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O CASO DO CÃO UIVADOR Erle Stanley Gardner COLECÇÃO VAMPIRO VOLUMES PUBLICADOS: 1 - Poirot desvenda o passado, por Agatha Christie. 2 - o mistério dos fósforos queimados, por Ellery Queen. 3 - o caso das garras de veludo, por Erle Stanley Gardner. 4 - O barco da morte, por Agatha Christie. 5 - "Knock-Out", por Sapper. 6 - Os crimes do Bispo, por S. S. Van Dine. 7 - O assassinato de Roger Ackroyd, por Agatha Christie. 8 - Vivenda Calamidade, por Ellery Queen. 9 - O caso da jovem arisca, por Erle Stanley Gardner. 10 - Um crime em Glenlitten, por E. Phillips Oppenheim. 11 - O caso Benson, por S. S. Van Dine. 12 - O mistério da escada de caracol, por Mary S. Rinehart. 13 - Um crime no Expresso do Oriente, por Agatha Christie. 14 - O enigma do sapato holandês, por Ellery Queen. 15 - O Impostor, por E. Phillips Oppenheim. 16 - O caso da fotografia misteriosa, por Erle Stanley Gardner. 17 - O Desafio à Polícia, por Carter Dickson. 18 - Convite para a morte, por Agatha Christie. 19 - o santo e os anjos da vingança, por Leslie Charteris. 20 - A Morte da Canária, por S. S. "Van Dine. 21 - O diabo que resolva, por Ellery Queen. 22 - Qual dos cinco? por Dorothy Sayers. 23 - O caso do cão uivador, por Erle Stanley Gardner. No PRELO: 24 - Os crimes da Viúva Vermelha, por Carter Dickson. *** 23 O CASO DO CÃO UIVADOR POR ERLE STANLEY GARDNER TRADUÇÃO DE SÓNIA GUIMARÃES EDIÇÕES LIVROS DO BRASIL, Lda. Rua Vitor Cordon, 29 -LISBOA

Erle S. Gardner O Caso Do Cao Uivador

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O CASO DO CÃO UIVADORErle Stanley Gardner

COLECÇÃOVAMPIRO

VOLUMES PUBLICADOS:

1 - Poirot desvenda o passado, por Agatha Christie.2 - o mistério dos fósforos queimados, por Ellery Queen.3 - o caso das garras de veludo, por Erle Stanley Gardner.4 - O barco da morte, por Agatha Christie.5 - "Knock-Out", por Sapper.6 - Os crimes do Bispo, por S. S. Van Dine.7 - O assassinato de Roger Ackroyd, por Agatha Christie.8 - Vivenda Calamidade, por Ellery Queen.9 - O caso da jovem arisca, por Erle Stanley Gardner.10 - Um crime em Glenlitten, por E. Phillips Oppenheim.11 - O caso Benson, por S. S. Van Dine.12 - O mistério da escada de caracol, por Mary S. Rinehart.13 - Um crime no Expresso do Oriente, por Agatha Christie.14 - O enigma do sapato holandês, por Ellery Queen.15 - O Impostor, por E. Phillips Oppenheim.16 - O caso da fotografia misteriosa, por Erle Stanley Gardner.17 - O Desafio à Polícia, por Carter Dickson.18 - Convite para a morte, por Agatha Christie.19 - o santo e os anjos da vingança, por Leslie Charteris.20 - A Morte da Canária, por S. S. "Van Dine.21 - O diabo que resolva, por Ellery Queen.22 - Qual dos cinco? por Dorothy Sayers.23 - O caso do cão uivador, por Erle Stanley Gardner.

No PRELO:

24 - Os crimes da Viúva Vermelha, por Carter Dickson.

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O CASO DO CÃO UIVADORPORERLE STANLEY GARDNER

TRADUÇÃODE SÓNIA GUIMARÃES

EDIÇÕESLIVROS DO BRASIL, Lda.Rua Vitor Cordon, 29 -LISBOA

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Título do original norte-americano "THE CASE OF THE HOWLING DOG"

Capa de Cândido Costa Pinto

Reservados os direitos pela legislação em vigorEdição portuguesa autorizada pela EDITORA GLOBO - Porto Alegre - BRASIL

Ofic. Gráficas da Rádio Renascença - R. da Luta, 1-C - LISBOA

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CAPÍTULO I

Della Street manteve aberta a porta do gabinete e falou no tom que uma mulher usa geralmente ao dirigir-se a uma criança ou a um homem enfermo.- Pode entrar, Mr. Cartrigth, Mr. Mason recebe-lo-á.Um homem de ombros largos, um tanto pesado, de cerca de 32 anos e com uma expressão de espanto nos olhos castanhos, entrou no escritório, fitando o rosto grave de Perry Mason.- O senhor é Perry Mason, o advogado? - perguntou.Mason assentiu com um sinal de cabeça.- Sente-se - disse.O homem deixou-se cair na cadeira que Mason indicara com um gesto, e, mecanicamente procurou a cigarreira. Tirou um cigarro e ofereceu outro a Perry Mason.A mão que estendia a cigarreira tremia, Os olhos perspicazes do advogado detiveram-se nela por um instante, antes que ele sacudisse a cabeça.- Não, obrigado. Tenho dos meus.O homem concordou; pôs com pressa a cigarreira no bolso, acendeu um fósforo e inclinou-se para diante, de modo a ficar com o cotovelo apoiado no braço da poltrona, firmando a mão que segurava o fósforo enquanto acendia o cigarro.- Soube pela minha secretária que o senhor deseja consultar-me a respeito de um cão e de um testamento - disse Perry Mason numa voz calma.O homem concordou, repetindo como um autómato:- Sim, um cão e um testamento.- Bem, falemos primeiro do testamento - disse o advogado. - Mesmo porque de cães não entendo muito.Cartright assentiu. O seu olhar ansioso estava cravado no advogado, com a expressão de um homem muito doente, olhando para um médico competente.Perry Mason tirou um bloco de papel almaço amarelo de uma gaveta da secretária; pegou na pena e perguntou:- O seu nome?- Artur Cartright.- Idade?- Trinta e dois anos.- Residência?- Milpas Drive, 4893.- Casado ou solteiro?- Há necessidade de entrar nesses detalhes?Perry Mason pousou a pena sobre o papel almaço.

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Os seus olhos ergueram-se e estudaram Cartright firmemente.- Há - disse.Cartright levou o cigarro ao cinzeiro e sacudiu a cinza. A mão tremia-lhe como se estivesse com febre..- Não creio que isso tenha importância, tratando-se da espécie de testamento que quero fazer.- Eu preciso saber - disse Perry Mason.- Mas se eu estou a dizer-lhe que, em virtude do modo por que vou legar os meus bens, isso não tem importância!Perry Mason nada disse, mas a calma insistência do seu olhar, levou o outro a falar.- Sim - disse Cartright.- Como se chama ela?- Paula Cartriight. 27 anos.- Mora consigo? - perguntou Mason.- Não.- Onde reside?

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- Não sei - respondeu o homem.Perry Mason hesitou um instante. Os seus olhos calmos e pacientes observaram a fisionomia cansada do cliente. Disse então brandamente:- Bem. Estudemos um pouco mais a questão do testamento antes de voltarmos a isso. O senhor tem filhos?- Não.- Como deseja legar os seus bens?- Antes disso quero saber - disse Cartright, falando com rapidez - se um testamento é válido qualquer que seja a maneira por que o testador tenha morrido.Perry Mason assentiu com a cabeça, em silêncio.- Suponhamos que um homem morra na forca, ou na cadeira eléctrica, compreende o senhor? Suponhamos que ele seja executado por crime. Nesse caso o que acontecerá ao seu testamento? - perguntou Cartright.- A maneira como um homem morre não afecta em nada o seu testamento - disse Mason.- De quantas testemunhas preciso para fazer um?- Em certas circunstâncias de duas; em outras, de nenhuma.- Que quer dizer com isso?- Que se um testamento é escrito à máquina e o senhor o assina, serão necessárias duas testemunhas, além da sua assinatura. Mas, neste Estado, se um testamento for inteiramente escrito à mão, incluindo a data e a assinatura, e não há na folha de papel nada mais escrito ou impresso, além da própria letra do testador, não será necessário testemunha alguma. Um testamento desta espécie é válido e legal.Arthur Cartright suspirou, como que aliviado. E ao tornar a falar, a sua voz era mais calma, menos entrecortada.- Bem, este ponto parece estar esclarecido - disse.- A quem deseja legar os seus bens? - indagou Perry Mason.- A Mrs. Clinton Foley, residente em Milpas Drive, 4889.Perry Mason ergueu as sobrancelhas.- Uma vizinha? - perguntou"

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- Sim; uma vizinha - disse Cartright com o tom de voz de alguém que deseja desencorajar comentários.- Muito bem - disse o advogado, e acrescentou: - Lembre-se Cartright, que está a falar com um advogado. Não guarde segredos para com o seu advogado. Diga-me a verdade. Eu não trairei as suas confidências.- Ora - disse Cartright com impaciência - não estou por acaso a dizer-lhe tudo?A voz e o olhar de Perry Mason eram serenos.- Não sei - respondeu, - Estava apenas a avisá-lo. Agora, continue a falar-me do seu testamento.- Sobre isso já está dito tudo.- Como assim?- Quero dizer que todos os meus bens ficarão para Mrs. Clinton Foley. Absolutamente todos.Perry Mason pousou a pena no seu respectivo lugar e com os dedos da mão direita começou a tamborilar sobre a secretária. O seu olhar estudava atentamente o interlocutor.- Bem, falemos agora sobre o cachorro - disse ele.- O cachorro uiva - começou Cartright.Perry Mason meneou a cabeça com simpatia.- Ele uiva principalmente à noite, - disse Cartright - mas às vezes uiva também de dia. Isso deixa-me louco. Não posso suportar aquele uivar contínuo. O senhor sabe: quando um cachorro uiva, é porque uma morte está prestes a ocorrer na vizinhança.- Onde está o cachorro?- Na casa ao lado da minha.- Quer dizer: a casa de Mrs. Clinton Foley fica de um lado e a do cachorro que uiva, do outro?

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- Não - disse Cartright. - O cachorro que uiva é o de casa de Clinton Foley.- Compreendo - observou Mason. - E se me contasse tudo sobre esse assunto Cartright?Cartright esmagou a ponta do cigarro e levantou-se. Caminhou depois com passos rápidos até à janela onde se deteve a olhar para fora, embora na (realidade os seus olhos nada vissem. Momentos depois voltou-se e dirigiu-se ao advogado.- Escute, há ainda outra questão sobre o testamento. Suponhamos que Mrs. Clinton Foley não seja realmente a senhora Clinton Foley.- Como assim? - inquiriu Mason.- Suponhamos que ela esteja a viver com Clinton Foley como sua esposa, mas que não seja casada com ele?- Isso não faria diferença alguma - disse Mason devagar - desde que o senhor a descrevesse no testamento como Mrs. Clinton Foley, a mulher que actualmente vive com Clinton Foley como sua esposa, no número 4889 de Milpas Drive. Por outras palavras: o testador tem o direito de deixar os seus bens a quem quiser. As palavras de descrição empregadas num testamento têm valor apenas, para esclarecerem a intenção do autor. Por exemplo: já tem havido casos em que homens, ao morrer, legaram os seus bens às esposas, e quando se foi verificar, eles não eram legitimamente casados. Tem acontecido também o caso de um homem legar bens aos filhos e se verificar mais tarde que as pessoas referidas não eram realmente filhos dele...- Nada disso me interessa - disse Cartright com irritação. - Estou a interrogá-lo apenas sobre este caso particular. Não faria nenhuma diferença?

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- Não, não faria nenhuma - respondeu Mason.- Bem, disse Cartright - suponhamos que haja uma verdadeira senhora Clinton Foley. O que quero dizer é o .seguinte: suponhamos que Clinton Foley tenha sido legalmente casado e nunca se tenha divorciado. Ainda poderei deixar a herança para Mrs. Clinton Foley?O tom de voz de Perry Mason, soou de modo a acalmar temores infundados.- Eu já lhe expliquei - disse ele - que a intenção do testador é que governa. Se o senhor legar os seus bens a uma mulher que reside actualmente naquele endereço como esposa de Clinton Foley, será suficiente. Mas, quer dizer que Clinton Foley vive?- Claro que vive. Mora na casa pegada à minha.- Compreendo - disse Mason falando com cuidado e procurando dar naturalidade à voz - E Mr. Clinton Foley sabe que o senhor pretende deixar uma herança à esposa dele?- Sem dúvida que não - disse Cartright subitamente excitado. Ele nada sabe a respeito disso. E nem precisa saber, não é assim?- Não - respondeu Mason. - Eu estava apenas a perguntar...- Pois é isso mesmo. Ele não sabe, nem nunca saberá.- Bem, isto está assente - respondeu Mason. - E sobre o cachorro?- Temos que dar uma solução a isso.- E o que é que o senhor pretende fazer?- Prender Foley.- Sob que acusação?- Sob a acusação de que ele está a levar-me à loucura. Um homem não pode possuir um cachorro daqueles. E parte de um plano de perseguição deliberada. Ele sabe a impressão que me causam os uivos de um cachorro. Por isso arranjou aquele e ensinou-o a uivar. O animal dantes não tinha esse costume. Começou há uma ou duas noites. Foley faz isso para me irritar a mim e à sua esposa. Ela está doente, de cama, e o cachorro uiva. Isso significa morte na vizinhança.

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Cartright pusera-se a falar com rapidez. Os seus olhos brilhavam febrilmente, as suas mãos gesticulavam batendo sem direcção no espaço.Mason contraiu os lábios.- Cartright - disse devagar - creio que não posso auxiliá-lo neste caso. De momento, estou excepcionalmente ocupado. Acabo de sair do julgamento de um crime e...- Eu sei, eu sei - disse Cartright. - O senhor pensa que eu estou maluco. Acha que isto é apenas um pequeno caso sem importância. Mas eu afirmo-lhe que se engana, que esta é uma das maiores causas que já lhe chegaram às mãos. Vim procurá-lo porque o senhor tratou desse caso de homicídio. Eu acompanhei-o. Estive no tribunal, a ouvi-lo. O senhor é de facto um advogado. Esteve sempre um passo à frente do Promotor, desde o início.Perry Mason sorriu lentamente.- Obrigado pela boa opinião - disse, - mas você precisa compreender que o meu trabalho é quase sempre um trabalho criminal. Foi nisso que me especializei. Não está exactamente no meu ramo redigir um testamento. Depois, este caso do cachorro uivador, parece ser algo que pode ser resolvido sem advogado...- Não, não pode - insistiu Cartright. - O senhor não conhece Foley. Não sabe o tipo de homem de que se trata. Provavelmente pensa que não tenho dinheiro suficiente para pagar o tempo que vai perder. Mas eu vou pagá-lo, sim; e pagarei muito bem.

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E, metendo a mão no bolso, tirou uma carteira completamente cheia. Abriu-a, com a mão trémula e retirou três notas. Fez menção de entregá-las ao advogado, mas ao estender o braço sobre a secretária, as notas escorregaram-lhe dos dedos, caindo sobre a folha do mata borrão.- São trezentos dólares - disse. - É um pagamento antecipado. Quando o caso estiver concluído, o senhor receberá mais, muito mais. Ainda não fui ao Banco retirar o meu dinheiro. Tenho muito, depositado numa caixa forte.Perry Mason a princípio não tocou "nas notas. As pontas dos seus dedos, firmes e hábeis; tamborilavam sem ruído sobre a mesa. Depois, disse devagar:- Cartright, se eu actuar como seu advogado neste caso, farei tudo o que achar que seja para seu bem, e dos seus interesses. Compreende o que quero dizer?- Está claro que sim. É exactamente o que quero que faça.- Farei tudo - preveniu Mason - o que julgar ser em benefício dos seus interesses.- Está bem - respondeu Cartright. - O que eu quero é que se comprometa a tomar conta do meu caso.Perry Mason pegou nos trezentos dólares, dobrou-os e colocou-os no bolso.- Pois bem - disse - encarregar-me-ei do seu caso. Neste momento, o que deseja é fazer com que Foley seja preso, não é verdade?- Sim.- Bem, isso não será particularmente complicado. O senhor terá apenas de prestar um juramento para registar uma queixa e o magistrado emitirá um mandato de prisão. Mas agora, diga-me uma coisa: por que me escolheu justamente a mim, para actuar neste caso? Quis que eu actuasse como querelante especial?- O senhor não conhece Clinton Foley - repetiu obstinadamente. - Ele voltar-se-á contra mim e mover-me-á um processo de perdas e danos por acusação maldosa. Talvez tenha ensinado o cachorro a uivar somente para me fazer cair numa cilada.- Que espécie de cachorro é esse?- Um enorme cão polícia.Perry Mason baixou os olhos e contemplou as pontas dos seus dedos que tamborilavam sobre a mesa. Fitou

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depois Cartright e, sorrindo-lhe de modo encorajador, disse:- Legalmente é sempre uma boa defesa contra um processo por acusação maldosa, o facto de uma pessoa de boa fé haver consultado um advogado e dito toda a verdade, agindo depois de acordo com os seus conselhos. Eu vou agora colocá-lo numa situação em que ninguém conseguirá nada contra si com um processo por acusação maldosa. Vou levá-lo a um advogado da Promotoria, que se encarrega destes casos. O senhor fala com ele e conta-lhe toda a história. - Estou a referir-me à história do cachorro. Não é preciso contar-lhe nada sobre o testamento. Se ele decidir que deve ser emitida uma intimação, é tudo quanto se tem a fazer. Mas eu quero preveni-lo de que o senhor precisa contar-lhe toda a história, isto é, deve pô-lo a par de todos os factos, expondo tudo clara e completamente. Desse modo, terá uma perfeita defesa contra qualquer processo que Foley venha a instaurar.Cartright suspirou aliviado.- Agora sim, o senhor fala com sensatez. Estes são exactamente a espécie de conselhos que gosto de pagar. Onde podemos encontrar esse advogado?

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- Preciso telefonar a marcar uma entrevista - respondeu Mason. - Desculpe-me por um momento, vou ver se consigo falar com ele. Sente-se e esteja à vontade. Naquela caixa encontrará cigarros e...- Não se incomode - disse Cartright, fazendo um ligeiro movimento em direcção ao bolso. - Eu tenho dos meus. Vá e marque a entrevista. Façamos tudo de uma vez. Quanto mais depressa acabarmos com isto, melhor. O que eu não posso é suportar por mais uma noite os uivos daquele cão.- Está bem - disse Mason empurrando para trás a sua cadeira giratória e caminhando em direcção à porta.

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Quando, ao voltar, os seus ombros fortes impeliram a porta, Arthur Cartright acendia um segundo cigarro, tremendo a tal ponto que precisou empregar ambas as mãos nesse gesto.Mason encaminhou-se para o "hall".Della Street, sua secretária, de vinte e sete anos, eficiente e expedita, fitou-o e sorriu com intimidade - uma intimidade que provinha de uma perfeita compreensão.- É doido? - perguntou ela.- Não sei - disse Mason. - Vou averiguar. Chame Pete Dorcas ao telefone.A rapariga concordou. Os seus dedos, em rápidos movimentos, marcaram um número ao telefone. Perry Mason dirigiu-se a uma janela, permanecendo ali com os pés afastados, os ombros largos barrando a entrada da luz, os olhos fitando cismadoramente o desfiladeiro de asfalto, lá em baixo, de onde sulbiam os sons estridentes das buzinas dos automóveis e o ruído surdo do tráfego.A luz da tarde, incidindo sobre os seus traços severos, dava-lhe ao rosto uma aparência crestada.- Aqui está ele - disse Della Street.Perry Mason voltou-se, e dando dois largos passos segurou um telefone sobre uma secretária a um canto da sala, enquanto os dedos ágeis de Della Street transferiram a chamada para aquela linha.- Alô, Pete. Aqui é Mason. Vou levar aí um homem para falar consigo mas primeiro quero dar-lhe umas explicações.Peter Dorcas tinha uma voz alta e fina. A voz de advogado de repartição que se aperfeiçoou no domínio de assuntos técnicos e vive a explicá-los àqueles que precisam de argumentos para serem convencidos.- Parabéns pela sua vitória. Foi tudo muito bem pensado. Eu disse ao Promotor que havia um ponto fraco naquele caso, referente ao elemento tempo e avisei-o de que se ele continuasse em frente do júri sem poder explicar aquele telefonema sobre o automóvel roubado, o caso estaria perdido.- Obrigado - disse Mason laconicamente. - Eu tenho sorte, nada mais.- Sim, você tem sorte - disse Dorcas - mas tem por que a faz. Para mim é o mesmo. Eu disse aqueles camaradas que eles não estavam a pisar terreno firme. Mas afinal, o que há sobre este homem que você vai trazer aqui? O que é que ele quer?- Uma queixa.- Contra quê?- Contra um cachorro uivador.- Contra quê?

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- Isso mesmo, um cachorro uivador. Creio que há uma postura local que proíbe a conservação de um cachorro que uive em qualquer zona densamente habitada, quer esteja ou não incorporada na cidade.- De facto esta postura existe, mas ninguém lhe dá atenção. Eu, pelo menos, nunca fiz nada nesse sentido.- Bem - disse Mason, - este caso é diferente. O meu cliente está a pique de enlouquecer - se é que já não enlouqueceu.- Por causa do cachorro uivador?- Não sei. É o que quero verificar. Se ele necessita de um tratamento, quero que seja tratado. Se está na iminência de um colapso nervoso, quero ver se é possível evitá-lo. Você compreende, que se a uma pessoa normal os uivos de um cachorro são apenas incómodos, a uma pessoa de temperamento nervoso eles podem levar até à loucura.- Bem, eu encarrego-me do caso. Você vai trazê-lo aqui? - inquiriu Dorcas.- Vou sim, e quero que você tenha um médico presente, para o examinar: veja um dos alienistas que

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tratam destes casos. Mas não o apresente como médico. Faça-o como se ele fosse seu assistente ou coisa que o valha. Deixe-o ouvir a conversa e fazer talvez uma ou duas perguntas. Se se verificar que o homem necessita de tratamento médico, vamos fazer o possível para que o tenha.- E se ele não quiser?- Eu disse - observou Mason - que nós faremos o possível para que ele seja tratado.- Você tem de assinar uma queixa e emitir um mandato de prisão para fazer isso.- Eu sei - disse Mason. - Estou disposto a assinar uma queixa por mim mesmo, se o homem necessitar de um tratamento médico. É isso, aliás, o que quero saber. Se ele está louco, desejo fazer o que for melhor para ele. Se não está, quero providenciar para que seja atendido imediatamente. Estou a tentar representar os interesses dele da melhor forma possível. Compreendeu?- Compreendi - respondeu Dorcas.- Estarei aí dentro de quinze minutos - disse Mason, e desligou.Pôs o chapéu enquanto abria a porta do gabinete e acenou com a cabeça para Cartright.- Está tudo combinado - disse, - Ele espera-nos no seu escritório. O senhor tem automóvel, ou vamos de táxi?- Vamos de táxi - disse Cartright. - Estou nervoso demais para guiar.

CAPÍTULO II

Pete Dorcas levantou-se, fitou Arthur Cartright com o seu olhar de aço, e recebeu com a usual fórmula de cortesia a apresentação de Perry Mason. Voltando-se um pouco, indicou um indivíduo baixo e obeso, cujo rosto, quando olhado de relance, dava a impressão de

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pertencer a alguém que não possuísse mais do que um bom humor efervescente. Todavia, a um segundo olhar, descobria-se a imensa perspicácia que se escondia por trás da cintilação daqueles olhos cinzentos.- Apresento-lhes Mr. Cooper, meu assistente - disse Dorcas.

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O indivíduo obeso, disse, num sorriso, a sua fórmula de cortesia e encaminhou-se em direcção a Cartright, apertando-lhe a mão. Os olhos cintilantes estudaram com rapidez a fisionomia de Cartright e a sua mão continuou com a de Cartright segura, durante considerável tempo, mesmo depois de concluído o superficial cumprimento.- Bem - disse Mason, - creio que estamos prontos para começar, não acham?- Exactamente, - respondeu Dorcas, tornando a sentar-se.Dorcas era um homem alto, magro, calvo e de rosto comprido. O seu raciocínio alerta jamais dava sossego àqueles que o ouviam.- É sobre um cachorro - começou Perry Mason. - Clinton Foley, residente em Milpas Drive, 4889, na casa vizinha à de Mr. Cartright possue um cão polícia que uiva.- Ora - disse Dorcas arreganhando os dentes - se um cachorro tem direito de dar uma dentada, também tem de soltar um uivo.Arthur Cartright não sorria. Meteu a mão no bolso e tirou um masso de cigarros, que, depois de um momento de hesitação, tornou a guardar.Os olhos cintilantes de Cooper observando-o constantemente, perdiam por momentos aquela expressão de bom humor efervescente, mas, logo depois, tornavam a cintilar.- Aquele homem tem de ser preso - disse Cartright. - Aqueles uivos têm que parar. O senhor está a ouvir? Têm que parar!- Naturalmente - disse Perry Mason, - é por isso mesmo que nós aqui estamos. Continue e conte-lhes a história.- Não há história alguma a contar. O cachorro uiva, nada mais.- Constantemente? - perguntou Cooper.- Constantemente. Isto é, eu não quero dizer que ele uive sem parar. Uiva a intervalos regulares. O senhor há-de saber como um cachorro uiva. Ele uiva, depois pára, depois volta a uivar.- O que é que o faz uivar? - perguntou Cooper.- É Foley quem o faz uivar - afirmou Cartright.- E por quê? - inquiriu Dorcas.- Porque ele sabe que isso me desespera e que desespera a esposa dele, também. Significa morte na vizinhança e ela está doente. O cachorro precisa parar de uivar.Dorcas percorreu com o polegar o índice de um livro encadernado a couro. Levantando os olhos, disse depois com voz aguda e queixosa:- Bem, de facto há uma postura proibindo isso. Segundo a mesma está a cometer um delito todo aquele que possua algum cachorro, vaca, cavalo, galinha, galo, galinha, ave ou outro animal de qualquer espécie, natureza- ou descrição, que se torne incómodo para os vizinhos.- O que é que o senhor quer mais? - perguntou Qartright.Dorcas riu.- Não quero coisíssima alguma - disse. - Pessoalmente não gosto de cachorros uivadores, nem de gatos cantores. Esta postura tem por fim conservar as granjas e as cavalariças afastadas dos distritos densamente habitados. Milpas Drive é um bairro exclusivamente residencial. Há casas bem caras por lá. Qual é o seu endereço, Mr. Cartright?

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- 4893.- E a casa de Foley é número 4889?- Isso mesmo.- Então as casas são vizinhas?

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- Sim.- Quer dizer que o terreno é grande?- O dele é.- E o seu?- O meu é de tamanho regular.- Foley é rico?- Naturalmente que é, senão não moraria ali.- O cachorro está lá há muito tempo, Mr. Cartright?- Sim.- Há quanto tempo?- Não sei. Parece que há dois meses. Eu também resido ali há dois meses. Durante todo este tempo o cachorro viveu lá.- E ele uivava antes?- Não.- Quando começou?- Ante-ontem à noite.- Está a parecer-me que o senhor não se dá bem com Mr. Foley. Isto é: o senhor não poderia pedir-lhe o favor de fazer com que o animal parasse de uivar?- Não, não faria isto.- E se lhe telefonasse?- Não.- Então, suponhamos que lhe escrevesse uma carta?- O senhor não conhece Foley - disse Cartright com azedume. - Ele rasgaria a carta e faria com que o cachorro uivasse ainda mais. Riria com alegria infernal, pensando que tinha conseguido levar-me ao desespero.- Mostraria a carta à esposa... Cartright parou abruptamente de falar.

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- Não se detenha - disse Dorcas - continue. Que mais faria ele?- Nada - disse Cartright com rispidez.- Mr. Dorcas - disse Mason, - nós ficaríamos satisfeitos se o senhor escrevesse uma carta a Foley, levando ao seu conhecimento que será emitido um mandato de prisão contra ele, caso o cachorro não deixe de uivar.- Naturalmente que o esclarecerei disso - disse o promotor distrital.- Agora, se a carta seguir pelo correio, mesmo que o senhor a mande hoje de tarde, ela só chegará amanhã. Sugiro que faça uma intimação formal e que a envie por um dos agentes. Deixe que o agente mesmo apareça a Mr. Foley ou à pessoa que esteja encarregada da casa, se ele estiver ausente. Isto servirá para lhe mostrar que não se trata apenas de uma queixa instigada por Cartright, sem estatutos legais.- Eu quero prendê-lo.Perry Mason falou em tom paciente.- Cartright, o senhor pôs o caso nas minhas mãos e decerto ainda está lembrado do que eu lhe disse. O senhor mesmo declarou que Foley é vingativo, que é rico e que pode mover uma acção contra o senhor. Se isso acontecer, cabe ao senhor provar que agiu na melhor boa fé. Sou de opinião que esta conduta sugerida por Mr. Dorcas, com as modificações em procedimento que apontei, esclarecerão legalmente a sua atitude. Aconselho-o a segui-la.Cartright voltou-se rápido para Perry Mason, demonstrando irritação.- E se eu preferir não seguir o seu conselho?

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- Nesse caso - respondeu Mason paciente - creio que o senhor teria de escolher outro advogado, alguén em cujos conselhos o senhor confiasse.Cartright ficou silencioso por um momento, e depois subitamente, fez com a cabeça um gesto de aprovação.

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- Muito bem - disse. - Estou disposto a seguir o que diz. Mas, de qualquer maneira, quero que mande logo a intimação.- Assim que estiver pronta - disse Mason com brandura.- Bem, então deixo-o encarregado disso. Vou para casa. O senhor representa os meus interesses, Mr. Mason. Fique aqui, auxilie a preparar a intimação e verifique que ela é despachada. Fará isso?- Farei, sim - respondeu o advogado. - Pode ir para casa descansar um pouco. Deixe o caso aos meus cuidados.Cartright assentiu, e parou com a mão na porta.- Agradecido, senhores - disse. - Muito prazer em conhecê-los e perdoem-me se pareci um tanto transtornado. Há muito que não durmo.Depois, a porta bateu com força.- Então? - fez Docas virando-se para o Dr. Cooper.O médico cruzou as mãos sobre o estômago volumoso. Como que por encanto, a cintilação desapareceu-lhe dos olhos.- Bem - disse - não me agrada fazer um diagnóstico baseado nas provas limitadas de que no momento disponho, mas eu diria que se trata de um caso de psicose-maníaco-depressiva.Perry Mason sorriu.- Isso soa formidavelmente, - disse ele - Mas isso não significa apenas uma depressão nervosa?- Tal coisa não existe - disse o Dr. Cooper. - É uma expressão popular aplicada às várias formas de psicoses degenerativas ou funcionais.- Bem, então abordemos a coisa de outra maneira - disse Mason. - Um homem atacado de psicose-maníaco-depressiva, não é louco, pois não?- Mas tampouco é normal.- Sim, mas não é louco.- Bem, isso depende do que o senhor considera loucura.

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Não é, naturalmente, o grau de loucura legal que possa justificar a perpetração de um crime, se é o que o senhor quer dizer.- Não, não é o que eu quero dizer - respondeu Mason. - Vamos, doutor, fale claramente, deixemos as minúcias de lado. O senhor não está no estrado das testemunhas, está apenas conversando connosco. O que ele tem, é um desiquilíbrio funcional, não é verdade?- Exactamente.- Curável?- Oh, sim, perfeitamente curável.- Muito bem - disse Mason irritado. - Livremo-nos então desse cachorro uivador.

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- Naturalmente, - disse Pete Dorcas rodando um lápis entre os dedos, - mas nós não temos a palavra de ninguém a afirmar que o cachorro uiva, além da declaração desse tal Cartright.- Bom, deixemos isso - disse Mason. - Afinal você não está expedindo um mandato de prisão. Vá tratar de fazer a intimação para Clinton Foley, declarando que foi registada uma queixa contra ele por estar a violar a postura número tal e tal. Dê-lhe uma ideia geral do que o regulamento contém: e se ele de facto tiver um cachorro, fará com que se cale; se não tiver, telefonará a explicar-se.Mason voltou-se para o Dr. Cooper.- Esta ideia do cachorro que uiva, não será apenas uma alucinação, doutor?- Em muitos casos de psicose-maníaco-depressiva, os doentes são sujeitas às alucinações; mas, em geral, alucinações referentes a manias de perseguição.- E ele pensa justamente que está a ser perseguido - observou Dorcas. - Está convencido de que o cachorro] uiva instigado por Foley.Perry Mason consultou o seu relógio.- Vamos chamar uma estenógrafa - disse, - para ditarmos uma intimação com a exposição do caso.Dorcas voltou-se para o Dr. Cooper, erguendo as sobrancelhas.O Dr. Cooper assentiu com a cabeça.Dorcas comprimiu um botão com o polegar.- Está certo - disse. - Eu ditarei a intimação que depois assinarei.- Quero falar com o agente que vai levá-la - disse Mason, - Talvez consiga que ela seja entregue mais depressa, se providenciar para que o homem disponha de fácil transporte e...Dorcas sorriu e disse:- E se lhe der alguns charutos, é o que você quer dizer.- Talvez - disse Perry Mason - eu pudesse pagar-lhe uma cerveja, mas não gostaria de me comprometer diante do Promotor Distrital.- Desça ao escritório do Delegado e consiga um agente com permissão para levar a intimação. Se quiser, poderá ir com ele.- Não - respondeu Mason. - Conheço qual o lugar que compete a um advogado e qual o que compete a um agente de polícia. O do primeiro é no escritório, e o do segundo na rua, entregando notificações. Quando a intimação for entregue, eu estarei no meu escritório.Abriu a porta e voltou-se para o Dr. Cooper.- Não me julgue teimoso, doutor. Compreendo a sua posição mas espero que o senhor também compreenda a minha. Arthur Cartright foi ao meu escritório e eu pude ver que ele estava com o sistema nervoso abalado. Desejei certificar-me.- Bom, é lógico - disse o Dr. Cooper. - Eu não posso fazer um diagnóstico completo...- Compreendo - disse-lhe Mason.- Ele disse mais alguma coisa? - inquiriu Dorcas.- Quis consultá-lo sobre outro assunto além do cachorro uivador?Perry Mason sorriu.- Com que então, é você quem me interroga? De qualquer modo posso dizer-lhe que o homem me fez um pagamento adiantado - se é que isso serve para esclarecer alguma coisa.- Em dinheiro? - perguntou Dorcas.- Em dinheiro.- Isso prova um certo sinal de loucura, - disse rindo o Dr. Cooper, - um desvio do estado normal.

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- Prefiro dar-lhe este nome - observou Mason, fechando a porta atrás de si.

CAPÍTULO III

Della Street acabara de abrir a correspondência da manhã de Perry Mason, quando este empurrou a porta do escritório com um alegre: Bom dia. Que há de novo, Della?"- Uma porção de coisas e uma bastante fora do comum.- Bem, deixemos o bolo para a sobremesa - disse ele sorrindo. - Vamos à lista do costume.- Um dos jurados do último caso - começou - deseja consultá-lo sobre uma junta comercial.. Dois outros telefonaram para o felicitar pela sua actuação no processo. Há um homem que está tentando marcar uma entrevista com o senhor e não quis dizer-me, em detalhe do que se trata. É a respeito de acções de umas minas.Mason torceu o rosto numa careta enquanto fazia com a mão um vago gesto negativo.- Ponha tudo isso de lado, Della. Não gosto de tratar sempre das mesmas coisas; quero algo emocionante. Quero trabalhar em casos de vida e morte, onde os minutos devam ser contados.. Quero alguma coisa estranha e fora do comum.Della Street fitou-o de modo terno e solícito.- O senhor arrisca-se demais, chefe - protestou. - Por que não se encarrega apenas de julgamentos, em vez de procurar envolver-se tanto nos próprios casos?Ele sorriu de um modo travesso.- Primeiro, - disse - porque gosto de coisas emocionantes, e segundo, porque ganho as minhas causas justamente pelo conhecimento dos factos. Chego sempre primeiro do que a acusação. É divertidíssimo... Bem, qual é a coisa fora do comum, Della?- Uma carta daquele homem que esteve aqui ontem.- Que homem?- Aquele que queria consultá-lo sobre um cachorro uivador.- Ah! - fez saber Mason, sorrindo. - Cartright, hein? Gostaria de saber se ele dormiu a noite passada.- É uma carta urgente. Deve ter sido posta no correio durante a noite - explicou ela.- Mais alguma coisa a respeito do tal cachorro? - perguntou Mason.- Ele incluiu um testamento - disse a jovem baixando a voz e olhando furtivamente para o gabinete, como se tivesse receio de que alguém pudesse estar a escutar - e dez notas de mil dólares.Perry Mason parou, olhando para ela com a testa enrugada.- Você quer dizer... dez mil dólares em dinheiro?- Sim - respondeu a secretária.- Vieram pelo correio?- Sim, pelo correio.- Em envelope registado?- Não, apenas urgente.Delladirigiu-se ao cofre, que abriu. Depois, com uma

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chave, abriu um compartimento interior, de onde tirou um envelope que entregou a Mason.- Você disse que havia um testamento?- Sim.- Veio junto com a carta?

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- Veio. Uma carta muito breve.Perry Mason tirou os dez mil dólares do envelope, e examinou-os cuidadosamente. Emitiu então um curto assobio mais de surpresa do que de contentamento e colocou as notas no bolso. Depois, em voz alta, leu a carta:Caro Mr. Mason:Tive ocasião de o ver durante o último julgamento. Estou convencido de que o senhor é honesto e de que é um lutador. Quero que se bata por este caso. Com a presente incluo dez mil dólares e um testamento. Os dez mil dólares são como uma antecipação ao pagamento de seu serviço. O senhor será gratificado pelo testamento. Quero que represente] a legatária nele citada, e que lute até ao fim pelos] interesses da mesma. Sei agora por que é que o cachorro uivava,. Estou redigindo este testamento, do modo como o senhor me disse que um testamento desta espécie podia ser feito. Talvez o senhor não tenha ocasião de provar a validade do mesmo e tenha de lutar pelos interesses da legatária. Se assim acontecer, o senhor já tem os dez mil dólares, além dos que lhe deixei ontem. Obrigado pelo interesse que tomou pelo meu caso. Sinceramente,ARTHUR CARTRIGHT.Perry Mason sacudiu a cabeça com incredulidade, tirou as notas dobradas do bolso.- Que bom seria ficar com este dinheiro - disse

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- Ficar .com ele? - exclamou Della Street. - Mas claro que sim, A carta prova que ele é seu. É um pagamento legítimo, não é?Perry Mason suspirou e deixou cair as notas sobre a mesa da secretária.- Louco! - disse ele. - O homem é louco varrido.- Porque pensa assim? - perguntou ela.- Por tudo.- Mas ontem à noite não era dessa opinião.- Julgava que ele fosse nervoso e talvez doente.- Mas não que fosse louco - reafirmava Della Street.- Bem... louco total, não.- Então foi por ele lhe enviar esta carta que o senhor pensa que ele está louco?Perry Mason sorriu para a jovem.- O Dr. Cooper, o alienista da Junta de insanidade, observou que, nos tempos que correm, um pagamento antecipado em dinheiro constitui um desvio do estado normal. Este homem fez dois em vinte e quatro horas, e mandou dez mil dólares pelo correio sem mesmo registar a carta que os trazia.- Talvez não dispusesse de outro meio para os mandar - sugeriu Della Street.- Talvez, - concordou Mason. - Você leu o testamento?- Não, não o li. Quando a carta chegou e eu vi do que se tratava, guardei-a no cofre, no mesmo instante.- Bem - disse Mason - vamos examiná-lo.Desdobrou uma folha de papel, em cuja parte externase lia: última vontade de Arthur Cartright.Os seus olhos correram ao longo das linhas e ele balançou a cabeça lentamente.- Sim senhor - disse - o homem fez um belo testamento. Está tudo escrito com a sua própria letra: assinatura, data e tudo o mais.

