e o barulho em dez cidades (London Press Service). O Transporte Urba- no Limpo da União Européia é o maior experimento do tipo no mundo. A frota vai operar em estradas euro- péias e nas cidades de Londres, Amsterdã, Barcelona, Ham- burgo, Luxemburgo, Madri, Porto, Reykjavik, Estocolmo e Stuttgart. Os veículos pos- suem seis cilindros de hidro- gênio no teto. "Esses são os ônibus mais ambientalmen- te corretos, limpos e silen- ciosos que já rodaram até hoje", comentou o prefeito londrino, Ken Livingstone. •

BRASIL

Primeiro vôo do maior avião

190: transporta até 108 passageiros em 36 m de comprimento

O primeiro exemplar do maior avião a jato já cons- truído no Brasil fez seu vôo inaugural no dia 12 de março. O 190, aeronave para atender até 108 passageiros, é o ter- ceiro de uma família de qua- tro membros (170, 175, 190 e 195) desenvolvida pela Embraer em São José dos Campos (SP). O novo avião possui 36,2 metros (m) de comprimento, 10,5 m de al- tura e 3,01 m de largura má- xima da fuselagem. Só vai perder no item comprimen- to para seu irmão, o 195, que terá 38,6 m e deverá estar pronto no terceiro trimestre deste ano. O 190 já possui 110 pedidos de companhias eu- ropéias e norte-americanas. A entrega das primeiras unida- des deverá ocorrer no final de 2005. Enquanto isso, a ae- ronave passa por uma série de testes de vôo no Brasil e no exterior. No mesmo mês de março, a Embraer entregou a primeira unidade comercial do 170 à empresa Alitalia. Com 70 assentos, a empresa

vai começar a usar, a partir deste mês de abril, o avião em vôos dentro da Europa. •

■ Parceria entre Genius e Unicamp

O Genius Instituto de Tec- nologia e a Universidade Estadual de Campinas (Uni- camp) assinaram, no início de março, um convênio para desenvolvimento conjunto de inovações tecnológicas. O primeiro aditivo ao convê- nio prevê um projeto com a área de lingüística da Uni- camp para aprimorar dispo- sitivos de reconhecimento de voz. Outros estão sendo estudados para o desenvol- vimento de tecnologia nas áreas de multimídia, termi- nais móveis, TV digital e na- notecnologia. Instalado em Manaus, o Genius foi fun- dado em 1999 pela Gradien- te, que hoje é sua principal cliente. O instituto atua nos campos da eletrônica de con- sumo, computação e tele- comunicações. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 71

Page 72: Era uma vez na América do Sul

nhece seu rosto. Em seguida, automaticamente são feitos os ajustes de assento, espelhos, ar-condicionado e estação de rádio favorita. Tudo isso pode ser feito com o sistema de identificação visual que aca- ba de ser desenvolvido pela OmniPerception, empresa in- glesa especializada em segu- rança formada por três enge- nheiros do Centro de Visão, Fala e Processamento de Si- nais da Universidade Surrey. A novidade, batizada de Affi- nity, marca o início de uma nova era da biometria facial, a identificação de pessoas por meio da codificação e da gra- vação, em um computador,

das características faciais. A tecnologia deve revolucionar cartões de crédito, identida- des e passaportes. Ela abre as portas para muitas possibi- lidades, mas sua maior atra- ção é o mercado de seguran- ça, com o rosto tornando-se a própria senha NIP (núme- ro de identificação pessoal). "O OmniPerception Facial NIP é um código digital tão longo e complexo que seria impossível memorizá-lo. Ao mesmo tempo, não há como esquecê-lo e ele sempre esta- rá com você. Assim, as for- mas de identificação conven-

cionais logo se tornarão coi- sas do passado. O rosto de cada um será um passaporte único", prevê o executivo-che- fe da companhia, David Mcln- tosh, em entrevista à London Press Service. O grande feito da OmniPerception foi que- brar a barreira da tecnologia de reconhecimento facial, que chegou a um nível só com- parável à técnica de checagem de digitais. O interesse da co- munidade internacional já se manifestou, diz o diretor de marketing da companhia, Martyn Gates. "Vai de passa- portes a computadores e con- troles de acesso seguros." Ou- tra vantagem da identificação facial é que basta um clique - e o viajante não precisa per- der tempo em aeroportos, por exemplo. •

■ Ônibus limpos e silenciosos

Um ônibus que para se loco- mover joga no ar apenas va- por de água. Assim é o veículo experimental movido a célula a combustível, equipamento que transforma o hidrogênio em energia elétrica, que está em teste em Londres, na In- glaterra, como parte de um projeto europeu destinado a reduzir a poluição e o barulho em dez cidades (London Press Service). O Transporte Urba- no Limpo da União Européia é o maior experimento do tipo no mundo. A frota vai operar em estradas euro- péias e nas cidades de Londres, Amsterdã, Barcelona, Ham- burgo, Luxemburgo, Madri, Porto, Reykjavik, Estocolmo e Stuttgart. Os veículos pos- suem seis cilindros de hidro- gênio no teto. "Esses são os ônibus mais ambientalmen- te corretos, limpos e silen- ciosos que já rodaram até hoje", comentou o prefeito londrino, Ken Livingstone. •

BRASIL

Primeiro vôo do maior avião

190: transporta até 108 passageiros em 36 m de comprimento

O primeiro exemplar do maior avião a jato já cons- truído no Brasil fez seu vôo inaugural no dia 12 de março. O 190, aeronave para atender até 108 passageiros, é o ter- ceiro de uma família de qua- tro membros (170, 175, 190 e 195) desenvolvida pela Embraer em São José dos Campos (SP). O novo avião possui 36,2 metros (m) de comprimento, 10,5 m de al- tura e 3,01 m de largura má- xima da fuselagem. Só vai perder no item comprimen- to para seu irmão, o 195, que terá 38,6 m e deverá estar pronto no terceiro trimestre deste ano. O 190 já possui 110 pedidos de companhias eu- ropéias e norte-americanas. A entrega das primeiras unida- des deverá ocorrer no final de 2005. Enquanto isso, a ae- ronave passa por uma série de testes de vôo no Brasil e no exterior. No mesmo mês de março, a Embraer entregou a primeira unidade comercial do 170 à empresa Alitalia. Com 70 assentos, a empresa

vai começar a usar, a partir deste mês de abril, o avião em vôos dentro da Europa. •

■ Parceria entre Genius e Unicamp

O Genius Instituto de Tec- nologia e a Universidade Estadual de Campinas (Uni- camp) assinaram, no início de março, um convênio para desenvolvimento conjunto de inovações tecnológicas. O primeiro aditivo ao convê- nio prevê um projeto com a área de lingüística da Uni- camp para aprimorar dispo- sitivos de reconhecimento de voz. Outros estão sendo estudados para o desenvol- vimento de tecnologia nas áreas de multimídia, termi- nais móveis, TV digital e na- notecnologia. Instalado em Manaus, o Genius foi fun- dado em 1999 pela Gradien- te, que hoje é sua principal cliente. O instituto atua nos campos da eletrônica de con- sumo, computação e tele- comunicações. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 71

Page 73: Era uma vez na América do Sul

LINHA DE PRODUçãO BRASIL

èlhas com fibras Fibras de eucalipto, sisal, bananeira e malva, mistu- radas ao cimento, resulta- ram em um novo tipo de telha, desenvolvida e pa- tenteada pelo Grupo de Construções Rurais e Am- biência, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universi- dade de São Paulo (SP), em Pirassununga. A pesquisa, coordenada pelo professor Holmer Savastano Júnior, teve início em 1996 e foi financiada pelo programa Habitare, da Financiadora de Estudos e Projetos (Fi- nep). Depois de selecionar as fibras vegetais, maté- ria-prima encontrada em grande quantidade no Bra- sil, foram feitos ensaios para avaliar o seu uso em conjunto com o cimento. "As fibras do eucalipto, da bananeira e do sisal foram utilizadas em forma de polpa para compor a te- lha, enquanto a malva foi apenas picada", explica Savastano. As empresas MMF Indústria e Comér- cio de Máquinas, de Mauá

(SP), e a MALVS Comér- cio, Manutenção, Fabrica- ção de Máquinas e Equi- pamentos, de São Carlos (SP), construíram uma pri- meira versão do equipa- mento para moldagem das telhas. Os testes feitos para analisar a eficiência do produto envolveram ainda a determinação das pro- priedades mecânicas, físi- cas, químicas e microes- truturais do novo material. "Para melhorar a longevi- dade das telhas, passamos a misturar fibras sintéticas (polipropileno, derivado do petróleo) às vegetais", diz o pesquisador. Ele ex- plica que a fibra de euca- lipto, por exemplo, tem bom desempenho duran- te a fabricação, o transpor- te e a instalação da telha, qualidades que mantém até cerca de 12 meses de- pois de produzida. Após esse período, por causa da possível degradação da fi- bra vegetal pelo meio al- calino do cimento, o re- forço passa a ser garantido pelas fibras sintéticas. •

n ^_ **!s*^^

Miniusina: recicla areia usada na fundição de peças metálicas

Telhado com matéria-prima vegetal ganha patente

■ Usina móvel visita fundições

Uma pequena usina de reci- clagem móvel, montada em cima da carroceria de um ca- minhão, começará a atender no final de junho fundições de pequeno e médio portes que descartam, no conjunto, cer- ca de 200 toneladas mensais de areia. Essa matéria-prima é usada na fabricação de peças fundidas em ligas com alto ponto de fusão, como ferros fundidos, aços e bronzes, uti- lizadas principalmente pela indústria automobilística. A miniusina, feita sob encomen- da por fabricantes de Limeira e São João da Boa Vista (SP), é composta de dois módu- los interligados, responsá- veis pelo tratamento mecâni- co e térmico. "Alguns tipos de areia precisam só do trata- mento mecânico, enquanto outros precisam passar pelo forno para remoção de conta- minantes", explica o engenhei- ro metalurgista Cláudio Luiz Mariotto, pesquisador do Ins- tituto de Pesquisas Tecnoló- gicas (IPT) e coordenador do projeto. A decisão de prestar serviços para as pequenas e médias fundições é fruto de

um longo debate que teve a participação da Associação Brasileira de Fundição (Abifa). "São empresas que não estão próximas de aterro e também não têm condições de fazer a reciclagem por conta pró- pria", diz. •

■ Carne preservada por mais tempo

Os cortes de carne bovina em- balados em bandejas com fil- mes plásticos ganharam so- brevida de mais de um mês nos supermercados brasilei- ros. Isso porque um novo sis- tema de embalagem sob at- mosfera modificada provou ser capaz de conservar a carne cortada em bifes por até 35 dias, enquanto o prazo atual é de dois dias. Adaptado para as condições brasileiras, o sis- tema resulta da dissertação de mestrado de Anna Cecília Venturini para o Departamen- to de Agroindústria e Nutrição da Escola Superior de Agricul- tura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Pau- lo (USP), de Piracicaba. As bandejas com cortes de carne, envoltas em um filme plásti- co comum e um sachê absor- vedor de oxigênio, são colo-