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-Legou-lhe alguma coisa a si? - perguntou Della Street curiosa.- Você hoje amanheceu mercenária, Della - disse o advogado, sorrindo.- Se o senhor pudesse ver de que modo as contas chegam, também seria mercenário. Para ser franca, não compreendo comopossa haver crise, quando vejo como o senhor gasta o dinheiro.- Eu apenas o ponho em circulação - disse ele. Há no país o mesmo dinheiro de sempre. Mais até, na verdade, mas como ele não circula depressa, ninguém parece possui-lo.- Bem - disse ela - o seu circula bem depressa. Talvez até depressa demais... Mas afinal... e o testamento?... gostaria de vê-lo. Ou será que isto não me compete?- Compete sim, como não? Qualquer dia destes liquidam-me por aí, devido ao meu modo de resolver as minhas causas. Você será então a única pessoa que conhece tudo sobre os meus negócios. Vejamos: Ele deixa a sua herança para a legatária e para mim um décimo desta herança, para me ser pago quando a mesma for finalmente distribuída, e isso sob a condição de que eu represente fielmente a principal legatária em todas as] formas de assuntos legais que possam surgir com relação ao testamento, e que resultarem da morte do testador, ou que estejam de algum modo ligadas com as relações domésticas da mulher.- Abrange um imenso campo de acção, não é verdade?Perry Mason concordou com um lento gesto de cabeça e quando falou fê-lo em tom pensativo.- Ou este testamento foi ditado por um advogado! ou então este homem tem um tino extraordinário para negócios. Um louco não faria um testamento desta espécie. É um documento lógico e coerente. Ele deixa nove

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décimos dos seus bens para Mrs Cliton Foley e um décimo para mim. Cartright estabelece que...Subitamente, Perry Mason emudeceu e fitou o documento com os olhos que se arregalavam aos poucos de surpresa.- O que é? - perguntou Della Street - Alguma coisa importante? Um defeito no testamento?- Não. - respondeu Mason devagar - um defeito não. Uma coisa singular, estranha.Correu de repente à porta que dava para o corredor externo e fechou-a.- Não devemos ser incomodados com visitas, até que tenhamos posto isto em ordem.- Mas de que se trata? perguntou ela.Perry Mason baixou a voz.- Ontem - disse - quando o homem aqui esteve, perguntou-me em particular, sobre a legação da herança a Mrs. Clinton Foley ( e quis saber que efeito teria o testamento se se constatasse que a mulher que se apresentava como Mrs. Foley não o fosse realmente.

- Isto significa que ela não é casada com Clinton Foley? - perguntou Della Street.- É isso mesmo - disse Mason.- Mas ela não está vivendo com Mr. Foley, num bairro exclusivamente familiar?- Está, mas isto não prova nada. Tem havido casos em que...- Sim, eu sei - disse Della Street. - Mas parece incrível que um homem pudesse viver num bairro daqueles com uma mulher que se apresentava como sua esposa.- Deve haver razões para isso. Coisas como estas, acontecem todos os dias. Talvez haja uma esposa anterior que não tivesse querido o divórcio, nem deixasse que o homem o conseguisse. Talvez a mulher seja1 casada com outro.

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Della Street concordou com um gesto lento de cabeça.

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- Estou curiosa. E sobre o testamento?- Bem. Ontem, quando ele aqui esteve, trouxe à baila esta questão da posse da herança por Mrs. Cliton Foley no caso de se vir a saber que ela não era Mrs. Foley, mas que apenas passava por tal. Pelo seu modo de falar tive razões para acreditar que a mulher não era de facto Mrs. Foley. Expliquei-lhe, então, que isso não o impedia de lhe deixar os bens desde que ele a descrevesse como a mulher que presentemente residia com Clinton Foley em Milpas Drive, 4889.- E ele fez isso? - perguntou Della Street.- Não - disse Perry Mason. - Deixou os seus bens a Mrs. Clinton Poley, legitimamente casada com Clinton Foley, que actualmente reside em Milpas Drive, 4889, nesta cidade.- E isso faz alguma (diferença? - perguntou Della Street.- Naturalmente que fez - disse ele. - Muda inteiramente tudo. Se se descobrir que a mulher que está vivendo com ele naquele endereço, não é a sua esposa, ela não será beneficiada pelo testamento, O testamento distribui os bens para a legítima esposa de Clinton Foley e a descrição da residência refere-se mais a Clinton Foley do que a sua esposa.- Acha que ele entendeu mal? - perguntou Della Street.- Não sei - respondeu o advogado com preocupação. - Ele não me pareceu ter compreendido mal i esteve bastante lúcido em tudo quanto fez. Procure na lista o telefone de Cartright. Ele mora em Milpas Driv"j 4893. Naturalmente tem telefone. Chame-o imediata] mente. Diga-lhe que é importante.Ela assentiu e estendeu o braço para pegar no telefone, mas uma chamada de fora soou antes que tivesse segurado o receptor.- Veja quem é - disse Perry Mason.

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Ela atendeu e disse:- Sim; é do escritório de Perry Mason.Depois escutou um instante e falou novamente:- Um momento - disse cobrindo o bocal com a palma da mão. - É Pete Dorcas, o Promotor Distrital. Disse que quer falar com o senhor Imediatamente, sobre aquele caso do Cartright.- Muito bem, pode ligar - disse Mason.- Para o seu gabinete? - perguntou ela.- Não, eu falo deste telefone, mesmo. Escute a conversa. Não sei do que se trata, mas quero uma testemunha.Levantou o auscultador, disse "Alô" e ouviu a voz de Pete Dorcas, exasperada de impaciência*- Mason, temo que tenha de emitir um mandato de prisão contra o seu cliente Arthur Cartright, por motivo de loucura.- Que fez ele agora? - perguntou Mason.- Parece que aquele caso do cachorro uivador é pura fantasia dele. Clinton Foley contou-me o suficiente para me fazer acreditar que o homem não é somente um louco perigoso, mas que possui ainda um complexo homicida capaz de o levar a cometer actos de violência.

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- Quando é que Foley lhe disse isso? - perguntou Mason, consultando o relógio de pulso.- Há pouco.- Esteve aí no escritório?- Está aqui, - respondeu Dorcas.- Bem, então retenha-o aí. Eu tenho o direito de ser ouvido nisto. Sou o advogado de Mr. Cartright e quero que se faça justiça ao meu cliente.Sem dar tempo a que Dorcas formulasse qualquer evasiva, desligou, voltando-se para Della Street:- Pronto, Della; ligue para Cartright. Diga-lhe que desejo vê-lo imediatamente. Mande-o sair de sua casa e ir para um hotel qualquer, registando-se sob o próprio nome, mas sem deixar ninguém saber onde vai. Diga-lhe

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para lhe telefonar em seguida dando o nome do hotel a fim de que você me possa avisar. Recomende-lhe se manter afastado da casa dele e daqui do escritório até que eu o veja. Vou ao escritório do Procurador Distrital para ver o que há.Na rua, fez sinal a um "táxi" e gritou ao motorista: - "Para a Promotoria Distrital a toda a pressa, pago as multas.Dentro em pouco, Perry Mason encontrava-se frente de Pete Dorcas, que estava sentado à secretária. No seu rosto lia-se uma expressão de aborrecimento, do outro lado da mesa, uma enorme figura levantou-se com esforço de uma cadeira e voltou-se para encarar Pérry Mason, inquisidoramente. O homem tinha cerca de seis pés de altura, ombros largos, tórax amplo e braços longos. A cintura, embora um tanto grossa, não chegava a prejudicar o porte atlético. Talvez tivesse quarenta anos e, quando falou, fê-lo com voz ressonante.- Creio que o senhor é Perry Mason, o advogado de Mr. Cartright?Perry Mason assentiu rapidamente.- Sim, Sou o advogado de Cartright.- Eu sou Clinton Foley, vizinho dele - disse o homem, estendendo a mão e sorrindo cortezmente.Perry Mason deu dois passos em frente, tomou-lhe a mão e depois de um superficial aperto, virou-se para Dorcas.- Sinto havê-lo feito esperar, Pete, mas é importante. Preciso saber o que há.- Não há nada, - disse Dorcas - excepto que eu estou ocupado e você tomou-me uma porção de tempo ontem à tarde, com a história de um cachorro uivador que não uivou e agora chega-se à conclusão de que o seu homem, é louco varrido.- Por que pensa que ele é louco?- Por que pensou você que ele o era? - inquiriu Dorcas com irritação. - Telefonou-me dizendo que

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ele era louco e que queria um médico presente para o examinar.- Não - disse Mason devagar, - não me interprete mal Dorcas. Eu sabia que o homem estava mal dos nervos e quis saber se era isso; nada mais.- Não, você pensou - disse Dorcas com forte sarcasmo. - pensou que o homem era louco e quis verificá-lo, antes de se meter em complicações.- Que complicação? - inquiriu Mason.

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- Você bem sabe o que eu quero dizer - retorquiu Dorcas. - Entrou aqui com um homem que desejava expedir um mandato de prisão contra um cidadão rico e proeminente. Pois aqui está ele, e o que me disse é bastante.Perry Mason encarou Pete Dorcas fixamente. Sob o olhar directo de Mason baixaram-se os olhos do Promotor.- Foi na melhor das intenções que aqui entrei - disse Mason devagar. - Queria ter uma atitude honesta para consigo, a fim de que você também a tivesse comigo. Disse-lhe que o homem era nervoso. Ele havia-me dito que o era, e que a causa disso tinham sido os uivos constantes do cachorro. Há uma postura que proíbe a posse de um animal que perturbe o sossego da vizinhança. O meu cliente tem direito à protecção dessa lei, mesmo no caso de ter acontecido que um homem tenha recorrido a um pistolão político...- Mas o cachorro não uivou - exclamou Dorcas irritado. - A questão é esta.A voz de Foley interpôs-se na discussão.- Perdoem-me, cavalheiros. Permitem-me dizer uma palavra?Perry Mason nem sequer se voltou para ele. Continuou a olhar firmemente para o Promotor, Dorcas, no entanto, ergueu os olhos. No seu rosto transparecia alívio.- Porque não! - • disse. - Fale!

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- Mr. Mason - começou Foley, - se eu falar francamente, tenho a certeza de que me desculpará. Sei que o senhor deseja conhecer os factos. Compreendo a sua situação neste caso e quero louvá"lo pelo caminho justo que seguiu para proteger os interesses do seu cliente.Perry Mason voltou-se lentamente para ele, e mediu de alto a baixo, com um olhar pouco amistoso, o corpo grande do homem.- Ponha isso de lado e continue a explicação - disse- Este homem, Cartright - disse Foley - é sem dúvida alguma, um desequilibrado mental. Alugou a casa vizinha à minha. Tenho a certeza de que os proprietários não sabiam a espécie de inquilino com quem estavam tratando. Cartright tem uma empregada: uma governanta surda, Não tem amigos, nem conhecidos, ao que parece. Permanece virtualmente em casa, o tempo todo.- Ora - disse Perry Mason de modo belicoso - não lhe parece que ele tem o direito de fazer isso? Talvez não goste da vizinhança.- Escute, Mason - você não pode...- Por favor, senhores - interveio Foley. - Deixem-me explicar. Deixem-me tratar disto. Com licença, Mr. Dorcas, mas eu compreendo a atitude de Mr. Mason. Ele pensa que eu trouxe o apoio de uma influência política e que os interessados do seu cliente estão a ser postos em perigo.- Não - disse Foley, sorrindo amistosamente. - Eu apenas expus os factos a Mr. Dorcas, Como disse, o seu cliente é um homem muito esquisito. Leva virtualmente a vida de um ermitão. Além disso espiona-me constantemente das janelas de sua casa.. Tem um binóculo e controla cada movimento que faço.- E não foi por acaso que o fez? - perguntou Mason.Dorcas hesitou um instante, depois deixou-se cair de novo na sua cadeira giratória, deu de ombros e acendeu um cigarro.- Continue - disse Perry Mason - estou ouvindo.- O meu cozinheiro chinês - disse Foley - foi o primeiro a chamar a minha atenção. Ele notou as lentes do binóculo. Mr. Mason, compreenda-me, por favor. Eu considero Mr.

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Cartright apenas um desequilibrado mental que não sabe o que faz. Queira, compreender, também, que tenho várias testemunhas para confirmar tudo o que eu vou dizer.- Pois sim - perguntou Mason - o que é que o senhor vai dizer?- Vou queixar-me contra esta espionagem constante - disse Foley. - Torna-se difícil conservar os meus empregados, É aborrecido tanto para mim, como para os meus hóspedes. O homem anda de um lado para outro a apontar-me o binóculo. Nunca acende as luzes do andar superior da casa. Anda constantemente pela casa às escuras com o binóculo na mão, controlando e espionando tudo o que faço. É um vizinho perigoso.- Mas afinal, - disse Mason - será crime uma pessoa fazer uso do seu binóculo?- O caso não é esse - disse Dorcas - e você sabe-o muito bem, Mason. O homem é um demente.- Mas o que o leva a pensar assim? - inquiriu Mason.- Porque ele queixou-se de um cachorro uivador e o cachorro nunca uivou - disse Dorcas.- O senhor tem um cachorro, não é verdade? - perguntou Mason a Foley.- Certamente - respondeu Foley, conservando o seu tom conciliador.- E pretende afirmar que ele não uivou?- Sim; o cão nunca uivou.- Não uivou há duas noites?- Não.

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- Eu falei a esse respeito com o Dr. Cooper. - disse Dorcas - e ele disse-me que se houver, presente no cérebro do seu cliente, uma mania de perseguição aliada à alucinação de um cachorro uivador e ao medo de que uma morte ocorra na vizinhança, ele pode ser vítima de uma fúria, homicida, de um momento para o outro.- Está certo - disse Mason. - Você já tomou a sua resolução. Eu também tomei a minha. Vai prendê-lo, não é verdade?- Proponho que se investigue acerca da sua sanidade mental - disse Dorcas.- Continue - disse-lhe Mason. - A mesma coisa que você me disse ontem, vou dizer-lhe agora. Se você Vai mandar investigar sobre a sanidade do homem, será necessário que alguém assine uma queixa. Quem o fará, Você?- É possível - disse Dorcas.- É melhor ter calma - disse Mason. (Estou a preveni-lo apenas...- Prevenindo-me de quê?- De que se você assinar uma queixa alegando que o meu cliente é demente será melhor que faça uma investigação mais completa do que a que fez até hoje. Caso contrário, vai haver aborrecimento.- Calma, senhores - disse Foley. - Por favor, não nos exaltemos. Afinal de contas, trata-se apenas de se fazer o que é de direito pelo pobre Mr. Cartright. Eu nem sequer lhe tenho má vontade. Mr. Cartright é um vizinho que se tornou insuportável. Todavia, tenho a certeza de que a sua conduta é causada por um desequilíbrio mental. Desejo que se faça uma investigação, mais nada. Caso se constate que o cérebro do homem não está descontrolado, então eu tomarei providências para que ele não repita as suas afirmações sobre o meu cachorro e sobre a minha vida doméstica.

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Dorcas dirigiu-se a Perry Mason:- Você não vai ganhar nada com isso, Perry. Foley está inteiramente dentro dos seus direitos. Você bem sabe que trouxe Cartright aqui, com o fim de prevenir qualquer processo por acusação maliciosa. Se Cartright nos fez uma confissão inteira e completa dos factos, agiu dentro dos seus direitos. Se os torceu ou falsificou, não.Mason soltou uma risada áspera.- Está tentando fixar as bases para um processo, não é verdade? - perguntou a Foley.- Não - disse Foley.- Bem, eu estou apenas a dizer-lhes algo que vocês esqueceram - observou Mason. - Nenhum mandato de prisão foi emitido, nenhuma queixa foi registada. O delegado da Promotoria Distrital decidiu escrever-lhe uma carta. A coisa foi mais ou menos assim, não é verdade, Dorcas?- Legalmente sim - disse Dorcas devagar. - Mas se se constatar que o homem é louco, terei de tomar medidas...- Está bem - disse Mason. - Todas as suas ideias sobre a loucura do homem, baseiam-se no facto de Mr. Foley ter declarado que o cachorro não uivou, não é verdade?- Naturalmente, mas Mr. Foley disse que tem testemunhas para comprovar a sua declaração.- Isso diz ele - continuou Mason obstinadamente - mas enquanto você não entrevistar estas testemunhas, não poderá saber qual dos dois é louco. Talvez seja Foley.Foley riu, mas o riso foi mecânico e o seu olhar cintilou.- Bem, então, pelo que estou vendo, você quer que antes de agirmos, façamos investigações, não é isso? - perguntou Dorcas.- Naturalmente - disse Mason. - Com a palavra do meu cliente, você não fez; mais do que escrever uma

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carta. Se quiser escrever a Mr. Cartright, levando-o ao conhecimento de que Mr. Foley declarou que ele é louco, estou de acordo. Mas se pretende a gir baseado na palavra de Mr Poley eu me empenharei em defender os direitos do meu cliente.Dorcas estendeu o braço, pegou no telefone e pediu:- Gabinete do Delegado.Depois de um momento, continuou:- Quero falar com Bill Pemterton... Alô... Bill... aqui é Pete Dorcas. Escute: nós estamos aqui em baixo numa discussão que envolve dois milionários de Milpas Drive. Há uma questão sobre um cachorro uivador. Um deles diz que o cachorro uiva; o outro afirma que não. Um acusa o outro de loucura. Perry Mason foi contratado para representar um deles e pede uma investigação. Você pode ir até lá e esclarecer a coisa?Houve um momento de silêncio. Depois Dorcas disse:- Bem, desça imediatamente.Desligou o telefone e, voltando-se, encarou Perry Mason com firmeza.- Pois bem, Perry, você iniciou esse negócio. Vamos fazer uma investigação. Se ficar provado que o seu homem anda fazendo falsas declarações e que é um desequilibrado mental, trataremos de emitir contra ele uma ordem de prisão, a menos que você descubra algum parente e mantenha o homem preso particularmente.- Agora sim - disse Mason - você começou a falar com sensatez. Por que não me disse isso antes?- Não lhe disse o quê?- Que eu podia encontrar algum parente e manter o homem preso?

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- Bem - disse Dorcas - ele pôs em reboliço este escritório com um caso criminal que parece ter sido inteiramente sem fundamento. Depois, veio Mr. Foley e fez-nos acreditar que a sua segurança estava sendo posta em perigo...

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- Exactamente - disse Perry Mason - era a isso que eu me opunha. Não na rancores, Pete, mas eu estou representando um cliente, e quando represento um cliente, luto por ele até à última barricada, se for preciso.Dorcas suspirou, fez Um gesto com as mãos e em seguida deixou-as cair espalmadas sobre a mesa.- Essa qualidade tem você, Perry. Ninguém poderá dizer que não se bate por um cliente. Você é duro.- Não quando o meu cliente é tratado com justiça - disse Mason.- Enquanto eu estiver neste cargo, os seus clientes serão aqui tratados com justiça - respondeu-lhe Dorcas. Bill Pemberton irá até lá fazer uma investigação.- Quero ir com ele - disse Mason.- O senhor pode ir, Mr. Foley? - perguntou Dorcas.- Quando? - indagou Foley.- Imediatamente - disse Mason, - Quanto mais cedo, melhor.- Sim - disse Foley, devagar - posso irUm vulto fez silhueta contra o vidro da porta da frente. Depois a porta abriu-se e um homem ossudo, de uns quarenta e cinco anos entrou no escritório com um riso bem humorado*- Alô pessoal! - saudou ele.- Alô Pemberton! - respondeu Mason.- Bill - disse Dorcas. - Este é Mr. Foley, Uma das partes na controvérsia.O Delegado e Clinton Foley trocaram Um aperto de mão. Depois, Pemberton estendeu a mão a Mason.- Belo combate o seu naquele caso de homicídio, Um excelente trabalho de detective. Quero cumprimen-tá-lo. - De que se trata? - inquiriu Pemberton a Dorcas.- De um cão uivador - disse o Promotor Distrital.- Por que não lhe dá um pedaço de bife, para lhe calar a boca?

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- Ele já está calado - riu Foley. - Aí é que está a dificuldade.- Foley lhe contará a história pelo caminho - disse Dorcas. - A história começou com uma queixa sobre um cão uivador, e agora derivou em espionagem, mania de homicídio e não sei mais o quê. Vá até lá e veja o que há. Fale com as testemunhas e faça depois um relatório. Eu agirei de acordo com o seu relatório.- Quem são as testemunhas? - indagou Pemberton. Foley levantou os dedos e contou:- Para começar., há Cartright que afirma que o Cachorro uiva, e a sua governanta que pode dizer que ele uiva, mas, se o senhor falar com ela, verá que é surda como um poste e portanto não poderá ouvir nem um trovão. Depois, há a minha mulher que esteve doente com gripe, mas que já melhorou. Embora ainda esteja de cama, poderá conversar consigo. Ela sabe que o cachorro não uivou. Há ainda Ah Wong, o meu criado chinês. Thelma Benton, a minha governanta, e... o próprio cachorro.- Quer dizer que o cachorro vai declarar-me se uiva ou não? - perguntou Pemberton.

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- O cachorro poderá mostrar-lhe que está satisfeito, e que os uivos nunca constaram do seu programa - sorriu Foley, metendo a mão no bolso e tirando uma cigarreira de couro. - Aceita um charuto?- Obrigado - disse Pemberton, tirando um.- O senhor? - perguntou Foley estendendo a cigarreira a Mason.- Obrigado - disse o advogado. - Prefiro os meus.- Já dispensei a este caso uma porção de tempo - disse Dorcas sugestivamente - e...- Está bem - trovejou Bill Pemberton bem humorado - não percamos mais. Vamo-nos embora.

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CAPÍTULO IV

Quando o carro do delegado se aproximou do passeio, Bill Pemberton perguntou:- A casa é aquela?- É aquela mesmo - respondeu Foley - mas não estacione aqui. Continue pela entrada de automóveis. Estou construindo um prolongamento na minha garagem e os trabalhadores estão com tudo em desordem por aqui. Terminam o serviço esta tarde e então espero não ser mais incomodado por eles.- Com quem falaremos primeiro? - perguntou Pemberton.- O senhor é quem decide - disse Foley com dignidade. Mas eu creio que depois de ter falado com minha mulher não precisará dar-se ao trabalho de ouvir outras testemunhas.- Não - disse Pemberton - nós vamos ouvir todas. O cozinheiro chinês está em casa?- Certamente - respondeu Foley. Continue pela entrada de automóveis, se quiser chamá-lo-ei ao seu quarto. É provável que o senhor deseje ver onde ele dorme. É por cima da garage.- O senhor não está a aumentá-la?- Estou a aumentar a garage, não o quarto. É um andar apenas. O apartamento do cozinheiro fica sobre a garage.- Não tem motorista? - perguntou Pemberton.- Creio que o lugar foi feito para o apartamento do motorista - admitiu Foley - mas eu não tenho motorista. Guio eu próprio o meu carro.- Bem, então - disse Pemberton - falemos com o chinês. Concorda, Mason?- Para mim tudo serve - disse Mason. A única coisa que quero, é que você fale com o meu cliente antes de se ir embora.- Oh, decerto! A casa dele é aquela, Mr. Foley?- É aquela ali, ao norte.O carro deslizou pela entrada de automóveis e parou em frente de uma construção onde trabalhavam homens com um zelo repentino, indicando um desejo de impressionar bem, o dono da propriedade e possivelmente evitar qualquer queixa, pela lentidão com que o trabalho estava sendo feito.- Subam até lá - disse Foley. - Eu vou buscar Ah Wong.Pemberton começou a subir os primeiros degraus de uma escada que rodeava o lado cimentado do edifício. Parou ao ouvir o som de uma porta batendo e uma voz de mulher dizer:- Oh! Mr. Foley, preciso vê-lo imediatamente. Há coisas que...As palavras tornaram-se inaudíveis, quando a mulher, vendo o carro da polícia, baixou a voz.Bill Pemberton hesitou, depois voltou-se e encaminhou-se para o fundo da residência.

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- Aconteceu alguma coisa ao cachorro, Foley? - perguntou.- Não sei - respondeu Clinton Foley.Uma mulher jovem, usando um vestido caseiro e um avental, encaminhou-se rapidamente para Foley. Trazia a mão e o braço direito envoltos numa ligadura. Tinha talvez vinte e sete, ou vinte e oito anos. Os cabelos estavam alisados para trás. O rosto não tinha "maquillage" e toda ela dava a impressão de eficiência doméstica. Entretanto Uns toques hábeis de pintura, uma mudança de roupas e uma ondulação nos cabelos, teriam sido suficientes para a tornarem bastante bonita.Bill Pemberton fitou-a com os olhos semicerrados.- A minha governanta - explicou Foley.- Ah! - exclamou Pemberton significativamente. Foley voltou-se ligeiro, começou a dizer qualquer coisa, mas depois calou-se e esperou que a mulher chegasse perto dele.- O que foi que houve?- Prince mordeu-me - disse ela, - Ele estava doente.-Como foi isso?- Não sei} mas creio que ele foi envenenado. Estava esquisito. Então, peguei num punhado de sal e pus-lhe na língua. Ele cerrou os dentes e mordeu-me..Foley olhou para a mão enfaixada.- Grave? - perguntou- Não, creio que não - disse ela.- Onde está ele agora?- Fechei-o no seu quarto de dormir, depois do sal ter feito efeito. Mas achei que o senhor devia saber - refiro-me ao envenenamento.- Ele está melhor, agora?- Parece estar completamente curado.- Teve convulsões?- Não, ficou deitado, a tremer. Parecia estar numa espécie de torpor.Foley assentiu com a cabeça e virou-se para Pemberton.- Mr. Benton, este é Mr. Pemberton, um agente de polícia e esse é Mr. Perry Mason, um advogado. Estão investigando uma acusação feita por vizinhos.- Uma acusação feita por vizinhos? - perguntou Mrs. Benton, dando um passo atrás e abrindo os olhos desmesuradamente, com surpresa.- Sim, há uma acusação de que estamos cometendo aqui uma infracção.- Qual?- O cachorro - disse Foley. - Queixaram-se de que...

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- Um momento - disse Pemberton. - Deixe-me falar, por favor.A jovem olhou para Pemberton e em seguida para Foley. Este assentiu e Pemberton disse:- Este cachorro é um cão polícia chamado Prince?- Sim, senhor.- E vive aqui, nesta casa?- Sim senhor, naturalmente. Ele pertence a Mr. Foley.- Há quanto tempo está aqui?- Nós estamos aqui há cerca de um ano.- O cachorro também?- Sim, senhor.- Ele uivou?

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- Não, senhor. Latiu ontem uma vez quando um mascate chegou à porta, mas não soltou nenhum uivo.- E de noite? Soltou algum uivo?- Não, senhor.- Latiu?- Não, senhor.- Está certa disso?- Claro que estou.- Não tem agido de maneira estranha?- Bem, ele pareceu-me estar envenenado - disse ela - e eu tentei dar-lhe um pouco de sal, Foi o que Mr. Foley me dissera para fazer; nestas circunstâncias. Quem sabe se não o devia ter feito. Talvez ele estivesse apenas com uma espécie de ataque, mas. . .

- Não foi isso o que eu quis dizer - interrompeu Pemberton. - Perguntei se o cachorro aparentou algum sintoma estranho, além dessa história do envenenamento.- Não, senhor.Pemberton voltou-se para Perry Mason.- Acha possível que o seu cliente tivesse tentado envenenar o cachorro, Mason?- De modo algum - respondeu Perry Mason, com firmeza.- Compreenda - disse Foley precipitadamente - que eu não estou a acusar Mr. Cartright. Não creio que ele fosse capaz de envenenar um cachorro, embora na realidade não seja responsável pelos seus actos.- Bem - disse a jovem com firmeza - como foi não sei, mas alguém lhe deu veneno. Estou disposta a jurar. Ele só melhorou quando lhe dei o sal.- Para que serve o sal? - perguntou Pemberton a Foley.- É um vomitório poderoso e imediato - disse Foley. Pemberton voltou-se de novo para a rapariga.- E a senhora está disposta a jurar que ele não tem uivado?- Claro que estou.- Se ele tivesse uivado, a senhora teria ouvido?- Sim.- A senhora dorme na casa?- Sim, no andar superior.- Quem há mais na casa?- Ah Wong, o cozinheiro, mas ele dorme por cima da garage. E Mrs. Foley, claro.- Creio que talvez fosse melhor que o senhor falasse com minha mulher - disse Foley, - Ela poderá dizer-lhe...- Perdão - disse Mrs. Benton. - Eu não queria dizer-lhe diante destes senhores, mas a sua senhora não está.Foley fitou-a com uns olhos que mostravam uma surpresa incrédula,- Não está? - disse. - Valha-me Deus pequena, ela não podia ter saído. Está convalescente de uma gripe.- No entanto, ela saiu - disse Mrs, Benton.- Como? Os carros estão na garagem!

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- Foi num táxi*- Valha-me Deus! - exclamou Foley. A criatura quer matar-se. Por que havia de sair, quando está convalescente?

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- Não sei, senhor.- Ela disse para onde ia? Foi fazer compras, visitas, ou o quê? Recebeu recados? Foi alguma coisa urgente? Vamos, fale! Não seja tão misteriosa.- Ela deixou-lhe um bilhete, senhor.- Um bilhete?- Sim.-Onde está?- Lá em cima, no quarto dela. Deixou-o em cima do toucador e pediu-me para verificar que o senhor o recebia.Foley parou fitando a mulher, com a testa franzida, o olhar subitamente duro.- Ouça - disse - você está a esconder-me alguma coisa.A governanta baixou os olhos.- Ela levou uma maleta.- Uma maleta? - exclamou Foley. - Foi para um hospital?- Não sei. Ela não disse nada. Apenas deixou o bilhete.Foley olhou para o agente de polícia. - Pode desculpar-me por um momento? - perguntou.- Pois não! - disse Pemberton. - Vá!Foley dirigiu-se com passos largos para o interior da casa. Perry Mason O lhou para Mrs. Benton, estudando-lhe fixamente a fisionomia.- Houve algum mal entendido entre a senhora e Mrs, Foley, antes dela ter partido? - inquiriu o advogado.A jovem empertigou-se e olhou para ele com arrogância.- Não sei quem o senhor é, mas creio que não sou obrigada a responder à sua absurda pergunta, ou às suas sórdidas insinuações - disse ela. E voltando-se com desdém, entrou na casa.Pemberton sorriu para Perry Mason e mordeu a ponta do charuto.- Você levou a sua conta!- A pequena esforçou-se por parecer o mais feia possível - disse Mason, franzindo as sobrancelhas. - Mas é jovem demais para ser governanta e é bem possível que enquanto Mrs. Foley esteve na cama, tenha havido qualquer coisa que motivou a sua repentina partida.- Você não está a falar mal da vida alheia, não é verdade, Mason? - perguntou Pemberton.- Não - disse Mason com gravidade - estou conjecturando, nada mais.- Porque se entretém a fazer conjecturas?- Porque quando um homem acusa um cliente meu, afirmando que ele é louco, este homem deve preparar-se para uma luta comigo.A porta do fundo abriu-si e Mrs- Benton apareceu.- Com licença - disse ela. - Mr. Foley quer que os senhores entrem. Não devia ter procedido como procedi. Peço-lhes desculpa.- Não fale mais nisso - disse Bill Pemberton. - A falta foi nossa - e olhou para Perry Mason.- Eu vim aqui - disse Perry Mason - afim de colher informações e verificar que o meu cliente era tratado com justiça.- Não - disse Pemberton devagar - nós viemos aqui para verificar se o cachorro tinha uivado. A nossa intromissão na situação aqui da casa, não vai além disso, segundo creio...Perry Mason nada disse.

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A jovem levou-os, pela porta do fundo, à cozinha. Um chinês baixo e franzino, vestindo um avental de cozinheiro, fitou-o com uns olhinhos brilhantes, que se assemelhavam a missangas.- Nós estamos tentando descobrir se o cachorro... - começou Mason, mas foi interrompido por Pemberton.- Que é que há? -perguntou o advogado.- Espere um pouco, Mason, por favor. Deixe que eu me encarrego disso. Sei mais ou menos como se lida com estes chineses.- Como é o seu nome? - perguntou.- Ah Wong.- Cozinha aqui?- Eu cozinha.- Sabe que patrão tem cachorro?- Sabe bastante.- Ouviu cachorro fazer barulho? Ouviu fazer uivo de noite?O chinês sacudiu a cabeça, devagar.- Cachorro não uiva? - perguntou Pemberton.- Não uiva - disse o chinês. Pemberton encolheu os ombros.- Pronto - disse - já temos tudo o que precisamos. Você mesmo pode ver como as coisas são, Mason. O seu homem está sofrendo da bola, nada mais.- Bem - disse Mason - eu teria feito as perguntas a este chinês de um modo um pouco diverso.- Está certo - disse Pemberton - eu sei como se lida com eles. Tenho carradas de experiência deste assunto. Eles não sabem outra espécie de "língua". Desse modo falam e aprendem o inglês, e só assim você consegue alguma coisa deles. Se começa a empregar uma porção de palavras difíceis, eles não compreendem e dizem que sim a tudo, sem saberem sequer o que estão afirmando.- Creio - disse Mrs. Benton - que Mr. Foley gostaria que os senhores esperassem na biblioteca. Ele irá ter com os senhores dentro de alguns minutos.

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Mrs. Benton abriu a porta da cozinha e os dois homens passaram por uma copa, uma sala de jantar e uma sala de estar. Viraram à esquerda e entraram numa biblioteca, cujas paredes estavam forradas de livros. As janelas eram altas e tinham pesadas cortinas que, quando cerradas, impediriam toda a entrada de luz exterior. No centro da sala havia uma mesa enorme, e aqui e ali várias poltronas, cada uma delas tendo ao lado um abat-jour de pé.- Creio - disse Mrs. Benton - que se os senhores se sentassem um momentinho...Abriu-se uma porta com estrondo e Clinton Foley parou no limiar, com o rosto contorcido de emoção e os olhos a reluzirem. Trazia um papel na mão.- Bem - disse ele - está tudo acabado. Os senhores não precisam de se preocupar mais com o cachorro.O agente de polícia tirou uma fumaça do charuto e disse:- Já deixei de me preocupar com ele, logo que falei com esta pequena e com o cozinheiro chinês. Vamos agora ver o Cartright.Foley riu com um riso áspero e metálico. Ao ouvi-lo, Pemberton tirou o charuto dos lábios e fitou-o com uma expressão perplexa.- Que há? - perguntou.

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- Minha esposa deu-se ao capricho de fugir - disse Clinton Foley, endireitando o corpo com dignidade. - Partiu com outro homem.Pemberton nada disse. Perry Mason parou com os pés afastados, observando Foley e a jovem governanta. Depois, lançou um rápido olhar a Pemberton.- Talvez lhes interesse saber - disse Foley com a grave dignidade de quem está tentando dissimular as suas emoções - que o objecto das afeições dela, o homem que me suplantou não é outro se não o "cavalheiro que morava aqui ao lado, o nosso estimado Mr. Arthur Cartright, o homem que fez todo esse escarcéu por causa do cachorro uivador com o fito de me levar perante as autoridades, e realizar a sua planeada fuga com a minha mulher.Perry Mason falou baixo para Pemberton:- Bem, isso prova que o homem não é louco.Foley entrou na sala com passos largos, olhando paraPerry Mason com ar feroz.- Chega, cavalheiro. O senhor está aqui por tolerância, apenas. Guarde as suas observações para si mesmo.Perry Mason não se moveu. Permaneceu com os pés afastados, os ombros erectos, os olhos estudando o homem sombriamente.- Estou aqui para representar o meu cliente - disse. - O senhor acusou-o de loucura e ofereceu-se para apresentar provas. Estou aqui para verificar que a coisa seja tratada de tal modo, que os interesses dele não venham a ser prejudicados.Clinton Foley parecia fora de si. Levou atrás a mão direita. Tinha a boca contorcida e trémula. Pemberton deu um rápido passo em frente.- Ora, ora Mr. Foley - disse ele em tom apaziguador - não perca a calma.Foley aspirou profundamente, controlando-se com esforço, no instante preciso em que parecia estar prestes a levar o punho direito ao queixo de Perry Mason.Perry Mason permaneceu perfeitamente calmo, não recuando uma polegada, sequer.Foley voltou-se devagar para Perberton e disse numa voz baixa e engasgada:- Há qualquer coisa que se possa fazer com um patife daqueles? Não podemos emitir um mandato de prisão contra ele?- Creio que o senhor pode - disse Pemberton.

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Mas isso compete ao Promotor. Como sabe que ela fugiu com Cartright?- Di-lo ela neste bilhete. Tome, leia.Enfiou o papel nas mãos de Pemberton e voltou-se rápido, encaminhando-se para a outra extremidade da sala. Acendeu um cigarro com mão trémula, mordeu o lábio e depois, tirando um lenço do bolso, assoou o nariz com força.Mrs. Benton continuava na sala, sem se desculpar ou dar qualquer explicação. Por duas ou três vezes olhou para Foley, mas ele estava de costas, parado em frente da janela, olhando sem ver, para o lado de fora.Perry Mason adiantou-se e espiou por cima do ombro de Pemberton, enquanto este desdobrava o bilhete.Pemberton virou-se, afim de impedir que Mason pudesse lê-lo, mas Mason bem humurado, pôs-lhe uma mão no ombro, obrigando-o a voltar-se.- Seja camarada - disse.Pemberton não fez mais esforço para ocultar o conteúdo do bilhete.Era um bilhete escrito a tinta e dizia:Caro Clinton:

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Foi com enorme relutância que me decidi pelo que estou prestes a fazer. Conheço o seu orgulho e sei quanto a publicidade lhe desagrada. Esforcei-me por fazer isto de tal maneira que você será prejudicado o menos possível. Afinal de contas, você foi bom para mim. Pensei que o amava. Até há bem "poucos dias, era absolutamente sincera nessa crença. Depois, descobri quem era o nosso vizinho. A princípio senti-me zangada, ou julgava estar. Ele espiava-me com um binóculo. Devia ter-lhe dito, mas alguma coisa me levou a ocultar-lhe isso. Desejei vê-lo e quando você saiu, arranjei uma entrevista.