72 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESHUISA FAPESP 98

Page 74: Era uma vez na América do Sul

cadas em uma outra emba- lagem externa feita de um plástico de alta barreira que impede a passagem de gases. Em seguida, o interior da em- balagem externa, sem oxigê- nio, é preenchido com dióxido de carbono puro, que serve como agente bacteriostático. Após a selagem, as embalagens são estocadas em câmara fria até o momento de serem ex- postas para consumo. •

■ Mais latas usadas são recicladas

No ano passado, o Brasil reci- clou 89% de todas as latas de alumínio vendidas, correspon- dente a um volume aproxi- mado de 8,2 bilhões de uni- dades, ou 112 mil toneladas. Com isso, o país garantiu, pelo terceiro ano consecutivo, a li- derança mundial em recicla- gem de latas, considerando os países em que a atividade não está prevista em lei. Em 2002, foram 9 bilhões de unidades recicladas, equivalente a 87% das latas vendidas. Segundo a Associação Brasileira do Alu- mínio (Abai), o aumento da participação das cooperativas e da base de coleta contribuiu para o crescimento da recicla- gem. São mais de 6 mil pon- tos de compra de sucata de la- tas espalhados pelo Brasil. •

Sucata reaproveitada

Guaçatonga: atividade antiúlcera nas folhas

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento

de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: [email protected]

tema presente na mitocon- dria (estrutura que fornece energia às células), é libe- rado. O fato de um teci- do não sofrer apoptose ou quando esse processo é exagerado pode ser indí- cios de patologias como câncer, doenças neurode- generativas e reumáticas. O método baseia-se no uso de um detergente (digitonina) para colesterol, lipídio que está presente em grande quantidade na membrana externa da célula, mas é raro na mitocôndria. Quando esse detergente é aplicado, ele permeabiliza a mem- brana externa de células normais e em processo de apoptose. Caso o citocromo c tenha sido liberado, ele sairá da célula. Dessa for- ma, ele não será detectado em células em processo de apoptose, somente em célu- las normais. Já para quan- tificar o citocromo c que permanece na mitocôndria, utilizam-se dois anticorpos específicos, um dos quais é ligado a uma molécula fluorescente. Assim, as cé- lulas que não estão em pro- cesso de apoptose passam a ser fluorescentes.

Título: Método para Quanti-

ficar Liberação Mitocondrial

de Citocromo c e Kit para

Detectar Liberação Mito-

condrial de Citocromo c

Inventores: Anibal Vercesi,

Claudia Campos, Ricardo

Cosso, Roger Castilho e Ha-

gai Rottenberg

Titularidade: Unicamp e

FAPESP

■ Extrato cicatriza úlceras gástricas

Processo de obtenção e uti- lização de extratos das fo- lhas secas de guaçatonga (Casearia sylvestris) mos- trou intensa atividade no tratamento de úlceras gas- troduodenais. A guaçaton- ga é uma planta brasileira bastante comum, repre- sentativa da nossa biodi- versidade, encontrada des- de o Rio Grande do Sul até a Amazônia. Compostos químicos do grupo das ca- searinas com atividade an- tiúlcera foram isolados, identificados e avaliados em um trabalho conjunto desenvolvido entre o De- partamento de Farmacolo- gia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universida- de de São Paulo (USP) e o Departamento de Química Orgânica do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, coordenado pelo professor Jayme Antô- nio Aboin Sertié, da USP. Em testes com animais ve-

rificou-se que o extrato não interfere nos parâmetros de secreção gástrica. Além dis- so, a velocidade de cicatri- zação de úlcera crônica in- duzida experimentalmente foi significativamente mais rápida com o extrato da planta em comparação com medicamentos clássicos.

Título: Processo de Obtenção

de Extratos e de Frações de

Casearia sylvestris. Medica-

mento e Princípio Ativo

Inventores: Jayme Aboin Ser-

tié, Ricardo Gomide Woisky do

Rio, Alberto José Cavalheiro,

Vanderlan da Silva Bolzani,

André Gonzaga dos Santos e

Aristeu GomesTininis

Titularidade: USP, Unesp e

FAPESP

■ Diagnóstico de morte celular

Nova metodologia para determinar o processo de morte celular chamado apoptose, que ocorre quan- do o citocromo c, uma pro-

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 73

Page 75: Era uma vez na América do Sul

TECNOLOGIA

ENGENHARIA CIVIL

Bonitas, seguras e baratas

Novas técnicas de construção e tratamento químico adequado tornam as pontes de madeira uma boa opção ao concreto

SAMUEL ANTENOR

A s pontes de madeira estão de volta. Ago- i^L ra mais eficientes, duráveis e bonitas,

LJL capazes de disputar com as pontes i ^ de concreto em igualdade de segu-

-JL- -^. rança, unindo extensões de até 30 metros, nas cidades ou nas estradas. A madeira sempre foi o material mais utilizado para a cons- trução das pontes brasileiras, ajudando na ocu- pação do território nacional ao encurtar cami- nhos sobre rios e riachos. Mas, ao longo dos anos, elas passaram por um processo de deterioração e substituição - muito em razão do uso de madei- ras sem tratamento adequado -, cedendo lugar às estruturas de ferro e concreto. Uma trajetória que começa a mudar com novas técnicas de construção e cuidados especiais apresentados pelos pesqui- sadores do Laboratório de Madeiras e Estrutu- ras de Madeira (Lamem) da Escola de Enge- nharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP). Os novos sistemas construtivos combinam técnicas trazidas de outros países e matéria-prima originária de reflorestamento no Brasil, especialmente tratadas para enfrentar con- dições locais de umidade e ataque de insetos e de fungos. Uma das vantagens também resgatadas e confirmadas pelos pesquisadores é o baixo custo dessas construções. Elas podem ser construídas pelo valor de R$ 300 a R$ 600 o metro quadrado, enquanto as pontes de concreto custam entre R$ 1 mil e R$ 1,4 mil.

As novas pontes de madeira suportam cargas idênticas às similares de concreto e, em muitos casos, conferem ao ambiente uma paisagem mais agradável. Para demonstrar todas essas qualida- des e expandir esse tipo de construção, sete pontes foram construídas sob a supervisão dos pesquisa- dores, em algumas cidades do interior paulista, de Minas Gerais e de Goiás, com repasse de tec- nologia aos engenheiros do Departamento de

Estradas de Rodagem (DER) da Secretaria dos Transportes do Estado de São Paulo e aos enge- nheiros municipais por meio de cursos de atua- lização. A primeira delas em meio urbano foi construída há um ano, em São Carlos, sobre o córrego Monjolinho. A mais recente, em plena ser- ra do Mar, no chamado Caminho do Mar, a pri- meira estrada ligando São Paulo à Baixada San- tista. "Estamos mostrando que a madeira compete muito bem com outros materiais em característi- cas de peso, resistência e durabilidade, indepen- dentemente do tamanho dos vãos que a ponte liga ou cargas que ela é obrigada a suportar", ex- plica o professor Carlito Calil Júnior, coordena- dor das pesquisas no Lamem. Ele destaca tam- bém os benefícios ambientais. "O uso da madeira tem um caráter renovável, ao contrário do aço e do cimento, que demandam, inclusive, grandes quantidades de energia em sua produção. O cul- tivo de madeira de reflorestamento também ser- ve ao seqüestro e armazenamento de carbono da atmosfera, que ocorre intensamente durante o crescimento da árvore até a idade adulta."

Tráfego e cargas - Os novos sistemas permitem a construção de pontes em vigas e em lâminas, ou ainda mistas, combinando madeira e uma cober- tura de concreto. Todas podem ser utilizadas em cidades, estradas municipais, rodovias estaduais ou federais, inclusive nas de grande tráfego, sem restrição em termos de carga, porque são projeta- das segundo as mesmas normas de ações e segu- rança das estruturas em geral da Associação Bra- sileira de Normas Técnicas (ABNT).

Entre os novos sistemas, o de pretensão (apli- cação de tensões) é o mais aprimorado, com lâ- minas de madeira formando uma única placa, perpassada por barras rígidas de um aço espe- cial ultra-resistente (técnica chamada de dywi-

74 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

Page 76: Era uma vez na América do Sul

Passarela na USP de São Carlos: madeira laminada de pínus de reflorestamento

Page 77: Era uma vez na América do Sul

dag), ou por cordoalhas, um conjunto de vários fios de aço também de alta resistência. A técnica consiste em per- furar a madeira a cada metro para a inserção das barras ou fios de aço, que são tensionados e têm sua força con- trolada, garantindo que a placa de ma- deira ganhe rigidez transversal (de uma ponta a outra), e não apenas longitu- dinal (no sentido da largura da ponte). Para preservar o conjunto, tanto as barras quanto os fios de aço são pro- tegidos por uma bainha de proteção e revestidos com graxa, para evitar pos- síveis corrosões, provocadas pelo con- tato do aço com os produtos químicos utilizados no tratamento prévio da ma- deira. Essa proteção química é funda- mental para a longevidade das pontes. É feita com uma solução hidrossolú- vel de sais de cobre, cromo e arsênico (CCA) e outra que utiliza boro no lu- gar do arsênico (CCB), livrando a ma- deira da ação de fungos e de insetos, preservando-a para um uso superior a 30 anos, contra apenas cinco anos de vida sem o tratamento.

Desenvolvido no Canadá na década de 1970 para reforçar pontes de ma- deira laminadas já exis- tentes, o sistema de pre-

tensão começou a ser utilizado também nos Estados Unidos e, depois, no Bra- sil. Aqui, foram usados o pínus e o eu- calipto, tratados em condições locais de umidade e de temperatura. Em São Carlos, os estudos sobre pontes de ma- deira nesse sistema começaram em 1992, seis anos após a construção da primei- ra ponte deste tipo pelo Forest Products Laboratory (FPL) ou Laboratório de Produtos Florestais, em Madison, nos Estados Unidos, onde Calil Júnior acom- panhou os testes de avaliação das car- gas na estrutura, além da variação de umidade e de temperatura.

Após o estudo das técnicas e com o projeto temático financiado pela FAPESP, iniciado em 2001, foram ava- liadas, em São Carlos, três espécies de eucaliptos {Eucaliptusgranais, E. citrio- ãora e E. saligna) e duas de pínus (Pi- nus taeâa e P. elliottii) de refloresta- mento e igualmente tratadas. "O pínus utilizado na América do Norte é mais denso e, por isso, naturalmente mais resistente que o brasileiro. Com o eu- calipto acontece o contrário. Aqui ele

é muito mais resistente. Em- bora, com o sistema de pre- tensão, não haja necessidade de uma madeira de alta re- sistência, porque tanto o aço quanto o cabo transver- sal reforçam sua solidez", ex- plica Calil Júnior.