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Não, Clinton, eu não posso continuar a viver consigo. Na realidade, não o amo. O que houve foi apenas uma fascinação de momento - qualquer coisa que já se extinguiu. Você tem apenas um grande magnetismo pessoal. Sei de tudo quanto aqui en casa tem acontecido e não o censuro, porque acho que você não deve ser censurado. Estou certa de que não o amo. Creio mesmo que nunca o amei. Acho que tudo foi apenas aquela fascinação, aquele encanto hipnótico e especial que você exerce sobre as mulheres. De qualquer modo, vou-me embora com ele, Clinton. Faço-o de tal maneira, que você será poupado a toda a publicidade. Nem mesmo a Thelma Benton eu disse para onde vou. Ela sabe apenas que parto com uma maleta.. Pode dizer-lhe que fui visitar alguns parentes, se assim o desejar. Se você não der publicidade ao assunto, pode estar certo de que não serei eu a fazê-lo.A seu modo, você foi bom para mim. Satisfez a todos os meus desejos materiais. A única coisa que não me pode dar é o amor de um homem sincero. Não pode também saciar a fome de minha alma, o que somente ele consegue.Parto pois, com ele, na certeza de que serei feliz. Por favor, tente esquecer-me.Creia-me sua amiga sincera,Evelyn.

Mason disse em voz baixa:- Ela não menciona o nome de Cartright.- Não - disse Pemberton, - mas menciona-o como sendo o vizinho.- E - prosseguiu Mason no mesmo tom de voz, - há algo mais na carta que...Foley voltou-se de repente. O trágico pesar que tão fortemente parecia tê-lo afectado desaparecera. A sua

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voz e as suas atitudes, revelavam uma cólera fria e intencional- Ouça - disse - sou um homem rico. Estou disposto a dar o último centavo que possuo, para trazer esse patife à barra do tribunal. Ele está louco e a minha mulher também. Estão ambos loucos Esse homem desfez o meu lar, acusou-me de um crime, enganou-me, armou-me laços, traiu-me. Por Deus que pagará tudo isto! Quero que o senhor o prenda. Hei-de processá-lo por todos os motivos que puder - violação de leis, cruzamento de fronteira, ou qualquer outra coisa. Não se poupe a despesas. Eu pagarei a conta, não importa em quanto monte.- Está certo - disse Bill Pemberton, dobrando a carta e devolvendo-a a Foley - Voltarei e farei um relatório. Seria melhor que o senhor viesse comigo. Falará com Pete Dorcas, que poderá descobrir algumas acusações contra esse homem. Depois, poderá contratar alguma agência particular de detectives, se quiser gastar dinheiro.- Gostaria de saber - disse Perry Mason - se há aqui um telefone que eu pudesse usar.

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Foley olhou-o com fria cólera.- Pode usar o telefone e depois ir-se embora.- Obrigado pelo convite - disse Perry Mason com calma. - Usarei o telefone, do mesmo modo.

CAPÍTULO V

Perry Mason chamou Della Street ao telefone.- Della, aqui é Mason, Estou em casa de Clinton Foley, o dono do cachorro, contra quem o Cartright se queixou. Conseguiu falar com Cartright?- Não, chefe - disse ela. - Liguei para lá de dez em dez minutos, durante mais de uma hora e ninguém atendeu.- Está bem - disse ele. - Creio que ninguém atendera. Parece que a mulher do Foley fugiu com o meu cliente.- O quê? - exclamou ela.- A mulher deixou um bilhete, explicando tudo ao Foley. - respondeu ele - Ele está furioso e vai prender Cartright. Ele e Pemberton estão a caminho do escritório do Delegado, para tentar obter um mandato de prisão.- Sob que acusação?- Ora, eles procurarão algo com que possam incriminá-lo - disse Mason de bom humor. - É evidente que Cartright se valeu desta desculpa, como de uma armadilha, para afastar Foley de casa. Quando Foley foi ao gabinete do Delegado, esta manhã, Cartright fugiu com a esposa dele. Naturalmente, lá na Procuradoria eles não gostarão disso. O assunto vai fornecer uma história engraçadíssima para os jornais.- E os jornais vão ter conhecimento? - perguntou Della Street.- Não sei. Por enquanto, não posso dizer nada, mas vou trabalhar no caso. Quis apenas que você soubesse que já não é preciso tentar falar com Cartright.- O senhor voltará logo para o escritório?- Não sei, creio que ainda me demorarei um pouco.- Vai falar com o delegado? - perguntou ela.- Não - respondeu ele, - você não conseguirá encontrar-me em parte alguma, até que eu apareça ou telefone novamente, mas há uma coisa que eu quero que faça. Telefone à Agência de Detectives Drake e faça com que Paul Drake deixe tudo o que porventura estiver fazendo, e vá ao meu escritório. Quando eu chegar quero encontrá-lo aí.- Está bem. Alguma coisa mais?- Não, é tudo. Até a vista.Perry Mason desligou, saiu da pequena cabine onde ficava o telefone e encontrou os olhos hostis da governanta.

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- Mr. Foley disse-me para o mandar sair - disse ela.- Está certo - disse Mason, - eu vou sair, mas você podia ganhar uns vinte dólares para os alfinetes, se quisesse fazer um trabalhinho.- Não quero dinheiro algum para alfinetes. Tenho ordem de o pôr na rua.- Se você me conseguisse uma fotografia de Mrs. Foley - disse Mason, - receberia 20 ou talvez 25 dólares.O rosto da governanta não mudou de espressão.- As ordens que eu recebi - disse com frieza - são para o pôr na rua.

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- Bem - disse Mason, - você quer ter a bondade de dizer a Mr. Foley, quando ele voltar, que eu tentei suborná-la, afim de conseguir uma fotografia da mulher dele?Neste momento, a campainha do telefone retiniu, Mrsr Benton franziu as sobrancelhas, olhou para Perry Mason e, por um momento, deixou cair a máscara da sua atitude. Quando falou, havia uma petulância feminina no tom de sua voz.- O senhor quer fazer o obséquio de sair? - perguntou.- Pois não - disse Mason. - Vou Já,Ela acompanhou-o à porta da frente. Quando passaram pelo hall, a campainha tocou mais duas vezes.- Quer que chame um táxi? - perguntou ela.- Não - disse Mason - não se preocupe.Subitamente, voltando-se para Mason, ela perguntou:- Por que está tão ansioso por conseguir um retrato de Mrs. Foley?- É só para ver que aspecto tem ela - retorquiu Mason de bom humor.- Não, não era para isso. O senhor tem alguma razão.Mason estava prestes a responder, quando a campainha tocou novamente, acompanhada de pancadas na porta. A rapariga emitiu uma exclamação de aborrecimento

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e correu a abri-la. Três homens enveredaram pelo corredor dentro.- Clinton Foley mora aqui?-perguntou um deles.- Sim - respondeu Mrs Benton.Perry Mason, dando um passo atrás, abrigou-se nas sombras do corredor..- Trabalha aqui um cozinheiro chinês? Um sujeito chamado Ah Wong?- Sim"- Muito bem, vá chamá-lo! Nós queremos falar com ele.- Ele está na cozinha.- Pois então vá lá e traga-o. Diga-lhe que queremos falar com ele.- Mas, quem são os senhores?- Somos da polícia. Da polícia de imigração. Estamos fazendo uma estatística para saber quantos chineses há aqui. Temos um forte palpite de que ele entrou no país ilegalmente. Vá buscá-lo.- Vou avisá-lo - disse ela, e rodou nos calcanhares, passando quase a correr por Perry Mason.Os três homens, sem se aperceberem da presença do advogado, seguiram logo atrás dela.Depois de um momento, Perry Mason voltou-se e seguiu-os. Parou na copa e escutou a voz dos polícias.- Então, Ah Wong, onde está o seu certificado? - perguntou um dos homens. - Não tem chuck jee?- Não sabe - disse o chinês.- Oh sim, sabe sim! -disse o homem. - Onde estão os seus papéis? Onde está o seu chuck jee? Você compreende tudo muito bem.- Muito não sabe - disse o chinês com um gemido de desespero na voz.Houve uma risada bem humorada e, depois, o homem disse:- Está bem, Ah Wong, venha conosco. Mostre-nos

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onde dorme. Mostre onde guarda as suas coisas. Nós ajudamos-lhe a procurar o seu chuck jee.- Não sabe, não sabe - choramingou o chinês. - Talvez você samasse alguém, pá fazê intépleta do que se tlata.- Deixe-se disso e vamos.- Não compreende. Quelo intépleta.Um dos homens riu.- Ele compreende tudo muito bem. Olhem para a cara dele.Perry Mason ouviu a voz da governanta erguer-se num protesto.- Não podem esperar até que Mr. Foley volte? Eu sei que ele fará tudo o que puder por Ah Wong. É muito rico e pagará qualquer multa ou fiança.- Nada feito, irmã - disse um dos homens. - Há muito que nós andávamos à procura de Ah Wong, e agora, nem na Casa da Moeda há dinheiro suficiente para o fazer ficar aqui. Ele veio clandestino do México, Será mandado de volta para a China, imediatamente. Venha Ah Wong, prepare as suas coisas.Perry Mason voltou-se. Na ponta dos pés, tomou o caminho por onde viera antes, saiu pela porta da frente e desceu as escadas que levavam do terraço de entrada à calçada. Por ela seguiu até chegar à casa do lado norte, onde morava Arthur Cartright. Entrou no passeio de cimento que cortava um relvado bem tratado, subiu a correr os degraus do terraço da frente, e premiu o botão da campainha.Pôde ouvi-lo retinindo no interior da casa, mas não escutou sinal de movimento. Bateu então, com os nós dos dedos, nas almofadas da porta. Também não obteve resposta. Caminhou ao longo do terraço até chegar a uma janela, e tentou espiar por ela, mas as cortinas estavam cerradas. Voltou à porta e tocou a campainha. Houve um leve som de movimento no interior da casa, depois

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um rastejar de passos e uma cortina foi afastada de uma janelinha circular, no centro da porta. Um rosto fino e cansado, espiou por ele, enquanto uns olhos fatigados e inexpressivos o estudaram.Momentos depois, uma chave girou na fechadura e a porta abriu-se.Perry Mason encontrou-se em frente de uma mulher magra, de cinquenta anos, cabelos encarnecidos, olhos que davam a impressão de terem perdido a cor, uma boca fina e resoluta, um queixo longo e um nariz reto.- Que deseja? - perguntou ela, no tom monótono do uma pessoa surda.- Quero falar com Mr. Cartright - disse Perry Mason em voz alta.- Não ouço. O senhor precisa falar um pouco mais alto.- Quero falar com Mr. Cartright, Mr. Arthur Cartright - gritou Mason.- Não está.- Onde está?- Não sei; ele não está em casa.Perry Mason deu um passo para ela e colocou a boca junto ao ouvido da mulher.- Escute - disse - sou o advogado de Mr. Cartright. Preciso vê-lo imediatamente.Ela recuou e estudou-o com os seus olhos cansados e incolores. Depois sacudiu a cabeça, devagar.- Eu ouvi-o falar de si - disse. - Sabia que ele tinha um advogado. Ontem à noite, ele escreveu-lhe uma carta e depois saiu. Deu-me a carta para pôr no correio. Recebeu-a?Perry Mason acenou com a cabeça.- Como é o seu nome? - perguntou ela.

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- Perry Mason - gritou ele.- É isso mesmo - disse ela. Era este o nome que havia no envelope.

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O seu rosto estava inteiramente calmo, sem o mínimo sinal de expressão, e a voz conservava o mesmo tom monótonaPerry Mason aproximou-se dela novamente e, colocando os lábios junto ao seu ouvido, gritou:- Quando é que Mr. Cartright saiu?- Ontem à noite, por volta das dez e meia.- Não voltou depois?- Não.- Levou mala?- Não.- Empacotou alguma coisa?- Não, ele queimou algumas cartas.- Parecia que se estava a preparar para ir a algum sítio?- Queimou cartas e papéis, é tudo quanto sei.- Disse para onde ia, quando saiu?- Não.- Ele tinha automóvel?- Não, não tinha.- Chamou um táxi?- Não, foi a pé.- Não viu que caminho ele tomou?- Não, estava escuro.- A senhora incomoda-se se eu entrar?- Não adianta nada o senhor entrar. Mr. Cartright não está em casa.- Incomoda-se se eu entrar e esperar até que ele volte?- Ele esteve fora a noite inteira, Não sei se voltará.- Disse-lhe que não voltaria?- Não.- Os seus ordenados estão pagos?- Isso não é da sua conta.- Eu sou o advogado dele.- Mesmo assim, o senhor não tem nada com isso.

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- Não sabe o que continha a carta que você levouontem ao correio?- Não, isso não é da minha conta. Trate o senhor da sua vida que eu trato da minha.- Ouça - disse Perry Mason. - Isto é importante. Quero que você entre e passe uma revista à casa, para ver se encontra alguma coisa que me ajude. Tenho de encontrar Arthur Cartright. Se ele foi a algum lugar, preciso descobri-lo. Veja se encontra algo que me forneça uma pista. Quero saber se ele foi de comboio, de automóvel ou de avião. Ele deve ter reservado passagens ou feito qualquer coisa.- Não sei - disse a mulher. - Isso não é da minha conta,. Eu cuido da casa dele, mais nada. Sou surda. Não ouço o que se passa.

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- Como se chama?- Elizabeth Walker.- Há quanto tempo conhece Cartright?- Há dois meses.- Sabe alguma coisa sobre os amigos dele, sobre a sua família?- A única coisa que sei é que cuido da casa.- Vai ficar aqui?- Naturalmente que vou. Estou encarregada de ficar aqui. É para isso que me pagam.- Quanto tempo ficará, se Mr. Cartright não voltar?- Ficarei até o meu prazo terminar.- Quando é que termina?- Isso é da minha conta, senhor advogado - disse ela. - Adeus! - E bateu a porta com força.Perry Mason permaneceu um instante parado em frente da porta, com um leve sorriso nos lábios. Depois, voltou-se e desceu a escada.Ao chegar à calçada, sentiu nos cabelos da base do pescoço um estranho arrepio. Isto levou-o a voltar-se e olhar. Teve tempo de ver, numa das janelas da casa de

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Clinton Foley, as cortinas voltarem ao seu lugar. Mas não pôde ver o rosto que daquela janela o estivera observando.

CAPÍTULO VI

Paul Drake era um homem alto, de ombros descaídos, com uma cabeça que pendia para a frente e olhos de expressão brincalhona. A longa experiência com as excentricidades da natureza humana tinham-no ensinado a tratar de tudo, mesmo do homicídio, com serena tranquilidade.Quando Perry Mason voltou, encontrou-o à sua espera no seu escritório.Mason sorriu para Della Street e disse ao detective:- Entre, Paul.Drake acompanhou-o ao gabinete.- O que há?- Já lhe conto - disse Mason,., - Em resumo, é o seguinte:Um homem chamado Cartright, morador em Milpas Drive, 4893, queixou-se de que um sujeito, chamado Clinton Foley, morador na mesma avenida no nº 4889, tinha um cachorro que uivava. Cartright é nervoso e talvez um pouco desequilibrado. Levei-o a Pete Dorcas, para obter uma queixa e consegui que o Dr. Cooper o examinasse. Cooper diagnosticou uma psicose-maníaco-depressiva. Nada de sério. É um desequilíbrio mais funcional do que orgânico. Eu insisti em que os uivos contínuos de um cachorro podem ser de graves consequências para um homem de tal instabilidade nervosa. Dorcas escreveu ao Foley, intimando-o a comparecer e explicar, visto um mandado de prisão não poder ser emitido. Foley atendeu à intimação e foi ao gabinete do Delegado da Promotoria, esta manhã. Eu também fui. Foley afirmou que o

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cachorro não tinha uivado. Dorcas estava decidido a prender Cartright sob a alegação de demência. Eu opuz-me. Ele ofereceu-se para nos levar à presença de testemunhas, afim

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de provar que o cachorro não tinha uivado. Pomos a casa dele. Sua esposa tinha estado doente, de cama. Poley tem uma governanta, aliás nada má. que tenta parecer mais velha do que é, e até feia. O cachorro é um cão polícia que eles tem há cerca de um ano. A governanta conta que alguém o envenenara de manhã cedo. Ela deu sal ao cachorro, fez com que ele vomitasse o veneno e salvou-lhe a vida. O cachorro, ao que parece, andou com ataques. Mordeu-a na mão e no braço direito. Ela usava uma ligadura que parecia ter sido feita por um médico, o que indica que a dentada deve ter sido grave, ou então que ela tivesse ficado com receio de que o cachorro estivesse raivoso. Ela afirmou que o cachorro não uivara. O cozinheiro chinês disse a mesma coisa. Foley foi falar com a esposa e descobriu que ela se tinha ído embora. A governanta disse que ela deixara uma carta. Foley leu-a. Nela, a esposa dizia que não o amava realmente e que partia com o vizinho, a quem realmente amava.A expressão brincalhona de Paul Drake, alargou-se num sorriso.- Quer dizer que ela fugiu com o sujeito louco da casa ao lado, que pensava que o cachorro tinha uivado?- A coisa parece que é assim mesmo. Poley afirma que Cartright fez a queixa sobre o cachorro sem base alguma, e visando apenas Afastá-lo de casa afim de que pudesse ter o campo livre para fugir com Mrs, Foley.Drake riu baixinho.- E o Foley ainda afirma que o Cartright é louco! - exclamou.Perry Mason sorriu.- Bem, quando eu saí, ele já não o afirmava com tanta convicção.

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- Que efeito produziu isso sobre ele? - perguntou o detective.- Pois isso é que me parece engraçado - disse Mason. - Eu seria capaz de Jurar que ele estava a fingir. Ou não ficou tão abatido como pretendia, ou então, há qualquer coisa que ele procurava encobrir. Creio que ele anda perdido de amores com a governanta. A meu ver, era pelo menos o que a esposa insinuava na carta. É um desses homens, grandes e dominadores, de voz vibrante, e forte personalidade. Tem muita pose e parece possuir bastante controle sobre si mesmo. Mostrou-se magnânimo e compreensivo esta manhã, no gabinete do Promotor, tentando obter uma ordem de prisão contra Cartright.Declarou que queria fazê-lo apenas porque achava que Cartright necessitava de tratamento e que já suportara bastante a espionagem do outro. Ora, um homem daquele tipo não perderia a calma como ele perdeu, ao descobrir que a esposa o abandonara. Isso não se concebe num sujeito como o Foley. Ele não é homem de uma só mulher. É dos que não perdem tempo.- Quem sabe se não há em Cartright alguma coisa que ele odeia? - sugeriu Drake.- Essa é também a conclusão a que chego - disse o advogado.-A carta da esposa dava a entender que ela já conhecia Cartright e que lhe tinha amizade. Cartright mudou-se para aquela casa há dois meses, Foley mora na dele há cerca de um ano, e há nisso qualquer coisa que eu não posso compreender. A casa é um palacete enorme e fica num bairro exclusivamente residencial. Foley deve ter dinheiro. No entanto, ele e a mulher contentavam-se apenas com um cozinheiro e uma governanta. Parece que não tinham mordomo, criado ou motorista. Creio que você descobrirá que eles não recebiam visitas de espécie alguma. De um modo geral, pode dizer-se que a casa é grande demais para eles. No entanto,

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embora vivessem sem motorista, Foley está a construir um prolongamento de cimento armado na garage. A coisa fica pronta hoje. Os trabalhadores estavam colocando o soalho. O resto da construção já está feito.- Afinal, que mal há nisso? - perguntou Drake. - Será que ele não tem o direito de aumentar a garagem?- Mas para quê? - perguntou Mason. - A garage tem lugar suficiente para guardar três carros, Foley guarda lá dois e não tem motorista.- Talvez ele quisesse comprar um carro para a governanta - disse Drake sorrindo.- É possível - admitiu Mason. - Ou pode querer apartamentos separados.- Deixe-se de fazer conjecturas - disse Drake. - Afinal, que quer você que eu faça?- Quero que você descubra tudo o que puder sobre o Foley. De onde veio ele e por quê. E a mesma coisa a respeito de Cartright. Quero que ponha a trabalhar tantos homens quanto convier. Desejo a informação com brevidade e, se possível, antes da polícia. Creio que você descobrirá qualquer coisa duvidosa em todo esse negócio. É bem possível que descubra que Cartright conhece Foley, ou o conheceu em alguma ocasião, no passado, e que veio alugar aquela casa com o propósito deliberado de o espiar.Paul Drake alisou o queixo pensativamente, e depois correu os olhos pelo rosto do advogado.- Seja franco - disse ele. - Diga-me a verdade!- Eu já lhe disse a verdade, Paul.- Ora, Perry, deixe-se disso! Você está representando um cliente que se queixou por causa de um cachorro uivador. O cliente bateu as asas com uma mulher casada. Ela, ao que parece, é bonita. Todos estão satisfeitos, excepto o marido ultrajado. Ele foi ao gabinete do Delegado. Você sabe que lá não conseguirá mais do que promessas. Não vejo, pois, razão para que se preocupe tanto

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com esse negócio, a menos que haja alguma coisa que não me tivesse dito.- Bem - disse Mason devagar - é possível que eu esteja representando mais do que uma pessoa. Ainda não me detive a determinar o aspecto ético e profissional da situação, mas pode ser que eu também represente Mrs. Foley.- Ora - disse Drake sorrindo - ela é feliz, não é?- Não sei - respondeu Perry Mason, semicerrando os olhos. - Quero conseguir todas as informações possíveis sobre a situação, descobrir quem são estas pessoas e de onde vieram.- Tem fotografias? - perguntou Drake.- Não, não tenho. Tentei conseguir algumas, mas não foi possível. Na casa do Cartright, há uma governanta surda, e tentei subornar a do Foley para ver se conseguia alguns retratos, mas foi inútil. Ela, com toda a certeza, contará tudo a Foley. Parece que ela lhe é fiel. Aqui, há outra coisa esquisita: pouco antes de eu sair, polícias da imigração chegaram e levaram o cozinheiro chinês para ser deportado, sob a acusação de que ele não tinha certificado. E um chinês de cerca de quarenta a quarenta e cinco anos e, a menos que seja natural do país, será provavelmente enviado para a China.- Será que o Foley não vai fazer nada por ele?- A pequena disse que sim - respondeu Mason.- Que pequena?- A governanta.- Pequena, hein?

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- Bom... ela é uma rapariga nova.- Você parece achar que ela tem muito "it".- Ela tem qualquer coisa que não sei bem o que é. Preocupou-se bastante em parecer simples e descuidada. Ora, as mulheres geralmente não fazem isso.Paul Drake mostrou os dentes num amplo sorriso.

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- As mulheres geralmente fazem tudo o que lhes da na cabeça.Perry Mason guardou silêncio por alguns minutos Com as pontas dos dedos a tamborilar em surdina sobre a superfície da mesa. Depois, olhou para Paul Drake.- A governanta disse que Mrs. Poley partiu num táxi, hoje de manhã. Ora, Cartright saiu de casa ontem à noite e não voltou. Devia estar muito apressado, pois mandou-me uma carta importante mas foi a criada quem a levou ao correio. Se você puder encontrar o táxi chamado por Mrs. Foley e descobrir onde ele a deixou, é bem possível que encontre alguma pista de Cartright. Mas isso, caso a governanta tenha dito a verdade.- E você acha que ela não disse?- Não sei. Quero que você consiga o máximo de informações para que eu possa peneirá-las e pô-las em ordem. Desejo o relatório mais completo possível. Empregue homens bastantes para que você possa ficar familiarizado com todos os ângulos do caso. Descubra quem são estas pessoas, onde estiveram, o que faziam e por que o faziam.- Quer que ponha um secreta atrás do Foley?- Sim, ponha. Quero-o vigiado apertadamente.Paul Drake levantou-se e, com passos lentos, caminhou para a porta.- Compreendi - disse ele - vou começar já.Abriu a porta, e desapareceu.O homem parecia caminhar com passos lentos e arrastados; no entanto, qualquer outro teria dificuldade em acompanhá-lo. A eficiência de Paul Drake, tanto no seu trabalho como nos seus gestos, residia no facto dele nunca se excitar ou desperdiçar tempo em movimentos inúteis.Quando o detective saiu, Perry Mason chamou Della Street ao seu gabinete.

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- Della, cancele todos os compromissos. Deixe tudo desimpedido. Prepare as coisas para agirmos.Os olhos cor de avelã da jovem estudaram-no calmamente.- O senhor sabe alguma coisa? - perguntou ela.- Não muito, Tenho apenas um palpite. Penso que vai acontecer algo.- Refere-se ao caso Cartright?Mason fez com a cabeça um sinal afirmativo.- E o dinheiro? Quer que o ponha no banco?Ele concordou novamente. Depois, levantou-se da cadeira e começou a andar pelo escritório, com os passos inquietos de leão passeando na jaula.- O que há - perguntou ela, - O que é que não vai bem?- Não sei - respondeu ele - mas as coisas não combinam.- O que quer dizer com isso?- Que elas não se ajustam. Olhando superficialmente para o caso tudo parece certo, excepto por uma ou outra junta solta. Mas estas juntas soltas são significativas. Há qualquer coisa que não está certo.

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- Tem ideia do que seja?- Por enquanto não, mas espero ter.Ela caminhou em direcção ao "hall" e chegando junto à porta, parou, lançando-lhe um olhar solícito e cheio de calorosa afeição.Perry Mason pôs-se a caminhar de um lado para o outro com os dedos enfiados nas cavas do colete, a cabeça inclinada para a frente, os olhos fitando fixamente o tapete.

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CAPÍTULO VII

Faltavam dez minutos para as cinco horas quando Perry Mason chamou Pete Dorcas ao telefone.- Pete, aqui é Mason. Como está a minha cotação consigo?- Não muito alta - respondeu Pete, mas na sua voz alta e queixosa, havia um traço de bom humor. - Você é belicoso como o diabo. Sempre que um camarada pensa que lhe está prestando um favor, mete-se numa encrenca. Você entusiasma-se demais pelos clientes.- Eu não estava entusiasmado - disse Perry Mason. - Protestei apenas quando vocês tacharam o homem de louco.Dorcas riu.- Sim, nisso tinha você razão. De louco não tinha o homem nada. Arranjou tudo com muita astúcia.- Que é que você está fazendo a esse respeito? Está fazendo alguma coisa?- Não. Foley entrou aqui todo afogueado, querendo emitir mandados de prisão a torto e a direito e virar tudo de pernas para o ar. Depois, não pareceu muito disposto a enfrentar a publicidade. Pediu-me para esperar até que comunicasse comigo novamente.- E você falou com ele depois disso?- Sim, há dez minutos.- E que disse ele?- Disse que a esposa telegrafara de uma cidadezinha ao sul do Estado de Midwick, creio, pedindo-lhe para não fazer nada que pudesse fornecer publicidade para os jornais. Avisou-o de que isso não traria nenhuma vantagem para ele e que iria prejudicar todos.- E que fez você?- Ora, o mesmo de sempre. Arquivei. Afinal, trata-se

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apenas de uma mulher que abandonou o marido, para fugir com outro qualquer. Eles são maiores e vacinados, e sabem o que estão a fazer. Nós não podemos desperdiçar uma porção de tempo e dinheiro, para trazer a um sujeito a esposa que o deixou, quando ela não deseja voltar. É claro que ele pode intentar uma acção contra Cartright, e, a julgar pelo modo como falava esta manhã, estava disposto a mover acções por adultério e por tudo quanto lhe veio à cabeça: mas eu tenho a impressão de que está a mudar de ideias.- Bem - disse Mason, - eu quis apenas que você conhecesse a minha maneira de pensar a respeito disso. Fui leal consigo desde o início. Dei-lhe oportunidade de ter um médico presente para examinar Cartright.- Bem, o homem não é louco, isso nem se discute - disse Dorcas. - Da próxima vez em que o vir, pago-lhe um charuto.

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- Não; quem vai pagar sou eu - disse Mason.- Aliás, acabei de encomendar uma caixa. Quanto tempo pensa ficar aí no escritório?- Uns quinze minutos.- Bem, fique por aí que os charutos já chegam.Desligou o telefone e chegando à porta disse para Della Street:- Ligue para o depósito de cigarros em frente do Palácio da Justiça e diga-lhes para levarem uma caixa de charutos de cinquenta centavos a Pete Dorcas e que me mandem a conta.- Muito bem - disse ela. - Mr. Drake telefonou enquanto o senhor falava com Dorcas. Disse que tinha alguma coisa para o senhor. Pedi para ele aqui chegar.- Onde é que ele estava? No escritório?- Sim.- Bem, quando chegar, faça-o entrar em seguida - disse Mason, voltando para a sua secretária. Mal acabara de se sentar quando Drake entrou na sala com

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aquele seu passo desajeitado que, disfarçando a eficiência dos seus movimentos, como que ocultava a ligeireza do seu caminhar. Todavia, antes que o trinco automático da porta a tivesse fechado, ele já estava sentado numa cadeira, diante do advogado, fumando um cigarro.- Então - perguntou Mason - o que descobriu?- Uma porção de coisas.- Muito bem, vá contando.Drake tirou uma caderneta do bolso.- É assim tanto que não pode ser dito sem uma caderneta? - perguntou Mason.- Se é. E vai custar-lhe um dinheirão.- Isso não tem importância; quero as informações.- Bem, já as temos. Tivemos de fazer muitas chamadas telefónicas e pôr duas agências a trabalhar no caso.- Isso não tem importância. Conte o que há.- Ela não é casada com ele - disse Paul.- Ela quem?- A mulher que vivia com Foley em Milpas Drive e usava o nome de Evelyn Foley.- Bem - disse Mason - Isso para mim não é grande surpresa. Para ser franco, Paul, esta foi uma das razões por que eu quis que você trabalhasse no caso. Tinha um palpite que ela não era casada com Foley.- Como chegou a esta conclusão? Foi por alguma coisa dita pelo Cartright? - inquiriu Drake.- Primeiro, conte-me o que sabe - disse Mason.- Bem, o nome dela não é Evelyn. Este é o nome do meio. O primeiro é Paula e o nome por extenso é Paula Evelyn Cartright. Ela é a esposa do seu cliente, Arthur Cartright.Perry Mason fez com a cabeça um gesto de assentimento.- Você ainda não me compreendeu, Paul.- Bem, eu provavelmente não o surpreenderei com

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nada - disse Drake, virando as páginas da caderneta. - Eis o que consta, o nome verdadeiro de Clinton Foley, é Clinton Forbes. Ele e sua esposa, Bessie Forbes,

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moravam em Santa Bárbara e eram amigos de Arthur e Paula Cartright. Da amizade, Forbes e Mrs. Cartright passaram ao amor e fugiram juntos. Tanto Bessie Forbes como Arthur Cartright, não sabiam para onde tinham ido os dois. Foi um verdadeiro escândalo em Santa Bárbara. Esta gente vivia na melhor sociedade e pode-se bem fazer uma ideia do escândalo tremendo que isto provocou. Forbes era bastante rico para ser independente e convertera todos os seus bens em dinheiro, de modo que pôde levá-lo consigo, sem deixar pista. Fugiram de automóvel e não deixaram nada que indicasse para onde iam. Cartright, no entanto, conseguiu localizá-los, não sei como. Localizou Forbes e descobriu que Climtòn Foley era na realidade o fugitivo e que Evelyn Foley não era outra senão Paula Cartright, sua esposa.- Então - disse Perry Mason lentamente - por que é que Cartright alugou a casa contígua e espiou Foley ou Forbes, como você lhe preferir chamar?- Que diabo podia ele fazer? - perguntou Drake - A mulher abandonara-o por espontânea vontade. Ele não podia chegar e dizer: "Aqui estou, meu bem", e fazê-la cair nos seus braços.- Você ainda não percebeu a coisa - disse Mason. Drake olhou para ele um instante e depois inquiriu:- Acha que ele estava planeando uma vingança?- Acho - respondeu Mason.- Bem - deduziu o detective - quando ele finalmente chegou ao ponto de executar o seu plano de vingança, não foi além de apresentar uma queixa contra o cachorro uivador. Isso não é lá uma grande vingança. Você já ouviu a história do marido enfurecido que fazia furos no guarda-chuva do homem que lhe cortejava a esposa?

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- Espere Um pouco - disse Mason. - Eu não estou a brincar. Estou falando a sério.- Bem, está certo - observou Drake. •- Vamos supor que você esteja falando a sério. Que vantagem nos traz isso?- Lá na Promotoria, eles acham que Cartright se queixou do cachorro uivador, visando apenas afastar Foley de casa, para que pudesse fugir com a mulher do vizinho.- E então? - perguntou o detective.- Isso não é coerente - disse o advogado. - Em | primeiro lugar, por que haveria ele de dar-se a todo este trabalho, a fim de afastar Foley de casa? Em segundo, porque deve ter havido alguma conversa prévia entre Cartright e sua esposa. Tendo decidido voltarem a viver juntos, por que diabo Cartright não foi ter com Foley, para lhe dizer umas verdades e levar sua esposa?- Provavelmente porque não teve coragem. Há pessoas assim..- Está bem - admitiu Mason paciente - Vamos supor que você tem razão nesse ponto. Depois, ele recorreu à lei, não é verdade?- É.- Teria sido muito mais simples se tivesse dado parte de que Foley estava vivendo ilegalmente com sua esposa, e deixado depois que a lei agisse. Ou então, poderia ter-me contratado como seu advogado. Eu teria ido; lá e tirado a mulher em dois tempos - se ela quisesse abandonar Foley, é lógico. Afinal de contas, Cartright tinha todos os direitos legais a seu lado.Drake sacudiu a cabeça.- Bem - disse ele - isso compete-lhe a si. O que me encarregou de fazer foi conseguir os factos para que você os pudesse ligar.Mason acenou com a cabeça vagarosamente.

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- E o que acha que aconteceu? - perguntou Drake.- Não sei - respondeu Mason, - mas posso afirmar-lhe que as coisas não combinam. Elas não se ajustam e não têm coerência. Quanto mais pensamos nelas, mais confusas parecem.- Mas afinal - disse Drake, - quem está você a defender?- Não sei bem - disse Mason com vagar. - Estou representando Arthur Cartright e também posso estar representando sua esposa ou a esposa de Foley. A propósito, que aconteceu a esta?- Refere-se à Forbes? - inquiriu o detective.- Foley ou Forbes, é tudo a mesma coisa. Eu conheci-o como Foley; foi assim que o conheci pela primeira vez e portanto é assim que lhe chamo.- Bem - disse Drake, - nós não tivemos a sorte de localizar Mrs. Forbes, por enquanto. Naturalmente, ela sentiu-se um tanto humilhada e deixou Santa Bárbara, mas não sabemos para onde se dirigiu. Você sabe como uma mulher se sente com estas coisas, particularmente quando um homem a abandona sem mais nem menos, levando consigo a esposa de um amigo.Mason balançou lentamente a cabeça e procurou O chapéu.- Creio que vou sair e falar com este tal Clinton Forbes, aliás Clinton Foley.- Bem - disse Drake, - cada um faz o que bem lhe apraz. Mas você poderá meter-se em apuros. Ele goza da reputação de ser um tipo zaragateiro e de ter um temperamento irascível.Perry Mason sacudiu a cabeça, parou um instante, depois voltou à secretária, sentou-se e pegou no telefone.- Della, ligue-me com Clinton Foley. Ele mora em Milpas Drive, 4889. Quero falar com ele pessoalmente.Ouviu-se o ruído da ligação e depois a voz de Foley vibrando com ressonante magnetismo.- Sim. Alô, alô.- Mr, Foley, aqui é Perry Mason, o advogado. Desejo falar com o senhor a propósito de um cliente.- Não tenho absolutamente nada a discutir com o senhor, Mr. Mason - respondeu Foley.Houve um momento de silêncio. Tudo quanto se podia ouvir era o zumbido do fio. Depois, a voz de Foley fez-se ouvir, já num tom mais baixo.- E qual é o nome desse cliente? - perguntou.- Bem - disse Mason - podemos tratá-lo pelo nome de Forbes, por exemplo.- Homem ou mulher? - perguntou Foley.- Mulher, uma mulher casada cujo marido fugiu, abandonando-a.- Mas afinal, que tenho eu a ver com isto? - inquiriu Foley.- Explicá-lo-ei pessoalmente.- Muito bem. Quando deseja encontrar-me?- Logo que seja possível.- Hoje à noite, às oito e meia?- Não pode ser mais cedo?- Não.- Muito bem; estarei em sua casa às nove horas - disse Mason, desligando.Paul Drake sacudiu a cabeça lugubremente.- Você arrisca-se muito - disse o detective. - É melhor que eu vá consigo, e você deve pelo menos levar uma arma.

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- Eu levo os meus dois punhos e a minha esperteza. Com eles é que eu luto. As vezes levo uma arma, mas nunca faço uso dela. Isto acostuma mal. Ensina a pessoa a fiar-se inteiramente na arma. A força deveria ser um último recurso.- Faça como quiser - rematou o detective.- E sobre a governanta? Você ainda não se referiu a ela.- A governanta não nwdou de nome.- Quer dizer que ela estava com Forbes antes dele se tornar Foley?- Isso mesmo. O nome dela. é Mrs. Thelma Benton. O marido foi morto num acidente de automóvel. Ela ocupava o cargo de secretária particular de Forbes, quando ele estava em Santa Bárbara. Acompanhou-o na viagem. Mas aqui há uma coisa esquisita; parece que Mrs. Cartright não sabia que Thelma Benton tinha sido admitida por Forbes como secretária. A jovem veio como governanta e Mrs. Cartright nunca soube que ela fora secretária do Forbes. Isto é estranho, não acha?- Nem tanto, pois Forbes tinha um escritório em Santa Bárbara, onde efectuava os seus negócios. Naturalmente fazia segredo sobre isso, pois estava convertendo os bens em dinheiro. É evidente que a secretária suspeitava disso e ele não quis deixá-la ficar - ou ela não quis ficar. Não sei bem qual dessas duas coisas aconteceu. Acompanhou-os quando eles partiram.- E o cozinheiro chinês?- É aquisição recente.Perry Mason ergueu os ombros.- Tudo isso é muito extraordinário - disse. - Mas, de qualquer maneira, hoje à noite terei bem mais que lhe contar. É melhor que fique no seu escritório, Paul, para que possa chamá-lo, se quiser qualquer informação.- Está bem - disse Drake. - E é bom que eu lhe diga que vou pôr dois homens do lado de fora, vigiando a casa. Você sabe que nós temos um secreta a vigiar Foley. Vou pôr outro. Assim, se houver qualquer sarilho, basta dar um pontapé numa. janela ou coisa parecida, e os homens entrarão.

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Perry Mason sacudiu a cabeça com o gesto impaciente de um gladiador sacudindo o cabelo dos olhos.- Que diabo! - exclamou. - Não vai haver sarilho nenhum!