No sistema de pretensão, o peso da carga se distribui por toda a extensão da pon- te. Todavia, para vãos de até 10 metros é conveniente que a ponte seja construída em placas de madeira - em pe- ças serradas ou laminadas coladas -, sempre formando um elemento único. No caso de vãos entre 10 e 20 metros, as pontes devem ser feitas num sistema de placas com espaços a cada 1 metro for- mados por lâminas de lar- gura três vezes maior que as demais do conjunto. Já para vãos acima de 20 metros, utiliza-se o sistema caixão, que consiste em duas placas sobrepostas em dois planos, um superior e outro inferior. Essas placas também devem ser ligadas entre si por lâmi- nas de maior largura, a cada 1 metro, formando túneis fechados pelas par- tes superior e inferior da estrutura. No Brasil, as duas primeiras nesse sis- tema serão construídas no campus 2 da USP de São Carlos, uma com ma- deira laminada colada e outra com peças compostas de compensado de madeira colada. Outra construção já finalizada nessa cidade é uma passa- rela em curva construída na USP, li- gando o Laboratório de Madeira ao De-

0 PROJETO

Programa Emergencial das Pontes de Madeira para o Estado de São Paulo

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR CARLITO CALIL JúNIOR - Escola de Engenharia de São Carlos - USP

INVESTIMENTO R$ 516.094,73 e US$ 112.202,55

Ponte com passarela sobre o córrego Monjolinho, em São Carlos: primeira em meio urbano construída com novas técnicas e madeira tratada

partamento de Engenharia de Estru- turas, em que foi aplicada a tecnolo- gia de placa de madeira laminada com protensão utilizando o pínus de reflo- restamento.

Cobertura de concreto - Até o mo- mento, a maioria das pontes construí- das, como a do Caminho do Mar, é do tipo mista, em madeira e concreto, porque são mais facilmente edificadas e a um custo menor. Esse sistema uti- liza peças roliças (toras de árvores tra- tadas) na parte inferior com conexões metálicas em barras de aço comum fincadas na madeira e imobilizadas pelo concreto, que recobre a estrutu- ra e, posteriormente, recebe asfalto. A opção pelas peças roliças ocorre em razão da constituição das peças e do custo, duas vezes menor que o da ma- deira serrada. "Nesse caso, um pon- to importante é o desenvolvimento de fibras retorcidas ao longo do cresci- mento natural da árvore. No entanto, essa característica, junto com a rigidez, é perdida, quando a madeira é serra- da", explica Calil.

76 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

Page 78: Era uma vez na América do Sul

No antigo Caminho do Mar, ponte em construção com madeira e concreto

Outra possibilidade é a edificação de pontes com peças roliças tratadas, de alta resistência e baixo custo, e peças laminadas treliçadas, ligadas por para- fusos, ou ainda com peças de madeira laminada colada, que utilizam um ti- po de resina extremamente aderente. A vantagem das laminadas coladas é a possibilidade de se construir vigas sem limitação de comprimento e com total controle do material, inclusive em ex- tensões acima de 30 metros. Contudo, elas apresentam custos considerados al- tos, cerca de R$ 2 mil o metro cúbico, contra R$ 300 da madeira roliça tratada.

Calil reconhece que as estruturas de madeira ainda sofrem de um pre- conceito relacionado à utilização, du- rante muitos anos, de madeiras sem o tratamento adequado que garantisse a longevidade das pontes. Esse fator, que ainda gera desconfiança no lado dos construtores, somado à escassez de mão-de-obra qualificada, impede uma disseminação desse tipo de construção. A reviravolta na falta de profissionais especializados na edificação de pontes de madeira foi iniciada com dois cursos ministrados em São Carlos aos instru- tores do Serviço Nacional da Indústria

(Senai), para que atuem na formação de pessoal com qua- lificações específicas para trabalhar com esse tipo de material. "Durante as aulas, abordamos desde as proprie- dades da madeira até detalhes de estruturas e construções."

Legislação avançada - O Bra- sil lidera a tecnologia de de- senvolvimento de estruturas de madeira na América do Sul. Além do Laboratório da USP de São Carlos, outros grupos também pesquisam o tema, na Universidade Estadual Paulis- ta (Unesp), na Escola Politéc- nica da USP e na Universi- dade Estadual de Campinas (Unicamp), a fim de formular uma norma brasileira especí- fica para construções de pon- tes desse tipo, como um ane- xo à norma de estruturas de madeiras, também formula- da pela EESC e pela Escola Politécnica e adotada pela ABNT, em 1997.

Os pesquisadores de São Carlos também solicitaram ao DER um levantamento sobre

as condições das pontes de madeira no Estado de São Paulo, a fim de oferecer apoio tecnológico para a recuperação das existentes ou para a construção de novas. "A idéia é que isso passe a valer também em outros estados, a exemplo de Goiás, onde já foram construídas duas pontes, no município de Catalão, com base nos estudos desenvolvidos aqui e repassados por meio de cursos e manuais editados para auxiliar enge- nheiros em qualquer município do país", diz o pesquisador. "Enviamos car- tas a todos os municípios do Estado de São Paulo e, quando há interesse por parte das prefeituras, orientamos os projetos sem nenhum custo e com as devidas recomendações dos materiais, processo construtivo e de manutenção." O município que optar por pontes de madeira responsabiliza-se apenas pelo custo da construção, enquanto os pes- quisadores do Laboratório de Madeira se encarregam de aplicar a tecnologia desenvolvida na universidade, inclusi- ve formando mão-de-obra especializa- da. "Não queremos construir, mas en- sinar a construir." •

PESQUISA FAPESP 98 -ABRIL DE 2004 ■ 77

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TECNOLOGIA

METALURGIA

Alumínio afinado CBAePoli-USP desenvolvem chapas mais finas e resistentes

Chapas de alumínio mais finas e mais apropriadas para luminárias e para a fabricação de carrocerias de automóveis, por exem-

plo, estão na mira de um amplo estudo que envolve a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do Grupo Voto- rantim, e a Escola Politécnica da Uni- versidade de São Paulo (Poli-USP). O estudo se baseia na análise da microes- trutura de chapas de alumínio obtidas num processo chamado de Roll Cas- ter, que faz a laminação a frio, ao con- trário do processo tradicional, mais cus- toso, em que as chapas são laminadas a quente. Com o avanço tecnológico alcançado até agora, esse processo já consegue produzir chapas de 2,5 milí- metros de espessura, contra 6 milíme- tros no passado recente. "Isso significa um ganho de produtividade e de com- petitividade, porque a bobina sai do processo com uma espessura que requer menos etapas durante a laminação", explica o engenheiro metalurgista Ri- cardo do Carmo Fernandes, douto- rando da Poli.

"Nossa estratégia é tirar maior pro- veito tecnológico do sistema Caster, de- senvolvendo competências que levem à fabricação de produtos de menor custo e de melhor performance", diz o enge- nheiro Wilke Martins Parra, chefe dos departamentos de folhas e de processos tecnológicos da CBA. "Conhecendo melhor as características do processo, podemos ampliar o leque de produtos, melhorar a sua qualidade e elevar a sua vida útil, por exemplo." Nos últimos dois anos, complementa o engenheiro Jorge Valezin, coordenador geral de vendas, a CBA investiu US$ 87 milhões anuais em equipamentos, pesquisa e

processos, além da ex- pansão da capacidade de produção, passando de 240 mil para 340 mil toneladas por ano de alu- mínio primário.

Textura ideal - Até agora, os estudos realizados entre a Poli e a CBA já atingiram, de forma inédita no Brasil, chapas que po- dem ser utilizadas na fabricação de luminárias e acessórios para a montagem de telhas de alumínio. O objetivo final do estudo, segundo Fernandes, é alcançar a textura ideal em chapas finas para as estampagens profundas (moldagem por meio de prensagem), processo usado, por exem- plo, na produção de carrocerias de au- tomóveis. Fernandes é orientado pelo professor Ângelo Fernando Padilha, do Departamento de Engenharia Metalúr- gica e de Materiais da Poli-USP. A equi- pe também é formada pela doutoranda Juliana de Paula Martins e pelo pós- doutorando Márcio Ferreira Hupalo.

O processo Caster estudado pelos pesquisadores utiliza o alumínio líqui- do que, ao passar por dois cilindros metálicos refrigerados internamente à água, resulta em uma chapa livre da la- minação a quente do processo conven- cional. Essa técnica mais antiga parte de um material semi-acabado e fundido a partir da bauxita, a matéria-prima do alumínio, resultando em placas com espessuras que variam de 23 a 60 centí- metros (cm). Depois, as chapas são for- madas em uma temperatura que atin- ge 500 °C. O Caster elimina essa última etapa da linha de produção, deixando a infra-estrutura mais enxuta, com me- nos mobilização de capital. Um lami-

Chapas de alumínio mais finas

e resistentes: matéria-prima

inovadora

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Page 80: Era uma vez na América do Sul

nador a quente exige investimento de US$ 150 milhões, enquanto a lamina- ção contínua pode ser montada com US$ 40 milhões - US$ 10 milhões do Caster e US$ 30 milhões do laminador a frio. E, de quebra, elimina-se a neces- sidade de uma instalação com 200 me- tros de comprimento para abrigar o la- minador a quente, sem falar nos gastos com mão-de-obra, consumo de energia elétrica e manutenção.

Sob a ótica operacional, o Caster é mais versátil, ou seja, é muito vanta- joso em caso de produção de várias li- gas, facilitando o ajuste de composição química do metal e produzindo uma diversificada linha de produtos, com larguras maiores. Largura é um dado importante por vários motivos: inicial- mente, a largura média de uma chapa de alumínio era de 85 cm. Hoje o mer- cado já exige 1,8 metro. Essa dimen- são garante maior produtividade nas aplicações, explica Ayrton Filleti, co- ordenador do Comitê de Mercado da Indústria Automotiva, da As- sociação Brasileira do Alumínio (Abai). Segundo Filleti, por exigir 20% menos investimen- to em infra-estrutura de pro- dução e proporcionar uma redução de cerca de 30% no custo operacional, o Cas- ter já representa metade da capacidade instala- da de laminação da indústria de alumínio da América Latina, com 35 máquinas em operação.

Sem deformação - "Produtos que an- tes sofriam um alto grau de deformação durante seu processamento são hoje obtidos nas dimensões próximas da es- pessura final desejada, com a microes- trutura adequada." É essa característica que vai determinar se a chapa lamina- da pode ser submetida a condições mais severas, sem sofrer deformações que a comprometam. Contudo, o processo Caster ainda tem gargalos significativos em relação à laminação a quente. Um deles é a escala reduzida de produção - 10 mil toneladas anuais por máquina -, além de problemas no resfriamento do equipamento, que leva à baixa resistên- cia do material quando submetido à es- tampagem profunda, como exige, por exemplo, a indústria automobilística, que utiliza o alumínio em quantidades cada vez maiores.

São exatamente as deficiências do processo Caster que Fernandes e a equi- pe do professor Padilha estudam nos la- boratórios da empresa e da Poli. Hoje, já se sabe, por exemplo, que fatores co- mo as temperaturas envolvidas nas vá- rias fases do processo e a velocidade de vazamento (transporte do material para outro recipiente na produção) têm im- pacto na textura da chapa laminada pelo Caster. "Com a variação de velocidade e de temperatura de vazamento iremos ob- ter características diferentes na micro- estrutura das chapas", diz Fernandes.