CAPÍTULO VIII

A silhueta do casarão projectava-se contra o céu crivado de estrelas. Soprava um vento sul, um pouco úmido, trazendo a promessa de um céu nublado, mais tarde, quando a noite se adiantasse.Perry Mason consultou o mostrador luminoso do relógio de pulso. Eram exactamente oito e meia. Olhou para trás e viu a luz do automóvel desaparecendo numa esquina. Não viu sinal dos vigias que estavam de serviço. Com passos firmes e decididos, subiu os degraus que levavam da calçada de cimento ao pórtico e dirigiu-se à porta da frente da casa.Estava entreaberta.Perry Mason premiu a campainha. Não houve resposta. Esperou um momento; depois tocou novamente, com o mesmo resultado. Olhou para o relógio e franziu as sobrancelhas com impaciência. Deu alguns passos ao longo do terraço, parou, voltou e bateu à porta. Não obteve resposta. Aproximou-se da porta, olhou ao longo do corredor

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e viu uma luz saindo da porta da biblioteca. Enveredando pelo corredor bateu àquela porta. Não obteve resposta.Virou o trinco e empurrou a porta com força. Esta cedeu uns dois palmos e esbarrou contra qualquer coisa - algo que, embora pesado, cedia. Perry Mason esgueirou-se pela abertura da porta, e olhou para o obstáculo que a bloqueava. Era um cão, deitado de lado, com um furo de bala no peito e outro na cabeça. O sangue escorrera dos ferimentos, ao longo do soalho, e quando Mason empurrou a porta movendo o corpo, as manchas espalharam-se

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pelo chão. Mason ergueu a cabeça e inspeccionou a biblioteca com o olhar.A princípio nada viu, mas depois distinguiu, na extremidade da sala, uma mancha de sombra da qual sobressaía qualquer coisa acinzentada que, olhada mais de perto, mostrava ser a mão fechada de um homem.Perry Mason rodeou a mesa e acendeu a luz de um "abat-jour" de pé, para poder ver o canto da sala.Clinton Foley estava estirado no chão, ao comprido. Tinha um braço estendido e a mão fortemente fechada. A outra mão achava-se dobrada sob o corpo. O homem vestia um roupão de flanela marron e chinelos. Junto ao corpo formara-se uma poça vermelha, que reflectia a luz da lâmpada.Perry Mason não tocou no corpo. Inclinou-se para a frente e viu, aparecendo pela abertura do roupão, uma camiseta de ginástica. Notou também, no chão, a uns seis ou oito pés de distância do cadáver, uma pistola automática.Voltou a examinar o morto e notou, no queixo, qualquer coisa branca. Inclinou-se e constatou que era uma mancha de espuma endurecida. Parte do lado direito do rosto fora recentemente barbeada. As marcas da navalha eram claramente visíveis.Perry Mason dirigiu-se para o telefone e marcou o número do escritório de Paul Drake. Após um momento, ouviu a voz arrastada do detective.- Paul, aqui é Mason. Estou em casa de Foley. Você pode comunicar com os homens que vigiam a casa?- Eles vão telefonar para cá, dentro de quinze minutos - disse Drake. - Dei ordem para que me mandassem notícias de quinze em quinze minutos. Há dois homens de serviço. Um deles vai ao telefone, cada quinze minutos.- Está bem - disse Perry Mason. - Logo que eles

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telefonarem, faça-os ir imediatamente para o seu escritório.- Os dois?- Sim, os dois - disse Mason.- Que ideia é essa?- Já lá chego - disse Mason. - Quero que os homens que estavam de serviço vão ao seu escritório, para que eu possa falar com eles. Percebeu?- Percebi. Mais alguma coisa?- Sim. Quero que redobre de esforços para encontrar Cartright e a mulher.- Estou com duas agências a trabalhar nisso, agora, Espero notícias a qualquer momento.-Está bem, ponha mais duas. Ofereça uma recompensa. Faça tudo que puder. E quero também que você descubra Mrs. Forbes.

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- Refere-se à esposa que foi abandonada em Santa Bárbara?- Sim.- Tive algumas notícias que parecem frescas. Creio que ela vai aparecer de um momento para o outro. Tenho homens a trabalhar em novas pistas.- Está bemf ponha outros. Faça tudo o que puder.- Já sei - balbuciou Drake. - Agora, conte-me o que aconteceu. Qual é a causa de todo esse reboliço? Você tinha um encontro marcado com Foley às oito e meia, e são oito e trinta e oito e você diz que está a telefonar da casa dele. Entraram em algum entendimento?- Não.- Então que foi que aconteceu? - disse Drake.- Creio - respondeu Mason} - que será melhor que você não saiba nada antes de ter seguido as minhas instruções.- Está certo - disse Drake. - Quando o verei?- Não sei. Tenho algumas formalidades a cumprir. Talvez ainda demore. Mas chame os homens que estavam

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vigiando a casa e ponha-os em lugar auguro. Peche-os à chave no escritório, se for preciso. Não deixe ninguém falar com eles até que eu aí chegue Compreendeu?- Claro. Gostaria que você me dissesse tudo o que há.- Sabê-lo-á mais tarde, mas conserve os homens bem fechados.- Vou pô-los no frigorífico - prometeu Drake. Perry Mason desligou o telefone e marcou em seguida o número da polícia.Respondeu uma voz masculina.- Polícia? - perguntou Mason.- Sim.- Escute, tome nota disto: fala o advogado Perry Mason. Estou falando da casa de Clinton Foley, em Milpas Drive, 4889. Tinha um encontro marcado com Foley para as oito e meia. Vim até aqui e encontrei a porta da casa entreaberta. Entrei pelo corredor, vim à biblioteca e encontrei Clinton Foley morto. Deram-lhe dois ou mais tiros com uma automática, à queima-roupa.- Qual é o número? Milpas Drive, 4889?- Exactamente.- E o seu nome?- Perry Mason.- Perry Mason, o advogado?- Isto mesmo.- Está alguém consigo?- Não.- Quem mais se encontra na casa?- Ninguém que eu saiba.- Bem( então permaneça aí. Não toque em coisa alguma nem deixe entrar ninguém. Se houver mais alguém na casa, não deixe sair. Vamos mandar pessoal imediatamente.

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Perry Mason desligou o aparelho e procurou um Cigarro. Depois, reflectindo melhor, tornou a guardar a Cigarreira no bolso e voltou à biblioteca onde deu uma busca

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apressada e depois forçou passagem por uma porta que ficava ao fundo.Descobriu que ela dava para um quarto de dormir, onde havia uma luz acesa. Estendido sobre a cama, estava um traje de rigor, completo. Mason atravessou o quarto e entrou numa casa de banho. Numa prateleira via-se um aparelho de barba, creme de barbear e um pincel, ainda com espuma. A navalha tinha sido usada.Em volta de um cano, que levava água, à banheira, estava uma corrente de cachorro, e, perto dela, uma panela vazia. Perry Mason ajoelhou-se e examinou-a. O fundo estava untado com uma substância gordurosa e nas bordas havia duas ou três partículas de algo que parecia ter sido comida para cachorro.A corrente terminava num gancho de mola feito de tal modo que bastava comprimir as pontas, unindo-as, para que elas se abrissem, dando liberdade ao cão que a ela estivesse acorrentado.Mason voltou à biblioteca e, sem dar atenção ao cadáver do homem, dirigiu-se ao do cão Em torno do pescoço havia uma coleira já lustrosa pelo uso e com uma placa de prata, onde fora gravado o seguinte: PRINCE, PROPRIEDADE DE CLINTON FOLEY, MILPAS DRIVE, 4889. Havia também uma argola na coleira, à qual as pontas do gancho de mola da extremidade da corrente que Se encontrava no quarto de banho deveriam ajustar-se.Mason teve o cuidado de não tocar em nada. Andou pela sala, cautelosamente. Voltou ao quarto de dormir e daí passou à casa de banho onde fez uma segunda inspecção.Debaixo da banheira viu uma toalha. Puxou-a e notou que ainda estava úmida. Levou-a as narinas e

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sentiu o perfume do creme de barba. No momento em que colocou a toalha na posição em que a encontrara, ouviu o som de uma sirene de um carro de polícia.Perry Mason atravessou então a biblioteca e entrou no corredor, notando, ao tfazê-lo, que havia simplesmente lugar para ele se esgueirar pela abertura da porta sem mexer no corpo do cachorro, ainda estendido ao longo do soalho.Dirigiu-se pelo corredor à porta da frente e encontrou os polícias.*

CAPÍTULO IX

Luzes incandescentes batiam impiedosamente sobre o rosto de Perry Mason. A sua direita, sentado a uma mesinha, um taquígrafo tomava nota de tudo quanto ele dizia. À sua frente, o sargento-detective Holcomb fitava-o com uns olhos onde transparecia um misto de confusão e de irritação. Sentados em volta, na sombra, estavam três homens da Segurança.- Não há necessidade de toda essa encenação - disse Perry Mason.- Que encenação? - perguntou o sargento Holcomb.- Essas luzes fortes e tudo o mais. Vocês não conseguem confundir-me.O sargento Holcomb suspirou profundamente.- Mason - disse ele - você está escondendo algo e nós queremos saber o que é. Um crime tfoi cometido e você foi encontrado rondando o local.- Você pensa que fui eu quem o matou, não é isso? - replicou Mason.- Não sabemos o que pensar - disse Holcomb com irritação. - Sabemos que você representa um cliente que deu todas as indicações de estar atacado de uma incipiente mania homicida. Sabemos que você ocupa uma

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posição totalmente adversa a Clinton Poley, a vítima. O que não sabemos, é o que você lá fazia, como entrou na casa e quem está tentando proteger, embora estejamos certos de que tenta proteger alguém.- Talvez esteja a proteger-me a mim mesmo - sugeriu Mason.- É disso que começo a desconfiar - disse Holcomb.- Isso - disse Perry Mason num tom terminante - prova que bom detective você é. Se usasse o cérebro, compreenderia que o mero facto de eu ser um advogado representando interesses adversos a Clinton Foley, tê-lo-ia feito tomar muita cautela com o que disse e fez. Eu dificilmente seria o amigo que ele receberia num pouco convencional roupão de banho, com o rosto meio barbeado.- A pessoa que fez o trabalho - disse o sargento Holcomb, - arrombou a casa. A primeira coisa que aconteceu, foi o cachorro pressentir o intruso. Naturalmente o cachorro tinha o ouvido mais sensível do que o dono, O dono soltou-o e o intruso teve de matar o cachorro, em defesa própria. Ouvindo os tiros, Clinton Foley correu à sala, para ver o que havia e o intruso matou-o, também.- Tem a certeza disso? - perguntou Perry Mason.- Parece que foi assim.- Então, por que não me prende?- Por Deus que o farei se você não esclarecer este negócio. Nunca em minha vida deparei com um homem, num caso de crime, que se deleitasse em ser tão indefinido. Você diz que tinha um encontro marcado com Poley para as oito e meia, mas não apresenta nada que o prove.- Que espécie de provas posso eu apresentar?- Ninguém o ouviu marcar o encontro?.

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- Não prestei muita atenção a isso, no momento em que o fiz. Fi-lo de um modo casual, apenas.- E o táxi que o levou até lá?- Era um carro de aluguer. Não me lembro de que tipo.- Não tem o recibo?- É lógico que não. Não costumo andar por aí a arquivar recibos de taxímetros.- O que fez com ele? Deixou-o cair na calçada?- Não me lembro.- Não se recorda em que tipo de carro viajou? Se era amarelo ou vermelho?- Não. Diabo! Já lhe disse que não me lembro desses detalhes. Creio que não vou ser interrogado sobre tudo o que fiz. E digo-lhe mais, ainda: o modo colmo reconstitui a cena desse crime mostra que não sabe o que aconteceu.- Ah! - exclamou o sargento Holcomb, no tom exultante de alguém que vai ouvir uma confissão prejudicial. - Quer dizer que você sabe o que aconteceu, não é verdade?- Eu examinei o local do mesmo modo que vocês o fizeram - disse Perry Mason.- Muito bem - disse o sargento Holcomb com sarcasmo. - Continue e conte-me o que aconteceu.- Em primeiro lugar, - começou Mason - o cachorro estava acorrentado quando o assassino entrou na casa. Clinton Foley saiu, viu a pessoa e falou com ela durante um momento. Depois voltou e soltou o cachorro. Foi então que o cachorro foi alvejado e, depois disso, Clinton Foley.

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- Baseado em quê, afirma você tudo isso? - perguntou o sargento Holcomb. - Parece ter a certeza do que diz.- Teria você notado por acaso - perguntou Mason

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com um sarcasmo cortante, - uma toalha que está debaixo da banheira?O sargento Holcomb hesitou um instante e depois disse:- E o que tem isso?- Na toalha - disse Mason - havia creme de barbear.- Bem, e o que tem isso?- A toalha caiu ali quando Clinton Foley soltou o cachorro da corrente. Ora, quando um homem se barbeia, não põe creme de barba na toalha. Somente quando limpa a espuma do rosto é que faz tal coisa. E isso acontece geralmente quando ele é interrompido enquanto faz a barba. Nesse caso sim, ele limpa depressa a espuma supérflua do rosto. Ora, isso não foi o que fez quando o cachorro latiu pela primeira vez, ou quando pressentiu o intruso. Ele foi ao outro quarto, para ver porque é que o cachorro havia latido e deparou com o intruso. Falou com a pessoa, e, enquanto falava, foi removendo a espuma com a toalha. Então deve ter acontecido algo que o fez voltar e desacorrentar o cachorro. Foi nesse momento que o visitante fez fogo. Você pode imaginar tudo isso, partindo do facto de que havia espuma na toalha, se quiser usar o cérebro em vez de estar imaginando uma porção de perguntas tolas.Por um momento fez-se silêncio na sala. Depois, uma voz partindo da sombra que formava um círculo para além dos quebra-luzes das fortes lâmpadas incandescentes, disse:- Sim, eu vi essa toalha.- Se vocês compreendessem a importância dessa toalha - disse Perry Mason, - e a conservassem como um elemento de prova, conseguiriam imaginar como crime foi praticado. Mandem analisá-la e descobrirão que ela está cheia do creme de barba que foi removido do rosto de Clinton Foley. Pode-se notar que no queixo

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há um pouco de creme, mas não a quantidade que seria de esperar que houvesse, caso ele tivesse sido atingido enquanto tinha espuma no rosto. Também não há vestígios de espuma no chão, no lugar onde o rosto tombou.- Não vejo o que o possa ter impedido de limpar o rosto, antes de sair para ver quem estava no quarto. - protestou o sargento Holcomb, interessado, contra sua própria vontade.- Simplesmente porque ele deixou a toalha cair, quando desacorrentou o cachorro. Se ele tivesse desacorrentado o cachorro antes, não teria removido a espuma do rosto. Teria primeiro desacorrentado o cachorro e depois saído e removido a espuma.- Bem, então - disse o sargento Holcomb - onde está Arthur Cartright?- Não sei. Tentei encontrá-lo durante o dia. A sua governanta disse-me que ele se tinha ido embora.- Thelma Benton disse que ele fugiu com Mrs. Foley - observou o sargento Holcomb.- Sim, ela disse-me isso também - concordou Perry Mason.- E foi o que Clinton Foley disse a Pete Dorcas.- Também o soube - disse Mason fatigado. - Vamos repetir tudo isso de novo?

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- Não, não vamos - rebateu o sargento Holcomb. - Estou apenas a dizer-lhe que é bem possível que o seu cliente tenha fugido com Mrs. Foley e que, ouvindo dos lábios dela a história dos maus tratos sofridos das mãos do marido, ele tenha voltado, decidido a matar Clinton Foley- E o único elemento em que vocês se apoiam é no facto de Cartright ter tido uma desavença qualquer com Clinton Foley e de ter fugido com a esposa dele, não é o caso?- É um elemento mais do que suficiente.

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- Muito bem - disse Perry Mason. - Vou destruir essa sua hipótese. Se tal coisa tivesse acontecido, Arthur Cartright teria voltado com a intenção deliberada de matar Clinton Foley, não é verdade?- Creio que sim.- Muito bem. Nesse caso, Cartright teria entrado na casa, visto Clinton Foley, e disparado imediatamente, em vez de ter ficado ali a discutir com Foley, enquanto este limpava a espuma do rosto e ainda ficado parado, enquanto Foley ia desacorrentar um cão feroz. O mal de vocês, rapazes, é que quando encontram um homem morto começam logo a procurar alguém que possa constituir um bom suspeito, em vez de estudarem os elementos de prova e tentarem ver para onde eles levam.- Para onde é? - perguntou o sargento Holcomb.- Que diabo! - exclamou Perry Mason fatigado. - Até agora eu estive fazendo quase todo o seu trabalho de detective. Não vou fazê-lo todo. É você quem ganha um ordenado para isso e não eu.-Pelo que soubemos - disse o sargento Holcomb, - você foi muito bem pago, por tudo o que tem feito no caso.Perry Mason bocejou alto.- Sargento - disse, - esta é uma das vantagens da minha profissão, que também tem as suas desvantagens.- Tais como? - indagou curioso o sargento Holcomb.- Tais como o facto de se ganhar apenas pela habilidade que se tem - observou Mason. - A única razão pela qual recebo bom dinheiro pelo que faço, é porque demonstro habilidade ao fazê-lo. Se os contribuintes só lhe pagassem quando você apresentasse bons resultados, você teria de passar fome durante alguns meses, a não ser que mostrasse mais inteligência do que a que está demonstrando neste caso.- Basta! - exclamou o sargento Holcomb, numa voz trémula de indignação. - Você não tem o direito de me insultar dessa maneira. Afinal, você é um suspeito.- Foi o que deduziu. Por isso mesmo fiz a observação - disse Mason.- Ouça! - anunciou o sargento Holcomb, - ou você mente quando afirma ter estado lá às oito e meia, ou então está sendo vago de propósito, com o fim de confundir a conclusão. Ora, o exame policial mostra que Foley foi morto entre as sete e trinta e as oito horas, portanto, mais de quarenta minutos antes da chegada da polícia. Tudo quanto você tem a fazer, é esclarecer onde esteve entre as sete e meia e as oito horas, para ser ilibado de suspeitas. Porque diabo não coopera connosco?- Já lhe disse que não sei exactamente o que fazia a essa hora - disse Perry Mason. - Nem mesmo me dei ao trabalho de olhar para o relógio. Saí e jantei. Fui ao meu escritório, tornei a sair para a rua e caminhei um pouco, pensando e fumando, Tomei um carro de praça e fui ao meu encontro.- E o encontro era às oito e meia?- Sim; às oito e meia.

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- Mas você não pode prová-lo.- É lógico que não. Porque diabo teria de provar cada encontro que marquei? Sou advogado. É marcando encontros que me avisto com as pessoas. Portanto, o facto de constituir uma circunstância suspeita, é, peio contrário, a única coisa que prova que ele foi feito dentro da rotina comum dos negócios. Se eu pudesse apresentar uma dúzia de testemunhas para lhe provar que o marquei afim de falar sobre um assunto qualquer com Clinton Foley, você começaria logo a querer saber por que me dava ao trabalho de provar a hora para a qual ele tinha sido marcado. Aliás, você só faria isso se tivesse miolos. E digo-lhe mais outra coisa: que diabo

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poderia ter-me impedido de ir a casa do Foley às sete e meia, matado o homem, tomado um táxi para voltar à cidade, tomado outro táxi e voltado à casa dele às oito e meia, para atender ao meu encontro?Houve um momento de silêncio na sala. Depois, o sargento Holcomb disse:- Ao que parece, nada.- A questão é justamente essa - disse Perry Mason. - Somente no caso de o ter assassinado eu estaria bem mais inclinado a tomar o número do táxi que lá me levara as oito e meia, e a ter testemunhas para afirmarem que o meu encontro tinha sido a esta hora. - Não acha que era o que eu faria?- Não sei o que você faria ou não faria - disse o sargento Holcomb, irritado. - Quando a gente inicia um interrogatório, não faz nada com lógica. Porque diabo não esclarece o caso para depois ir para casa dormir e nos deixar trabalhando no assunto?- Eu não os estou a impedir de trabalhar nele - disse Perry Mason. Não estou particularmente interessado em ter estas luzes a queimar-me os olhos, enquanto vocês, detectives, se sentam em redor olhando para a minha cara, esperando descobrir na minha expressão fisionómica, algo que lhes forneça uma pista. Se apagassem as luzes e se sentassem no escuro, pensando um pouco, lucrariam muito mais do que sentados em volta, num círculo, com os olhos cravados em mim.- Saiba que não é o tipo de rosto que me deixa louco de entusiasmo - disse irritado o sargento Holcomb.- E Thelma Benton? - perguntou Perry Mason, - O que fazia ela?- Ela tem um álibi completo. Pode prestar contas de todos os minutos do seu tempo.- A propósito - disse Mason, - o que fazia você, na ocasião, sargento?

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- Eu? - perguntou o sargento.- Sim, você"- Está a tentar incluir-me no rol dos suspeitos? - perguntou ele.- Não - disse Mason. - Perguntei-lhe o que fazia.- Estava a caminho do escritório, - disse o sargento Holcomb. - Encontrava-me num automóvel, em qualquer lugar entre a minha casa e o escritório.- Quantas testemunhas pode trazer para provar o que diz? - perguntou Mason.- Não se faça engraçado - disse o sargento Holcomb.- Se você usasse os miolos, veria que não estou a fazer-me engraçado - observou Mason. - Estou a falar a sério. Quantas testemunhas pode trazer para o provar?- Nenhuma, é lógico. Posso provar quando estive em casa e a hora a que aqui cheguei.- AI é que está - disse Mason.

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- Está o quê? - perguntou o sargento Holcomb.- O ponto que deveria fazê-lo suspeitar do álibi perfeito de Thelma Benton. Sempre que uma pessoa pode apresentar um álibi completo, cobrindo o que fez em cada minuto de seu tempo, é porque tomou um cuidado enorme em preparar este álibi perfeito. É quando uma pessoa faz isso ou participou do crime e forjou um álibi ou então sabia que um crime ia ser cometido, e, por conseguinte, tomou grandes precauções para ter um álibi.Houve um longo momento de silêncio. Depois, o sargento Holcomb disse, numa voz quase pensativa:- Então você acha que Thelma Benton sabia que Clinton Foley ia ser assassinado?- Não estou absolutamente ao par do que Thelma Bentou sabia ou não, - observou Perry Mason. - Disse-lhe, apenas, que quando uma pessoa tem um álibi

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perfeito, em geral teve razões para o arranjar. Dentro da rotina de um dia de negócios, uma pessoa não dispõe de um álibi para cada minuto. Ela não pode provar onde esteve, mais do que você o prova. Aposto como não há um homem nesta sala que possa provar com testemunhas o que tfazia durante cada minuto, entre as sete e meia e as oito horas desta noite.- Bem - disse fatigado o sargento Holcomb, - o que está provado é que você não pode.- Lógico - disse Mason, - e se você não fosse tão cabeça dura, isto constituiria a melhor prova da minha inocência, em vez de uma indicação da minha culpa.- Você não pode nem ao menos provar que foi à casa do Foley às oito e meea? Não há ninguém que o tivesse visto ir, ou que soubesse que você tinha um encontro marcado? Ninguém o viu aqui às oito e meia?- Lógico - disse Perry Mason. - Isso posso eu provar.- Como? - perguntou o sargento Holcomb.- Com o facto de ter chamado a Polícia logo após as oito e meia, comunicando o crime. Isso prova que eu estava aqui a essa hora.- Você bem sabe que não é a isso que me refiro - disse o sargento Holcomb. - Quero dizer que você não pode provar que chegou cá precisamente às oito e meia.- É lógico que não .Nós já discutimos esse ponto.- Se já discutimos! - exclamou o sargento Holcomb. Depois, empurrou a cadeira para trás e levantou-se. - Você venceu, Mason. Vou deixá-lo ir. Está mais ou menos estabelecido aqui na cidade, de modo que nós poderemos fisgá-lo, quando bem o desejarmos. Não faz mal que lhe diga que, na verdade, não acredito que tenha sido você o autor do crime, mas tenho absoluta certeza de que está protegendo alguém e que esse alguém é um cliente seu. No entanto, fique sa bendo que

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em vez de proteger o seu cliente, a sua atitude me deixa ainda mais desconfiado.- E se você me explicasse porquê? - perguntou Mason.- Creio - disse o sargento Holcomlb devagar - que Arthur Cartright fugiu com a esposa de Foley, que ela lhe contou a história dos maus tratos e que Cartright voltou e matou Foley. Depois, penso que Cartright lhe telefonou( para contar tudo o que fizera e que quis entregar-se, mas você o aconselhou a não dar um passo enquanto lá não chegasse. Que para lá se dirigiu, e providenciou para que Cartright fosse depressa para um lugar qualquer, enquanto você esperava quinze ou vinte minutos, afim de telefonar à polícia.

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Na verdade, não há razão para que não tenha sido você mesmo quem removeu a espuma do rosto do morto e a pôs na toalha da banheira, próximo a corrente do cachorro.- O que é que isso me torna? Um cúmplice de após crime, ou coisa semelhante? - perguntou Mason.- É o que parece - disse o sargento Holcomb. - E se eu o conseguir provar, vou dar-lhe que fazer.- Alegra-me ouvi-lo dizer isso - disse Perry Mason.- Dizer o quê? - perguntou com aspereza o sargento Holcomb.- Que vai dar-me que fazer, caso consiga prová-lo. A julgar pelo modo como tem agido até agora, creio que, quer o consiga ou não, vai dar-me de facto muito que fazer.O sargento Holcomlb fez um gesto cansado:- Vamos, pode retirar-se. Mantenha-se pronto para que possamos chamá-lo para outro interrogatório, se for preciso.- Está certo - disse Mason. - Se a entrevista está terminada, apague essa luz infernal. Fiquei com dor de cabeça por causa dela.

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CAPÍTULO X

Perry Mason sentou-se no gabinete de Paul Drake. Este, balouçava-se numa cadeira de molas que rangia. Encostados à parede do escritório, sentados inconfortavelmente numas cadeiras de encosto duro, estavam dois homens.- Que ideia é esta? - Inquiriu Drake.- Que ideia? - quis saber Mason.- A ideia de me mandar retirar os homens do serviço.- Simplesmente porque eu já tinha tudo o que desejava e não quis que os seus homens fossem encontrados no bairro.- O que estava acontecendo por lá? - Indagou Drake.- Não sei - disse Perry Mason. - Não sabia mesmo que alguma coisa estava para acontecer, mas pensei que seria muito conveniente chamar para aqui os dois secretas.- Escute - disse Drake em tom queixoso. - Há uma porção de coisas sobre isso que você está a ocultar-me.- Acha? -perguntou Perry Mason acendendo um cigarro. - Pois eu pensei que era você quem estava encarregado de investigar coisas para me contar e não eu quem estivesse encarregado de as investigar, para lhe contar a ."l. São esses os dois homens que estavam de serviço?- Sim. O da esquerda é Ed Wheeler e o outro George Drake.Perry Mason olhou para eles e depois perguntou: - A que horas foram para lá, rapazes?- Às seis.- Estiveram lá ambos o tempo todo?- A maior parte do tempo. Um de nós ia ao telefone de quinze em quinze minutos.- Mas onde estavam vocês? Não os vi quando cheguei.- Pois nós vimo-lo muito bem - disse Wheeler com um sorriso.- Onde estavam? - tornou a perguntar Mason.- A alguma distância da casa - admitiu Wheeler, - mas de um lugar de onde podíamos ver tudo o que se passava. Tínhamos óculos de alcance para a noite e estávamos escondidos. Há uma casa desocupada meio quarteirão abaixo e ficámos num dos quartos.

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- Não lhes pergunte como entraram - disse Drake na sua voz lenta e arrastada. - É um segredo profissional.- Está certo - disse Mason. - Cada um de nós guarda os seus segredos profissionais. O que eu quero, rapazes, é que me contem exactamente o que se passou.Ed Wheeler tirou do bolso do casaco uma caderneta com capa de couro, virou as páginas com o polegar e disse:- Entrámos de serviço às seis horas. Cerca das seis-e-quinze, a governanta Thelma Benton saiu.- Pela porta da frente, ou pela dos fundos? - perguntou Mason.- Pela da frente.- Muito bem; onde foi ela?- Veio um homem buscá-la num carro.- Você tomou nota do número do carro? - perguntou Mason.- Claro. Era o 6M9245.- Qual era o tipo do carro? Coupé ou sedan?- Um coupé.- Continue. E depois?- Depois, as coisas acalmaram-se. Ninguém entrou ou saiu, até as sete e vinte cinco. Aliás, passava um pouco disso. Deviam ser sete e vinte e seis, mas eu digo sete e vinte cinco, para arredondar. Nesse momento, um táxi listrado chegou e uma mulher desceu.

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- Tem o número do táxi?- Sim, tenho.- Qual era?- 86-C.- Não há possibilidade de se ter enganado?- Nenhuma. Nós dois tínhamos óculos de alcance para a noite e conferimos ambos.- Saltou uma mulher e entrou na casa. O carro foi-se embora.- Não esperou?- Não, não esperou, mas doze minutos depois, voltou. É evidente que a mulher mandou o motorista fazer qualquer coisa e depois voltar.- Continue - disse Mason. - E ela, como era?- Não podemos precisar. Estava bem vestida e usava um casacão de pele, escuro.- Usava luvas?- Usava.- Viram-lhe o rosto?- Não muito bem, Compreende; estava escuro naquela ocasião. A luz da rua batia em cheio no táxi e isto fazia uma sombra no lugar onde a mulher desceu. Depois, ela caminhou para a casa e entrou.- Tocou a campainha?- Tocou.- Esperou muito para entrar?- Não; entrou logo, um ou dois minutos depois.- Acha que o Foley estava à espera dela?- Não sei. Ela foi até à casa, parou um minuto em frente da porta principal, e depois entrou- Espere um pouco - disse Mason. - Você disse que ela tocou a campainha. Como o sabe?

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- Vendo-a inclinar-se para a porta, imaginei o que fazia.- Ela não podia estar a abrir a porta com uma chave?- Sim, podia ter feito isso - disse Wheller. - Pensando bem, talvez seja mesmo o que tenha feito. No momento, imaginei que ela tocava a campainha, porque era justamente isso o que esperava que ela fizesse.- Acha possível que essa mulher pudesse ter sido Thelma Benton?- Creio que não. Quando Thelma Benton saiu, usava um casaco diferente. Esta outra estava com um casacão de pele, preto e comprido.- Quanto tempo lá esteve? - perguntou o advogado.- Quinze ou talvez dezasseis minutos. Anotei a partida do táxi, logo após a entrada dela. Doze minutos depois, o auto voltou. As sete e quarenta e dois, ela saiu.- Ouviu algum movimento por lá? Cães a latir ou outra coisa qualquer?- Não, não ouvimos. Mas, de qualquer maneira, não teríamos ouvido nada. Compreende, estávamos a meio quarteirão de distância. Foi o melhor lugar que encontrámos para vigiar. O chefe havia-nos dito que queria que estivéssemos absolutamente certos de não sermos descobertos. É provável que, quando escurecesse, tivéssemos podido chegar um pouco mais perto, mas durante o dia teríamos sido vistos num instante se nos puséssemos a rondar o local. Por isso, entrámos na casa vazia, que ficava um pouco abaixo e usámos um binóculo para ver o que se passava.- Continue - disse Perry Mason. - o que aconteceu depois?- Depois que a mulher se foi embora, nada aconteceu até que o senhor apareceu. O senhor chegou num táxi amarelo número 362 e eram, pelo meu relógio, oito e vinte e nove. Depois disso, não sabemos o que aconteceu. Telefonámos para Drake e ele mandou-nos abandonar o serviço imediatamente e vir para cá. Mas, quando estávamos

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a caminho, ouvimos o som de várias sirenes. Gostaríamos de saber o que aconteceu.- Muito bem - disse Mason. - Não queiram saber. Não é para isso que vocês ganham e sim para vigiar. Compreenderam?- Compreendemos.- Bem, então - disse Mason - aqui está o que quero que façam: descubram o motorista do táxi número 86-C, e tragam-no aqui. Não, esperem um pouco, não é preciso trazê-lo. Descubram-no e telefonem-me. Eu mesmo irei falar com ele.- Mais alguma coisa?- De momento não - disse Perry Mason, e virou-se para Paul Drake.- Você está tendo um trabalhão para descobrir essa gente de que eu lhe falei.Drake concordou.- Crei que tenho algo para si, Perry - disse ele, - mas vamos primeiro livrar-nos desses rapazes.- A caminho - disse-lhes Mason. - Vão ao escritório dos táxis e verifiquem quem era o motorista que guiava o 86-C. Telefonem em seguida para cá. Outra coisa: seria uma ótima ideia, vocês não darem ouvidos a falatórios enquanto estão de serviço.- Que quer dizer com isso? - perguntou Drake.- Que faço questão que o trabalho destes dois rapazes não seja outro que o de dois detectives particulares. Entendeu?- Creio que sim - disse Drake. - Vocês entenderam, rapazes?- Entendemos - disse Wheeler.

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- Bem, então, mãos à obra - acrescentou Mason, e ficou a observá-los enquanto eles saíam do escritório. O seu rosto imóvel e severo, parecia esculpido em granito. No fundo tristonho de seus olhos fixos brilhava uma luz.Quando a porta se fechou, voltou-se para Drake.

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- Paul, foi enviado a Clinton Foley um telegrama de Midwick, que dizem ter sido firmado pela mulher que passava por esposa dele, pedindo-lhe para não mover nenhuma acção criminal contra Cartright. Quero conseguir uma cópia fotográfica desse telegrama. Acha que pode obtê-la?- Vai ser difícil - disse Drake.- A dificuldade não interessa. Quero que a consiga.- Farei o que puder, Perry.- Providencie imediatamente.Paul Drake estendeu a mão para um telefone, parou um momento e depois disse:- Será melhor que eu faça a chamada de outro gabinete. Fique aí, que eu tenho algo para lhe contar.- Eu também tenho muito para lhe dizer - disse Mason. - Mas não vou fazê-lo agora.Drake passou para o outro escritório por uma porta de comunicação, que fechou atrás de si. Cinco minutos depois, voltou e acenou a cabeça em direcção a Perry Mason.- Creio que posso arranjá-la - disse.- Está bem - respondeu Mason. - Agora, conte-me o que descobriu...O telefone tocou. Paul Drake fez um gesto pedindo silêncio, levantou o auscultador, disse "Alô" e escutou.- Tem o endereço? - perguntou por fim. Acenou com a cabeça e depois voltou-se para Mason.- Quer tomar nota disso, Perry? Em cima da secretária há papel e lápis.Mason foi até à secretária, pegou numa folha de papel e pousou o lápis sobre ela.- Fale - disse.Numa voz lenta, Paul Drake disse: - Breedmont Hotel, Breedmont Hotel. Rua1 Nova, esquina Masondc. Quarto 76é e o nome é C, M. Dangerfieid., Parou um momento, e depois, voltando-se para Perry Mason, disse:- É isso mesmo, Perry. Mais nada.E dito isto desligou.- Que nome é este? - perguntou Perry Mason.- Esse é o nome sob o qual Mrs. Bessie Forbes está registada num hotel daqui da cidade. Quer ir vê-la? O número do quarto é 764.Perry Mason soltou um suspiro de alívio, dobrou o papel e guardou-o no bolso.- Até que enfim, estamos começando a orientar-nos.- Quer ir vê-la-agora? -perguntou Drake.- Temos que ver o motorista primeiro - disse Mason.- Vamos fazê-lo vir até aqui. Agora já não tenho tempo de ir até lá.- E esse motorista é assim tão importante?- Quero vê-lo em primeiro lugar - disse Mason. - Quero também um taquígrafo para tomar nota da conversa. Estou com vontade de fazer Della Street voltar ao escritório.Paul Drake sorriu.- Com essa pequena, você não precisa de se preocupar. Ela já está no escritório. Telefonou para saber se eu tinha notícias suas e eu disse-lhe que você mandara um S. O.

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S. dando ordem para afastar os secretas da casa de Foley e que me parecia que era alguma coisa importante. Então, disse-me que ia até ao escritório, esperar um pouco.- Esta é a espécie de colaboração que vale a pena - disse Perry Mason.O telefone tocou novamente. Drake levantou o auscultador, disse "Alô", escutou por um momento e depois fez a Perry Mason um gesto de assentimento com a cabeça.- Os rapazes localizaram o motorista. Perry. Ainda não falaram com ele, mas conseguiram saber, no escritório, onde é que ele se encontra. Ele acaba de aparecer com um relatório.- Diga aos rapazes que contratem o carro e vão para o meu escritório, mas que façam o motorista subir com eles. Arranjem qualquer desculpa para isso. Podem dizer-lhe que têm uma mala ou uma maleta para levar. Inventem qualquer coisa, contanto que o homem suba. Recomende-lhes para agirem imediatamente.Drake concordou, transmitiu as instruções de Mason, desligou o telefone e olhou para o advogado.- E agora?-perguntou. - Vamos esperar no seu escritório?Perry Mason concordou com um sinal de cabeça.

CAPÍTULO XI

O motorista mexeu-se inconfortàvelmente na cadeira e fitou Perry Mason de relance.- Que negócio é este? - perguntou o homem.- Queremos apenas obter algumas informações suas, - disse Mason. - Estamos reunindo algumas provas relacionadas com um caso.- Que espécie de caso? - perguntou o motorista. Mason fez um sinal a Della Street e esta começou a escrever uma série de sinais cabalísticos.- O caso - disse Perry Mason devagar, - é uma questão que envolve uma briga de vizinhos, sobre um cachorro uivador que parece ter degenerado em complicações. Ainda não sabemos bem a que ponto chega a gravidade da situação. Quero que você compreenda que as perguntas que lhe vou fazer dizem respeito apenas a uma briga de vizinhos e às acusações resultantes, feitas por ambas as partes.O motorista recostou-se na cadeira.- Isso serve-me - disse ele. - Mas o meu taxímetro está contando lá em baixo.- Não tem importância - disse-lhe Mason. - Pagarei o que ele marcar e mais cinco dólares. Está satisfeito?

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- Ficarei, quando tiver os cinco dólares. - disse o homem.Mason abriu uma das gavetas da secretária, tirou uma nota de cinco dólares e entregou-a ao motorista que a guardou no bolso e sorriu.- Agora sim - disse ele. - Fale.- Às sete e quinze, ou talvez um pouco antes, você tomou uma passageira em Milpas Drive, 4889 - disse Perry Mason.- Então é isso, hein? - disse o motorista.- É. É isso mesmo - respondeu Mason.- O que é que o senhor quer saber?- Como era ela?- Ora, chefe, é difícil de dizer. Lembro-me que estava vestida com um casacão de pele, preto, e que usava um perfume especial. Deixou um lenço no carro e eu cheirei-o. Ia levá-lo à Secção de Objectos Perdidos se ela não o reclamasse.

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- Que altura tinha ela?-perguntou Perry Mason. O homem encolheu os ombros.- Não pode dar-nos uma ideia?O motorista olhou em torno com um ar confuso. Perry Mason voltou-se para Della Street:- Levante-se, Della.A jovem pôs-se em pé.- Era da altura desta? - perguntou Mason.- Mais ou menos - disse o homem, olhando para Della Street, de modo apreciativo. - Mas não era tão bonita e talvez fosse um pouco mais gorda.- Lembra-se de que cor eram os seus olhos?- Não, não me lembro. Pensei que fossem pretos, mas talvez fossem castanhos. Tinha uma voz especial. Falava de um modo engraçado Depressa e fino.- Quer dizer que não se lembra muito dela, não é verdade? - perguntou Mason.- Não, patrão. Não me lembro. Ela era do tipo de que

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o senhor não gostaria... quer dizer de que eu não gostaria. O senhor sabe como é: há uma porção de meninas que entram num táxi e fazem logo camaradagem com a gente. Bem, ela não era dessas que dão confiança. Há também outras que entram num carro com um negócio em vista. Geralmente, vêm logo com uma proposta para cima da gente. Esta também não era desse tipo.- Prestou atenção às mãos dela? Viu se tinha anéis?- Ela estava de luvas pretas - disse o motorista com convicção. - Lembro-me disso porque ela encontrou certa dificuldade em mexer na bolsa.- Bem, você levou-a lá e depois o que fez?- Levei-a lá e ela disse-me para logo que ela entrasse ir a um telefone público dar um recado.- Continue - disse Mason. - Qual era o número e o que dizia o recado?- Era um recado esquisito.- Ela escreveu-o?- Não, disse o que era e fez-me repetir duas vezes.- Bem, continue. Como era o recado.O homem tirou uma caderneta do bolso:- Tomei nota do número. Era Parkcrest, 62945. Eu devia perguntar por Arthur e dizer-lhe que seria melhor ele ir a casa do Clinton imediatamente, porque Clinton estava brigando com Paula.Perry Mason lançou um rápido olhar a Paul Drake. Os olhos do detective tornaram-se subitamente pensativos e fixaram-se em Perry Mason, revelando inquietação.- Bem - disse o advogado, - e você deu o recado?- Não, porque ninguém atendeu ao telefone. Tentei três vezes e depois voltei. Esperei um ou dois minutos, a rapariga saiu e eu levei-a de volta.- Onde é que ela tomou o táxi?- Na rua Décima, esquina Masonic, por onde eu ia a passar. Fez-me levá-la de volta ao mesmo lugar.