A CBA, que fatura US$ 700 milhões por ano - 50% provenientes de expor- tações -, pesquisa o Caster há mais de dez anos e por meio dessa rota tecno- lógica produz folhas com espessuras abaixo de 1 milímetro, destinadas a produtos que não exigem estampagem profunda, como o material utilizado na produção de embalagens marmitex. A intenção da empresa é migrar quase toda a produção para esse processo, in- cluindo laminados para aplicações em trocadores de calor (radiadores, apare- lhos de ar-condicionado), embalagens para a indústria de alimentos, material de transporte etc, contribuindo para au- mentar a participação e o consumo de alumínio no mercado doméstico. Um mercado ainda pequeno, com o con- sumo per capita de alumínio na or- dem de 4 quilos anuais por habitante, contra 29 quilos por ano nos Estados Unidos. Uma defasagem que pode ser diminuída com a adoção de chapas mais finas de alumínio. •

PES0UISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 79

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TECNOLOGIA

%

Empresa fabrica suplementos alimentares com matéria-prima extraída de crustáceos

abeça de camarão, casca de lagosta e carapaças de caranguejo, abundantes e

i rejeitadas pela indústria pesqueira do Ceará, não

têm mais o lixo como destino final. Elas são transformadas em suplementos ali- mentares, na forma de cápsulas e com- primidos, que funcionam como coad- juvantes na redução do colesterol, na perda de peso e no controle de doenças como a artrose. As substâncias benéficas presentes nos rejeitos dos crustáceos são a quitina e a quitosana, dois biopolíme- ros que possuem propriedades quími- cas e biológicas importantes. Segundo estudos realizados nos Estados Unidos e no Japão, a quitosana promove a cap- tura e a eliminação de gorduras por meio de um mecanismo de excreção de ácidos biliares. Além da área da saúde, a quitosana é utilizada em processos de

purificação e tratamento de água, na manufatura de lentes de contato e no ramo cosmético, como ingredien- te na fabricação de xampus, loções e cremes protetores.

Os biopolímeros ex- traídos dos crustáceos são a razão do sucesso da empre- sa cearense Polymar. Ela já possui 11 patentes de pro- dutos e processos que en-

volvem a quitina e a quitosana. Entre elas estão uma técnica desenvolvida na empresa para a obtenção dessas subs- tâncias, os próprios alimentos funcio- nais com formulação e metodologia de processamento e uma membrana para uso na regeneração de tecidos e nas ci- catrizações. Uma das inovações, tam- bém patenteada, desenvolvida pela Po- lymar, está no reaproveitamento de um dos reagentes usados para a extração da quitina e na obtenção da quitosana, o hidróxido de sódio. "A reutilização dessa substância química é perfeita dos pontos de vista ambiental e econômico, porque, além de eliminar os resíduos, o custo final de produção é reduzido em cerca de 60%", diz o químico Alexandre Cabral Craveiro, vice-presidente da empresa. Por esse desenvolvimento, a Polymar recebeu, em 1999, o prêmio nacional do Instituto Euvaldo Lodi (IEL), do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Conselho Nacional de Desen- volvimento Científico e Tecnológico

(CNPq). Pelos resultados alcançados nos últimos seis anos, a empresa rece- beu duas premiações de peso no quesi-

pequena empresa da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e de empre- sa graduada da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendi- mentos de Tecnologias Avançadas (An- protec), que reúne as incubadoras e parques tecnológicos do país.

Produção ampliada - Criada em 1997 por Craveiro e por Danilo Queiroz, então dois doutorandos em química orgânica da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Polymar ocupou origi- nalmente um galpão de 80 metros qua- drados no Parque de Desenvolvimen- to Tecnológico (Padetec), no campus da universidade. Foi lá que eles deram início às pesquisas com biopolímeros que envolveram a imobilização de cé- lulas e enzimas, separação de substân- cias e produção da fibra de quitina e de quitosana. Em abril de 2000, a empresa deixou a incubadora e instalou-se na periferia de Fortaleza, em uma planta industrial com mais de 1.600 metros de área construída e capacidade de proces- samento de 800 toneladas por ano de carapaças in natura.

"No início, nós ganhamos grande impulso fornecendo quitosana para a concorrência", conta Craveiro. Como interessava à Polymar firmar-se como produtora de matéria-prima no país, a empresa começou a fornecer quitosana para outras empresas, "o que para al-

vista mercadológico", diz. Há dois anos, passou também a fabricar produtos com marcas específicas para seus con- correntes, e o mercado expandiu-se no país. A evolução, porém, não foi fácil. "Tudo o que é inovador paga um preço elevado, desde a confiança no produto até o processo de aprovação e uso", ava- lia Craveiro. No início, a empresa não conseguia obter o registro para comer- cializar seus produtos no país. Nesse impasse, a Polymar resolveu montar uma filial em Miami - um processo rá- pido e fácil, segundo seu vice-presi- dente - e passou a exportar a matéria- prima para lá, importando depois o produto acabado e devidamente regis- trado. Esse fato acabou funcionando como uma pressão a mais pela regula- mentação dos produtos no Brasil.

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Page 82: Era uma vez na América do Sul

A comercialização dos produtos no varejo começou autorizada por porta- rias baseadas em protocolos obtidos na Agência Nacional de Vigilância Sa- nitária (Anvisa), mediante a apresen- tação de estudos clínicos de eficácia e segurança da quitina e da quitosana, feitos no Japão, Europa e Estados Uni- dos. Embora ressalte que os cuidados da Anvisa são inteiramente justificados, "porque produtos para consumo hu- mano precisam ser rigorosamente tes- tados", Craveiro defende a implantação de um tratamento diferenciado para as

mais agilidade dos órgãos públicos no reconhecimento de produtos origi- nados principalmente nas empresas ligadas às universidades e parques tec- nológicos. "Muitas vezes, projetos ino- vadores desenvolvidos por pesquisado- res competentes e que poderiam trazer benefícios potenciais para a população ficam prejudicados devido à demora na aprovação."

Nos Estados Unidos, essa aprovação é muito mais rápida, graças a uma lei de 1994 (Dictary Supplement Health and Education Act - Dshea - ou Pro- cedimento de Saúde e de Educação do Suplemento Dictético) que criou uma nova categoria de produtos, denomina-

fera de ação direta da Eood and Drug Administration (EDA), a agência do governo norte-americano responsável pela liberação de novos alimentos in- dustrializados e medicamentos. Essa medida permitiu que os fabricantes di- vulgassem as propriedades funcionais de seus produtos, desde que baseadas em evidências científicas. De acordo com Craveiro, vários grupos de pesqui- sadores em universidades e centros de pesquisa internacionais estão engaja- dos no estudo das ações e propriedades desses alimentos.

Além dos problemas de regis- tro, a Polymar enfrentou outros obstáculos, como a

falta de linhas de apoio . financeiro para empre-

sas de pequeno porte. Para driblar as dificuldades, foi preciso criar e impro- visar, como ocorreu no projeto e no de- senvolvimento de equipamentos para a fabricação dos produtos. Assim, tan- ques de fibra de vidro foram adaptados para as etapas iniciais da produção, construíram reatores e um moinho industrial - em parceria com uma empresa de engenharia mecânica - e projetaram estufas de secagem, que aproveitam a energia solar e eólica, abundantes no Ceará.

A perspectiva atual da Polymar é desenvolver produtos em esquema de parceria com outras empresas. É o caso da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- pecuária (Embrapa), em que foram es- tabelecidas duas linhas de pesquisa: a primeira estuda o uso da quitosana (também possui propriedades bacteri- cidas e fungicidas) na proteção às se- mentes de trutas contra fungos invasores e a segunda desenvolve uma película protetora que aumenta a vida útil de frutas e verduras na prateleira. Em uma parceria com a Petrobras, a proposta é utilizar a quitosana no combate à polui- ção do mar provocada por derramamen- to de petróleo. Quando aplicada sobre a massa de óleo, essa substância forma um aglomerado que facilita a remoção. Os testes iniciais foram feitos pela Pe- trobras em 2003, e outros, em maior es- cala, estão previstos para este ano.

A Polymar alcançou, no ano passa- do, um faturamento de R$ 5,4 milhões, diante dos R$ 2,55 milhões de 2002, dos quais cerca de 12% são aplicados em pesquisa e desenvolvimento. A par- ticipação das exportações nesse mon- tante ainda é pequena e concentra-se nos países do Mercosul, mas deve am- pliar-se, segundo Craveiro, que desta- ca negociações promissoras com Fran-

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TECNOLOGIA

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Empresa fabrica suplementos alimentares com matéria-prima extraída de crustáceos

abeça de camarão, casca de lagosta e carapaças de caranguejo, abundantes e

i rejeitadas pela indústria pesqueira do Ceará, não

têm mais o lixo como destino final. Elas são transformadas em suplementos ali- mentares, na forma de cápsulas e com- primidos, que funcionam como coad- juvantes na redução do colesterol, na perda de peso e no controle de doenças como a artrose. As substâncias benéficas presentes nos rejeitos dos crustáceos são a quitina e a quitosana, dois biopolíme- ros que possuem propriedades quími- cas e biológicas importantes. Segundo estudos realizados nos Estados Unidos e no Japão, a quitosana promove a cap- tura e a eliminação de gorduras por meio de um mecanismo de excreção de ácidos biliares. Além da área da saúde, a quitosana é utilizada em processos de

purificação e tratamento de água, na manufatura de lentes de contato e no ramo cosmético, como ingredien- te na fabricação de xampus, loções e cremes protetores.

Os biopolímeros ex- traídos dos crustáceos são a razão do sucesso da empre- sa cearense Polymar. Ela já possui 11 patentes de pro- dutos e processos que en-

volvem a quitina e a quitosana. Entre elas estão uma técnica desenvolvida na empresa para a obtenção dessas subs- tâncias, os próprios alimentos funcio- nais com formulação e metodologia de processamento e uma membrana para uso na regeneração de tecidos e nas ci- catrizações. Uma das inovações, tam- bém patenteada, desenvolvida pela Po- lymar, está no reaproveitamento de um dos reagentes usados para a extração da quitina e na obtenção da quitosana, o hidróxido de sódio. "A reutilização dessa substância química é perfeita dos pontos de vista ambiental e econômico, porque, além de eliminar os resíduos, o custo final de produção é reduzido em cerca de 60%", diz o químico Alexandre Cabral Craveiro, vice-presidente da empresa. Por esse desenvolvimento, a Polymar recebeu, em 1999, o prêmio nacional do Instituto Euvaldo Lodi (IEL), do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Conselho Nacional de Desen- volvimento Científico e Tecnológico

(CNPq). Pelos resultados alcançados nos últimos seis anos, a empresa rece- beu duas premiações de peso no quesi-

pequena empresa da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e de empre- sa graduada da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendi- mentos de Tecnologias Avançadas (An- protec), que reúne as incubadoras e parques tecnológicos do país.

Produção ampliada - Criada em 1997 por Craveiro e por Danilo Queiroz, então dois doutorandos em química orgânica da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Polymar ocupou origi- nalmente um galpão de 80 metros qua- drados no Parque de Desenvolvimen- to Tecnológico (Padetec), no campus da universidade. Foi lá que eles deram início às pesquisas com biopolímeros que envolveram a imobilização de cé- lulas e enzimas, separação de substân- cias e produção da fibra de quitina e de quitosana. Em abril de 2000, a empresa deixou a incubadora e instalou-se na periferia de Fortaleza, em uma planta industrial com mais de 1.600 metros de área construída e capacidade de proces- samento de 800 toneladas por ano de carapaças in natura.

"No início, nós ganhamos grande impulso fornecendo quitosana para a concorrência", conta Craveiro. Como interessava à Polymar firmar-se como produtora de matéria-prima no país, a empresa começou a fornecer quitosana para outras empresas, "o que para al-

vista mercadológico", diz. Há dois anos, passou também a fabricar produtos com marcas específicas para seus con- correntes, e o mercado expandiu-se no país. A evolução, porém, não foi fácil. "Tudo o que é inovador paga um preço elevado, desde a confiança no produto até o processo de aprovação e uso", ava- lia Craveiro. No início, a empresa não conseguia obter o registro para comer- cializar seus produtos no país. Nesse impasse, a Polymar resolveu montar uma filial em Miami - um processo rá- pido e fácil, segundo seu vice-presi- dente - e passou a exportar a matéria- prima para lá, importando depois o produto acabado e devidamente regis- trado. Esse fato acabou funcionando como uma pressão a mais pela regula- mentação dos produtos no Brasil.

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A comercialização dos produtos no varejo começou autorizada por porta- rias baseadas em protocolos obtidos na Agência Nacional de Vigilância Sa- nitária (Anvisa), mediante a apresen- tação de estudos clínicos de eficácia e segurança da quitina e da quitosana, feitos no Japão, Europa e Estados Uni- dos. Embora ressalte que os cuidados da Anvisa são inteiramente justificados, "porque produtos para consumo hu- mano precisam ser rigorosamente tes- tados", Craveiro defende a implantação de um tratamento diferenciado para as

mais agilidade dos órgãos públicos no reconhecimento de produtos origi- nados principalmente nas empresas ligadas às universidades e parques tec- nológicos. "Muitas vezes, projetos ino- vadores desenvolvidos por pesquisado- res competentes e que poderiam trazer benefícios potenciais para a população ficam prejudicados devido à demora na aprovação."

Nos Estados Unidos, essa aprovação é muito mais rápida, graças a uma lei de 1994 (Dictary Supplement Health and Education Act - Dshea - ou Pro- cedimento de Saúde e de Educação do Suplemento Dictético) que criou uma nova categoria de produtos, denomina-

fera de ação direta da Eood and Drug Administration (EDA), a agência do governo norte-americano responsável pela liberação de novos alimentos in- dustrializados e medicamentos. Essa medida permitiu que os fabricantes di- vulgassem as propriedades funcionais de seus produtos, desde que baseadas em evidências científicas. De acordo com Craveiro, vários grupos de pesqui- sadores em universidades e centros de pesquisa internacionais estão engaja- dos no estudo das ações e propriedades desses alimentos.

Além dos problemas de regis- tro, a Polymar enfrentou outros obstáculos, como a

falta de linhas de apoio . financeiro para empre-

sas de pequeno porte. Para driblar as dificuldades, foi preciso criar e impro- visar, como ocorreu no projeto e no de- senvolvimento de equipamentos para a fabricação dos produtos. Assim, tan- ques de fibra de vidro foram adaptados para as etapas iniciais da produção, construíram reatores e um moinho industrial - em parceria com uma empresa de engenharia mecânica - e projetaram estufas de secagem, que aproveitam a energia solar e eólica, abundantes no Ceará.

A perspectiva atual da Polymar é desenvolver produtos em esquema de parceria com outras empresas. É o caso da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- pecuária (Embrapa), em que foram es- tabelecidas duas linhas de pesquisa: a primeira estuda o uso da quitosana (também possui propriedades bacteri- cidas e fungicidas) na proteção às se- mentes de trutas contra fungos invasores e a segunda desenvolve uma película protetora que aumenta a vida útil de frutas e verduras na prateleira. Em uma parceria com a Petrobras, a proposta é utilizar a quitosana no combate à polui- ção do mar provocada por derramamen- to de petróleo. Quando aplicada sobre a massa de óleo, essa substância forma um aglomerado que facilita a remoção. Os testes iniciais foram feitos pela Pe- trobras em 2003, e outros, em maior es- cala, estão previstos para este ano.

A Polymar alcançou, no ano passa- do, um faturamento de R$ 5,4 milhões, diante dos R$ 2,55 milhões de 2002, dos quais cerca de 12% são aplicados em pesquisa e desenvolvimento. A par- ticipação das exportações nesse mon- tante ainda é pequena e concentra-se nos países do Mercosul, mas deve am- pliar-se, segundo Craveiro, que desta- ca negociações promissoras com Fran-

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■ TECNOLOGIA

ENGENHARIA ELÉTRICA

Acerto de papel Sensor eletrônico elimina prejuízos no processo de secagem da pasta de celulose

DlNORAH ERENO

Sensores eletrônicos desenvol- vidos com tecnologia nacio- nal, após cinco anos de pes- quisa, mostraram-se eficazes para melhorar o processo de

fabricação de papel e reduzir os prejuí- zos decorrentes de desgaste mecânico de equipamento durante a fase de pré- secagem. Nessa etapa, anterior à trans- formação da pasta de celulose em papel, o excesso de água precisa ser elimina- do. Para que isso ocorra, a pasta é co- locada sobre uma tela de fibras plás- ticas, sustentada e transportada por grandes cilindros. A monitoração é feita por um sistema composto de um sensor mecânico, também chamado de apalpador, que funciona como uma haste retangular encostada na borda da tela, percebendo o posicionamento e os deslocamentos laterais. O contro- le é feito com o acionamento pneumá- tico nos cilindros, deslocados para frente ou para trás, de forma a manter, o máximo possível, a tela centrada no equipamento. A tarefa é bastante com- plicada por conta das dimensões da tela, que chega a medir até 60 metros de comprimentos por 5 metros de lar- gura. Ocorre que o permanente conta- to do sensor mecânico com a tela em movimento provoca atrito e, como conseqüência, tanto ela como o apal- pador se desgastam. Em alguns casos, até o funcionamento de todo o equi- pamento fica comprometido, causan- do sérios prejuízos à indústria de pa- pel no processo produtivo, não só pelo elevado custo da tela, mas, principal-

mente, pelo tempo de parada da má- quina para manutenção.

A solução desenvolvida pela Akros Tecnologia, uma pequena empresa de São José dos Campos (SP), baseia-se em um sistema que controla automati- camente o posicionamento da tela por meio de um sistema óptico. "Dessa for- ma, a tela é colocada na posição deseja- da sem haver nenhum contato com o apalpador, evitando desgastes da tela e do equipamento", diz o engenheiro ele- trônico Benedito Carlos da Silva, um dos sócios da Akros e coordenador do projeto financiado pela FAPESP dentro do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). O siste- ma, instalado junto à tela, é composto de um sensor que emite um feixe de la- ser e um refletor. A intensidade do feixe refletido mostra a posição da tela. Essa informação segue, via cabo de fibra óp- tica, até um microcontrolador que per-

0 PROJETO

Sistema Óptico de Posicionamento Automático de Telas (Sopat)

MODALIDADE Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE)

COORDENADOR BENEDITO CARLOS DA SILVA -Akros Tecnologia

INVESTIMENTO

R$ 206.400,00

cebe as variações e envia comandos para o módulo de acionamento pneu- mático, responsável pelo posiciona- mento da tela na condição ideal de funcionamento.

Silva conta que a idéia de desenvol- ver o Sistema Óptico de Posicionamen- to Automático de Telas (Sopat) surgiu durante uma visita profissional a uma empresa fabricante de papel, em 1998, quando ouviu relatos das limitações do sistema mecânico. A Akros, nessa épo- ca, trabalhava principalmente no de- senvolvimento de novos produtos e na construção de máquinas para vários ni- chos industriais, depois de sentir a re- dução dos projetos dos setores aero- náutico e aeroespacial, áreas que eram o foco da empresa quando ela foi cria- da em 1993. Assim, a indústria de papel interessava a Akros e Silva expôs aos seus sócios, um engenheiro naval e ou- tro com formação mecânica e aeronáu- tica, a proposta de desenvolver o siste- ma de controle eletrônico.

Os engenheiros logo perceberam que não poderiam usar os sensores existentes no mercado porque durante a fase de secagem da pasta as tempera- turas médias chegam acima de 100 °C e o ambiente fica carregado de vapores químicos. Por isso, a escolha foi para o desenvolvimento de sensores com fi- bra óptica, imunes à interferência ele- tromagnética e resistentes a ambientes agressivos. As unidades eletrônicas (transmissor, receptor e microcontro- lador) ficam localizadas fora da máqui- na, enquanto os sensores e as fibras óp-

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Emissor de laser (em azul) e o refletor (abaixo): informações ao microcontrolador (ao fundo)

ticas operam dentro do equipamento porque resistem às condições adversas.

Testes reais - Na época da apresenta- ção do projeto PIPE, em 1998, a Akros voltava a prestar serviços para a Em- braer, contratada para trabalhar em cálculos e projetos na nova família de jatos regionais. Mas isso não a impediu de dedicar-se ao Sopat. O sistema des- pertou o interesse de algumas fabri- cantes de papel, mas o grande obstácu- lo encontrado até agora para instalação do sensor nas fábricas é a condição de operação das máquinas produtoras de papel que trabalham até 50 dias sem in- terrupção e apenas um dia de parada, quando todos os acertos, trocas de pe- ças e reparos têm de ser feitos. Por isso, só partes do sistema foram testadas em condições reais de uso, aproveitando-se dessas paradas.

As dificuldades, no entanto, não desanimaram os sócios da Akros. Eles contataram um dos principais fabri- cantes do equipamento industrial, a alemã Voith. "Foi feita uma apresen- tação do sistema a técnicos da empre- sa que ficaram bastante interessados", conta Silva. "Mesmo em nível mundial, o Sopat não tem um equipamento si- milar, que incorpore um microcon- trolador. O software usado no equipa- mento permite a adequação do sistema aos mais diversos tipos de máquinas." O mercado para o Sopat, segundo da- dos da Associação Brasileira de Celu- lose e Papel (Bracelpa), é bastante pro- missor. São 220 empresas fabricantes de papel e celulose distribuídas por 16 es- tados brasileiros. Como cada uma das fábricas tem de dois a seis setores de pré- secagem, e em cada um são necessários vários sensores (entre dois e oito), a estimativa de demanda potencial é da ordem de 5 mil equipamentos. A ado- ção do sistema eletrônico não signi- fica aposentar definitivamente o me- cânico, que fica desligado mas ainda instalado na máquina. Em situações de emergência, como falta de energia elé- trica ou falha de componentes do Sopat, o apalpador é liberado auto- maticamente e o funcionamento do sis- tema antigo é restabelecido. •

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HUMANIDADES

ARTES CÊNICAS

do ator Tese revela a evolução da importância dos figurinos no teatro moderno

CARLOS HAAG

Se no cotidiano, diz o ditado, o hábito faz o monge, no palco ele é capaz de criar condes, du- ques, mulheres do povo, nin- fas e deusas, tudo o que a ima-

ginação de um cenógrafo desejar. "Os figurinos são a ponte de ligação entre o ator e o olho do espectador. São linhas, formas, cores e significados que têm a função de ligar ator e platéia, dando pis- tas sobre aquele que o veste, manifestan- do até mesmo, externamente, formas internas de um personagem", explica Fausto Viana, que defendeu em março tese de doutorado sobre o tema O figu- rino das renovações cênicas do século 20: um estudo de sete encenadores. Com ela entendemos a mágica teatral dos há- bitos em criar, diante dos nossos olhos, os monges.