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- Como é o seu nome? - perguntou Perry Mason.

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- Marson - Sam Marson, senhor, moro nos Apartamentos Bela Vista. Fica na dezanove, Oeste.- Já devolveu o lenço? - perguntou Perry Mason. Marson meteu a mão no bolso e tirou um delicado quadrado de renda que levou ao nariz, cheirando-o com prazer.- O perfume é este.Perry Mason pegou no lenço e cheirou. Passou-o em seguida a Paul Drake. O detective cheirou também e encolheu os ombros.- Deixe Della cheirar para ver se pode dizer-nos que perfume é - disse Perry Mason.Drake passou o lenço a Della. A jovem cheirou-o, e devolveu-o a Drake. Depois, olhou para Perry Mason e afirmou:- Posso, sim.- Bem, qual é? - perguntou Paul Drake.Perry Mason sacudiu a cabeça quase imperceptivelmente. Drake hesitou um momento, e meteu em seguida o lenço no bolso do casaco.- Nós tomaremos conta dele - disse ao motorista. A voz de Perry Mason tornou-se subitamente impaciente.- Espere um instante, Drake. Quem dirige este negócio sou eu. Devolva o lenço ao homem. Ele não lhe pertence.Paul Drake encarou-o com uma expressão de incompreensão confusa.- Será que não posso levá-lo à Secção de Objectos Perdidos? - perguntou o motorista, pegando no lenço e guardando-o no bolso.- Por enquanto, não - disse Perry Mason. - Guarde-o por uns tempos. Tenho a impressão de que a mesma pessoa vai aparecer a reclamá-lo. Quando ela o fizer, pergunte-lhe o nome e o endereço, compreendeu? Explique-lhe

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que você precisa comunicá-lo à Companhia, pôr" que havia dito que tinha um lenço para devolver, emtendeu?- Entendi, sim - disse o homem. - Mais alguma coisa?- Creio que é tudo - disse-lhe Mason. - Se for preciso, saberemos onde encontrá-lo.A um sinal de Paul Drake o motorista retirou-se e os dois detectives seguiram-no. Perry Mason voltou-se então para Della Street.- Qual é o perfume, Della? - perguntou.- Não só posso dizer-lhe o nome do perfume como também que a senhora que o usava não é uma pequena que trabalha - a menos que trabalhe no cinema.- Bem - disse Mason - qual é?- É Vol de Nuit - disse Della Street.Perry Mason levantou-se e com a cabeça inclinada para a frente e os dedos enfiados nas cavas do colete, começou a passear pelo escritório. De repente, voltou-se rápido para Della Street.- Consiga um frasco deste perfume. O preço não importa. Arrombe a loja se for preciso, mas veja se o consegue, o mais depressa possível. Volte depois para o escritório e espere até que eu dê notícias.- O que é que vai fazer? indagou Drake.- Uma porção de coisas. Ponha o chapéu. Vamos dar umas voltas.- Com que destino? - desejou Drake saber.- Bredmont Hotel. - disse Perry Mason.

CAPÍTULO XII

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O sétimo andar do Breedmont Hotel, era uma ampla galeria de portas envernizadas. A luz suave iluminava

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o corredor extenso e largo, inteiramente coberto por um tapete espesso e macio.- Qual era o número do quarto? - perguntou Perry Mason.- 764 - respondeu Drake. - É aqui no canto.- Está certo - disse o advogado.- Que quer que eu faça? - Perguntou Drake.- Conserve tudo fechado, excepto os olhos e os ouvidos, a menos que eu Lhe faça sinal para entrar na conversa - disse Mason.- Compreendo - observou Drake. - Aqui está a porta.Perry Mason bateu.Durante alguns segundos, não se ouviu nenhum ruído no interior do quarto. Mason bateu novamente e ouviu então um rumor de passos, o ruído de um ferrolho e uma voz feminina, dizendo:- Quem é?Abriu-se uma fresta da porta.- Um advogado que deseja vê-la sobre um assunto importante - disse Perry Mason, em voz baixa.- Não desejo ver ninguém - disse a voz aguda e a porta começou a fechar-se.Perry Mason bloqueiou-a com o pé, quando o trinco já estava quase retomando o seu lugar.- Vamos Paul - disse ele, e empurrou a porta com o ombro.A mulher soltou um grito e, por um momento, tentou fechar a porta. Subitamente, porém, cedeu à pressão, deixando abrir-se a porta.Os dois homens entraram no quarto. Uma mulher meio despida cambaleou, encarou-os com pânico e num gesto abrupto agarrou num kimono de seda que se encontrava no espaldar de uma cadeira.- Como se atrevem? - perguntou enraivecida.- Feche a porta, Paul - ordenou Mason"A mulher aconchegou o "robe" de encontro ao corpo e encaminhou-se resolutamente para o telefone.- Vou já, telefonar à polícia - ameaçou ela.- Não tem importância - disse-lhe Mason - Dentro em pouco ela estará aqui.- O que é que o senhor quer dizer com isso?- Sabe-o muito bem - disse Mason. - Já não tem mais para onde fugir, Mrs Bessie Forbes.Ao ouvir o nome, a mulher estacou, fitando-o com os olhos escuros de pavor.- Meu Deus? - exclamou.- É isso mesma - disse Mason. - Agora, sente-se e fale com bom senso. Dispomos apenas de alguns minutos para conversar e eu tenho muitíssimo para lhe dizer.Ela deixou-se cair numa cadeira. A sua perturbação era tamanha, que o "robe" se abriu sem que ela o notasse, pondo à mostra o brilho de uma espádua nua e o lustro de uma finíssima meia de seda.Perry Mason parou com os pés afastados, os ombros erectos e arremessou as palavras como se fossem balas.

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- Estou ao par de tudo - disse ele. - Não há necessidade de mentir, nem de assumir atitudes heróicas ou histéricas. Você é a esposa de Clinton Forbes. Ele abandonou-a em Santa Bárbara e fugiu com Paula Cartright. Você tentou segui-los, não sei com que objectivo, por enquanto. Cartright localizou Clinton Forbes antes de si. Forbes morava em Milpas Drive, sob o nome de Clinton Foley. Cartright alugou a casa contígua à dele, mas não deu a conhecer a sua identidade. Ele estava um tanto transtornado. Espiava para saber se Forbes fazia sua esposa feliz. Não sei exactamente quando ou como você descobriu isto, mas, no entanto, não deve ter sido há muito tempo que conseguiu inteirar-se da situação. E agora, aqui .está uma coisa engraçada: sou advogado, é possível que já tenha lido a meu respeito. Actuei em alguns processos criminais e espero actuar em mais alguns. Especiaiizei-me como advogado crimiinalista. Chamo-me Perry Mason.- O senhor! - exclamou ela num tom de interesse ofegante, - O senhor... é Perry Mason?Ele fez com a cabeça um gesto de assentimento.- Oh! - suspirou ela. - Tenho tanto prazer!- Deixe-se disso - disse ele, - e lembre-se de que temos um espectador. Vou dizer-lhe uma porção de coisas enquanto tenho uma testemunha presente. A senhora vai escutar e nada mais. Entendeu?- Sim - disse ela. - Creio que compreendo perfeitamente o que deseja. Mas tenho tanto prazer em vê-lo aqui! Queria...- Cale a boca e escute - respondeu ele. Ela concordou.- Cartright - disse Mason. - foi ao meu escritório. Agia de um modo estranho. Desejava fazer um testamento. Por enquanto não precisamos falar dos termos desse testamento. Mas com ele veio uma carta e um pagamento antecipado. A carta instruía-me na protecção dos interesses da esposa de um homem que vivia em Milpás Drive, 4889, sob o nome de Clinton Foley. Agora, escute e veja se compreende: ele não me disse para protejer a mulher que estava a viver sob o nome de Mrs. Foley, em Milpas Drive, 4889. Disse-me para proteger a esposa legítima do homem que lá morava sob o nome de Clinton Foley.- Mas ele não percebeu o que fazia? Não...- Cale a boca. O tempo é precioso. Tenho uma testemunha para ouvir o que lhe digo, porque sei o que lhe vou dizer. Mas posso não querer uma testemunha que escute o que me diz, porque não sei o que me dirá. Compreende? Sou um advogado, e tento protegê-la.Ora, Arthur Cartright enviou-me pelo correio um pagamento substancioso, com instruções para a proteger, e verificar que os seus direitos legais fossem

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salvaguardados. Fui gratificado e quero esforçar-me por merecer o que recebi. Se não quiser os meus serviços, é só dizer.- Não, não - disse ela numa voz penetrante e aguda. - Eu quero os seus serviços. Preciso deles. Quero...- Está bem - disse Mason. - Então, fará o que lhe vou dizer?- Se não for complicado demais - disse ela.- Vai ser árduo - disse ele - mas não complicado.- Muito bem. Do que se trata?- Se alguém lhe perguntar onde esteve a qualquer hora desta noite - disse Mason - ou o que fez, diga-lhe que não pode responder a nenhuma pergunta, a menos que o seu

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advogado esteja presente, e que o seu advogado sou eu. Acha que pode lembrar-se disso?- Sim. Isso não será difícil de fazer, não acha?- Talvez seja - respondeu Mason. - Se eles lhe perguntarem como foi que eu me tornei seu advogado, quando me contratou ou qualquer coisa parecida responda simplesmente do mesmo modo. Dê a mesma resposta a todas as perguntas. Se eles lhe perguntarem como está o tempo, quantos anos tem, que qualidade de creme usa, ou o que quer que seja, responda o mesmo. Compreende?Ela assentiu com um gesto de cabeça. Perry Mason num movimento súbito, encaminhou-se para a lareira.- O que esteve queimando aqui? - perguntou.- Nada - disse ela.Perry Mason inclinou-se e mexeu nas cinzas que ficavam por trás da grade.- Cheira a pano queimado - observou ele.A mulher não respondeu. Encarou-o em silêncio, com o rosto pálido.Perry Mason apanhou um pedacinho de pano. Era

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de seda verde, e tinha um triângulo marrom estampado.- Parece um pedaço de echarpe.Ela deu um passo rápido para ele.- Eu não sabia...- Cale a boca! - disse ele; voltando-se ligeiro para ela.Tomou o pedacinho de pano chamuscado, guardou-o no bolso do colete, depois tirou a grelha para fora da lareira, e começou a remexer nas cinzas. Logo depois ergueu-se e caminhou para o toucador de onde tirou um vidro de perfume.Dirigiu-se ao lavatório, destapou o vidro e derramou o perfume.A mulher caminhou para ele e pôs-lhe uma mão no braço, para o deter.- Pare! Isto custa...Ele voltou-se rápido para ela, com os olhos faiscando.- É provável que ainda lhe custe muito - disse. Agora escute e preste toda atenção: liquide a sua conta aqui no hotel, mude-se para o Broadway, e registe-se sob o nome de Bessie Forbes. Tenha cuidado com o que leva consigo e com o que deixa. Compre qualquer perfume barato e lembre-se de que quando eu digo barato, é barato mesmo. Encharque com ele tudo o que tiver. Está a perceber?Ela fez um gesto de assentimento.- E depois? - perguntou.- Depois - disse ele - fique firme e não responda a nenhuma pergunta, não importa o que seja, ou quem a faça. Diga sempre que nada poderá fazer, a menos que o seu advogado esteja presente.Abrindo a torneira de água quente, Perry Mason lavou o vidro e deixou a água correr.O quarto estava impregnado do aroma do perfume. Perry Mason voltou-se para Paul Drake, e disse:

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- É melhor fumar, Paul. Um charuto, de preferência, se tiver.Paul Drake tirou um charuto do bolso, cortou a ponta e acendeu-o. Perry Mason foi às janelas, abriu-as e acenou com a cabeça para a mulher.

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- Vista-se - disse ele, - O número do meu telefone é Broadway, 39251. Tome nota. Se acontecer qualquer coisa, telefone-me. Lembre-se de que os meus serviços não vão custar-lhe um centavo. Estão inteiramente pagos. Não se esqueça de que vai dar a todas as perguntas que lhe fizerem, não importa quais sejam, aquela mesma resposta: "Não posso responder, a menos que o meu advogado me aconselhe a fazê-lo". Percebeu?Ela fez com a cabeça um sinal afirmativo.- Tem coragem bastante - perguntou ele - para se firmar sobre os dois pés, olhar o mundo de frente e dizer que não responderá a uma única pergunta enquanto o seu advogado não estiver presente?Ela baixou os olhos e tornou-se pensativa. Depois, perguntou:- E se eles disserem que isso pode vir a prejudicar-me? Não dizem que uma declaração dessa espécie é considerada uma confissão de culpa? Não que eu seja culpada de nada, mas o senhor parece pensar que...- Por favor - disse ele - não discuta comigo. Confie em mim o suficiente para seguir os meus conselhos. Pronto, Drake, vamos. - Voltou-se, abriu a porta do quarto e parou na soleira, para fazer uma última recomendação.- Não deixe pista, quando sair daqui., Vá à estação e compre uma passagem para qualquer lugar. Passe depois a sua valise para outro carregador, tome outro táxi e vá para onde eu lhe disse, registando-se sob o nome de que lhe falei. Entendeu?Ela concordou com um gesto de cabeça.- Bem} então vamos embora, Paul - disse ele.

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No corredor, Paul Drake olhou para Perry Mason.- E agora, que quer que eu faça?- Aqui está o que quero que faça. - respondeu Mason - quero que me arranje uma actriz de uns 28 anos, da mesma estatura de Bessie Forbes e que a leve ao meu escritório logo que for possível. Pagarei trezentos dólares para que ela me faça um serviço e posso garantir que não será nada ilegal. Você não precisa ir lá nem saber do que se trata. Terá simplesmente de conseguir a actriz e mandá-la para mim. Mas quero que consiga uma pequena que possa fazer qualquer coisa, compreendeu? Qualquer coisa.- Quanto tempo tenho para isso? - perguntou Paul Drake.- Menos de dez minutos, se puder fazê-lo neste tempo. Sei que não pode, mas precisa fazê-lo o mais depressa possível. Consulte aquela sua lista de pessoas que podem fazer qualquer serviço, escolha a que for mais indicada e ponha-se em contacto com ela.- Eu conheço uma pequena - disse Paul Drake, devagar - que corresponde à descrição. Ela trabalhou como isca, durante algum tempo, e conhece bem a cidade. Fará qualquer coisa.- É loura ou morena?Paul Drake sorriu.- É da mesma altura e compleição de Mrs. Bessie Forbes - disse. - Lembrei-me dela por isso mesmo.- Está bem - disse Mason - não se faça esperto demais, porque poderá ser contraproducente. Este é um caso onde você terá de ser mudo. Quanto mais mudo melhor. Lembre-se de que sou eu quem dá ordens. Você limita-se a segui-las e a não saber de nada, por enquanto.- Estou começando a suspeitar deste negócio - disse Paul Drake.- Suspeite tudo o que quiser, mas não me diga nada

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e conserve os seus pensamentos para si mesmo, porque mais tarde vai querer esquecê-los.- Combinado - disse Drake. - Você vai para o seu escritório e eu faço aparecer a pequena. Chama-se Mae Sibley.- Está certo - disse Mason. - Mãos à obra e... muito obrigado Paul!

CAPÍTULO XIII

Mae Sibley era bem feita de corpo e atraente, Perry Mason olhou-a com aprovação.- Della, dê-me o vidro de perfume - disse ele. Pegou no vidro e passou-o sob as narinas da rapariga.- Faz alguma objecção em usá-lo? - perguntou.- Não. Poderia usar todo o que o senhor me quisesse dar.- Muito bem, então ponha bastante.- Onde?- Nas suas roupas - em qualquer lugar.- Oh! Mas desperdiçar um perfume tão caro?- Isso não tem importância. Vamos, ponha.Della Street sorriu e disse:- Talvez eu possa ajudar, - E aplicou com liberalidade o perfume nas roupas da outra.- Bem, agora - disse Perry Mason - você vai a um certo táxi e diz ao motorista que deixou um lenço no carro dele, quando ele a levou a Milpas Drive, 4889.- Devo fazer mais alguma coisa?- Não, é só isso. Pegue no lenço e dê um sorriso gentil ao homem.- E depois?- Depois, ele entregar-lhe-á o lenço e perguntará qual é o seu endereço, dizendo que você tem de deixá-lo,

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afim de que ele o possa comunicar a Secção de Objectos Perdidos.- Muito bem, e então o que devo fazer?- Então, você dá-lhe um nome e um endereço falso.- Só isso?- Só isso.- Que nome e endereço devo dar?- Dê-lhe o nome de Agnea Brownlie e diga-lhe que mora no Hotel Breedmont, na esquina das ruas Nona e Masonic. Mas não lhe dê nenhum número, de quarto.- E com o lenço, o que devo fazer?- Trazer-mo.- Isso é negócio sério? - perguntou ela.- É negócio leal - disse ele - se é isso o que você quer saber.- E eu ganho trezentos dólares para o fazer?- Trezentos dólares quando o trabalho for concluído.- Quando será isso?- Talvez não haja mais nada a fazer. - disse ele - mas você precisa estar em contacto comigo para que eu possa encontrá-la a qualquer momento.

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- Dê-me o número do seu telefone e arranje as coisas de forma a que eu possa procurá-la à hora que entender.- E como posso encontrar esse motorista?- Dentro de quinze minutos - disse Perry Mason - ele irá a esquina das ruas Nona e Masonic, telefonar para o escritório afim de saber se há alguma chamada para ele. O táxi que você quer, é o número 86-C. Você telefona para a gerência da companhia, diz que deixou um objecto no carro e pede-lhes para a informarem onde o carro se encontra, logo que o motorista dê notícias. Deixe-lhes um número para que eles a possam chamar. Dentro de quinze minutos, quando o motorista der notícias, eles lhe telefonarão para informar que o carro se encontra à esquina das ruas Nona e Masonic. Diga-lhes, então, que se encontra próximo ao local e que vai até lá falar com o homem. Finja que o reconhece. Poderá identificá-lo pelo número do carro. Seja um pouco camarada com ele.- Está bem - disse ela. - Mais alguma coisa?- Sim - respondeu Mason. - É preciso que você fale num tom de voz especial.- Como?- Alto e depressa.- Assim? - perguntou ela elevando a voz e dizendo rapidamente: "O senhor vai desculpar-me, mas creio que deixei o meu lenço no seu táxi"?- Não - disse Mason. - Tente um pouco mais baixo. E você tem que arrastar um pouco mais as palavras. Abreviou-as muito. Ponha uma espécie de pequeno ênfase nas sílabas finais.Sibley olhou-o fixamente, a cabeça um pouco inclinada para um lado, na atitude de um passarinho escutando, fechou os olhos e perguntou:- Assim?: "O senhor vai desculpar-me, mas não teria deixado um lenço no seu táxi?"- É mais ou menos isso. Está bastante bom, embora não esteja perfeito. Agora, mãos à obra. Você não dispõe de muito tempo. Della, pegue naquele seu casaco de pele preto, que está no armário embutido e dê-lho. Bem, vamos, vista o casaco, pequena, e depois tome um táxi e vá para o Breedmont Hotel. Pode telefonar para o escritório, de lá mesmo. Dentro de dez minutos, eles receberão notícias do motorista. Você tem tempo apenas para fazer a chamada e agir o mais depressa possível.Ele acompanhou-a à porta, virou-se para Della Street e disse:- Telefone para Paul Drake e diga-lhe para vir aqui sem demora.Perry Mason, com o rosto imóvel e o olhar fixo, pôs-se a passear de um lado para o outro, no escritório.

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- Ele virá já - disse Della. - O que há, chefe? Não pode dizer-me?Perry Mason sacudiu a cabeça.- Por enquanto não, Della. Nem eu mesmo tenho a certeza do que há.- Mas o que foi que aconteceu?- Uma porção de coisas - disse ele, - e a dificuldade está em que elas não se ajustam.- O que é que o está a preocupar? - perguntou ela.- Gostaria de saber - disse ele, - porque é que o cachorro uivou e por que deixou de uivar. Às vezes, penso que sei porque é que ele uivava e depois não posso imaginar por que se teria calado. Neste momento bateram à porta.- Deve ser Paul Drake - disse Mason, Encaminhou-se para a porta e abriu-a.- Entre, Paul. Quero que você me consiga umas informações sobre o homem que saiu com Thelma Benton; aquele que guiava o 6M9245.

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Paul Drake exibiu um sorriso lento e bem humorado.- Não pense que você é o único que toma iniciativas - disse ele. - O sujeito é Cari Trask. É um rapaz que tem uma ficha na polícia. No momento, anda metido em jogatinas de pouca monta. Tenho mais informações sobre a situação em Santa Bárbara. Fiz investigações sobre todo o pessoal da casa, inclusive o cozinheiro chinês.- Ótimo - disse Perry Mason. - Estou interessado nesse cozinheiro. O que foi que aconteceu com ele?- Eles fizeram um tratado qualquer com o homem e ele concordou em ser deportado. Não sei como foi. Penso que Clinton Foley se avistou com as autoridades federais para saber o que havia. Descobriu que não havia nada, além da entrada ilegal do rapaz no país.

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Então Foley arranjou para que o chinês fosse deportado imediatamente sem precisar ficar detido para interrogatórios ou julgamento, e deu-lhe dinheiro suficiente para que ele se estabeleça com qualquer negócio, em Cantão. Pelo câmbio actual, essa dádiva representa uma porção de dinheiro chinês.- Descobriu mais alguma coisa?-perguntou Perry Mason - Refiro-me ao cozinheiro.- Descobri que há algo estranho sobre a informação secreta que levou as autoridades federais a irem lá prendê-lo.- Que espécie de informação secreta foi essa?- Não sei bem, mas pelo que pude deduzir, alguém telefonou e disse que sabia que Ah Wong estava no país sem um certificado próprio; que não desejava que a sua identidade fosse descoberta, nem que o seu nome fosse usado, de nenhum modo, mas que queria que as autoridades tomassem providências.- Era um chinês ou um homem .branco? - perguntou Perry Mason.- Ao que parece, branco e muito bem educado. Falava como um homem de educação.- Bem - disse Mason, - Continue.- De positivo, há somente isso - disse o detective, - mas uma das funcionárias do gabinete de imigração, que recebeu esta informação anónima, falou também com Foley pelo telefone. Ela pensa que foi ele quem deu a informação.- Porque haveria Foley de fazer isso? - perguntou Mason.- Sei lá - disse o detective. - Provavelmente a pequena está enganada. Eu estou simplesmente a contar-lhe o que ela me disse.Perry Mason tirou uma cigarreira do bolso e deu um cigarro a Della Street e outro a Paul Drake. Acendeu o cigarro de Della, depois o de Drake, e teria acendido

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o seu com o mesmo fósforo se Della Street não o tivesse impedido.Fumou em silêncio durante alguns minutos.- Bem - disse Drake, por fim, - afinal para que é que nós estamos aqui?Perry Mason respondeu-lhe:- Quero que você me consiga alguns exemplares das letras de Paula Cartright, da governanta de Cartright e dessa tal Thelma Benton. Vou conseguir uma amostra da de Bessie Forbes.- Para que é isso? - perguntou o detective.- Ainda não estou preparado para falar - disse Mason.

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- Quero que você espere aqui um pouco, Paul. - E começou a passear sem descanso, pelo escritório.O detective e a pequena contemplavam-no em silêncio.Acabaram de fumar os seus cigarros e apagaram as pontas. Mason continuava no seu incansável passeio.Depois de uns dez minutos o telefone tocou. Della Street atendeu, e olhou para Perry Mason, conservando o auscultador na mão.- É Miss Sibley - disse ela. - Pediu para dizer que executou todas as suas instruções e que vai tudo bem.- Ela conseguiu o lenço? - perguntou Mason. Della Street fez que sim com a cabeça. Perry Mason mostrou-se excitado.- Diga-lhe para tomar um carro e vir para cá imediatamente.- Mas afinal, o que quer dizer isso tudo?-perguntou Paul Drake.- Fique aqui uns dez minutos - disse ele, - e já saberá. Estou quase pronto para deixar saltar a rolha.Paul Drake recostou-se na grande poltrona de couro, passou as longas pernas pelo braço da mesma, pôs um cigarro na boca e riscou um fósforo na sola do sapato.- Bem, se você pode esperar, eu também posso - disse ele.- Tenho a impressão de que vocês, advogados, nunca dormem.- Isso não é lá muito ruim, depois de nos acostumarmos - disse Mason, recomeçando o seu passeio pela sala. Uma ou duas vezes riu baixinho, mas a maior parte do tempo caminhou em silêncio.O trinco da porta da frente girou com ruído e ouviu-se uma leve pancada na porta.- Veja quem é, Della - disse o advogado.Della Street dirigiu-se para a porta, abriu-a e Mae Sibley entrou na sala.- Encontrou alguma dificuldade? - perguntou Perry Mason.- Nenhuma - respondeu ela, - Disse-lhe justamente o que o senhor me havia dito e ele tomou-me pela outra. Olhou-me bastante e fez-me algumas perguntas. Depois, tirou o lenço do bolso e deu-mo.- Ótima pequena ~- disse Mason. - Deu-lhe o nome de Agnes Brownlie?- Sim. E o endereço do Breedmont Hotel - exactamente como o senhor me havia dito.- Está bem. Você vai receber cento e cinquenta dólares agora e cento e cinquenta mais tarde. Sabia que não deve dizer uma palavra .sobre tudo isso?- Naturalmente.Perry Mason contou o dinheiro.- Quer um recibo? - perguntou ela.- Não.- Quando receberei os cento e cinquenta restantes?- Quando o trabalho estiver pronto.- O que mais tenho a fazer?- Talvez nada, mas talvez tenha de ir ao tribunal e servir de testemunha.- Ir ao tribunal servir de testemunha? - perguntou ela. - Testemunha de quê?

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- Do que aconteceu.- Sem dizer nenhuma mentira?- É lógico que não.- Quando saberá isso ao certo? - perguntou ela.

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- Provavelmente dentro de duas semanas. Você tem de se manter em comunicação comigo. É só isso. Será melhor que saia já daqui, porque eu não quero que seja vista nas imediações do escritório.Quando a porta do escritório se fechou atrás de Mae Sibley, Mason virou-se para Della Street.- Ligue para a polícia e chame o sargento Hol-como ao telefone.- Já é bastante tarde - disse ela.- Não tem importância. Ele trabalha à noite.Feita a ligação, Della Street voltou-se para o seu chefe.- O sargento Holcomb - disse ela.Perry Mason aproximou-se do telefone e, ao pegar no auscultador, sorria.- Escute, sargento: tenho algumas informações para si. Não posso dar-lhe todas, mas algumas delas... Sim, algumas delas são segredo profissional, e por isso não as posso dar. Acabei de descobrir que o carro número 86-C, levou um passageira à casa de Clinton Foley, às sete e vinte e cinco aproximadamente. Ela esteve lá durante quinze ou vinte minutos e deixou um lenço no táxi. Ora, este lenço constitui, sem dúvida alguma} um elemento de prova. Está, em meu poder. Não posso dizer-lho como o consegui, mas ele aqui está e vou mandá-lo para aí.Está certo, pode mandar buscá-lo, se quiser. Eu não estarei aqui, mas Della Street, minha secretária estará e entregá-lo-á. Sim, o motorista do táxi, pode identificá-lo} sem dúvida alguma... E eu ainda posso dizer-lhe mais isto: a passageira que viajou no táxi

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perdeu o lenço ou deixou-o no carro. O motorista encontrou-o. Mais tarde, o lenço veio para o meu poder. Não lhe posso dizer como o consegui... Não - que diabo! - isso não lhe posso dizer... Não, não lhe direi... Conheço os meus direitos. O lenço é um elemento de prova e o senhor tem direito a ele, mas não às confissões que o meu cliente me fez. Isto é uma comunicação sagrada e o senhor não consegue arrancar-ma nem com todas as intimações deste mundo.Desligou e atirou o lenço para Della Street.- Quando os guardas vierem - disse ele, - entregue-lhes isso e não lhes dê mais nada, além de um sorriso gentil. Guarde para si mesma qualquer informação que possuir.- Que aconteceu? - perguntou ela. Perry Mason encarou-a com firmeza.- Se você insiste em saber - respondeu ele - Clinton Foley foi assassinado entre as sete e meia e as oito horas desta noite.Paul Drake franziu os lábios e assobiou em surdina.- De um certo modo - disse ele, - você não me surpreendeu e de outro, sim. Logo que me falaram sobre as sirenes, imaginei o que devia ter acontecido. Depois, quando vi as providências que você tomou, perguntei a mim mesmo se você não estaria arriscando-se a ser condenado por crime.Os olhos de Della Street voltaram-se não para Perry Mason mas para Paul Drake.- É assim tão grave, Paul? - perguntou ela.O detective começou a dizer qualquer coisa, depois conteve a respiração e calou-se.Della Street chegou junto de Perry Mason e fitou-o.- Chefe, há alguma coisa que eu possa fazer?- Isso é algo que eu tenho de fazer sozinho - disse Mason.

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-Vai comunicar à polícia - perguntou ela, - acerca do homem que quis saber que efeito teria o seu testamento se ele fosse executado por crime?Perry Mason encarou-a com firmeza e disse:- Nós não diremos à polícia mais do que já lhe dissemos.Paul Drake falou então com veemência.- Perry - disse ele, - você já se arriscou bastante nessa história. Se a pessoa que assassinou Clinton Foley o consultou de antemão, você tem de ir à polícia e...- Quanto menos você souber sobre a situação - disse Mason, - menos se arriscará.O detective falou em voz lúgubre:- Eu já sei demais, até.Mason voltou-se para Della Street,- Se você disser que eu deixei o lenço para que você o entregasse - disse ele devagar - e que isto é tudo quanto lhes pode dizer, não creio que eles a interroguem"- Não se preocupe comigo, Chefe - disse ela. - Eu sei cuidar de mim. Mas o que é que o senhor vai fazer?- Vou sair - disse ele, - e vou sair já.Caminhou até à porta, parou com a mão no trincoe olhou para o par que ficava no escritório.- Todas as coisas que fiz - disse ele, - vão ter afinal ligação e ser coerentes. Vão também causar um reboliço infernal. Preciso arriscar-me. Não quero que nenhum de vocês se arrisque. Eu sei exactamente até onde posso ir, vocês não. Por esta razão, quero que sigam as minhas instruções e mais nada.Della Street perguntou com voz trémula de preocupação:- Tem a certeza de que sabe onde deve parar, Chefe?

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- Bolas! - exclamou intempestivamente Paul Drake. - Isso é uma coisa que ele nunca sabe.- Para onde vai, Perry? - perguntou o detective.Perry Mason abriu a porta e sorriu - um sorrisoimperturbável e sereno.- Isso é preferível que você não saiba - respondeu. E bateu com a porta, ao sair.

CAPÍTULO XIV

Perry Mason tomou um carro que no momento passava em frente do escritório.- Leve-me ao Broadway Hotel, na rua Quarenta e Dois - disse ele, - e depressa!Recostou-se nas almofadas, enquanto o automóvel fazia o trajecto pelas ruas, quase desertas àquela hora.Quando o carro parou em frente do Broadway Hotel, Perry Mason saiu, atravessou o vestíbulo em direcção aos elevadores e subiu, como se fosse tratar de negócios importantes. Chegando à sobreloja, desceu e ligou o telefone para a portaria.- Quer dar-me o número do quarto de Mrs. Bessie Forbes?- Oitocentos e noventa e seis - disse o porteiro.- Obrigado - disse Mason, - e desligou o telefone. Tomou o elevador, desceu no oitavo andar, dirigiu-se ao quarto 896 e bateu à porta.- Quem é? - perguntou a voz assustada de Bessie Forbes.- Mason - respondeu o advogado em voz baixa. - Abra a porta.Ouviu-se o ruído do ferrolho e a porta abriu-se.

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Mrs. Forbes fitou-o com olhos que deixavam transparecer medo, mas que também denotavam uma firme resolução.

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Perry Mason entrou, fechando a porta atrás de si.- Bem - disse ele, - sou seu advogado. Agora, conte-me exactamente o que aconteceu esta noite.- A que se refere?- Refiro-me à viagem que a senhora fez para ver o seu marido.Ela estremeceu, olhou em torno de si, indicou a Mason um lugar no divan e sentou-se ao lado dele, torcendo um lenço entre os dedos. Toda ela rescendia a perfume barato.- Como sabe que eu estive lá? - perguntou.- Adivinhei-o - disse ele. - Tive um pressentimento de que chegara a hora em que a senhora iria aparecer. Não pude imaginar outra mulher que, correspondendo à sua descrição, tivesse ido fazer a Clinton Foley a espécie de visita que a senhora fez. E depois, a descrição dada pelo motorista do táxi correspondia-lhe em todos os sentidos.- Sim - afirmou ela lentamente, - eu estive lá.- Isso já eu sei - disse ele impaciente. - Conte-"me o que aconteceu.- Quando lá cheguei, - disse ela devagar - a porta estava fechada. Abri-a com uma chave mestra que tinha comigo e entrei. Queria ver Clint, sem dar tempo a que ele se preparasse para a minha visita.- Muito bem - disse ele. - Que aconteceu? A senhora entrou, e depois, o que houve?- Entrei, e encontrei-o morto.- E o cachorro? - perguntou Perry Mason.- Morto, também.- Não creio que a senhora disponha de algum meio de provar que não cometeu o crime.- Ambos estavam mortos quando lá cheguei - disse ela*- Estavam mortos há muito tempo?

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- Não sei, não lhes toquei.- O que fez?- Senti-me tão fraca que me sentei numa cadeira. A princípio, só pensei em fugir. Depois, lembrei-me que devia ser cautelosa. Eu sabia que poderiam suspeitar de que tinha sido eu quem dera os tiros.- A pistola estava caída no chão? - perguntou Perry Mason.- Sim - disse ela, - a pistola estava caída no chão.- Não era sua?- Não.- A senhora nunca teve uma pistola como aquela?- Não.- Nunca a tinha visto?- Não, afirmo-lhe que não tinha nada a ver com a arma. Deus meu! O senhor não acredita em mim, mas estou a dizer-lhe a verdade.- Está bem - disse ele. - Vamos supor que seja isso mesmo e que a senhora está a dizer-me a verdade.. E o que fez depois?- Lembrei-me - disse ela, - que o motorista do táxi tinha ido telefonar para Arthur Cartright. Pensei que Arthur viesse e calculei que ele soubesse o que fazer.

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- Não lhe ocorreu que Arthur Cartright podia ter sido a pessoa que cometera o crime?- É claro que me lembrei disso, mas achei que se ele o tivesse feito não apareceria.- Ele poderia ter ido lá para a acusar a si.-Não. Arthur não seria capaz de uma coisa dessas.- Bem, está certo - disse Perry Mason. A senhora sentou-se e esperou por Cartright. E depois, o que aconteceu?- Pouco depois - disse ela, - ouvi o táxi que voltava. Não sei quanto tempo se passou. Tinha perdido toda a noção do tempo. Estava transtornada.

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- Perfeitamente - disse ele. - Continue. E depois?- Saí, tomei o táxi e vim até às imediações do meu hotel. Desci, imaginando que ninguém seria capaz de me localizar. Não sei como o senhor me descobriu.- A senhora sabia - disse Perry Mason, - que tinha deixado um lenço no táxi?Ela fitou-o com uns olhos que se arregalavam aos poucos, cheios de terror.- Meu Deus, não! - exclamou.- Pois deixou - disse ele.- Onde está?- Em poder da polícia.- Como o conseguiram?- Fui eu quem lho deu.- O senhor, o quê?- Entreguei o lenço à polícia. Ele veio para o meu poder, e eu não tive outra alternativa senão entregá-lo às autoridades.- Pensei que o senhor agisse como meu advogado.- É o que faço.- Pois não parece. Meu Deus! Esta é a pior prova que eles poderiam conseguir. Pelo lenço, serão capazes de me descobrir.- É isso mesmo - disse Perry Mason. - Eles descobri-la-ão de qualquer forma e vão interrogá-la. Quando o fizerem, não convém dizer-lhes mentiras, nem falar a verdade. Está num aperto e tem de se conservar em silêncio, compreende?- Mas isso irá prevenir todos contra mim - a polícia, o público, todos.- Pois foi por essa razão que eu vim até aqui - disse ele. - Ora, tive de entregar o lenço à polícia, porque ele constituía uma prova. A polícia anda no meu rasto, neste caso.e gostaria de me apanhar a fazer qualquer coisa que me tornasse um cúmplice de após crime.

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Não terão esse prazer. Mas a senhora precisa agir com inteligência para conseguir sair-se desta encrenca. Escute o que tem a fazer: a polícia virá aqui. Eles vão submetê-la a toda a espécie de interrogatórios. A senhora dir-lhes-á que não responderá a pergunta alguma, a menos que o seu advogado esteja presente. Diga-lhes que o seu advogado a aconselhou a não falar. Não responda a uma pergunta, sequer. Compreendeu?- Sim, foi o que o senhor me disse há pouco.- Acha que pode fazê-lo?- Creio que sim.- A senhora tem de fazê-lo - disse ele. - Há

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neste caso uma porção de elementos dispersos e eu não consigo reuni-los. Não quero que diga nada enquanto eu não estiver a par de toda a história e não souber qual a ligação que os factos têm entre si.- Mas isso vai prevenir o público. Os jornais dirão que eu me recuso a falar.Perry Mason sorriu.- Agora - disse ele, - a senhora começa a perceber a história. Foi por isso mesmo que eu aqui vim.Não responda nada à polícia nem aos jornais, mas diga lhes que a senhora quer falar, e que eu não consinto. Diga-lhes que eu a aconselhei a não dizer uma palavra. Que pela sua vontade a senhora falaria, porque deseja explicar. Depois, diga-lhes que gostaria de me telefonar, porque pensa que pode conseguir a minha permissão para falar. Dar-lhe-ão um telefone e deixarão que fale comigo. A senhora então pede-me que lhe permita falar; diz que gostaria de explicar pelo menos o que fazia na cidade, o que aconteceu em Santa Bárbara e quais eram os seus planos. Peça, implore, ponha lágrimas na voz. Faça tudo o que vier à cabeça, mas eu serei inflexível e dir-lhe-ei que no momento em que a senhora disser qualquer coisa, a qualquer pessoa, terá de procurar outro advogado. Compreendeu bem tudo isto?