Analisando o trabalho da criação de figurinos de Appia, Craig, Stanislavski, Artaud, Brecht, Reinhardt e Mnouchki- ne, Viana revela a importância dos tra- jes no desenvolvimento da arte de atuar e de como eles foram um componente importante na busca por um teatro mo- derno, que procura a arte total, feita de aparente simplicidade, mas com imensa sutileza e força expressiva. O pesquisa- dor organizou uma mostra de figuri- nos de seis das peças analisadas em seu doutorado. A exposição, Trajes e cena, fica em cartaz, no Theatro Municipal de São Paulo, até 21 de junho, no Salão dos Arcos. Lá estão os figurinos de Os Cenci (Artaud), 1789 (Mnouchkine), As bodas de Fígaro (Stanislavski), Sonhos de uma noite de verão (Reinhardt) e Hamlet (Craig). "A principal caracterís- tica do trabalho deles é a busca pelo

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Roupas de Sonho de uma noite de verão (alto), Os Cenci (abaixo, a esq.) e, de novo, Sonho (abaixo, à dir.): expressividade

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todo, pela integração de todos os ele- mentos que integram um espetáculo. O figurino faz parte dessa procura, pois, além de integrar-se ao todo, ele veste e revela o núcleo mais importante do es- petáculo: o ator e seu corpo", diz.

Curiosamente, todo o pro- cesso teve início com uma constatação, hoje, óbvia: o mundo e, é claro, os atores que povocam esse mundo

cênico são tridimensionais. Por sécu- los, encenadores se contentaram com figurinos belos e vazios e com cenários compostos de telões pintados. Todos os encenadores pesquisados por Viana perceberam que havia uma necessida- de de mudança: era preciso uma nova cena, mais expressiva, para tirar o es- pectador da passividade. Todas as artes deveriam estar a serviço de um ideal maior do que a beleza: a adequação à dramaturgia. "Era preciso expressar a verdade cênica de dentro para fora, do interior do artista para seu exterior, co- mo uma verdade vivida e não represen- tada falsamente."

O pioneiro nesse novo caminho foi um tímido suíço que pouco contato prático teve em sua vida com o mundo teatral, embora suas idéias tenham in- fluenciado os criadores que o seguiram: Appia. Um apaixonado por Wagner, ele percebeu os limites da encenação bidi- mensional e as possibilidades de se reu- nir as artes por meio de um jogo de lu- zes, formas e cores. "Tudo o que é falso no palco desagrada a Appia. O que ele desejava era redirecionar o teatro, tra- balhando-o como uma obra de arte viva que reúne todas as outras para atingir os espectadores", observa Viana.

Quem, em verdade, levou ao palco suas teorizações foi um ator e diretor inglês, Edward Gordon Craig, que, a partir da pintura e da escultura, preten- deu lutar contra as formas de interpre- tação e representação arcaicas de seu tempo. E fez um dueto (algo problemá- tico, por sinal) com um russo genial que igualmente queria mudar o teatro, Cons- tantin Stanislavski. Juntos, montaram um Hamlet (em 1911, no Teatro de Ar- te de Moscou) antológico em que Craig pôde tentar romper a relação estática entre palco e platéia e defender a uni- versalidade e a simplicidade dos figuri- nos como força dramatúrgica. O passo seguinte ficou para um francês, Antonin

Artaud, que igualmente queria o novo e admirava a pintura como inspiração.

A ponto mesmo de empregar um pintor (embora ele, Artaud, fosse reco- nhecido como "um pintor no meio de comediantes"), Balthus, para realizar a cenografia e os figurinos de seu espetá- culo, Os Cenci. "O ideal da 'limpeza cê- nica', a ausência de excessos, o uso de elementos que sejam significativos, que tenham uma simbologia evidente são opções appianas que Artaud incorpora ao seu trabalho", nota Viana. Artaud deseja, mais do que seus antecessores, a integração do figurino na ação e, para tanto, faz opções: o figurino, por exem- plo, deveria ser o menos atual possível, uma "rejeição das modas atuais no que elas encerram de exterior e passageiro." Além disso, Artaud é pioneiro em tra- balhar com elementos orientais, uma característica que marcará os encena- dores posteriores. Ao analisar o Teatro de Bali, traz para seu teatro o ideal do figurino como mais do que uma roupa, antes um instrumento ritual.

Bertolt Brecht levará esse novo con- ceito ao extremo em suas peças, aberta- mente fincadas em análises do teatro oriental e beneficiárias de suas conquis- tas. Para o alemão, nada deve estar em cena que não mereça estar em cena. A simplificação é a palavra de ordem. "Mas é uma simplicidade profundamente so- fisticada e surgida da interação entre to- dos os que compõem o espetáculo. Você vê um traje de uma peça de Brecht e pensa que poderia tê-lo feito em casa. Mas é ilusão, pois havia um planeja- mento cuidadoso, de meses, para que uma roupa tivesse a textura ou a cor que procurava para seus personagens", diz Viana. A razão disso? Está nas palavras

0 PROJETO

0 Figurino das Revoluções Cênicas do Século 20: Um Estudo de Sete Encenadores

MODALIDADE Bolsa de Doutorado

COORDENADORA INGRID D0RM1EN KOUDELA - Escola de Comunicações e Artes/USP

BOLSISTA FAUSTO VIANA - Escola de Comunicações e Artes/USP

de seu grande parceiro de cenografia: "Copiar a realidade não é suficiente; a realidade precisa não só ser reconheci- da, mas também entendida". Daí, por exemplo, todo o significado da colher que a protagonista de Mãe coragem car- rega no bolso de seu figurino. "O traje de um personagem brechtiano não é um traje literal. É uma linguagem que a rou- pa fala com o homem, as memórias, as misérias, as lutas que caíram sobre ele", na definição de Roland Barthes.

Embora epígonos de teatros opos- tos, o mesmo ideal de cuidado com o figurino está presente nas criações de Stanislavski que, segundo Viana, con- tinua sendo mal interpretado como um mero realista-naturalista. "Eles têm, para Stanislavski, um papel vital no processo de caracterização e são importantes para ajudar na nova rela- ção entre atores e espectadores", nota o pesquisador. "Quando vocês tiverem criado um papel, saberão o quanto a peruca, a barba, as roupas são impor- tantes para um ator criar um persona- gem. Um traje deixa de ser uma coisa simples e adquire, para o ator, uma es- pécie de dimensão sagrada", escreveu o russo. O hábito era fundamental para que um ator pudesse criar, no seu in- terior, um monge em toda a sua dimen- são psicológica e externa.

Foi, no entanto, Max Reinhardt que soube chegar a uma medida ideal entre o que o ator pretendia e o público dese- java. "O que eu tenho em mente é um teatro que vá trazer alegria às pessoas", dizia. Para tanto, aumentou o status do figurinista e o deixou em igualdade com o iluminador, o cenógrafo e todos os demais envolvidos numa produção, a fim de que se atingisse a obra perfeita, capaz de "dar alegria" ao público.

Assim como ele, Ariane Mnouchki- ne, a única encenadora viva pesquisada por Viana, a diretora do Thêátre du So- leil, considera os figurinos "como seus amigos". "Trate bem deles. Eles são seus inimigos se são malfeitos, se não ficam bem juntos. A pele pura é difícil de usar com máscaras", costuma dizer a france- sa. "Os atores têm toda a liberdade de criação, o que faz com que o projeto inicial mude. Durante todo o processo de ensaio, eles têm à sua disposição as costureiras e muitos tecidos. De acordo com a necessidade do ator e da encena- ção, eles pedem para que o traje seja feito", conta Viana. •

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Vagas para rapazes e moças

I ia 20 de junho de 1923 foi noite de conferências na Villa Kyrial. Reunidos na residência do senador Freitas Valle, na Vila Mariana, em São Paulo, um grupo animado de artistas e intelectuais mais uma vez discutia os rumos culturais do país. De repen-

te, durante a palestra do escritor Mário de Andrade, Freitas Valle levantou-se da cadeira que usava como um trono para comandar os debates e, num grande gesto dramático, foi em direção à pin- tora Anita Malfatti. Disse que ela embarcaria para a Europa com uma bolsa do Pensionato Artístico. Anita naquele momento não sabia de nada. Menos de dois meses depois, a pintora embarcava no navio que a levaria para uma longa estada na Europa.

Durante cerca de 20 anos, entre 1912 e 1931, o Pensionato Ar- tístico do Estado de São Paulo ajudou artistas plásticos e músicos

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a desenvolverem suas habilidades em grandes escolas e conservatórios da Eu- ropa. Anita Malfatti, o escultor Victor Brecheret, o pintor Túlio Mugnaini, o maestro Francisco Mignone ou o maestro João de Souza Lima partiram para estadas de muitos anos fora do país, que foram decisivas para suas car- reiras. Mapear a contribuição do pen- sionato para a história cultural e artísti- ca de São Paulo é o objetivo do trabalho de pós-doutoramento da pesquisado- ra Mareia Carmargos, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).

"Quero buscar respostas para as questões sobre esse período que foi

lectual paulista", diz Mareia. "Contudo, também quero mostrar como o pen- sionato, na figura de Freitas Valle, cer- ceava e impunha parâmetros estéticos aos pensionistas." Para realizar o tra- balho, ela teve acesso a uma documen- tação inédita - o acervo do próprio Freitas Valle, que agora está em seu poder.

"Infelizmente uma grande parte do acervo desapareceu depois que ele morreu", afirma a pesquisadora. O se- nador guardava as cartas, esbo- ços, fotos e quadros numa torre na Villa Kyrial. Mareia Camargos é au- tora de Villa Kyrial, crônica da Belle Épo- que paulistana (Senac, 2000), resultado de sua tese de doutoramento em História Social pela USP. No livro, ela analisa o papel que a residência do senador Frei- tas Valle teve como centro irradiador da cultura da cidade. A Villa Kyrial fun- cionava seguindo os moldes dos salões franceses. Lá aconteciam conferências, recitais de música, almoços e jantares solenes, degustação de vinhos ou mes- mo animadas partidas de pingue-pon- gue em que se misturavam artistas de diferentes tendências, jornalistas, pia- nistas, maestros, políticos. "É o único salão organizado, único oásis a que a gente se recolha semanalmente, livran- do-se da vida chã", dizia na época o es- critor Mário de Andrade sobre a chácara da Vila Mariana. "Na verdade, esse novo projeto é um desdobramento na- tural do livro Villa Kyriaf, conta Mar-

La rentrée (1925), de

Anita Malfatti, e Porteuse de parfums

(1925), ao lado, de Brecheret

cia. Recebi muitos pedidos de ajuda por parte de outros pesquisadores inte- ressados em conhecer melhor como funcionava o sistema do Pensionato Artístico de São Paulo." Ela acaba de lançar pela Companhia das Letras Em que ano estamos?" (192 págs., R$ 29), sobre o crescimento de São Paulo.