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- Acha que produzirá efeito? - perguntou ela.- Não há a menor dúvida - disse ele. - Os jornais precisam de assunto para notícias. Tentarão arranjar mais alguma coisa. Se não o conseguirem, apegar-se-ão a isso e espalharão pela primeira página que a senhora quer contar a sua história, mas que eu não deixo.- E a polícia? Eles soltar-me-ão?- Não sei.- Valha-me Deus! O senhor não quer dizer que eu vou ser presa? Meu Deus! Não posso suportar isso. Poderia provavelmente suportar ser interrogada, se eles me interrogassem aqui no meu quarto, mas se eles me levassem para a cadeia ou para o comando da polícia e me submetessem a um interrogatório, eu enlouqueceria. Não poderei suportar uma coisa dessas nem consentirei em ser julgada. O senhor não acha possível que eu seja levada a julgamento, não é verdade?- Escute - disse ele levantando-se e fitando-a com um olhar insistente e firme. - Essa comédia não serve para mim. A senhora está metida num aperto e sabe-o. Foi a casa do seu marido e entrou lá com uma chave mestra. Encontrou-o morto no chão. Compreendeu que ele tinha sido assassinado. No local, havia uma arma. A senhora não o comunicou à polícia. Foi para um hotel e registou-se sob um nome falso. Se pensa que pode agir dessa maneira e não cair nas mãos da polícia, está louca.Ela pôs-se a chorar.- Lágrimas não adiantam nada - disse ele com uma franqueza brutal. - A única coisa que a pode ajudar, é a senhora servir-se dos miolos e seguir as minhas instruções. Não confesse que esteve no Breedmont Hotel, ou que se registou em parte alguma com um nome suposto. Não confesse nada, excepto que me contratou e que não responderá a nenhuma pergunta ou fará qualquer declaração, a menos que eu esteja presente e lhe aconselhe a fazê-lo.

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A única excepção que fará, será queixar-se amargamente aos jornais de que quer contar a sua história e que eu não consinto. Compreendeu bem tudo?Ela assentiu, com um movimento de cabeça.- Está bem - disse Mason.-Isso põe em ordem os preliminares. Agora, há mais outra coisa...Algumas pancadas soaram imperativamente na porta do quarto.- Alguém sabe que a senhora aqui está? - perguntou Perry Mason.- Ninguém - disse ela, - excepto o senhor.Perry Mason fez sinal para que ela se conservasseem silêncio. Parou com os olhos fixos na porta, as sobrancelhas franzidas numa expressão preocupada.As pancadas repetiram-se, desta vez mais altas e com peremptória impaciência.- A senhora tem de se reanimar - disse Perry Mason. - Lembre-se de que é a única responsável pelo que eles lhe fizerem. Se conseguir manter-se calma, poderei ajudá-la.Dirigiu-se à porta e girou a maçaneta, abrindo-a.O detective sargento Holcomb, flanqueado por dois homens, encarou Perry Mason com uma surpresa aturdida.- Você! - exclamou o oficial. - O que faz aqui?- Eu - disse Perry Mason, - estou a falar com a minha cliente, Bessie Forbes, viuva de Clinton Forbes que morava em Milpas Drive, 4889, sob o nome de Clinton Foley. A resposta satisfá-lo?O sargento Holcomb precipitou-se no interior do quarto.- Pode estar certo de que satisfaz - disse ele, - e agora já sei onde você conseguiu aquele lenço. Mrs. Forbes, a senhora está presa como implicada na morte de Clinton Forbes e quero preveni-la de que qualquer coisa que disser poderá ser usada contra si.

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Perry Mason encarou o oficial, com uma expressão hostil.- Fique descansado - disse ele, - ela não dirá coisa alguma.

CAPÍTULO XV

Recém barbeado, com o olhar límpido, e passos elásticos, Perry Mason entrou no escritório, encontrando Della Street absorvida na leitura dos jornais da manhã.- Então, Della, que novidades há?Ela fitou-o com uma expressão intrigada.- Vai consentir que eles façam isso?- Isso o quê?- Prender Mrs. Forbes.- Não posso impedi-lo. Ela já está presa.- O senhor bem sabe o que é que eu quero dizer. Vai consentir que a acusem do crime e que a conservem presa, enquanto aguarda julgamento?- Não posso impedi-lo.- Pode sim.- Como?- O senhor sabe tão bem como eu - disse ela. levantando-se e empurrando o jornal pela mesa, - que o homem que matou Clinton Foley, ou Clinton Forbes se o quiser chamar pelo seu verdadeiro nome, foi Arthur Cartright.- Bem, pelo que vejo - disse ele sorrindo - você está muito bem informada.

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- Estou tão bem informada que não há necessidade de falar no assunto.- Bem, então por que falamos sobre isso?Della Street meneou a cabeça.- Olhe chefe, eu tenho confiança em si. Sei que faz sempre o que é justo. Pode dizer todas as piadas

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que quiser, mas não consegue convencer-me de que Arthur Cartright possa distanciar-se da polícia.Mais cedo ou mais tarde tudo será descoberto. Por que não dar uma oportunidade a Mrs. Forbes e deixar que tudo se descubra de uma vez? Cartright já teve tempo de sobra para se distanciar da polícia, e, afinal de contas, o senhor está quase a cometer um crime capital.- De que modo? -perguntou ele.- Ocultando à polícia a informação que tem sobre Mr. Cartright. O senhor sabe perfeitamente que ele pretendia matar Clinton Foley.- Isso não quer dizer nada. Ele podia ter pretendido matá-lo, mas não o ter feito. Não se pode acusar um homem de assassino, quando não se dispõe de provas.- Provas! - exclamou ela. - Que mais provas quer? O homem veio aqui e em poucas palavras quase que lhe disse que pretendia cometer um crime. Depois, mandou-lhe uma carta que prova que ele aperfeiçoara os seus planos e estava disposto a agir. Desaparece em seguida, e o homem que o havia enganado é encontrado assassinado.- Você não acha que está a pôr o carro adiante dos bois? - perguntou Perry Mason. - Se você quisesse fazer disso uma boa causa, não acha que seria melhor dizer que ele matou o homem e depois desapareceu? Não lhe parece um tanto estranho dizer que ele desapareceu e que o homem a quem odiava foi assassinado, depois do seu desaparecimento, em vez de ter sido antes?- Está muito certo que use desses argumentos diante de um júri - disse ela, - mas a mim, não consegue enganar-me. O facto do homem ter feito o testamento e de lhe ter mandado dinheiro, prova que ele pretendia dar o passo decisivo do seu plano. O senhor sabe, tão bem como eu, qual foi esse passo final. Ele andou a controlar e espiar o homem que destruíra o seu lar, à espera de uma oportunidade para tornar a sua presença conhecida da mulher disputada. A oportunidade chegou. Ele tirou-a de casa e levou-a para um lugar seguro. Depois voltou, fez o trabalho e reuniu-se a ela.- Você esquece-se - disse Perry Mason - que tudo o que sei me chegou sob a forma de confidência profissional.- Tudo isso pode estar muito certo - disse ela,- mas o senhor não tem o direito de se recostar e deixar que uma mulher inocente seja acusada de um crime.- Mas eu não deixo que ela seja acusada de um crime, - retorquiu ele.- Deixa, sim - disse Della Street. - O senhor aconselhou-a a não falar. Ela quer contar a sua história mas não ousa, porque o senhor lhe disse para o não fazer. O senhor representa os interesses dela e no entanto consente que ela seja prejudicada, a fim de que um seu outro cliente possa levar a cabo uma fuga com êxito.Perry Mason suspirou, sorriu e sacudiu a cabeça.- Falemos sobre o tempo. É algo mais tangível.Ela aproximou-se dele com um olhar indignado.- Mr. Perry Mason - disse ela, - eu tenho admiração por si. O senhor tem mais cérebro e mais habilidade do que qualquer outro homem que conheço. Tem feito coisas simplesmente maravilhosas e agora está a fazer uma que não passa de uma declarada e

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consumada injustiça. Está a condenar uma mulher, apenas para protejer os interesses do Cartright. Mais cedo ou mais tarde eles apanham-no e julgam-no, e o senhor calcula que se, nesse meio tempo, conseguir que a polícia siga uma pista errada, terá tornado mais sensacional o caso Cartright.- Se eu lhe dissesse que você está redondamente enganada - disse ele, - acreditaria?- Não - disse ela.Ele pôs-se a fitá-la, o queixo agressivamente impelido para a frente, os olhos faiscantes.- Della, a polícia conseguiria criar um bom processo baseado em provas circunstanciais contra Arthur Cartright, se soubesse tanto como nós sabemos. Mas não se iluda pensando que eles podem fazer a mesma coisa contra Bessie Forbes.- Ora - disse ela, - o senhor não fala senão de processos e causas. Arthur Cartright é culpado. Bessie Forbes é inocente.Ele sacudiu a cabeça, paciente e obstinadamente.- Escute, Della: você quer abranger, considerar aspectos amplos demais. Lembre-se de que eu sou advogado. Não sou juiz nem tampouco um jurado.O meu único dever diante de um tribunal, é representar alguém. A função do advogado de defesa é verificar que os factos em favor do réu sejam expostos ao júri sob a luz mais forte possível, é tudo quanto lhe compete fazer. É função do Promotor verificar que os factos em favor da acusação sejam expostos ao júri sob a luz mais favorável possível. É função do juiz verificar que os direitos das partes sejam convenientemente salvaguardados e que os elementos de prova sejam introduzidos de modo adequado e metódico. E, finalmente, é função do júri determinar a quem deve caber o veredicto. Eu sou apenas um advogado. O que me compete é expor os interesses do meu cliente com a minha maior habilidade a fim de que a causa possa ser defendida da melhor forma possível. É este o meu dever e é tudo quanto estou encarregado de fazer.Se você se detiver a analisar todo o sistema de justiça que nós organizamos, ficará sabendo que a um advogado nada mais cabe fazer. Vezes sem conta, o advogado de defesa tem sido condenado pelo povo, somente porque se mostrou um tanto hábil demais. Eles

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esquecem o facto de que um Promotor é o advogado mais hábil que o Estado pôde encontrar. E o advogado de defesa tem de refrear o vigor da acusação, expondo ao público a defesa mais plausível e astuciosa que puder. Esta é a doutrina segundo a qual os nossos direitos constitucionais são ministrados ao público.- Eu sei tudo isso - disse ela, - e compreendo a ideia falsa que um leigo tem do assunto. Ele não compreende exactamente o que um advogado está encarregado de fazer, nem porque razão é necessário que o faça, mas isso continua a não responder à pergunta deste caso.Perry Mason estendeu a mão direita, fechou-a, abriu-a e tornou a fechá-la.- Della - disse ele, - eu seguro nesta mão a arma que arrebatará as cadelas que prendem os pulsos de Bessie Forbes e que lhe devolverá a liberdade. Mas tenho de usá-la de determinado modo. Tenho que dar o golpe no momento exacto e de maneira certa. Caso contrário, estragarei o gume da minha arma e deixarei Bessie Forbes numa situação pior do que aquela em que ela se encontra agora.Della Street fitou-o com olhos que continham um lampejo de admiração.- Gosto de ouvir falar assim - disse ela, - Sinto-me emocionada quando a sua voz adquire essa entonação.

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- Está bem - disse ele, - guarde segredo sobre isto. Eu não pretendia dizê-lo, mas agora já o sabe.- E o senhor promete-me empregar a sua arma? - perguntou ela.- É claro que a usarei. Represento Bessie Forbes e vou esforçar-me para fazer por ela tudo que puder.- Mas - disse ela, - porque não desfere o golpe agora? Não acha que é mais fácil vencer uma causa enquanto ela ainda não foi formada?

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Ele sacudiu a cabeça com paciência.- Neste caso, não - disse. - A causa contra Bessie Forbes é mais séria do que se possa imaginar. Isto é, um homem hábil pode fazer disto uma causa séria.Eu não posso desferir o golpe enquanto não souber a força total dos elementos de acusação. Posso dar apenas um golpe. Tenho de o fazer tão dramaticamente, que um golpe apenas seja suficiente. Antes disso tenho de manter o público interessado por Bessie Forbes. Preciso angariar simpatia para ela. Você sabe o que significa angariar simpatia para uma mulher que está acusada de crime? Se você pisar em falso, os jornais enviam repórteres especiais para a entrevistar, como se ela fosse uma pantera ou uma víbora. Escrevem colunas de tolices sobre a graça felina dos movimentos dela, sobre o lampejo que transparece no seu olhar, sobre a ferocidade disfarçada que se oculta sob a brandura exterior.Neste momento estou a fazer um apelo ao interesse e à simpatia do público. Quero que todo aquele que ler os jornais saiba que uma senhora distinta foi acusada de crime e metida na prisão; que ela pode provar a sua inocência, e quer fazê-lo, mas que um advogada a proíbe.- Isso despertará simpatia por ela, sem dúvida alguma - observou Della Street, - mas vai deixá-lo bastante mal visto. O público pensará que o senhor está simplesmente representando para a assistência, a fim de que o julgamento lhe renda uma boa quantia.- É isso mesmo o que eu quero que o público pense *- respondeu ele.- Mas vai estragar-lhe a reputação. Perry Mason teve um riso amargo.- Della, ainda há pouco você me criticava por achar que eu não fazia bastante por Bessie Forbes. Agora mudou de ideias e está a reprovar-me porque eu estou fazendo demais.- Não - disse ela, - não é isso. O senhor pode

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fazê-lo mas de outra maneira. Não é preciso que sacrifique a sua reputação a fim de a proteger.Ele caminhou em direcção ao seu gabinete.- Queira Deus que não - disse, - mas não há outra forma. Chame Paul Drake ao telefone e diga-lhe para vir aqui; preciso falar-lhe.Perry Mason atirou o chapéu para cima de uma mesa e pôs-se a passear pela sala. Passeava ainda, quando Della Street abriu a porta e disse:- Paul Drake está aqui.- Mande-o entrar.Paul Drake fitou Perry Mason. Nos seus olhos, havia a habitual cintilação indolente.- Céus - disse ele em voz arrastada. - Então você nunca dorme?- Porquê? - perguntou Perry Mason.

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- Andei atrás de si, ontem à noite - ou melhor, os meus homens é que andaram - disse Drake.- Eu dormi durante duas horas, tomei um banho quente e fiz a barba. É tudo quanto preciso, quando estou a trabalhar numa causa.- Bem - disse Drake, deixando-se cair na poltrona de couro e passando os joelhos sobre o braço da mesma, deixando as pernas pendentes. - Dê-me um cigarro e conte-me as novidades.Mason estendeu-lhe uma cigarreira e acendeu um fósforo.- Você está demasiado exigente - disse.- E você também - observou Drake. Pus todas as agências particulares de detectives do paísi num reboliço infernal. Tenho recebido mais telegramas de informações erradas e factos sem importância, do que você poderia digerir numa semana.- Encontrou alguma pista de Arthur Cartright ou de Paula Cartright?

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- Nenhuma, Eles desapareceram da face da terra. "E olhe que nós Investigámos todas as agências de táxi da cidade, falámos com todos os motoristas e não encontrámos nenhum que tivesse feito a viagem para Milpas Drive, 4889, na manhã em que Mrs. Cartright deixou a casa de Foley.- Não sabe que tipo de táxi era?- Não. Thelma Benton disse que era um táxi. Disso tem ela a certeza, mas nós não conseguimos encontrá-lo.- Talvez o motorista - disse Mason.- Talvez, mas não é provável.Mason sentou-se por trás da secretária e pôs-se a tamborilar sobre ela.- Paul - disse. - eu posso vencer esta causa movida contra Bessie Forbes.- É claro que pode - respondeu Drake - quanto tem a fazer, é deixar que ela conte a história. Que ideia é essa de a obrigar a conservar-se em silêncio? Isso é um sistema usado apenas por gente culpada; ou por criminosos inveterados.- Quero ter a certeza de que os seus homens não conseguem encontrar Cartright, antes de a deixar contar a sua história - disse Perry Mason.- Mas o que tem uma coisa a ver com a outra? - perguntou Drake. - Você pensa que Cartright é culpado e quer certificar-se de que ele está onde as autoridades não o possam encontrar, antes de deixar que a atenção da polícia se desvie de Bessie Forbes?Perry Mason não respondeu à pergunta. Continuou calado. Um momento depois, começou a bater ao de leve com o punho, sobre a mesa.- Paul - disse ele, - eu posso vencer completamente esta causa, mas para o fazer, tenho de dar o golpe no momento psicológico. Preciso despertar o interesse do público e conseguir desenvolver uma tensão

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dramática, para depois dar um golpe rápido que o Promotor não tenha tempo de pensar numa resposta, antes do júri entregar o veredicto.- Você quer dizer com isso que ela vai ser julgada?- Quero dizer que ela tem de ser julgada.- Mas o Promotor não quer julgá-la. Ele não está certo de que tem uma causa diante de si. Quer apenas que ela conte a história, mais nada.Perry Mason falou devagar e enfaticamente:

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- Essa mulher - disse ele, - tem de ser julgada e naturalmente será absolvida: mas não vai ser fácil.- Eu pensei que você tinha dito que podia ganhar esta causa em toda a linha.- E posso, se conseguir desfechar o golpe no momento oportuno e de maneira oportuno; mas tenho de ser espectacular ao fazê-lo.- Por que não tenta libertá-la no seu interrogatório preliminar?- Não. Vou consentir que ela seja obrigada a ir ao tribunal e vou apelar por um julgamento imediato.Paul Drake soprou o fumo do cigarro e lançou um olhar zombeteiro ao advogado.- Que arma é essa que você tem e que está a esconder? - perguntou.- Você possivelmente não levaria a sério, se eu lhe dissesse.- Bem, você podia experimentar - disse Drake.- Vou fazê-lo porque é preciso Essa arma, é um cachorro uivador.Paul Drake, com um gesto de súbita surpresa, tirou o cigarro dos lábios e fitou em Perry Mason um olhar que havia perdido a sua expressão indolente e brincalhona.- Pelo amor de Deus! - exclamou ele. - Quer dizer que vai preocupar-se de novo com o cachorro uivador?

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- Vou - disse Mason.- Ora, isso há muito que ficou fora da discussão, O cachorro está morto e não uivou.Perry Mason disse com obstinação:- Quero provar que o cachorro uivou, de facto.- Mas que diferença faz isso?- Muita.- De qualquer modo, isso não passa de uma superstição tola - disse Paul Drake. - Nada que tivesse incomodado ninguém em particular, excepto uma pessoa mentalmente fraca, como Cartright.- Eu tenho de provar - disse Perry Mason devagar e obstinadamente, - que o cachorro uivou. E para isso preciso de provas. O único elemento com que ouso contar, é Ah Wong, o cozinheiro chinês.- Mas Ah Wong afirma que o cachorro não uivou.- Ah Wong tem que dizer a verdade - disse Perry Mason. - Eles já o deportaram?- Vão deportá-lo hoje.- Pois muito bem - disse Perry Mason, - vou conseguir uma intimação citando-o como testemunha e mantê-lo aqui. Depois, quero que você arranje um hábil intérprete chinês. Quero convencer esse intérprete da necessidade de conseguir que Ah Wong admita que o cachorro uivou.- Por outras palavras, você quer que ele diga que o cachorro uivou, quer o cachorro tenha uivado ou não.- O que eu quero - disse Perry Mason, - é que Ah Wong diga a verdade. O cachorro uivou. Quero prová-lo. Mas não me interprete mal. Se o cachorro não uivou, quero que Ah Wong o diga. Mas estou certo de que ele uivou e quero provar que o fez.- Está bem - disse Drake. - Creio que posso arranjar isso. Conheço alguns camaradas do gabinete de Imigração.- Outra coisa - disse Mason: - Acho que seria como, convencer Ah Wong de que foi Clinton Foley, ou Forbes, como preferir chamar-lhe, o responsável pela sua prisão. Acho que seria uma ideia excelente incutir isso bem fortemente no cérebro desse oriental.

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- Compreendo - disse Paul Drake, - não tenho a mínima noção do que você pretende com isso, mas não creio que isso tenha importância. Quer mais alguma coisa?- Quero descobrir - disse Mason devagar, - o máximo possível sobre o cachorro.- A que se refere?- Quero saber há quanto tempo Clinton Forbes o possuía, e quais eram os hábitos do animal. Quero investigar a vida inteira do cachorro e saber se ele alguma vez teve o hábito de uivar durante a noite.Ora, quando Clinton Foley alugou aquela casa em Milpas Drive, levou o cachorro policial. Descubra há quanto tempo o tinha, onde o arranjou, " qual era a idade dele. Procure saber tudo sobre isso e particularmente sobre os uivos.- Eu já tenho algumas informações - disse o detective. - Forbes já possuía o cachorro há anos. Quando deixou Santa Bárbara, trouxe-o consigo. Esta era uma das coisas que ele não suportaria deixar. Afeiçoara-se ao animal, como aliás sua esposa, também.- Está bem - disse Perry Mason. - Quero elementos que provem tudo sobre o cachorro. Desejo testemunhas que possam vir aqui, depor sobre ele; testemunhas que tenham conhecido esse cachorro desde pequeno. Vá a Santa Bárbara. Veja se consegue falar com vizinhos que pudessem tê-lo ouvido, caso ele alguma vez tivesse uivado durante a noite. Consiga depoimentos. Precisaremos de alguns desses vizinhos como testemunhas. Não se preocupe com as despesas.

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- Tudo isso por causa de um cachorro? - perguntou Paul Drake.- Tudo por causa de um cachorro - disse Perry Mason, - que não uivava em Santa Bárbara, mas que uivou aqui.- Mas o cachorro já está morto - lembrou o detective.- Isso não afecta a importância do facto como elemento de prova - disse Mason.O telefone chamou. Perry Mason segurou o auscultador.- Um dos detectives de Mr. Drake quer falar com ele imediatamente - disse Della Street. - Diz que é assunto importante.Perry Mason passou o telefone a Paul Drake.- Um dos seus homens com mais algumas informações, Paul.Drake deslizou para a beira da poltrona, levou o auscultador ao ouvido e arrastou um indolente "Alô"!O aparelho emitiu uns ruídos metálicos e a fisionomia do detective assumiu uma expressão de surpresa incrédula.- Tem a certeza disso? - perguntou por fim. O telefone emitiu mais alguns ruídos.- Macacos me mordam!-exclamou Drake e desligou o telefone"Quando olhou para Perry Mason, os seus olhos ainda deixavam transparecer extraordinária surpresa.- Sabe quem foi? - perguntou ele.- Um dos seus homens? - indagou Mason*- Sim - disse Drake, - um dos meus homens que se encontra no comando da polícia colhendo palpites dos repórteres sobre essa história toda. Sabe o que me disse ele?- Claro que não - disse Mason. - Vamos, conte*

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- Ele disse-me - começou Paul Drake,- que a polícia conseguiu identificar de modo definitivo a arma que foi encontrada na casa de Foley. A arma que o matou, assim como ao cachorro.- Continue - disse Mason. - Como foi que eles a identificaram?- Conferindo os números e conseguindo a relação das vendas; Descobriram definitiva e positivamente quem comprou a arma.- Desembuche - disse Mason. - Vamos. Quem foi?- A arma - disse Paul Drake devagar, com o olhar perscrutador fixo em Perry Mason, - foi comprada em Santa Bárbara, Califórnia, por Bessie Forbes, dois dias antes do marido ter fugido com Paula Cartright.A fisionomia de Perry Mason tornou-se grave. Durante dez segundos, aproximadamente, demorou-se a fitar o detective com um olhar inexpressivo.- Então - disse Drake, - o que tem a dizer?Perry Mason semicerrou os olhos.- A dizer, não tenho nada - disse ele. - Vou retirar algo que disse.- O quê?- Que no momento oportuno podia vencer esta causa contra Bessie Forbes.- Eu mesmo - disse Drake,- estou a mudar de ideias.- Está bem - disse Mason devagar.- Eu continuo a pensar que posso vencê-la, mas não tenho a certeza.Pegou no telefone e com um gesto lento e decidido levou o auscultador ao ouvido. Quando Della Street respondeu, disse-lhe:- Della, ligue-me com Alex Bostwick, redactor do "The Chronicle". Quero falar com ele mesmo. Fico à espera.A expressão de surpresa foi gradualmente desaparecendo

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dos olhos de Paul Drake e a sua fisionomia readquiriu a habitual aparência, irreverente e brincalhona.- Bem - disse ele devagar - isto valeu por uma boa sacudidela. Começo a achar que você, ou sabe mais sobre este caso do que eu supunha, ou então é ladino, como uma raposa. Talvez tenha sido uma boa coisa a Mrs. Forbes não se ter apressado em dar uma porção de explicações à polícia.- É possível - disse Mason mansamente. - Depois voltou ao telefone.- Alô... é Bostowick? AlÔ Alex; aqui é Perry Ma^ son. Tenho uma notícia fresca para si. Você queixa-se sempre de que eu nunca dou notícias que forneçam assunto aos seus homens para uma caixa. Pois aqui está, uma de primeira grandeza. Mande um repórter à Milpas Drive, 4893. É a residência de um homem chamado Arthur Cartright, Ele encontrará lá uma criada surda e excêntrica, chamada Elizabeth Walker. Se o seu repórter conseguir fazê-la falar, descobrirá que ela sabe quem assassinou Clinton Foley... sim, Clinton Forbes, que morava em Milpas Drive, 4889, sob o nome de Clinton Foley...- Sim, ela sabe quem cometeu o crime.- Não, não foi Bessie Forbes. Faça com que ela fale...- Está bem, já que você insiste... Ela dirá que foi Arthur Cartright, o homem para quem ela trabalhava e que desapareceu misteriosamente. É só isso. Adeus.Perry Mason recolocou o receptor no gancho e voltou-se para Paul Drake.- Meu Deus Paul! Como detesto ser obrigado a fazer uma coisa destas!

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CAPÍTULO XVI

A sala do presídio destinada a conferências entre advogados e clientes, não continha outro mobiliário além de uma mesa que se estendia a todo o comprimento da sala e era flanqueada.Elevando-se desde o soalho até a uns cinco pés acima da mesa, que era assim dividida ao comprido pelo meio, havia uma pesada rede de arame.Advogado e cliente, podiam sentar-se um em frente do outro, verem-se e escutarem perfeitamente o que diziam, mas não se podiam tocar nem passar nenhum objecto através da rede. Na sala havia três portas: uma delas abria do nicho do carcereiro para o lado por onde entravam os advogados. Outra, abria do nicho do carcereiro para o lado por onde entravam os presos, e a outra levava ao interior da prisão.Perry Mason sentou-se numa cadeira em frente da longa mesa e esperou com impaciência. Os seus dedos tamborilavam ao de leve sobre a superfície gasta da mesa.Alguns momentos depois, a porta abriu-se e a zeladora entrou na sala com Mrs. Forbes por um braço.Bessie Forbes estava pálida mas calma. Nos seus olhos havia uma expressão de medo mas os lábios estavam cerrados numa linha firme e resoluta. Olhou em torno e viu Perry Mason que se levantava.- Bom dia - disse ele.- Bom dia - respondeu ela numa voz firme e segura, encaminhando-se para a mesa.- Sente-se aqui, diante de mim - disse Mason.Ela sentou-se e esboçou um sorriso. A zeladora saiu pela porta que dava para o interior do presídio. O guarda espreitou curioso pelas grades da cela e depois retirou-se. Estava a uma distância de onde não poderia ouvir nada. Advogado e cliente ficaram sós.- Por que mentiu sobre a arma? - perguntou Perry Mason.Ela olhou em torno com uma expressão desvairada e perseguida; depois, humedeceu os lábios com a ponta da língua e disse:- Eu não menti. Tinha-me apenas esquecido.- Esquecido de quê? - perguntou ele.- Esquecido da compra da arma.- Bem, então - disse ele, - conte-me como isso foi.Ela falou devagar, como se tivesse cuidado emesconder as palavras.- Dois dias antes de meu marido deixar Santa Bárbara, descobri que ele andava perdido de amores com Paula Cartright. Consegui uma permissão das autoridades para ter uma arma em casa. Fui a uma loja de artigos de desporto e comprei a automática.- O que pretendia fazer com ela? - perguntou ele.- Não sei - disse ela.- Pretendia usá-la contra o seu marido?- Não sei.- Contra Paula Cartright?- Não sei, afirmo-lhe. Agi num impulso, apenas. Creio que talvez pretendesse amedrontá-lo.- Está bem - disse Mason, - e que fim levou a arma?- Meu marido tirou-ma.- A senhora tinha-lha mostrado?- Sim.- Como foi isso?- Ele aborreceu-me de tal maneira que me zanguei.

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- Oh, então quer dizer que o ameaçou com ela?- O senhor pode dar esse nome ao que fiz. Tirei

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a arma da bolsa e disse-lhe que me mataria antes de ser colocada na situação de uma esposa desprezada, que não fora capaz de conservar o marido.- E a senhora pretendia realmente fazer isso? - perguntou Perry Mason estudando-a com um olhar paciente e inexpressivo.- Pretendia, sim.- Mas porque não se matou?- Porque nessa ocasião não tinha a arma.- Porquê?- Meu marido tinha-ma tirado, já lhe disse.- Sim, a senhora disse-mo, mas eu pensei que talvez lha tivesse devolvido.- Não, ele guardou-a e eu nunca mais tornei a vê-la.- Quer dizer que a senhora não se suicidou porque não tinha uma arma?- É verdade.Mason pôs-se a tamborilar com as pontas dos dedos sobre a mesa.- Há outras maneiras de se suicidar - disse.- Mas não tão fáceis.- Há muito mar, lá por Santa Bárbara.- Eu não gostaria de morrer afogada.- Gostaria de levar um tiro? - perguntou- Por favor, não seja sarcástico. Não pode acreditar no que digo?- Sim - disse ele devagar. - Estou a encarar a hipótese, do ponto de vista de um jurado.- Um jurado não me faria tais perguntas - zangada.- Não - respondeu Mason mal humorado, - um Promotor fá-las-ia e os Jurados estariam à escuta.- Bem - disse ela. - Já lhe disse a verdade.- Então o seu marido levou a arma quando partiu?- Creio que sim. Nunca mais a vi.

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- Quer dizer que a senhora acha que alguém tirou a arma ao seu marido, matou o cachorro e depois o matou a ele?- Não.- O que acha, então?- Alguém - disse ela devagar - que tinha acesso às coisas de meu marido, tirou a arma e esperou o momento oportuno para o matar.- Quem acha que possa ter sido?- Pode ter sido - disse ela - Paula Cartright ou talvez Arthur Cartright.- E Thelma Benton? - perguntou Perry Mason - Ela parece-me um tipo de forte temperamento.- Porque haveria Thelma Benton de o matar? - perguntou ela - Não sei - disse Perry Mason. - E porque o faria Paula Cartright depois de viver com ele há tanto tempo?- Ela podia ter razões - disse Bessie Forbes.

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- De acordo com esta hipótese, ela teria primeiro fugido com o marido, depois voltado e assassinado Forbes.- Sim.- Eu creio - disse Perry Mason devagar, - que seria melhor apoiar-se na hipótese de que Arthur Cartright o mnatou, ou que Thelma Benton o fez. Quanto mais analiso o caso, sinto maior inclinação em concentrar-me em Thelma Benton.- Porquê? - perguntou ela.- Porque - respondeu ele, - ela vai ser uma testemunha contra a senhora e é sempre um bom passo mostrar que uma testemunha da acusação pode estar a tentar culpar outrém do crime.- O senhor não age como se tivesse acreditado no que eu lhe disse sobre a arma.

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- Jamais acredito naquilo que não posso fazer um júri acreditar - disse Perry Mason. - E não estou certo de que possa fazer um júri acreditar nessa história da arma, se eles também acreditarem que a senhora foi até lá num táxi, que viu o seu marido morto, estendido no chão e não deu um passo para comunicar à polícia, mas que fugiu do cenário do crime e tentou ocultar a sua identidade, alugando um quarto sob o nome de Mrs. C. M. Dangerfield.- Eu não queria que o meu marido soubesse que eu estava na cidade.- Por que não? - perguntou ele.- Ele era um homem extraordinariamente mau e sem coração - respondeu ela.Perry Mason levantou-se e fez ao contínuo um sinal de que a entrevista estava terminada.- Bem - disse ele, - creio que a conversa acabou. Entretanto, escreva-me uma carta dizendo-me que esteve a pensar no seu caso e que quer contar a sua história aos jornais.- Mas eu já lhes disse isso - objectou ela.- Não tem importância - respondeu Perry Mason, quando a zeladora apareceu por uma das portas que levavam ao interior do presídio, - Quero que escreva isso e mo mande.- A carta será censurada, antes de sair daqui? - perguntou ela.- Certamente - disse ele. - Adeus.Ela ficou parada seguindo-o com os olhos até que ele saiu da cela destinada aos visitantes. A sua expressão era de inteira confusão.A zeladora tocou-lhe no braço.- Vamos - disse ela.- Oh!-suspirou Bessie Forbes.-Ele não acredita em mim.- O que é? - perguntou a zeladora.- Nada - disse Bessie Forbes cerrando os lábios numa linha firme e recta.Perry Mason entrou na cabine telefónica, deixou cair uma moeda e marcou o número do escritório do detective Paul Drake. Depois de um momento, ouviu a voz de Drake.- Paul - disse ele, - aqui é Perry Mason. Vou mudar um pouco de alvo, no caso deste crime.- Não é absolutamente preciso. Você já atingiu o alvo em cheio - disse Drake.- Você ainda não viu nada - observou Mason.- Quero que se encontre com Thelma Benton. Ela tem um alibi que cobre cada minuto do seu tempo, desde o momento em que deixou a casa, até que voltou. Quero descobrir uma falha em qualquer parte desse alibi, caso isso seja possível.- Não creio que haja falha alguma - disse Drake. - Eu já fiz grandes investigações e descobri que ele é impenetrável. E agora, tenho más notícias para si.

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- Quais são?- O promotor descobriu sobre Ed Wheller e George Doake, os dois detectives que estiveram vigiando a casa do Foley. Puseram investigadores a procurá-los.- Foi por intermédio do motorista do táxi que eles tiveram conhecimento dos dois pássaros - disse Mason devagar.- É o que penso - disse Drake.- Os investigadores conseguiram encontrá-los?- Não.- Há probabilidades de que os encontrem?- Não, a menos que você queira que isso aconteça.- Não, não quero - disse Perry Mason. - Esteja no meu escritório dentro de dez minutos e leve todas as informações sobre Thelma Benton.Mason ouviu Drake suspirar pelo telefone.- Você está a fazer uma embrulhada doida, em toda esta história, - disse o detective. Perry Mason riu-se.- É isso mesmo o que eu quero - retorquiu Mason, e desligou o telefone.Perry Mason tomou um táxi para o seu escritório e encontrou Paul Drake a esperá-lo com um masso de papéis.Mason acenou com a cabeça para Della Street, e tomando Paul Drake pelo braço, conduziu-o ao gabinete.- Então, Paul, o que foi que descobriu?- Há apenas um ponto fraco no alibi - disse o detective.- Qual é?- O que se refere a Cari Trask, o jogador que apareceu no "coupé" e levou Thelma Benton da casa de Forbes. Ela esteve com ele em vários lugares até às oito horas. Eu conferi as horas em que eles apareceram nos diversos lugares. Há uma falha entre as sete e meia e sete e cinquenta. Depois, eles entraram num "bar" clandestino e tomaram qualquer coisa. Trask saiu logo depois das oito horas e a pequena passou para um compartimento reservado e jantou sozinha. O criado lembra-se perfeitamente dela. Mais ou menos às oito e meia ela saiu, encontrou-se com uma amiga e entrou num cinema. O seu alibi, entre as sete e meia e sete e cinquenta, vai depender do testemunho de Cari Trask e da amiga a partir das oito horas. Mas a nós não nos interessa desfazer este alibi depois das oito horas. O espaço de tempo em que você se quer concentrar, é o que está compreendido entre as sete e meia e as sete e cinquenta. Pelo que pude descobrir, isto vai depender do testemunho de Cari Trask e do da própria Thelma Benton.- Onde é que ela declara que esteve?-perguntou Mason.- Ela diz que esteve noutro bar clandestino, tomando um cocktail, mas ninguém se lembra de a ter visto lá. Isto é: ninguém, por enquanto.- Se ela conseguir encontrar alguém por lá - disse Perry Mason tristemente - que se lembre dela, isso fornecer-lhe-á um bom alibi.Paul Drake meneou a cabeça em silêncio.- Mas, - continuou Mason devagar - caso não o consiga e nós possamos encontrar alguma maneira de incriminar Cari Trask, isso constituirá um ponto fraco. Você disse que ele é um jogador?- Sim.- Tem ficha criminal?- É o que estamos a tentar descobrir. Sabemos que andou envolvido em questões de importância secundária.

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- Está bem, investigue a vida dele desde o tempo de garoto até agora. Veja se consegue algo de que possamos acusá-lo. Se não for possível, descubra qualquer coisa que não soe muito bem aos ouvidos do júri.- Já estou a trabalhar nesse sentido - disse Drake.- E os investigadores procuram Wheller e Drake?- Sim, procuram.- A propósito, - disse Mason casualmente - onde estão esses dois pássaros?Paul Drake olhou para Perry Mason e no seu rosto havia a inocência de uma criança.- Eu tinha um assunto muito importante para investigar na Flórida - disse ele. -Meti os dois camaradas num aeroplano e mandei-os para lá, encarregados do trabalho.- Alguém sabe que eles foram? - perguntou Perry Mason.- Não. Como se trata de um assunto confidencial, eles não compraram as passagens nos seus próprios nomes.Perry Mason moveu a cabeça num sinal de aprovação.- Bom trabalho, Paul - disse ele, e pôs-se em seguida a tamborilar ao de leve sobre a superfície da mesa. De repente, perguntou:- Onde posso encontrar Thelma Benton?- Ela está hospedada no Riverview Apartments".- Sob o próprio nome?- Sim.- Você continua a mantê-la sob vigilância?- Sim.- O que é que ela tem feito?- Conversado com a polícia, principalmente. Fez três viagens para o comando da polícia e duas para a promotoria.- Para interrogatório?- Não sei Se foram em resposta a comunicações telefónicas, ou não. Ela apenas foi intimada uma vez. Das outras, foi por expontânea vontade.- Como é que vai a mão dela? - perguntou Mason.- Disso não sei. Está com uma ligadura muito bem feita. Fui atrás do médico que a tratou. Chama-se Phill Morton e tem o gabinete instalado no "Medical Building". Ele foi chamado à casa de Milpas Drive e disse que a mão estava bastante ferida.- Ferida? - perguntou Perry Mason.- Sim, foi o que ele disse.- Ela ainda usa a ligadura? - perguntou o advogado.- Usa.Num gesto abrupto, Perry Mason pegou no telefone.- Della - disse ele - ligue para o "Reverview Apartments". Chame Thelma Benton e diga-lhe que é da redacção do The Chronicle e que o redactor das notícias

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deseja falar com ela. Depois dela ter engulido isso, ligue-a para mim.Depois, desligou o telefone.Drake fitou-o inexpressivamente e disse devagar:- Você está a arriscar-se, Perry.Perry Mason assentiu sombriamente.- É preciso que o faça - disse ele.- E a linha da lei? - perguntou Drake. - Ainda não a atravessou?

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O advogado sacudiu os ombros num gesto nervoso, como se tentasse libertar-se de uma sensação desagradável.- Assim o espero. - disse.O telefone tocou.Perry Mason pegou no auscultador e, elevando a Voz, disse rapidamente:- Redactor das notícias locais.O aparelho emitiu uns ruídos metálicos e depois Perry Mason continuou a falar no mesmo tom de voz, agudo e rápido.- Miss Benton, parece que este caso do assassino de Forbes vai despertar um grande interesse dramático. A senhora esteve com os protagonistas desde o início. Escreveu por acaso algum diário?O aparelho tornou a emitir mais alguns ruídos metálicos, e na fisionomia de Perry Mason espalhou-se um sorriso lento.- Estaria a senhora interessada em dez mil dólares pelos direitos exclusivos de publicação desse diário?... Interessaria?... Continuou a escrevê-lo?... Não diga nada a ninguém sobre esta oferta. No momento oportuno mandarei um dos nossos redactores entender-se com A senhora. Nada posso dizer sobre o preço, antes de falar com o gerente. Ele naturalmente desejará examinar o diário, mas eu estou disposto a recomendar a sua compra,

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por aquela quantia de que falámos, a fim de que tenhamos a exclusividade. Bem, é só isto. Até logo.Mason desligou o telefone.- Pensa que ela vai tentar localizar esta chamada? - perguntou o detective.- Ela não o conseguiria - disse Mason. - Além disso, não tem inteligência para tanto. Enguliu o anzol, a linha e o chumbo.- Ela tem um diário de facto? - perguntou o detective.- Sei lá - disse Perry Mason.- Mas ela não disse que tinha?Perry Mason riu.- É lógico que disse, mas isso não quer dizer nada, Do modo como fiz a proposta, ela vai ter tempo suficiente para forjar um. Por dez mil dólares, uma pequena pode escrever imensas coisas.- Qual é o seu plano?-perguntou Drake.- Apenas um palpite - disse Mason. - Bem, vamos, examinar as amostras das letras. Você conseguiu-as?- Da letra de Mrs. Forbes, não; mas consegui uma da de Paula Cartright. Consegui também alguma coisa escrita por Thelma Benton e uma carta que Elizabeth Walker, a criada do Cartright} escreveu.- Comparou-as? - perguntou Perry Mason, devagar. - com a carta que Paula Cartright escreveu quando abandonou Clinton Forbes?- Não, porque essa carta está na Promotoria, mas tenho uma cópia fotográfica do telegrama que foi mandado de Midwick e a letra não confere.- Qual delas?- Nenhuma.- O telegrama está escrito com letra feminina?Drake meneou a cabeça e depois de procurar napasta, tirou a cópia fotográfica de um telegrama.

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Mason pegou no papel e examinou-o cuidadosamente.

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- O operador telegráfico não se lembra de nada relacionado com este telegrama? -perguntou ele.- Recorda-se apenas de que uma mulher o entregou ao balcão, junto com a quantia exacta para a sua expedição. Ela parecia estar muito apressada. O operador telegráfico lembra-se de que quando começou a contar as palavras, ela foi saindo. Mandou-a então esperar, porque precisava conferir o dinheiro. Ela respondeu-lhe por cima do ombro que tinha a certeza de que estava certo e saiu.- Se ele a visse outra vez, reconhecê-la-ia?- Duvido. Ele não é lá muito inteligente, e, ao que parece, não lhe prestou muita atenção. Na ocasião, ela usava um chapéu de abas largas. Quando entregou o telegrama ao balcão, baixou a cabeça e o chapéu cobriu-lhe o rosto. Depois disso, ele começou a contar as palavras e ela saiu.Mason continuava a olhar para a cópia do telegrama. Depois, ergueu os olhos para Drake.- Drake - disse ele - como é que os jornais conseguiram penetrar na essência deste negócio?- Que essência?- Toda a história sobre o homem que vivia com o nome de Foley sendo na realidade Clinton Forbes; sobre a sua fuga com Paula Cartright e ainda sobre o escândalo de Santa Bárbara?- Ora - disse Drake - isso foi canja. Nós não o descobrimos? Pode estar certo de que os jornais estão tão bem organizados como nós. Eles têm correspondentes em Santa Bárbara e remexeram os arquivos de jornais antigos, conseguindo, desse modo, fazer uma história de grande interesse psicológico. Depois, você sabe como o Promotor é. Ele gosta de julgar as suas causas pelos jornais, e tem estado a alimentá-los com tudo quanto consegue descobrir.Perry Mason meneou a cabeça, pensativamente.- Drake - disse ele - Creio que estou pronto para o julgamento.O detective fitou-o, demonstrando alguma surpresa.- O caso não será julgado por enquanto, mesmo que você tente conseguir uma audiência imediata - disse ele.Perry Mason sorriu, paciente.- Este é o modo de se preparar uma causa criminal - disse ele. - Você tem de fazer os seus preparativos e formular a sua defesa, antes que o Promotor descubra o que realmente há. Depois disso, será tarde demais.

CAPÍTULO XVII

A atmosfera da sala do tribunal estava saturada desse eflúvio psíquico que provém de um aglomerado de seres humanos, cujas emoções se elevaram a um alto grau de excitação.O juiz Markham, veterano magistrado do Departamento Criminal, que presidira a tantos famosos julgamentos sentara-se por detrás da tribuna de mogno massiço, com um ar de completo alheamento. Somente um observador perspicaz teria notado a atenção cautelosa com que os debates eram filtrados no seu cérebro.

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Claude Drumm, o Promotor Público, alto, bem trajado, maneiroso, estava perfeitamente à vontade. Perry Mason infligira-lhe algumas duras derrotas mas, no caso presente, a acusação tinha a certeza do veredicto.Perry Mason achava-se sentado com um olhar de despreocupação indolente que denotava uma indiferença completa pelo processo. A sua atitude contrastava com a conduta que se esperaria de um advogado de defesa habituado a contestar vigorosamente cada ponto do julgamento.Um jurado deixou a bancada. Um funcionário sorteououtro nome e um homem alto, magro, de maçãs salientes e olhos apagados, adiantou-se, levantou a mão direita, prestou juramento e sentou-se na bancada dos jurados.- Pode interrogar - disse o Juiz Markham a Perry Mason.Perry Mason ergueu-se e lançou um rápido olhar ao jurado.- Como se chama? -perguntou.- George Smith - disse o jurado.- Leu sobre este caso?- Sim.- Formou ou expressou alguma opinião baseado no que leu?- Não.- Sabe alguma coisa sobre o caso?- Nada, excepto o que li nos jornais.- Se fosse escolhido como jurado para julgar este caso, poderia justa e verdadeiramente julgar a acusada e entregar um veredicto honesto?- Poderia.- Está disposto a fazê-lo?- Estou.Perry Mason deixou-se cair novamente na sua cadeira, e declarou:- Aceito-o como jurado.Claude Drumm fez então uma pergunta que havia desqualificado muitos jurados:- Tem na consciência algum escrúpulo contra a entrega de um veredicto de que resultasse a pena de morte para a acusada?- Nenhum.- Aceito-o como jurado - disse Claude Drumm. O Juiz Markham dirigiu-se ao júri.- Senhores - disse ele - levantem-se e prestem juramento.Os jurados prestaram juramento. Claude Drumm

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fez um discurso de abertura, rápido, vigoroso e sem rodeios. Parecia que roubara uma folha do livro de Perry Mason e estava decidido a passar por cima dos preliminares, dirigindo a sua atenção para um golpe esmagador. - Senhores jurados - disse ele. - Proponho-me provar que na noite de dezassete de Outubro deste ano, Clinton Forbes foi assassinado pela ré. Não farei segredo do facto de que a acusada tinha razões de queixa contra a vítima. Colocarei todos os factos diante de vós, livre, aberta e francamente. Proponho-me provar que a vítima era marido da acusada e que as partes viveram juntas em Santa Bárbara, até há um ano aproximadamente, antes da data da morte da vítima; que a vítima partiu então subrepticiamente e que levou consigo Paula Cartright, a esposa de um amigo comum; que as partes vieram para esta cidade onde Forbes fixou residência, em Milpas Drive, 4889, sob o nome de Clinton Foley e que Paula Cartright passava por Evelyn Foley, esposa da vítima. Proponho-me provar que a ré comprou uma pistola automática, calibre 3,8; que dedicou mais de um ano da sua vida a uma

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cuidadosa e esmerada busca, tentando localizar a vítima; que pouco antes da data do crime, conseguiu localizá-la e que veio então para esta cidade onde alugou um quarto num hotel sob o nome de Mrs. C. M. Dangerfield. Espero provar que nesta noite de 17 de Outubro, às 19 horas e 25 minutos, aproximadamente, a acusada chegou à casa ocupada por seu marido; que usou uma chave mestra para abrir a porta da casa e entrou no corredor; que encontrou o marido e o matou a sangue frio, e que depois partiu num táxi para o Breedmont Hotel. Proponho-me provar que, quando ela saiu do táxi, deixou inadvertidamente um lenço, Proponho-me provar que este lenço é, sem dúvida alguma, propriedade da ré; que a acusada reconhecendo o perigo de ter deixado atrás de si uma pista tão fatal, procurou o motorista do táxi e conseguiu reaver

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o lenço. Proponho-me provar que a arma que ela comprou e pela qual teve de assinar o seu nome no registo de armas de fogo, existente num estabelecimento de artigos de desporto, em Santa Bárbara, foi a mesma arma que desfechou os tiros mortais. Apoiado nestas provas, pedirei ao júri para entregar um veredicto de culpa.Embora durante o discurso Claude Drumm não tivesse erguido a voz, falara com tão vibrante ardor que arrebatara a atenção dos jurados. Quando terminou, sentou-se.- Deseja fazer o seu discurso de abertura agora? - perguntou o Juiz Markham a Perry Mason.- Fá-lo-ei mais tarde - disse Perry Mason.- Senhor juiz - disse Drumm levantando-se. - Fazer a nomeação dos jurados num caso de crime é geralmente tarefa de alguns dias, ou de um dia, no mínimo. Este júri foi escolhido num pequeno espaço de tempo. Estou um tanto surpreendido. Posso pedir um adiamento até amanhã?O Juiz Markham abanou a cabeça e sorriu.- Não, sr. Promotor - disse ele. - A corte sabe que o advogado encarregado da defesa tem o hábito de agir com bastante rapidez, e portanto creio que não há vantagem em perder o resto de um dia.- Muito bem - disse Claude Drumm com ponderada dignidade. - Estabelecerei o corpo de delito chamando Thelma Benton. Peço que compreenda que a chamo neste momento apenas com o fim de estabelecer o corpo de delito, interrogá-la-ei mais tarde com mais detalhes.- Muito bem - disse o Juiz Markham. - Concordo.Thelma Benton adiantou-se, levantou a mão direita e prestou juramentto. Tomou o lugar das testemunhas e declarou chamar-se Thelma Bentom, e contar vinte e oito anos de idade, que residia no Riverview Apartments; que conhecia Clinton Forbes há mais de três anos; que estivera ao serviço dele como secretária, em Santa Bárbara; que o acompanhou quando ele deixou Santa Bárbara, e que viera com ele para Milpas Drive} 4889, onde se tornara sua governanta.Claude Drumm fez com a cabeça um sinal afirmativo. - Teve ocasião de ver um cadáver na residência de Milpas Drive, 4889 na noite de 17 de Outubro? - perguntou ele.- Sim.- E de quem era esse cadáver?- Era o cadáver de Clinton Forbes.- Clinton Forbes alugou aquela casa sob o nome de Clinton Foley?- Alugou.- E quem morava lá, em companhia dele?

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- Mrs. Paula Cartright que usava o nome de Evelyn Foley e passava por sua esposa; Ah Wong, um cozinheiro chinês, e eu.- Havia também um cão polícia?- Havia.- Como se chamava?- Prince.- Há quanto tempo tinha Mr. Forbes esse cão?- Há quatro anos, aproximadamente.- Conheceu o cão em Santa Bárbara?- Conheci.- E o animal acompanhou-os quando vieram para esta cidade?- Acompanhou.- E a senhora, por sua vez, acompanhou Mr. Forbes e Mrs. Cartright?- Acompanhei.

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- Na ocasião em que viu o corpo de Clinton Forbes, viu também o do cão?- Vi.- Onde estava o cão?- Na mesma sala e morto.- Notou qualquer coisa que lhe pudesse indicar a causa da morte?- Sim. Tantto o cão como Mr. Forbes tinham sido mortos a tiro. Havia uma pistola automática calibre 38, no chão, bem como quatro cartuchos vazios.- Quando viu Clinton Forbes com vida, pela última vez?- Na noite de 17 de Outubro.- A que horas, aproximadamente?- Cerca das seis e quinze da tarde.- Depois dessa hora esteve novamente em casa?- Não. Saí nesse momento e deixei Mr. Forbes vivo e bem disposto. Quando o vi novamente estava morto.- O que notou sobre a condição do corpo? - perguntou Drumm.- Refere-se à barba?- Sim.- Era evidente que ele estivera a barbear-se. Notava-se que houvera espuma no rosto, pois um pouco dessa espuma estada lá permanecia. Ele estava na biblioteca da casa. Havia um quarto contíguo a essa biblioteca e uma casa de banho contígua a este quarto.- Onde mantinham o cão?- O cão - disse Thelma Benton - tinha sido acorrentado no quarto de banho, desde que um vizinho fizera uma queixa.- Creio - disse Claude Drumm dirigindo-se ao seu colega da defesa - que o senhor pode interrogá-la sobre as questões até agora postas em evidência.Perry Mason fez um lento gesto de assentimento. Os olhares dos jurados convergiram para ele. O advogado falou numa voz profunda e vibrante, mas sem ênfase e num tom baixo.- Essa queixa foi feita em virtude do cão uivar? - perguntou ele, como se estivesse conversando.- Sim. /^~- Pelo vizinho da casa ao lado? [- sim.

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- E este vizinho era Mr. Arthur Cartright, o marido da senhora que passava por esposa de Clinton Forbes?- Sim.- Mrs. Cartright encontrava-se em casa; na ocasião do crime?- Não.- Onde estava ela?- Não sei.- Quando a viu pela última vez?Thelma Benton levantou ligeiramente a voz e falou com rapidez:- Paula Cartright - disse ela - saiu da casa na manhã do dia 17 de Outubro. Deixou uma carta declarando que...- Oponho-me - disse Claude Drumm - a que a testemunha faça declarações sobre o conteúdo da carta, em primeiro lugar porque não corresponde à pergunta! e em segundo porque não constitui o melhor elemento de prova.- Não - disse o Juiz Markham. - Não constitui o melhor elemento de prova, de facto.- Onde está a carta? - perguntou Perry Mason.Houve um momento de mal estar. Thelma Benton olhou para o Promotor Públiico.- Tenho-a eu - disse Claude Drumm - e pretendia apresentá-la mais tarde.- Creio - disse o Juiz Markham - que o

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interrogatório sobre este ponto já foi até onde devia *e que a pergunta sobre o conteúdo da carta não será permitida.- Muito bem - disse Perry Mason. - Creio que é tudo, por enquanto.- Chame Sam Marson - disse Claude Drumm.Sam Marson prestou juramento, tomou o lugar das testemunhas e declarou chamar-se Sam Marson, ter 32 anos de idade, ser motorista de táxi e ter estado de serviço na noite de 17 de Outubro do corrente ano.- Viu a acusada, nessa data? - perguntou Claude Drumm.Manson inclinou-se para a frente, afim de olhar para Mrs. Forbes que, flanqueada por um guarda, estava sentada numa cadeira situada logo atrás da de Perry Mason.- Sim - disse a testemunha.- Quando a viu pela primeira vez?- Cerca das sete horas e dez minutos, aproximadamente.- Onde?- Nas proximidades das ruas Nona e Masonic.- O que fez ela?- Ela fez-me sinal para parar. Disse-me que queria ir a Milpas Drive, 4889. Levei-a lá e depois mandou-ne telefonar para Parkrest, 62945, perguntar por Arthur e dizer-lhe que fosse imediatamente à casa de Clint porque ele estava brigando com Paula.- Muito bem. O que fez você? - perguntou Claude Drumm.- Levei-a lá, fiz o telefonema conforme ela me havia dito e depois voltei.- O que aconteceu em seguida?- Ela saiu e eu levei-a a um lugar próximo ao Presidmont Hotel, onde ela saiu.- Viu-a novamente, naquela noite?- Sim.

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- Quando?- Não sei. Perto da meia noite, Suponho. Dirigiu-se ao meu táxi e disse que pensava que havia deixado um lenço no carro. Respondi-lhe que sim e devolvi-lho.- E essa pessoa era a mesma que você levara à residência de Milpas Drive, 4889?- Sim, era a mesma.- E o senhor afirma que se trata da ré, aqui presente?- Sim, é ela.Claude Drumm voltou-se para Perry Mason.- Pode interrogar - disse.Perry Mason levantou ligeiramente a voz.- A acusada deixou um lenço no seu táxi?- Sim.- O que fez com ele?- Mostrei-lho a si e o senhor disse-me para o guardar.Claude Drumm riu baixinho.- Espere um pouco - disse Perry Mason, - O senhor não precisa de me envolver no caso.- Então por que não se conserva à margem dele? - perguntou Claude Drumm.O Juiz Markham bateu com o martelo.- Ordem! - disse ele. - Senhor Advogado de Defesa, deseja pedir a anulação da resposta?- Sim - disse Perry Mason. - Proponho a sua anulação, em virtude dela não corresponder à pergunta.- Negado - disse o Juiz Markham. - A corte é de opinião que ela corresponde à (pergunta.Um largo sorriso espalhou-^se pelo rosto do Promotor.- O Promotor instruiu-o sobre as declarações que devia fazer, neste caso? - perguntou Perry Mason.- Não, senhor.

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- Não lhe disse que se eu desse a menor oportunidade, você devia declarar que me havia emtregue o lenço?A testemunha mexeu-se, pouco à vontade.Claude Drumm levantou-se, com um objecção veemente. O Juiz Markham rejeitou-a e Sam Marson disse devagar:- Bem; o que ele me disse foi que ele não podia interrogar-me sobre o que o senhor me havia dito, mas que se eu tivesse uma oportunidade estava no direito de o dizer ao júri.- E não lhe disse também - perguntou Perry Mason, - que quando eu lhe perguntasse se a acusada era a mesma pessoa que utilizara o seu táxi na noite de 17 de Outubro, o senhor devia inclinar-se para a frente o olhar para ela, afim de que o júri pudesse ver que o senhor esitava a estudar-lhe os traços?- Sim, foi o que ele me disse para fazer.- O senhor já tinha visto a acusada algumas vezes, antes de prestar o seu testemunho. Ela foi-lhe mostrada pelos guardas e o senhor viu-a na prisão. Sabia há algum tempo já, que era ela a pessoa que utilizara o seu táxi naquela noite, não é verdade?- Creio que sim.- Então, não havia necessidade alguma de se ter inclinado para a frente e estudado os traços dela, antes de responder à pergunta.- Bem - disse Marson pouco à vontade - Isso foi o que me mandaram fazer.

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O sorriso desapareceu do rosto de Claude Drumm, dando lugar a uma ruga de irritação.Perry Mason levantou-se devagar e contemplou a testemunha durante um longo momento.- Está absolutamente certo - disse ele - de que foi a acusada quem utilizou o seu táxi?- Sim, senhor.- É absolutamente certo, tamlbém, que foi ela

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quem, um pouco mais tarde, naquela mesma noite, foi perguntar por um lenço?- Sim, senhor.- Não é verdade que, naquele momento, o senhor não estava certo disso, e que essa certeza só tomou vulto no seu cérebro depois de ter falado com as autoridades?- Não; não creio que seja isso. Eu reconheci-ª- Tem a certeza de que foi a acusada quem falou consigo de ambas as vezes?- Sim.- E está tão certo de que foi a acusada quem reclamou o lenço, como o está de que foi ela quem o contratou para a levar a Milpas Drive?- Sim, foi a mesma pessoa.Perry Mason voltou-se a brupta e dramàticamente para o fundo da sala do tribunal e levantou a mão num gesto rápido e dramático.- Mae Sibley - disse ele. - Levante-se!Houve uma ligeira agitação e depois Mae Sibley levantou-se.- Olhe para esta pessoa e diga-me se já a tinha visto antes.Claude Drumm ergueu-se de um salto.- Senhor juiz - disse ele, - protesto contra esta forma de provar a memória de uma testemunha. Não é uma prova própria, como também não é próprio o interrogatório.- Senhor Advogado de defesa, pretende aproveitá-la como testemunha? - perguntou o Juiz Markham a Perry Masom.- Farei mais do que isso - disse Perry Mason, - retirarei a pergunta, do modo como ela foi feita, e perguntarei ao motorista Samuel Marson se não é verdade que esta mulher que agora se encontra de pé na sala de tribunal não é a mesma que lhe reclamou o lenço na

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noite de 17 de Outubro deste ano, e a mesma a quem ele entregou o lenço que tinha sido deixado no seu táxi.- Não, senhor, - disse Samuel Marson apontando para a acusada. - A mulher é aquela.- Não há possibilidade de que esteja enganado? - perguntou Perry Mason.- Não", senhor.- E se se tivesse enganado sobre a identidade da mulher que lhe reclamou o lenço, acha que poderia enganar-se também sobre a identidade da que levou à casa de Milpas Drive?- Não estou enganado, mas creio que se me enganasse com uma, poderia enganar-me com a outra, também - disse Marson.Perry Mason sorriu triunfantemente.- Estou satisfeito - disse ele. Claude Drumm estava de pé.- Senhor Juiz - disse ele, posso requerer um adiamento?O Juiz Markham franziu as sobrancelhas e meneou a cabeça, devagar.

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- Sim - disse ele. - A sessão será levantada até amanhã, às dez horas da manhã. Durante a interrupção, os jurados não devem falar sobre o caso entre si, nem permitir que ele seja discutido na sua presença.O Juiz Markham bateu com o martelo, levantou-se e dirigiu-se num andar majestoso para o seu gabinete, situado ao fundo da sala do tribunal. Perry Mason notou o rápido olhar que Claude Drumm lançara para os dois guardas e viu que estes por entre a multidão, abriam caminho em direcção a Mae Sibley. Perry Mason seguiu-os e alcançou a jovem logo depois dos guardas.- O Juiz Markham deseja que vocês três vão à sua sala - disse ele.Os guardas entreolharam-se, surpresos.- Por aqui - disse Mason, e virando-se, começou

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a abrir caminho em direcção ao fundo da sala do tribunal.- Drumm! - chamou ele, erguendo a voz. Claude Drumm que já estava a sair da sala do tribunal, parou.- Quer acompanhar-me à sala do Juiz Markham? - perguntou Perry Mason.Drumrn hesitou um instante e depois concordou, i juntos, os dois homens entraram na sala do juiz. Atrás deles vinham os guardas e Mae Sibley.O Juiz Markham ergueu os olhos.- Senhor Juiz - disse Perry Mason, - esta jovem é uma testemunha minha. Está intimada pela defesa. Notei que a um sinal do Promotor Público dois guardas se aproximaram dela. Posso pedir à corte para instruir a testemunha que é preciso que ela não fale com ninguém antes de ser chamada para depor, e instruir os guardas de que eles não devem incomodá-la?Claude Drumm corou, foi até à porta e fechou-a com o pé.- A minha intenção - disse Claude Drumm - era saber se essa rapariga tinha sido paga para personificar a acusada. Queria descobrir se algum arranjo fora feito para que ela se aproximasse do motorista e dissesse que era a pessoa que utilizara o táxi horas antes e que deixara o lenço no carro.- Muito bem - disse Perry Mason. - Suponhamos que ela confirmasse tudo isso. O que pretendia você fazer, então?- Pretendia descobrir a identidade da pessoa que lhe tinha pago para fazer tão falsas recomendações e conseguir uma ordem para a sua prisão.- Muito bem - disse Perry Mason arrastando a voz ameaçadoramente. - Eu sou essa pessoa. Que medida pretende tomar?- Senhores - disse o Juiz Markham, - parece-me que a discussão está passando um tanto além do assunto a tratar.- Não está - disse Mason. Eu sabia que isto ia acontecer e quero esclarecer tudo de uma vez. Não há lei contra uma mulher que representa outra. Não é crime uma pessoa declarar-se proprietário de um objecto perdido, a menos que a declaração seja feita com a intenção de obter a posse desse objecto.- Esse foi exactamente a intenção deste logro - gritou Claude Drumm.Perry Mason sorriu.- Lembre-se, Drumm - disse ele - que eu entreguei o lenço às autoridades, assim que ele me foi entregue por Mae Sibley. O que eu fiz foi pôr à prova a memória do motorista. Sabia muitíssimo bem que no momento em que você tivesse acabado de o instruir ele ficaria tão certo da identidade da acusada, que nem todos os interrogatórios deste mundo

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conseguiriam abalá-lo na sua crença. Interroguei-o antes disso e por meio de uma lição objectiva. Estava dentro dos meus direitos.O Juiz Markham olhou para Perry Mason e no seu olhar havia uma cintilação.- Bem - disse ele. - Neste momento, a corte não foi solicitada para julgar a parte ética da questão e nem foi solicitada para julgar se houve o roubo de um lenço, ou não. Ela foi solicitada apenas para julgar o pedido feito por si, senhor Advogado da defesa, de que as suas testemunhas tenham permissão para prestarem os seus depoimentos no tribunal e que os guardas não procurem intimidá-las.- É só isso o que eu quero - disse Perry Mason, mas o seu olhar continuava fixo em Claude Drumm. - Sei o que estou fazendo e responsabilizo-me pelos meus actos. O que eu não consinto é que uma mulher seja amedrontada por um grupo de esbirros.

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- O que você fez levá-lo-á à presença da Ordem dos Advogados! - gritou Claude Drumm.- Óptimo - disse Perry Mason. - Terei o maior prazer em discutir lá o assunto. Mas, entretanto, deixe em paz as minhas testemunhas.- Senhores, senhores - respondeu o Juiz Markham, levantando-se, - Vou insistir pela ordem. Mr. Mason apresentou um pedido. O senhor deveria saber, Mr. Drumm( que o pedido está em ordem. Se esta pessoa é uma testemunha citada pela defesa^ o senhor deveria ter evitado procurar intimidá-la.Claude Drumm enguliu em seco e corou visivelmente.- Muito bem - disse ele.- Por aqui - disse Perry Mason sorrindo. E tomando Mae Sibley pelo braço, saiu com ela.Quando abriu a porta da sala do tribunal, foi surpreendido por um vivo clarão.A rapariga gritou e cobriu o rosto.- Não fique nervosa - disse-lhe Perry Mason. - São apenas os fotógrafos dos jornais.Claude Drumm encaminhou-se para o advogado. Estava pálido e com os olhos faiscantes.- Você planeou tudo isto - disse ele, - apenas com o fito de Conseguir uma história dramática na primeira página dos jornais.Perry Mason sorriu.- Faz alguma objecção?- Muitas! - respondeu Claude Drumm, colérico.- Está bem - disse Perry Mason lenta e ameaçadoramente. - Tenha muito cuidado ao fazê-las.Durante um longo momento os dois homens fitaram-se. Claude Drumm, branco de raiva, mas impotente contra a força vigorosa do advogado, fitou aqueles olhos resolutos e compreendeu que estava vencido. Ainda branco de raiva, girou nos calcanhares e foi-se embora.

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Perry Mason voltou-se para Mae Slbley.- Eu não quis que você falasse com os guardas - disse ele, - Mas não há motivo para que não fale com os repórteres dos jornais.- Que devo dizer-lhes? - perguntou ela.

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- Diga-lhes qualquer coisa que souber - disse ele, e tirou o chapéu ao sair. Quando chegou junto à porta da sala do tribunal, olhou para trás.Meia dúzia de repórteres rodeavam ansiosamente Mae Sibley e faziam-lhe perguntas frenéticas. Ainda a sorrir, Perry Mason dirigiu-se para a saída.

CAPÍTULO XVIII

Ao entrar no escritório, Perry Mason consultou o relógio. Eram oito e quarenta e cinco. Lá fora, fazia frio. Os radiadores sibilavam confortàvelmente.Perry Mason acendeu as luzes e depositou um estojo de couro em cima da secretária de Della Street. Abriu um fecho, tirou uma capa e descobriu uma máquina de escrever portátil. Meteu a mão no bolso do sobretudo, tirou um par de luvas e calçou-as. De uma gaveta tirou algumas folhas de papel e um envelope selado. Acabara de os colocar em cima da secretária, quando Della Street entrou.- Viu os jornais? - perguntou ela, enquanto fechava a porta e tirava o casaco de peles.- Vi - disse ele sorrindo.- Diga-me - perguntou ela, - foi visando conseguir um desfecho dramático que preparou tudo isto?- Naturalmente - disse ele. - E por que não?- Não acha que o que fez pode ser quase considerado violação de lei? Eles podem queixar-se.- Duvido muito que o consigam - disse ele. - Foi um interrogatório legal. Teria sido perfeitamente

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admissível que eu tivesse enfileirado algumas mulheres e pedido a Sam Marson que indicasse qual delas deixara o lenço no táxi.- E então? - disse Della Street.- Ora - disse ele, - eu apenas me adiantei um passo. Descobri que ele não estava certo da identidade dela. Aproveitei-me dessa incerteza; mais nada. Peguei numa rapariga, vesti-a com um traje mais ou menos idêntico ao que Mrs. Forbes timha usado, pus-lhe o mesmo perfume e mandei-a dizer ao motorista que ela havia deixado um lenço no carro dele. Naturalmente, se ele não duvidou da palavra dela, foi porque não estava bem lembrado da pessoa que deixara o lenço no seu carro.Eu sabia que no momento em que as autoridades conseguissem convencê-lo, ele faria uma identificação positiva. É um método hábil que eles têm de tomar conta de uma testemunha durante um determinado período de tempo e deixarem que ela se convença. Mostraram-lhe Bessie Forbes doze vezes, pelo menos. Fizeram-no casualmente, de modo que ele não notou que estava sendo hipnotizado. Primeiramente, fizeram com que ele a visse e disseram-lhe que aquela era a pessoa que estivera no carro dele. Depois, trouxeram-na, confrontaram-na com ele e disseram-lhe a ela que ele a identificara. Ela nada disse, mas recusou a responder a perguntas. Isto fez com que Marson se certificasse um pouco mais. Aos pouquinhos, eles formaram no cérebro do homem o depoimento que ele prestaria mais tarde. Instruiram-no de tal modo que ele ficou convencido de que não podia haver dúvida. É o modo pelo qual a acusação prepara as suas causas. Com toda a naturalidade eles fazem com que as testemunhas fiquem mais seguras;] das suas identificações.- Compreendo - disse ela, - mas o lenço?

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- Para ser furto - disse ele, - é preciso que haja a intenção de furtar. Tal intenção não houve. A raparigaentregou-me o lenço e eu passei-o ás autoridades. dee-lho mais depressa do que eles o teriam conseguido de outra maneira, e dei-lhes a informação.Ela franziu as sobrancelhas e sacudiu a cabeça.- Talvez - disse, - mas o senhor deu um passo arriscado.- Quanto a isso não há dúvida - disse ele. - É para isso que me pagam. Interroguei-o simplesmente de uma maneira que nada tinha de ortodoxa e antes que o Promotor tivesse oportunidade de lhe envenenar o cérebro... Não, Della, não tire as luvas.- Porquê? - perguntou ela, olhando para as compridas luvas negras, que lhe cobriam as mãos e parte dos braços.- Porque vamos dar outro passo arriscado e eu não quero que nenhum de nós deixe impressões digitais no papel.Ela fitou-o por um momento e depois disse: -É coisa legal?- Penso que sim - disse ele, - mas não devemos ser apanhados.Dirigiu-se à porta e fechou-a à chave.- Pegue numa folha de papel e ponha-a na máquina portátil.- Não gosto de portáteis - disse ela. - Estou acostumada com a minha máquina de escritório.- Está bem, - disse ele - mas as máquinas de escrever são tão individuais como a letra da pessoa. Um hábil especialista em letras, pode dizer em que tipo de máquina um documento foi escrito e pode também identificar a. própria máquina, se puder chegar perto dela e tiver uma oportunidade de comparar a escrita.- Essa portátil é nova - disse ela.- Exactamente - disse ele, - e eu vou pôr os tipos um pouco fora de linha, paro; que ela não pareça tão nova.Aproximando-se da máquina^ Perry Mason começou a entortar as barras dos tipos.- O que pretende fazer? - pergunto Della.- Vamos escrever uma confissão.- Que espécie de confissão?- Uma confissão - disse ele, - da parte do assassimo de Paula Cartright.- Meu Deus!-exclamou ela.-E depois, o que pretende fazer com ela?- Vamos mandá-la pelo correio - disse ele, - para o redactor das notícias locais do The Chroniclc.Ela permaneceu imóvel, fitando-o com o olhar apreensivo. Depois respirou fundo, encaminhou-se para a cadeira, sentou-se e colocou algumas folhas !de papel na máquina de escrever portátil.- Está com medo, Della? - perguntou ele.- Não. Farei o que mandar.-Creio que nos vamos arriscar um bom bocado. - disse ele, - mas que posso livrá-la do perigo.- Está bem - disse ela. - Por si farei tudo. Vamos, diga o que quer escrever.- Vou ditá-lo - disse o advogado lentamente, - e você pode ir escrevendo directamente na máquina.Aproximou-se do ombro dela e disse em voz baixa: Escreva isto endereçado ao redactor das notícias locais do The Chronicle:Prezado Senhor:Notei que no seu jornal foi publicada uma entrevista com Elisabeth Walker, na qual ela dizia que eu havia declarado várias vezes que pretendia morrer no cadafalso e que

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levava a maior parte do tempo espiando com um binóculo a residência ocupada por Clinton Forbes, que então usava o nome de Clinton Foley.Todas estas coisas são verdadeiras.Notei também que publicaram um editorial exigindo que as autoridades me prendessem e a minha esposa, Paula Cartright, sob a acusação de que eu havia assassinado Clinton Forbes.Esta acusação é injusta, e falsa.Não matei Clinton Forbes, mas matei minha esposa, Paula Cartright.Devido às circunstâncias, acho que o público tem o direito de saber o que de facto aconteceu.Perry Mason parou e esperou que Della Street erguesse os olhos.- Está assustada, Della?- Não; continue - disse a jovem.- Isto está carregado de dinamite - disse ele.- Pela minha parte vai tudo bem. Se o senhor pode arriscar-se, eu também posso.- Está certo - disse ele - continue:Morava em Santa Bárbara com minha esposa e era feliz. Mantinha relações com Clinton Forbes e a senhora. Sabia que Clinton Forbes era moralmente sórdido, mas gostava dele. Estava ao par de que andava às voltas com uma dúzia de mulheres. Nunca suspeitei que minha esposa fosse uma delas. De repente, e em meio da minha ventura, compreendi a verdade. Eu estava arruinado. A minha felicidade estava destruída e o meu lar também. Decidi procurar Clinton Forbes e matá-lo, como a um cão.Levei dez meses para o encontrar. Afinal, encontrei-o. Morava, em Milpas Drivc sob o nome de Clinton Foley. Soube que a casa contígua estava para alugar, mobilada, e para lá me mudei, contratando intencionalmente uma criada

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surda como uma porta que, por conseguinte, não podia falar com os vizinho, Antes de matar Clinton Foley, quis descobrir alguma coisa sobre os seus hábitos. Quis saber como ele tratava Paula Cartright e se ela~era feliz. Com este fim, passava a maior parte do meu tempo observando a casa, com um binóculo.Era uma ocupação lenta e aborrecida. Nalgumas ocasiões, via cenas da vida doméstica do homem a quem espiava. Noutras, os dias passavam-se sem que eu nada visse.Finalmente, certifiquei-me de que Paula era desesperadamente infeliz.No entanto, a despeito de todos os meus planos, falhei no meu propósito. Aguardei então uma noite escura que se adaptasse às minhas intenções. Quando essa noite chegou, dirigi-me à casa do meu inimigo. Estava decidido a matá-lo e a reclamar minha esposa. Dei à minha criada uma carta para o meu advogado. Nesta carta incluí o meu testamento. No caso de que alguma coisa me acontecesse, queria, ter a certeza de que os meus negócios tinham sido postos em ordem.Encontrei a porta das traseiras da casa, fechada apenas com o trinco. Clinton Foley tinha um cão polícia, Prince, que guardava a casa, mas Prince conhecia-me porque, em Santa Bárbara, eu fora amigo de Clinton Forbes. Em vez de latir, o cachorro mostrou satisfação ao vêr-me. Pulou para mim e lambeu-me a mão. Acariciei-lhe a cabeça e dirigi-me cauteloso para o fundo da casa. Estava a caminho da biblioteca, quando, de repente, encontrei minha esposa. Ela olhou para mim e gritou. Segurei-a e ameacei estrangulá-la se ela não ficasse quieta.Ela quase desfaleceu de terror. Fi-la sentar-se

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para conversarmos. Ela disse-me que Clinton Forbes e sua governanta, Thelma Benton, mantinham relações clandestinas há anos; que estas relações já existiam antes dela ter partido com ele; que Clinton Forbes havia saído com Thelma Benton, e que ela estava sozinha em casa porque Ah Wongf o cozinheiro chinêsf saira para passar a tarde com alguns amigos chineses, como era seu costume.Disse-lhe então que pretendia matar Forbes e que queria que ela se fosse embora comigo. Ela respondeu que eu não devia fazer tal coisa, que deixara de me amar, e que nãu poderia ser feliis comigo. Ameaçou chamar a polícia e comunicar-lhes o que eu pretendia fazer. Deu alguns passos para o telefone. Eu lutei com ela e ela começou a gritar. Estrangulei-a.Nunca poderei explicar as emoções daquele momento. Amava-a apaixonadamente. Sabia que ela já não me amava. Lutara comigo para salvar o homem que me traíra e a quem eu odiava. Tinha consciência apenas de que lhe apertava freneticamente o pescoço. Quando recuperei suficientemente a razão, a ponto de compreender o que fazia, ela estava morta. Estrangulara-a.Clinton Forbes estava a construir um prolongamento na garage. O trabalho de cimento ia ser feito. O chão estava pronto para ser coberto. Entrei na garage e encontrei uma picareta e uma pá. Cavei o lugar onde o cimento ia ser posto, enterrei o corpo de minha esposa numa cova rasa, pus num carrinho de mão a terra que havia sobrado, levei-a para o fundo do terreno e derramei-a lá. Quis esperar por Clinton Forbes, mas não me atrevi. O que acabara de fazer descontrolara-me os nervos.