O Pensionato Artístico do Estado de São Paulo foi homologado por meio do Decreto n° 2.234, de 1912. Sua cria- ção foi defendida em um relatório por Altino Arantes, então secretário do In- terior e responsável pelas bolsas, como essencial para o desenvolvimento da produção artística do país, já que São Paulo não possuía instituto de ensi- no superior, nem de artes plásticas nem de música.

Os artistas contemplados recebe- riam uma passagem de primeira clas-

se para a Europa e bolsa de estudos no valor de 500 francos mensais para fica- rem em Roma ou Paris por cinco anos, que podiam se estender por mais dois. Se o custo de vida na Europa aumen- tasse muito, como aconteceu durante a Primeira Grande Guerra, a pensão era reajustada. O governo ainda arcava com as despesas de envio para o Brasil das obras feitas na Europa. "No caso das esculturas de Brecheret, por exem- plo, esse transporte envolvia uma enor- me soma de dinheiro", diz Mareia.

Em contrapartida, os artistas ti- nham de se comprometer a mandar para o Brasil esboços, obras originais, programas de concertos de músicas apresentados lá, inscrições em salões

são de seus estudos. "Muitos remetiam o material diretamente para a Villa Kyrial", observa Mareia. "E Freitas Val- le ia acumulando esse material na tor- re de sua casa."

Não era fácil conseguir uma bolsa do pensionato. Na verdade, apesar de o decreto estabelecer que deveria haver um rodízio entre os membros da Co- missão Fiscal do Pensionato - entre os participantes estavam Ramos de Azeve- do, Oscar Rodrigues Filho, Olívia Gue- des Penteado, João Múrcio Sampaio Viana -, a decisão de se enviar ou não

um candidato ficava nas mãos de Freitas Valle. Ao contrário do

que costuma acontecer nos dias de hoje, a estada

na Europa dependia de um favor pes-

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soai de um membro do governo. Se o senador Freitas Valle não simpatizasse ou conhecesse o candidato, as portas estavam fechadas.

M areia Camargos re- cuperou um artigo publicado na Gaze- ta Artística de São Paulo, de janeiro de

1912, em que o sistema de distribuição de bolsas pelo governo era bastante cri- ticado: "O Estado, para servir ao depu- tado X, em conluio com o secretário F, auxiliados ambos por um membro da comissão, destina o óbulo a que tem direito o mendigo da arte, o sedento de luz, a um filho de família que dispõe de recursos próprios e desbriadamente pe- chincha caridade, ou a um menino de bons institutos, de boa vontade, mas vazio, incapaz", dizia o articulista.

Essa fusão entre a esfera privada e o poder público era vista como natural naquela época em que os membros da elite econômica do país se revezavam no poder. Esse ambiente, ao mesmo tempo conservador e de vanguarda, em que se sentavam à mesma mesa tanto um defensor da arte acadêmica, como Freitas Valle, e um dos mais conhecidos

escritores do modernismo, como Má- rio de Andrade, é o que torna mais im- portante o trabalho da pesquisadora. Interessada em buscar as contradições e ambigüidades do período, Mareia aca- ba trazendo de volta uma instituição fundamental da história de São Paulo. O sistema do pensionato, dessa manei- ra, espelha as escolhas e impasses dos que estavam preocupados em transfor- mar a cidade numa metrópole.

Para alguns artistas que freqüenta- vam os saraus da Villa Kyrial, a ida à Eu- ropa foi um desdobramento natural de suas carreiras. Foi o caso dos maes- tros Francisco Mignone e João de Sou- za Lima. Ambos atribuem exclusivamen- te suas estadias no Velho Continente a Freitas Valle. Mignone pegou o navio na última hora, em 1919, por causa da morte prematura, devido à gripe espa- nhola, de Romeu Pereira. "O senador costumava dizer que, neste caso, Deus fechara uma porta para abrir um por- tão", conta Mareia Camargos.

No caso de Souza Lima, o convite veio ao final de uma recepção em ho- menagem a Xavier Leroux, maestro e professor de composição do Conserva- tório de Paris. Ao ver o jovem pianista tocando uma música para acompanhar

um poema de Freitas Valle, o maestro francês encantou-se com suas habili- dades. "Imediatamente, o senador ofe- receu uma bolsa de estudos a Souza Lima, que partiu para uma estadia pro- longada", diz a pesquisadora.

Nas cartas que os músicos enviavam regularmente à Villa Kyrial, ambos con- tam seus progressos e se referem às noi- tes na Villa. Souza Lima lembra o pessoal da Lyra, isto é, o grupo de músicos que se reunia às quartas-feiras em saraus mu- sicais. Já Mignone faz referência a uma nova maneira de musicar o Hino da Villa Kyrial, que, por sinal, teve diversas ver- sões compostas por diferentes músicos.

Para os pintores brasileiros com bolsa do pensionato que iam à Europa o destino certo em Paris era a Académie Julien. Fundada em 1868 por Rodolph Julien, a escola era um grande ateliê envidraçado no qual os estudantes pin- tavam um mesmo modelo. Até mesmo Tarsila do Amaral visitou a Académie Julien e trouxe a experiência para o Bra- sil em 1922, quando se juntou a Anita no Grupo dos Cinco, que reunia, além das duas pintoras, Mário e Oswald de Andrade e Menotti dei Picchia.

No caso de Victor Brecheret e Ani- ta, as coisas não foram tão fáceis. O es-

Modelo vivo na Académie Julien: ateliê era destino de muitos bolsistas

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cultor italiano teve de contar com a ajuda do embaixador Souza Dantas, que interveio em seu favor em 1919. "Brecheret já residia em Roma desde 1913, onde estudava com a mesada enviada por uma tia idosa", diz Mareia. Depois do pedido do embaixador, a bolsa veio, em 1921. "Freitas Valle con- cedeu a bolsa contrariando, inclusive, o presidente do Estado, Washington Luís, que era avesso à idéia."

B recheret, que faria parte da turma dos modernis- tas, teve de seguir os regu- lamentos do pensionato para ficar na Europa. Para

tanto, ele usava um estratagema pe- culiar. Pouco antes de pedir uma re- novação ou aumento de pensão, ins- crevia-se num dos salões de arte acadêmica de Paris, bem ao gosto de Freitas Valle. No resto do tempo, o es- cultor expunha ao lado dos amigos no Salon d'Automne, no Salon des Tule- ries ou no Salon des Indépendents. Com isso, o escultor conseguiu ao mesmo tempo manter a bolsa de estu- dos e as boas relações com Freitas Val- le - e, além disso, continuar fazendo arte moderna.

0 PROJETO

0 Pensionato Artístico (1912-1931) na Construção da História Cultural Paulistana

MODALIDADE Bolsa de Pós-doutorado

COORDENADORA MARTA ROSSETTI BATISTA - Instituto de Estudos Brasileiros/USP

BOLSISTA

MáRCIA CAMARGOS - Instituto de Estudos Brasileiros/USP

Anita seguiu um outro caminho. Depois da exposição de 1917, em que a pintora chocou a cidade com sua pin- tura moderna, ela pouco a pouco foi seguindo um caminho próprio. "O ex- pressionismo, trágico e desesperado, forte, contundente, 'másculo' mesmo, como insiste Mário de Andrade, jamais poderia ser a fala espontânea de uma natureza tão frágil, tão feminina como a de Anita", escreveu o crítico e escritor Paulo Mendes de Almeida (De Anita ao museu, Perspectiva, 1976), que conhe- ceu de perto todos os personagens des-

sa história. "E por isso, penso, precisa- mente por isso, ela recuou", concluía.

E foi assim que Anita Malfatti, aos 34 anos, partiu para Europa com bolsa do pensionato em 1923. Suas preocu- pações já não eram as mesmas da me- nina que chocou a cidade em 1917. Os críticos costumam fazer uma diferença brutal entre os dois períodos da pintura de Anita. Muitos culpam o pensionato, com suas rígidas regras de estudo em ateliês acadêmicos, pelas mudanças na arte de Anita. Outros falam de uma vol- ta à pintura acadêmica depois dos arrou- bos da juventude. O interessante, con- tudo, é pensar que Anita representava os anseios de seu tempo. Os primeiros tempos do modernismo foram confu- sos e contraditórios, envolveram tanto jovens corajosos e impertinentes, nas figuras de Mário e Oswald de Andrade, como um mecenas conservador, autor de poesias simbolistas, o senador Frei- tas Valle. Quando Anita finalmente vol- tou ao Brasil, os tempos eram outros. O Pensionato Artístico seria dissolvido em 11 de abril de 1931, pouco depois da Revolução de 1930. Freitas Valle sairia de cena. E o modernismo entraria numa fase radical, misturando arte e política. Afinal, eram os loucos anos 30. •

Modernistas reunidos naVilIa Kyrial: conferências, saraus e pingue-pongue

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I HUMANIDADES

FOTOGRAFIA

O desfile da fé

brasileira Livro faz radiografia das festas religiosas nacionais

RENATA SARAIVA

Guardam-se as plumas e os paetês usados na avenida e entra-se no período da Quares- ma, criada para a penitência, o silêncio e o abandono dos prazeres mundanos. Não é preciso chegar a Semana Santa para se des-

cobrir que as festas religiosas brasileiras são tão ou mais exuberantes quanto o mais profano dos carnavais.

Lançado recentemente pela editora Metalivros, o livro Festas áefé (230 páginas, R$ 120) faz as vezes da passa- rela, reunindo imagens das mais distantes manifestações religiosas nacionais. Da devoção ao Padre Cícero, no Ceará, à festa da Nossa Senhora de Achiropita, dos descendentes de calabreses em São Paulo, tudo são cores, fantasias e alegorias: festa de Iemanjá, la- pinha, bumba-meu-boi, Corpus Christi, festa ju- nina, ritual de passagem dos índios.

Às belíssimas fotografias, feitas no decorrer de vinte anos por Rosa Gauditano, soma-se o texto de um profundo conhecedor da arte e da cultura brasileiras, Percival Tirapeli, da Universi- dade Estadual Paulista (Unesp), que se iniciou no assunto em 1968. A edição, bilíngüe, é amarrada pelo projeto gráfico de Dora Levy, que enfatiza o didatismo pretendido pelo autor.

"A linguagem é propositalmente simples e acessível, já que está voltada também para estrangeiros. Além disso, o livro foi distribuído em bibliotecas públicas em todo o território nacional", diz Tirapeli. Seu tex-

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Fé bem-humorada: festas seguem ciclos naturais da colheita e do plantio

to foi desenvolvido no decorrer dos últimos quatro anos, quando, além de já ter tido contato com as fotos de Rosa Gauditano, o pesquisador saiu a campo com a fotógrafa, clicando fes- tas e manifestações religiosas como a Festa do Divino, em São Luís do Parai- tinga, São Paulo.

"Embora Rosa já tivesse um gran- de acervo quando a Metalivros decidiu realizar o livro, ela voltou a alguns locais para registrar as transformações ocor- ridas nas manifestações", conta o pes- quisador. "Em São Luís do Paraitinga, por exemplo, ela tinha feito as pri- meiras fotos em 1984."

Além da preocupação com a atualidade das imagens, Festas de fé é marcado por uma divisão das fes- tas de acordo com a origem cul- tural de cada uma delas. Entre as ibéricas, baseadas no cristianismo popular, estão as celebrações de Natal (folias de reis, presépios, rei- sados, pastoris), a Semana Santa, as procissões (Corpus Christi e as que se dão sobre as águas), a Festa do Divino, as festas juninas, roma-

rias, santuários e outras. Já entre as ma- nifestações afro-brasileiras, estão con- gos, congadas, maracatus, lavagem do Bonfim e festa de Iemanjá.

O legado indígena está re- presentado pelos rituais de passagem dos Wai'a e por manifestações que mostram a permanência

da aculturação feita pelos portugue- ses. É o caso da Dança da Santa Cruz, que remete a um hábito dos primór- dios da Colônia, quando os jesuítas plantavam uma cruz no centro das al- deias indígenas, em redor da qual se deveria dançar.

Para que a contribuição européia não se resumisse à presença dos portugue- ses e espanhóis - não se pode esquecer que o período da união das Coroas esteve bastante presente na colonização brasileira -, Festas de fé ainda apresen- ta algumas festas religiosas italianas, como a famosa Achiropita, além das ho- menagens a Nossa Senhora de Casalu- ce, a mais antiga festa religiosa italiana em São Paulo, datada de 1900.

"A grande curiosidade das festas religiosas no Brasil é que elas seguem o calendário religioso europeu, de um lado, e os ciclos naturais do plantio e da colheita, de outro. Acontece que, co- mo as estações são diferentes nos tró- picos e na Europa, ocorrem discrepân- cias, como o hábito de associar o branco da neve ao Natal", explica Tirapeli.

Se a incongruência da neve está pre- sente em uma festa extremamente ur- bana como o Natal, outras caracterís- ticas naturais se sobrepõem às origens européias quando se fala em ritos e fes- tividades praticadas no interior do país, principalmente nas áreas rurais. São os casos das procissões fluviais e maríti- mas, que se realizam em quase todos os estados, e respeitam a vocação do país, voltado para o oceano e cortados por grandes rios. Exemplos são a Nossa Se- nhora dos Navegantes, no Rio Gran- de do Sul, e o Círio de Nazaré, do Pará, que passou a se estender para várias cidades ribeirinhas desde 1992. Tam- bém Iemanjá, deusa das águas, facili- tou a adaptação dos ritos de origem africana por aqui. •

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RESENHA

Uma obra ainda fecunda sobre o Brasil Artigos reavaliam a atualidade do pensamento de Gilberto Freyre

SlMONE MEUCCI

Gilberto Freyre está na moda? É o que

parece. Uma das manifes- tações mais visíveis da "ba- dalação" em torno do au- tor é a recente reedição de parte significativa da sua obra. No universo acadê- mico brasileiro também verificamos a elaboração de numerosas teses acerca de seus escritos. Críticos literários, sociólogos, antropólogos e historiadores ocupam-se em compreender as idéias do polêmico pernambucano.

A pergunta que segue esta constatação é inevitá- vel: por que esse repentino interesse por Gilberto Frey- re? A leitura dos artigos de Gilberto Freyre em quatro tempos pode nos ajudar a responder a esta indaga- ção. O livro contém uma amostra significativa dos trabalhos sobre o autor que estão sendo desenvolvi- dos hoje no Brasil. Os textos que o compõem foram apresentados na VII Jornada de Ciências Sociais re- alizada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Marília, em novembro de 2000.

Nas páginas deste livro, o que vemos são alguns dos melhores especialistas de diversas áreas de co- nhecimento reinterpretando tanto os escritos mais consagrados quanto os menos conhecidos de Frey- re. Procuram reconhecer suas influências e diálogos, chamam a atenção para determinados fatores expli- cativos explorados pelo sociólogo, investigam a re- cepção de suas obras, decifram conceitos, apontam paradoxos. Os textos representam muito bem o fe- nômeno recente de reavaliação crítica da obra de Freyre. Segundo os organizadores do livro, é possí- vel finalmente (agora que estamos mais distantes das polarizações ideológicas) que a interpretação da obra de Freyre seja mais criteriosa.

Por trás da variedade de temas e abordagens dos artigos (que atestam a complexidade do sociólogo que é objeto das análises), percebe-se um esforço para identificar a contribuição de Gilberto Freyre para re- velar (e, em alguns casos, ocultar) os processos sociais no Brasil. Destaco um dos artigos que é particular- mente representativo disso: o de Jessé Souza, cujo títu- lo emblemático é A atualidade de Gilberto Freyre.

Gilberto Freyre em quatro tempos

Ethel Volfzon Kosminsky, Claude Lépine e Fernanda Arêas Peixoto (organizadores)

Edusc/FAPESP/Unesp

380 páginas / R$ 49,00

O autor deste artigo pro- põe uma leitura alternativa de Casa-Grande & Senzala e So- brados e Mucambos. Para isso, lança mão de uma estratégia interessante: a de usar os da- dos descritos nas obras con- tra os argumentos do próprio Freyre. Deseja, assim, extrair uma contribuição para o en- tendimento das razões pelas quais não existem na socie- dade brasileira cidadãos, mas

apenas subcidaããos ou supercidadãos. Em primeiro lugar, Souza chama a atenção para

a singularidade da sociedade colonial brasileira, marcada por uma forma peculiar de escravidão caracterizada por uma identificação (socialmente condicionada) dos escravos com os valores e a von- tade do senhor. Este fenômeno permitiu, entre ou- tras coisas, que no Brasil escravocrata negros fossem feitos feitores ou capitães do mato (situação impen- sável na escravidão norte-americana).

Em seguida, Souza busca caracterizar o processo de modernização brasileiro. Constata que o Estado racional e o mercado capitalista foram instituições que, embora tenham ferido de morte o patriarcalis- mo, não foram capazes de criar a homogeneização das condições e oportunidades sociais.

É que, segundo Souza, uma continuidade do passado colonial dificultou a formação de uma ideo- logia igualitarista no Brasil: a escravidão. Ela insti- tuiu aqui um padrão perverso de inclusão e exclusão social. Por um lado, arremessou toda uma classe so- cial - a dos escravos - para fora da função produti- va. Por outro, criou um mecanismo de regulação da ascensão social, garantindo-a apenas para aqueles que se identificavam com os valores dominantes.

Esta discussão empreendida por Jessé Souza (cu- jo conteúdo apenas sugerimos) revela a fecundi- dade da reflexão sobre a obra de Freyre para a com- preensão do Brasil contemporâneo e responde por que, afinal, o interesse pela sua obra.

SIMONE MEUCCI é mestre em Sociologia, doutoranda em Ciências Sociais pelo IFCH/Unicamp e membro do Cen- tro de Estudos Brasileiros (CEB/Unicamp).

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Page 98: Era uma vez na América do Sul

LlUROS

A Revolução dos Cravos Lincoln Secco Alameda Casa Editorial / FAPESP / Cátedra Jaime Cortesão (U SP/Camões) 296 páginas / R$ 38,60

No aniversário dos 30 anos do movimento revolucionário de abril, que pôs fim à ditadura

em Portugal quase sem derramamento de sangue, a recém-nascida editora Alameda traz esse estudo pioneiro sobre a Revolução dos Cravos. Originalmente uma pesquisa de doutorado, o livro contou com o apoio da FAPESP e analisa como acabou o império colonial.

Alameda Casa Editorial: (11) 3862-0850 [email protected]

0 dilema preventivista Sérgio Arouca Unesp/ Fiocruz 272 páginas / R$ 35,00

Ultimo livro do deputado federal e secretário Nacional de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, originalmente tese de doutorado, esse estudo pretende criar uma teoria

social da saúde no Brasil. Usando elementos conceituais marxistas, Arouca quis criticar a concepção liberal e individualista de que se constituía a medicina preventiva brasileira, vista por ele como mais do que apenas uma estrutura médica e como um movimento ideológico que coloca em xeque a medicina tradicional.

Editora Unesp: (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br ou [email protected]

Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial Cristina Pompa Edusc/Anpocs 444 páginas / R$ 58,00

RELIGIÃO COMO TRADUÇÃO

Uma forma inovadora de analisar como se deu o contato civilizatório entre ameríndios e colonizadores

no Brasil. A pesquisadora reavalia a colonização padrão, vista em blocos monolíticos, e revela como houve, em verdade, uma sutil negociação entre as partes, uma verdadeira dinâmica ignorada pelos historiadores. Assim, a evangelização influenciada pelas culturas nativas.

Edusc: (14) 3235-7111 www.edusc.com.br ou [email protected]

0 outro lado da família brasileira Paulo Eduardo Teixeira Editora Unicamp 288 páginas/R$34,00

Focando seu estudo na região de Campinas, o pesquisador, que teve apoio da FAPESP, retrata o papel da mulher no movimento povoador

resultante das culturas do café e do açúcar. Com a ajuda de escravos e agregados, essas mulheres mantiveram a família, cuidaram de fazendas e de parentes pobres, em geral na condição de viúvas ou com os maridos em lugares distantes. Com o auxílio de exemplos reais, essas mulheres retornam à vida no estudo.

Editora Unicamp: (19) 3788-7235/7786 www.editora.unicamp.br ou [email protected]

Com os índios Wauja - objectos e personagens de uma colecção amazônica Aristóteles Barcelos Neto Museu Nacional de Etnologia 120 páginas/€ 10,00

Resultante de uma pesquisa que contou com o apoio da FAPESP, esse livro (há também um volume

em versão inglesa) foi editado em Portugal pelo Museu de Etnologia. Fruto do trabalho feito para a realização da exposição Os índios, nós, traz um fascinante retrato sobre a tribo dos Wauja, do Xingu, mostrando a trajetória dos artefatos, do campo em que foram recolhidos até a chegada ao museu.

Museu Nacional de Etnologia, Portugal [email protected]

ARIES E OFÍCIOS DE CURAR

NO BRASIL

Artes e ofícios de curar no Brasil Sidney Chalhoub, Vera Regina Beltrão Marques, Gabriela dos Reis Sampaio, Carlos Roberto Galvão Sobrinho Editora Unicamp 430 páginas / R$ 44,00

Uma coletânea de artigos que traz respostas históricas para um

problema que ainda nos incomoda: o estado da saúde no Brasil. As pesquisas falam da prática da medicina rudimentar, a cura, do século 17 até o início do século 20, com um painel que inclui barbeiros e cientistas.

Editora Unicamp: (19) 3788-7235/7786 www.editora.unicamp.br ou [email protected]

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