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Compreendi que o meu ódio me traíra, levando-me a matar a mulher a quem amava. Compreendi também que não corria perigo. Os trabalhadores estavam prestes a cimentar o chão do prolongamento da garagem e isto cobriria as provas do meu crime. Fui para outra parte da cidade, aluguei um quarto sob um nome suposto, criei uma segunda identidade para mim mesmo e lá estive vivendo até agora.Estou fazendo esta confissão, porque me parece justo fazê-lo. Matei minha esposa.Não matei Clinton Forbes, mas gostaria de o ter feito. Ele merecia morrer; no entanto, eu não o matei.Estou a salvo de ser descoberto. Ninguém descobrirá jamais o segredo do meu presente disfarce.Sinceramente seu,Perry (Mason esperou que a jovem terminasse de escrever, depois tirou o papel da máquina portátil e leu-o cuidadosamente.- Isto - disse ele, - dará resultado.Ela fitou-o com o rosto pálido e contorcido, o olhar sobressaltado.- O que pretende (fazer? -perguntou.- Vou tomar o testamento de Arthur Cartright como modelo - disse ele, - e forjar a sua assinatura para este documento.Ela encarou-o em silêncio durante um momento e depois atravessou o escritório em direcção a uma mesa onde havia pena e tinta. Molhou a pena no tinteiro e entregou-lha. Sem dizer uma palavra, dirigiu-se ao cofre, abriu as portas, tirou o testamento de Arthur Cartright e entregou-o ao advogado.Num silêncio intencional, Perry Mason sentou-se à

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mesa, praticou algumas assinaturas num papel, " depois, laboriosamente, forjou naquela confissão a assinatura de Arthur Cartright. Em seguida dobrou o papel e entregou a Della Street o envelope selado.- Enderece isto - disse ele, - ao redactor das notícias locais do The Chronicle.Tornou a colocar a capa na máquina portátil.- O que vai fazer agora?-perguntou ela.- Pôr a carta no correio - disse ele - " providenciar para que esta máquina portátil seja posta num lugar onde as autoridades nunca a possam encontrar. Depois, tomarei um táxi e irei para casa.Ela fitou-o durante um momento, e depois caminhou em direcção à porta.Parou com a mão no trinco, permaneceu imóvel durante alguns minutos, voltou-se em seguida e caminhou de novo para junto dele.- Chefe - disse ela, - gostaria que não fizesse isso.- O quê?- Arriscar-se dessa maneira.- Tenho de fazê-lo - disse ele.- Porquê?- Porque quero - disse ele, - que o chão de cimento, do prolongamento daquela garage seja quebrado e que o lugar abaixo dele seja cuidadosamente examinado.- Então, por que não vai às autoridades e pede para que eles façam isso?Perry Mason riu Com sarcasmo.- Não há a mínima possibilidade de que eles façam tal coisa. Eles detestam a minha coragem. Estão a esforçar-se para tornarem Bessie Forbes ré convicta, Não fariam coisa alguma que pudesse enfraquecer-lhes a causa, em frente a um júri. Estão certos de que ela é culpada e portanto isto é tudo quanto me resta fazer. Não dariam ouvidos a nada mais, e se eu lhes pedisse

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para fazerem qualquer coisa, eles naturalmente pensariam que eu estava a tentar enganá-los.- O que acontecerá quando mandar isto para o The Chronicle? - perguntou ela.- É mais do que certo - disse Mason,- que eles mandarão examinar o local.- Como o farão?- Fazendo.- Conseguirão permissão de alguém?- Não seja tola - disse ele. - Forbes comprou o prédio e era dono dele. Está morto. Bessie Forbes é sua esposa. Se for absolvida deste crime, herdará a propriedade.- E se não for? - perguntou Della- Ela vai ser - disse ele secamente.- Por que pensa que há um corpo enterrado lá? - perguntou ela.- Escute - disse ele. - Vamos olhar para isto de um ponto de vista razoável, sem nos deixarmos ofuscar por uma série de factos. Lembra-se de quando Arthur Catright veio aqui pela primeira vez?- Sim, naturalmente.- Lembra-se do que ele disse? Queria fazer um testamento. Mas queria fazê-lo de modo que os seus bens fossem usufruídos pela mulher que no momento vivia como: esposa de Clinton Foley na residência de Milpas Drive.- Sim.

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- Muito bem. Depois ele fez o testamento e mandou-o para mim. Mas o testamento não fora redigido dessa maneira.- Por que não? - perguntou Della.- Porque - disse ele, - Cartright sabia que não valia a pena legar os seus bens a uma pessoa que já estava morta. De algum modo ele deve ter descoberto que ela havia morrido.

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- Então, não foi ele quem a matou?- Não estou a dizer isso, mas não creio que tivesse sido ele.- Não é considerado crime forjar uma confissão dessa espécie?- Sob certas circunstâncias talvez seja - disse Perry Mason.- Não posso ver em que circunstâncias não o seria - disse ela.- No momento oportuno lá chegaremos.- E o senhor acha que Arthur Cartright sabia que sua esposa estava morta?- Sim; ele havia-lhe sido dedicado. Procurara-a durante dez meses. Esteve a morar durante dois meses na casa contígua à dela, a fim de espiar o homem que odiava, tentando descobrir se ele a fazia feliz. Resolveu matar Clinton Forbes. Sabia que seria executado por esse crime. Queria deixar os seus bens a Paula Cartright- não à esposa de Forbes - mas a Paula Cartright. No entanto, não tratou de fazer o testamento a favor de Paula Cartright antes de cometer o crime, porque achou que isso poderia dar motivo a investigações. Então, fez o testamento, ou desejou fazê-lo, de modo que ele transferisse a propriedade para a mulher que usava o nome de Evelyn Foley.- Pode-se ver o que ele tinha em mente - continuou Perry Mason. - Queria abafar qualquer escândalo. Pretendia matar Foley, confessar-se deliquente e ser executado. Desejou que o seu testamento fosse redigido de maneira a legar bens à mulher que era aparentemente viuva do homem que ele matara, e queria fazê-lo de tal modo que nenhum interrogatório pudesse ser feito e que a verdadeira identidade dela nunca fosse descoberta. A intenção era poupá-la à humilhação que ela por certo teria de sofrer, se os factos se tornassem do conhecimento do público.Della Street permaneceu em silêncio, os olhos fixos nas pontas dos sapatos.- Sim - disse ela, - Creio que compreendo.- E depois - disse Perry Mason, - alguma coisa deve ter acontecido para que Arthur Cartright mudasse de ideia. Ele viu que não servia de nada deixar a herança a sua esposa Paula. Mas quis deixá-la a alguém, porque não esperava continuar vivo. Comunicou então, sem dúvida alguma com Bessie Forbes, e sabia que ela estava na cidade. Deixou então a herança para ela.- Por que diz que ele havia comunicado com Bessie Forbes? - perguntou Della Street.- Porque o motorista do táxi disse que Bessie Forbes o mandara telefonar para Parkcrest, 62945, número de Cartright e dizer a Arthur que fosse a casa de Clinton. Isso prova que ela sabia onde Cartright estava e que Cartright sabia disso.- - Compreendo - disse Della Street, e permaneceu calada durante alguns segundos.- Tem a certeza - perguntou depois, - que Mrs. Cartright não fugiu com Arthur Cartright e deixou Clinton Forbes como já deixara Cartright em Santa Bárbara?- Sim; disso tenho absoluta certeza.- O que lhe dá tal certeza?- O bilhete que deixou não estava escrito na letra de paula Cartright - respondeu Mason.- Está certo disso?

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- Sim, absolutamente certo. É mais ou menos a mesma letra da fórmula telegráfica que foi mandada da Midwick. Eu consegui que me mandassem de Santa Bárbara uma amostra da letra de Mrs. Cartright. Comparei as duas e elas não conferiam.- O Promotor sabe disso? - perguntou ela.- Creio que não - disse ele.Della Street olhou pensativamente para Perry Mason.- Era a letra de Thelma Benton? - perguntou.- Eu tenho algumas amostras da letra de Thelma Benton e estas amostras parecem diferir inteiramente das letras do bilhete e do telegrama.- Mrs. Forbes?-perguntou ela.- Não, também não é a letra dela. Eu fiz Mrs. Forbes escrever-me uma carta da prisão.- Viu o artigo de fundo do The Chronicle? - perguntou ela.- Não - disse ele. - O que diz?- Declara que em vista da surpresa dramática que pôs em dúvida o testemunho do motorista, é seu dever solene pôr- a sua cliente no banco das testemunhas e deixá-la explicar a sua ligação com o caso. O redactor diz que esta atmosfera de mistério está muito bem para um criminoso inveterado que estivesse a ser julgado por um crime do qual todos soubessem que ele era culpado e que desejasse afirmar os seus direitos constitucionais, mas não para uma mulher como Mrs. Forbes.- Não tinha visto esse artigo - disse Perry Mason.- Isso fará alguma modificação nos seus planos?- Claro que não - disse ele. - Estou a defender esta causa. É em benefício dos interesses da minha cliente que procuro levar por diante a minha decisão, e não pelo que possa dizer qualquer redactor de jornal.- Todos os jornais da tarde - disse ela, - comentam a consumada perícia com que o senhor manipulou as coisas de modo que o desenlace viesse como um final dramático no dia do julgamento, a fim de que o testemunho do motorista fosse posto em dúvida, antes mesmo de que a acusação tivesse preparado o seu libelo.- Não houve nenhuma perícia particular da minha parte - disse Perry Mason. - Claude Drumm provocou aquilo. Tentou apossar-se da minha testemunha à força. Eu opus-me. Agarrei-a e levei-a à sala do juiz para fazer um protesto. Sabia que Claude Drumm ia acusar-me de

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não ter seguido uma conduta profissional e eu quis esclarecer isto com ele, naquele momento.- Qual é a opinião do Juiz Markham? - perguntou ela.- Não sei - disse ele, - e nem me interessa saber. Conheço bem os meus direitos e sobre eles me firmo. Estou a lutar para proteger um cliente.Ela aproximou-se abruptamente e colocou as mãos nos ombros dele.- Chefe - disse, - uma vez duvidei do senhor. Quero que saiba que jamais o farei. Certo ou errado estarei sempre consigo.Ele sorriu, bateu ao de leve no ombro dela e disse:- Está bem. Agora, tome um táxi e vá para casa. Se alguém perguntar por mim, diga que não sabe onde posso ser encontrado.Ela fez com a cabeça um gesto de assentimento, caminhou para a porta e desta vez saiu sem hesitação.Perry Mason esperou até que o elevador tivesse descido com ela. Apagou então as luzes, vestiu o sobretudo, fechou a carta, pegou na máquina portátil e dirigiu-se para o seu

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automóvel. Guiou para outra parte da cidade, colocou a carta numa caixa de correspondência e depois tomou por uma estrada sinuosa que levava a um reservatório de água nas colinas, situadas por detrás da cidade. Guiou ao longo da margem do reservatório, reduziu a marcha do carro, pegou na máquina, e atirou-a para dentro do reservatório. No momento em que a água subia num jacto, como um géiser em miniatura, Perry Mason já estava a pisar o acelerador.

CAPÍTULO XIX

Os radiadores ainda sibilavam confortàvelmente no edifício, quando Perry Mason se sentou com Paul Drake.

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- Paul - disse ele, - preciso de um homem que esteja disposto a arriscair-se.- Tenho uma porção deles - disse Drake. - Para que fim o quer você?- Quero esse homem para telefonar a Thelma Bentonn, dizendo que é um repórter do The Chronicle e que o redactor urbano concordou em pagar os dez mil dólares pelos direitos de publicação exclusiva do diário dela, caso o diário valha esta quantia. Quero que ele marque um encontro com Thelma Benton, num lugar onde seja possível inspeccionar o diário. Ela pode ou não, levar alguém consigo. Duvido que consinta em entregar o diário para inspecção, mas deixará que ele o vejaQuero que esse homem procure a folha referente ao dia 18 de Outubro e que a arranque do livro.- O que há nessa folha de especial?-perguntou o detective.- Não sei.- Ela fará um barulho tremendo.- Naturalmente.- O que é que eles podem fazer contra um homem que praticou uma coisa dessas?- Muito pouco - disse Perry Mason. - Podem tentar assustá-lo, mas a coisa não irá além disso.- Ela não poderá processá-lo por perdas e danos, se a coisa se tornar publica?- Não pretendo torná-la pública - disse ele. -Quero apenas que ela saiba que a folha está em meu poder.Paul Drake empurrou a cadeira para trás.- Se nos virmos num aperto, você defender-nos*á? - perguntou ele.- Naturalmente - respondeu Perry Mason. - Eu não ousaria metê-los em apuros em que eu não me metesse também.- O seu mal - disse o detective. - é aprofundar-se

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demais em tudo. A propósito: sabe que está a adquirir a fama de ser um mágico legal?- Um mágico legal? Como assim?- Eles imaginam que você pode tirar uma absolvição de um chapéu, do mesmo modo que um mágico tira um coelho - disse Drake. - Os seus métodos não são ortodoxos, mas são dramáticos e eficazes.- É que nós somos um povo dramático, - disse Perry Mason devagar. - Diferimos dos ingleses. Os ingleses querem dignidade e ordem, Nós queremos o dramático e o

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espectacular. É um anseio nacional. A nossa formação exige rapidez de pensamento. Nós queremos que as coisas aconteçam de modo espectacular.- Bem, com você é sempre assim que elas acontecem - disse Drake levantando-se, - Aquela peça que pregou esta tarde, foi de uma habilidade indiscutível. Você conseguiu fazer com que todos os jornais da cidade salientassem, o modo espectacular pelo qual o depoimento do motorista do táxi foi virtualmente desacreditado. Todos os jornais da cidade, são de opinião que o depoimento dele não tem valor algum.- Bem; lá isso é verdade. O depoimento dele não tem valor.- No entanto - disse Drake pensativamente - você sabe tão bem como eu que Bessie Forbes foi a Milpas Drive naquele táxi, e que foi ela quem entrou na casa de Forbes. - Isso - disse o advogado, - será sempre uma questão de conjectura e imaginação, a menos que o Promotor apresente algum elemento de prova.- Onde é que ele vai conseguir esse elemento de prova, agora que o motorista foi desacreditado?- Bem, isso é assunto que deve preocupar o Promotor. - assegurou Perry Mason.- Está bem - disse Drake.-Vou-me embora. Quer mais alguma coisa?- Não, por enquanto creio que é só isso - respondeu Mason devagar.- E Deus sabe que já é bastante! - disse Drake lentamente. E saiu do escritório.Perry Mason recostou-se na sua cadeira de molas e fechou os olhos. Permaneceu imóvel. Apenas as pontas dos seus dedos tamborilavam ao de leve sobre o braço da cadeira. Estava sentado nesta posição, quando uma chave girou na fechadura da porta exterior e Frank Everly entrou no escritório.Frank Everly era o secretário que cuidava das questões legais rotineiras de Perry Mason e ficava ao seu lado durante o julgamento. Era jovem, vivo, ambicioso e cheio de ilimitado entusiasmo.- Posso falar consigo?-perguntou ele.Perry Mason abriu os olhos e franziu as sobrancelhas.- Pois não - disse ele. - Entre. O que é que você quer?Frank Everly sentou-se na ponta da cadeira, dando a impressão de estar pouco à vontade.- Vamos - disse Perry Mason. - O que é?- Eu queria pedir-lhe - disse Frank, - como um favor pessoal, que deixasse Bessie Forbes tomar o lugar das testemunhas.- Que ideia é essa? - inquiriu Mason curioso.- Estive a ouvir umas conversas... - disse Everly. - Não falatórios comuns, compreende, mas conversas de advogados, de juizes e jornalistas.Mason sorriu paciente.- Muito bem, Everly, o que é que ouviu?- Se o senhor não puser Bessie Forbes no lugar das testemunhas e ela for condenada, isso significará a ruína de sua carreira - disse ele.- Está bem - disse Perry Mason, - Então será arruinada.- Mas o senhor não compreende? - disse Everly.

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- Forbes está inocente. Agora, toda a gente o sabe. A causa contra ela baseava-se inteiramente em provas circunstanciais. Basta que ela negue e dê uma explicação para que o júri vote uma absolvição.- Você pensa desse modo, realmente? - perguntou Perry Mason curioso.- Claro que penso.

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- E acha uma vergonha eu não consentir que ela tome o lugar das testemunhas para contar a sua história?- Acho que é uma responsabilidade que o senhor não tem o direito de assumir - disse Everly. - O senhor tem uma obrigação para com a sua cliente, uma obrigação para com a sua profissão e uma obrigação para consigo mesmo.- Suponhamos que ela tome o lugar das testemunhas, conte a sua história e depois seja considerada culpada? - disse Mason.- Isso é impossível. Todos se condoem da situação dela e agora que a prova do motorista do táxi ficou sem efeito, não ha motivo para isso.Perry Mason olhou fixamente para o secretário.- Frank - disse ele, - nada poderia animar-me tanto como esta conversa consigo.- Quer dizer, que vai pô-la no lugar das testemunhas?- Não, quero dizer que não permitirei que ela fale.- Porquê? - perguntou Frank.- Porque, - respondeu Mason devagar - você agora pensa que ela está inocente. Toda a gente pensa assim. Isto significa que o júri acha que ela está inocente. Se eu a puser no lugar das testemunhas, não conseguirei fazer com que o júri continue a pensar desse modo. Se não a puser, eles poderão achar que ela tem um advogado sem inteligência, mas não entregarão um veredicto de culpa. E agora, rapaz, vou dizer-lhe uma coisa: Há

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vários processos de se defender uma causa. Há o tento, que é um método aborrecido, usado pelos advogados que não conhecem outra maneira de defesa senão a de entrarem no tribunal, resmungarem objecções, negocearem sobre formalidades e arrastarem os factos tão interminavelmente, que no fim ninguém sabe exactamente o que há. O outro método de julgar um caso é o dramático. É este que me esforço por seguir. Haverá um momento em que o Promotor se fatigará. Pretendo levar isto a um ponto tal que quando chegar esse momento, todas as simpatias se voltarão para a acusada. Espero então, atirar o caso inteiro para as mãos dos jurados. Eles entregarão um veredicto sem nem ao menos se deterem para pensar no que fazem, caso tudo corra bem.- E se não correr? - perguntou Everly.- Se não correr - disse Perry Mason, - é provável que eu perca a minha reputação como advogado criminalista.- Mas o senhor não tem o direito de a pôr em perigo - disse Frank Everly.- Ora, se não tenho!-disse Perry Mason.-O que eu não tenho é o direito de a poupar ao perigo.Ele levantou-se, apagou as luzes e disse:- Vamos, rapaz; vamos para casa.

CAPÍTULO XX

Claude Drumm abriu o seu ataque matutino, demonstrando com bastante clareza o seu ressentimento pela derrota dramática do dia precedente. Prosseguiu apresentando pormenores sangrentos, a fim de impressionar os jurados.Uma a uma as testemunhas foram chamadas e interrogadas com perguntas curtas e breves, e cada uma

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delas acrescentou o seu quinhão ao sentimento de horror que pairava na sala do tribunal.Estas testemunhas eram os oficiais de polícia que se haviam defrontado com a cena, Todas elas descreviam o que tinham visto no quarto. Falavam da posição do corpo e do fiel cão de guarda que fora impiedosamente morto ao tentar proteger o seu dono.Um fotógrafo da polícia apresentou uma série completa de fotografias reproduzindo a casa, os quartos, e o corpo lúgubre e grotescamente deitado no chão da sala luxuosa. Havia até um close up da cabeça do cachorro mostrando os olhos vidrados, a língua caída, e a inevitável poça escura que emanava do corpo.Depois, o cirurgião que fizera a autópsia expôs com grande pormenores técnicos o curso das balas e a distância de onde elas tinham sido desfechadas, facto este que pudera ser constatado pelas queimaduras de pólvora encontradas na pele do cadáver e no pelo chamuscado do cachorro.De vez em quando, Perry Mason aventurava um interrogatório acanhado. Em voz branda, fazia perguntas destinadas a expor algum facto que a testemunha olvidara ou a explicar alguma declaração por ela feita. Não houve nenhum dos debates de inteligência que os espectadores esperavam; nenhum dos rasgos brilhantes que caracterizavam o dramático advogado criminalista.Os espectadores tinham-se reunido em grande número para assistir a um espectáculo e estavam sorridentes. Mas lentamente os sorrisos foram desaparecendo de todos os semblantes, dando lugar a sobrecenhos franzidos e olhares rancorosos em direcção à acusada. Afinal, aquilo era um crime soturno - um assassínio; alguém precisava ser punido por ele.Pela manhã, os jurados haviam tomado os seus lugares com acenos cordiais para Perry Mason e olhares tolerantes para a acusada.

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Ao meio-dia evitavam o olhar de Perry Mason e inclinavam-se para a frente, a fim de apreenderem melhor dos lábios das testemunhas os pormenores horripilantes.Prank Everly olhou para Perry Mason. Era evidente que Everly se encontrava super-emocionado.- Permite que lhe diga uma coisa?-perguntou quando Perry Mason se recostou na cadeira, com um cigarro entre os lábios.Perry Mason lançou-lhe um olhar paciente e tolerante.- Certamente - disse.- Esta causa está a escorregar-lhe por entre os dedos - disse Frank Everly, ofegante.- Acha? - perguntou Mason.- Estive a ouvir comentários na sala do tribunal. Hoje de manhã o senhor teria podido libertar Bessie Forbes sem dificuldade alguma. Agora, ela não será capaz de se salvar - a menos que possa provar um alibi. O júri está a compreender o horror da situação: o facto de que o crime foi um assassínio a sangue frio. Pense no que Drumm dirá sobre o fiel cão de guarda que deu a sua vida para salvar a do dono. Quando o cirurgião declarou que a arma estava apenas a algumas polegadas do peito do cachorro e a menos de dois pés de distância de Clinton Forbes no momento em que os tiros foram desfechados, eu pude ver os jurados entreolharem-se significativamente.Perry Mason permaneceu impertubável.- Sim - disse ele, - é um elemento de prova bastante poderoso, e o golpe pior vai ser dado hoje de tarde, logo após o início do julgamento.- Como? - perguntou Frank Everly.

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- A menos que eu esteja muito enganado - disse Perry Mason, - a primeira testemunha a ser chamada depois do intervalo é o homem que foi trazido de Santa Bárbara e que tem o registo de armas de fogo. Ele

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mostrará o registo da arma que ocasionou a morte; dirá quando a arma foi recebida, quando foi vendida, e identificará Mrs. Forbes como a pessoa que a comprou. Apresentará em seguida o registo e mostrará a assinatura dela. Este facto, alienará todas as simpatias de Bessie Forbes.-"Mas o senhor não pode impedi-lo, de algum modo? - perguntou Iverly. - Poderia fazer objecções, conservando-se o foco de todas as atenções, a fim de evitar que o caso parecesse tão tremendamente horripilante.Perry Mason olhou calmamente para o seu cigarro.- Mas a questão é que eu não quero evitá-lo.- Mas o senhor podia fazer uma interrupção. Podia fazer qualquer coisa que impedisse que o horror se apossasse dos jurados.- Mas se é isto exactamente o que eu quero que aconteça - disse Perry Mason.- Valha-me Deus! Porquê? - perguntou Frank Everly.Perry Mason sorriu.- Você já se esforçou por obter algum cargo político?- Não, naturalmente - disse o rapaz.- Se o tivesse feito - disse Perry Mason, - compreenderia que coisa instável é a mentalidade das pessoas consideradas em massa.- O que quer dizer com isso?- Simplesmente que na massa não existe firmeza nem consistência, - disse Perry Mason, - E um júri é a manifestação de um conjunto de mentalidades.- Não percebo até onde quer chegar - disse o secretário.- Comsideremos a coisa por outro lado - disse Perry Mason. - Você já assistiu, sem dúvida, a um bom espectáculo.- Sim, naturalmente.

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- Assistiu a algum onde houvesse uma cena forte e emocionante; alguma coisa que lhe pusesse lágrimas nos olhos e um aperto na garganta?- Sim, - disse Everly - já assisti: mas não compreendo o que tem uma coisa a ver com a outra.- Procure lembrar-se do último espectáculo a que assistiu e que tivesse sido fortemente emocionante - continuou Perry Mason, contemplando a espiral de fumo que se evolava da ponta do seu cigarro.- Sim, assisti há alguns dias a um espectáculo assim, - disse Everly.- Veja então se pode lembrar-se da parte mais dramática.- Claro que me lembro. Duvido que a pudesse esquecer. Era uma cena em que uma mulher...- Isso não tem importância agora - interrompeu Perry Mason. Deixe que lhe pergunte uma coisa: o que fazia você três minutos depois dessa cena emotiva?Everly fitou-o demonstrando surpresa.- Ora, estava sentado no teatro, naturalmente.- Não, não é a isso que me refiro - disse Perry Mason. Qual era a sua emoção?

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- Ora, - disse Everly - assistia à peça e...De repente, sorriu.- A/gora, - disse Perry Mason - creio que você já percebeu onde quero chegar. O que fazia?- Estava a rir - disse Everly.- Exactamente - disse Mason, como se aquilo esclarecesse o assunto.Everly fitou-o perplexo durante alguns momentos.- Mas - disse ele, - não compreendo o que tem isso a ver com o júri deste caso.- Muitíssimo - disse Perry Mason. - Um júri é um auditório. Um auditório pequeno, mas um auditório, de qualquer modo. Ora, os autores que conseguem sucesso com peças, têm forçosamente que conhecer a natureza humana. Eles reconhecem a volubilidade que há na mentalidad das pessoas consideradas em massa. Sabem que ela é Incapaz de conservar uma emoção, durante um longo períddo de tempo. Se depois da cena dramática da peça a que você assistiu não houvesse uma oportunidade para o riso, a peça teria sido um fracasso.^ Aquela plateia era volúvel, como todas as plateias, tinha experimentado uma tensão emotiva, condoendo-se da heroína na sua hora trágica. Sofreu por sua causa. Este sofrimento era sincero. Teria morrido para salvar a heroína. Teria dado cabo do vilão se lhe deitasse as mãos. Sentiu honesta, sinceramente e de todo o coração. Todavia, não poderia ter conservado a emoção por mais de três minutos. Aquilo não era o problema dos espectadores; era o problema da heroína. Tendo sofrido por ela, profunda e sinceramente, eles desejaram equilibrar os pratos da balança emocional, pelo riso. O autor inteligente sabia disso e deu-lhes uma oportunidade para rir. Se você tivesse estudado psicologia teria notado com que ansiedade a plateia se agarrou àquela oportunidade para rir.Os olhos de Everly iluminaram-se.- Muito bem - disse ele. - Agora, explique-me exactamente que aplicação tem isso a um júri. Creio que começo a compreender.- Este nosso caso - disse Perry Mason, - vai ser curto, rápido e dramático, A política de um Promotor consiste em acentuar o horror de um caso de homicídio, em pôr em relevo o facto de que não se trata apenas de um debate de inteligência entre advogados, mas da apresentação à justiça de um inimigo público que matou. Em geral, o advogado de defesa tenta impedir que esta impressão de horror se apodere do júri. Põe-se de pé, com o pensamento nos fotógrafos. Agita os braços e grita os seus argumentos. Coloca-se em frente das testemunhas, apontando o indicador, de modo dramático.isto visa quebrar a cadeia emocional, suavizar o horror da situação e atrair a atenção dos jurados para o drama da sala do tribunal, em vez de deixar que eles se voltem inteiramente para o horror do homicídio.- Bem - disse Everly,- penso que é exactamente isso o que o senhor deseja fazer neste caso.- Não - disse Mason devagar. - É sempre muito melhor fazer o contrário daquilo que o hábito decreta. Claude Drumm é um lutador lógico: um adversário perigoso e obstinado, mas não tem subtileza. Não possui o senso da relatividade dos valores. Ele não é intuitivo, não consegue sentir o estado mental de um júri. Está acostumado a introduzir esta encenação toda, depois de um longo debate; depois que o advogado do outro lado, fez todo o possível para suavizar o horror da situação. Você já teve ocasião de ver dois homens que numa competição de força estivessem a puxar as extremidades de um cabo e onde um deles, subitamente, afrouxasse deixando-se levar e o outro cambaleasse e caísse?- Sim, naturalmente.

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- Pois isto aconteceu simplesmente - disse Perry Mason, - porque ele estava a puxar demais. Esperava uma oposição contínua. No momento em que a não teve, puxou com tamanha força que foi jogado ao chão pela violência de seu próprio esforço.- Agora estou a perceber - disse Frank Everly.- Exactamente - disse-lhe Perry Mason. - Esta manhã, quando os jurados entraram no tribunal, esperavam assistir a um espectáculo. Drumm começou por lhes mostrar os horrores do caso. Eu nada fiz em relação a isto e Claude Drumm empenhou-se com fúria em salientar o lado tétrico do crime. Mergulhou os jurados no horror durante a manhã inteira. Passará a tarde a fazer a mesma coisa. Inconscientemente, o cérebro dos jurados procurará alívio. Desejarão algo que os faça rir. Inconscientemente, rogarão por qualquer coisa

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dramática, tal como a que aconteceu ontem, a fim de que possam afastar o horror de seus cérebros. Isto é um esforço subconsciente que o cérebro faz para se reajustar a si mesmo. Tendo experimentado tamanha dose de horror, os jurados desejam um pouco de riso, como um antídoto. Isto é parte da volubilidade do cérebro humano. E lembre-se disto, Frank: sempre que tiver um caso para julgar, não tente nunca despertar a menor emoção nos cérebros dos jurados e fazer pressão sobre esta emoção. Escolha, se quiser, uma emoção qualquer, mas detenha-se nela apenas por alguns momentos. Leve em seguida os seus argumentos para outro ponto, e volte depois a ela. A mente humana é como um pêndulo. Pode-se impulsioná-lo balançando-o um pouco de cada vez, voltando-se gradualmente com uma explosão de oratória dramática, tendo o júri inflamado numa raiva ilimitada, contra o outro lado. Mas, se você tentar falar a um júri durante mais de quinze minutos, batendo sempre sobre a mesma tecla, descobrirá- que ele deixou de ouvi-lo antes de você haver terminado.Um raio de esperança transpareceu na fisionomia do rapaz.- Então, esta tarde o senhor vai fazer com que os jurados alcancem o máximo de suas capacidades emocionais?- perguntou Frank.- Vou - disse Perry Mason. - Esta tarde vou reduzir esta causa a pedaços. Sem objecções, sem interrogatórios, a não ser sobre questões de menor importância, estou a acelerar o caso. Claude Drumm, a despeito de si mesmo, percebeu que a sua causa está a desenrolar-se com tamanha rapidez que lhe foge das mãos. A sensação de horror que ele esperava distribuir a intervalos variados, durante um período de três ou quatro dias, foi Inteiramente derramada no cérebro dos jurados em duas horas apenas. É uma quantidade excessiva de horror para um júri suportar. Os jurados estão prontos a

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apegar-se a qualquer desculpa que lhes forneça um alívio emoceonal. Claude Drumm esperou lutar obstinadamente, a seu modo, em direcção a um objectivo. Em vez disso, descobriu que não havia resistência alguma. Ele está a galopar pelo caminho com tão grande velocidade que não poderá manter a coesão. Ele mesmo está a perder a sua causa.- E esta tarde o senhor pretende fazer qualquer coisa?-perguntou Frank Everly. -Pretende tentar qualquer coisa sua?- Esta tarde - disse Perry Mason, tendo no rosto uma expressão firme - vou tentar conseguir um veredicto de inocência.Apertou a ponta do cigarro, empurrou a cadeira para trás e disse:

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- Bem, rapaz, vamos.

CAPÍTULO XXI

Confirmando as previsões de Perry Mason, Claude Drumm apresentou o funcionário da loja de artigos de desporto, que viera de Santa Bárbara. O funcionário identificou a arma assassina como a que havia vendido à ré no dia 29 de Setembro do ano anterior. Mostrou a venda no registo de armas de fogo, e a assinatura de Bessie Forbes.Triunfantemente, Claude Drumm fez um gesto em direcção a Perry Mason e disse em tom declamatório:- Pode interrogar a testemunha.- Não tenho perguntas a fazer - disse Perry Mason numa voz arrastada.Claude Drumm franziu as sobrancelhas quando a testemunha deixou o banco e depois, voltando-se para a sala do tribunal, disse dramaticamente, para o beleguim:- Chame Thelma Benton.

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Thelma Benton prestou o seu depoimento em voz lenta e sonora. Em resposta às perguntas de Claude Drumm. traçou rapidamente o drama humano de Clinton Forbes. Falou da vida dele em Santa Bárbara, da sua paixão por Paula Cartright, da fuga, da compra da residência de Milpas Drive, da felicidade de Forbes e da sua companheira no seu romance ilícito, e, depois) do inquilino misterioso da casa vizinha, da contínua inspecção com o binóculo, da súbita descoberta de que o vizinho não era outro senão o marido enganado, da abrupta partida de Paula Cartright, e finalmente do crime.- Interrogue! - exclamou Claude Drumm triun-fantemente.Perry Mason, levantou-se devagar.- Senhor Juiz - disse ele, - é fácil de se constatar que o depoimento desta testemunha, poderá ser talvez da mais alta Importância. Eu sei que às três e meia, aproximadamente, haverá os habituais cinco ou dez minutos de suspensão. No momento, são três e dez, e estou perfeitamente disposto a começar o meu interrogatório e a interrompê-lo para a habitual suspensão da tarde. Mas, aparte esta suspensão, quero que me seja permitido interrogar esta testemunha sem interrupção durante o resto da tarde.O Juiz Markham ergueu as sobrancelhas e lançou um rápido olhar a Claude Drumm.- Faz alguma objecção a isso, Senhor Promotor? - perguntou ele.- Nenhuma - disse Claude Drumm com escârneo. - Pode interrogar quanto quiser.- Não desejo ser mal compreendido - disse Perry Mason. - Posso querer prolongar o meu interrogatório até amanhã, ou conclui-lo hoje.- Prossiga com o interrogatório, Sr. Advogado de Defesa - disse o Juiz Markham, dando uma rápida pancada com o martelo. - Este tribunal não tenciona

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interromper o interrogatório por adiamento, se é isso o que o senhor está a pensar.Claude Drumm fez um estudado gesto de polidez.- Pode interrogar a testemunha durante um ano, se assim o desejar, - disse ele.- Acabem com isso! - gritou zangado o Juiz Markham,-Prossiga com o interrogatório, Senhor Advogado de Defesa.Perry Mason tornou-se uma vez mais o centro de todas as atenções, A sua declaração de que o interrogatório iria ser da mais alta importância, atraíra a atenção de todas as

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pessoas que se encontravam na sala do tribunal. O facto de ter sido tão superficial o seu interrogatório precedente, servira para acentuar o interesse pelo interrogatório desta testemunha.- Quando deixou Santa Bárbara com Mr. Forbes e Mrs. Cartright - disse ele, - Mrs. Cartright estava ao par das suas aptidões de secretária?- Não sei.- Não sabe o que Mr. Forbes lhe havia dito, a ela?- Claro que não.- Havia sido anteriormente secretária de Mr. Forbes?- Sim.- E foi mais do que uma secretária? - perguntou Perry Mason.Claude Drumm levantou-se com uma objecção vigorosa e veemente. O Juiz Markham aceitou-a prontamente:- Queira prosseguir o interrogatório e evitar tais perguntas, Sr. Advogado de Defesa.- Muito bem - disse Perry Mason. - Quando deixou Santa Bárbara "com Clinton Forbes e Paula Cartright, viajou de automóvel, Mrs. Benton?- Sim.- E nesse automóvel vinha um cão polícia?- Sim.

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- Um cão polícia chamado Prímce?- Sim.- O cão que foi morto na ocasião do crime?- Sim - disse Thelma Benton com súbita veemência. - Ele perdeu a vida ao tentar defender o seu dono contra o ataque de um assassino covarde!- E esse cachorro foi o mesmo que viajou consigo; no automóvel? - inquiriu Perry Mason.- Sim.- Esse animal era dedicado a Paula Cartright?- Sim, estava perfeitamente familiarizado com ela quando deixámos Santa Bárbara e tornou-se-lhe muito afeiçoado.- E esse cachorro estivera anteriormente na companhia de Mr. e Mrs. Forbes?- Exactamente.- A senhora viu-o em companhia deles?- Sim.- E ele também era afeiçoado a Mrs. Forbes?- Naturalmente.- Afeiçoou-se à senhora, também?- Sim; ele era um animal muito afectivo.- Compreendo - disse Perry Mason. - E o cachorro uivou quase sem interrupção durante a noite de 15 de Outubro do presente ano?- Ele não uivou.- Ouviu o cachorro uivar?- Não ouvi.- Não é verdade, Mrs. Benton^ que o cachorro saiu de casa e ficou parado junto ao prolongamento que estava a ser feito na garage, uivando tristemente?- Ele não fez tal coisa.

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- Agora-disse Perry Mason mudando abruptamente de assunto, - diga-me: identificou a carta que Mrs. Cartright deixou para Mr. Forbes quando decidiu reunir-se ao seu marido?

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- Identifiquei.- Ela estivera retida no seu quarto, em virtude de um ataque de gripe?- Sim.- Estava a convalescer?- Estava.- E, de repente, pediu um táxi quando Mr. Forbes se ausentou?- Quando Mr. Forbes foi afastado de casa - disse a testemunha em tom frio e áspero,- em virtude de uma queixa falsa que contra ele fora apresentada pelo senhor e por Arthur Cartright, ela reuniu-se a Mr. Cartright. Fez isto clandestinamente.- O que a senhora quer dizer - rebateu Perry Mason, - é que ela fugiu com o seu próprio marido.- Ela abandonou Mr. Forbes, com quem vivia há um ano, - disse a testemunha.- E deixou esta carta?- Sim.-^Reconhece esta carta como sendo de Mrs. Cartright?- Reconheço.- Estava familiarizada com a letra de Mrs. Car-tright antes dela sair de Santa Bárbara?- Sim.- Agora - disse Perry Mason apresentando um pedaço de papel, - vou mostrar-lhe esse papel que parece ter sido escrito por Mrs. Cartright e perguntar-lhe se a letra que nele se vê é a mesma que se vê na carta.- Não, não é - disse a testemunha devagar. Thelma Benton mordeu o lábio por um momento. Depois, subitamente, acrescentou: Creio que Mrs. Cartright fez um esforço consciente para modificar a sua letra, depois que saiu de Santa Bárbara. Ela procurava evitar que a sua verdadeira identidade fosse descoberta por qualquer pessoa com quem ela pudesse entrar em contacto.

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- Compreendo - disse Perry Mason. - Vou mostrar-lhe agora uma folha de papel que parece conter a letra de Bessie Forbes. A letra não é a mesma que a da carta que Mrs. Cartright deixou, não é verdade?- Certamente que não.- E, - disse Perry Mason, - posso pedir-lhe que escreva qualquer coisa numa folha de papel) para que a sua letra possa ser comparada?A testemunha hesitou.- Isto é altamente irregular, senhor Juiz - disse Claude Drumm pondo-se em pé. - Protesto.Perry Mason sacudiu a cabeça.- A testemunha - disse ele, - prestou depoimento sobre a letra de Mrs. Cartright. Eu tenho o direito de a interrogar mostrando-lhe outras letras e pedir a sua opinião sobre a identidade das mesmas.- Tem razão - disse o Juiz Markham.-Recuso o protesto.Thelma Benton pegou na/ folha de papel e escreveu algumas rápidas linhas.

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- Creio que temos ambos de concordar - disse ele, - em que esta é inteiramente diferente da letra que aparece na carta que Mrs. Cartright deixou.- Naturalmente - disse a testemunha num tom de sarcasmo gelado.O Juiz Mankham mexeu-se pouco à vontade.- Aproxima-se a hora da habitual suspensão da tarde - disse ele. - Creio que o Advogado de Defesa declarou que não se oporia a que o interrogatório fosse interrompido por essa habitual suspensão.- E confirmo, Senhor Juiz.- Muito bem. O tribunal levantará a sessão por dez minutos. O júri deverá lembrar-se da recomendação feita pela corte, de que não deve conversar sobre o caso, nem permitir que ele seja discutido na sua presença.

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O juiz levantou-se, lançou a Perry Mason um olhar de curiosidade, e entrou depois na sua sala.Perry Mason consultou o relógio e franziu as sobrancelhas.- Vá à janela, Frank - disse ele a Frank Everly, - e veja se nota alguma) actividade fora do comum, entre os jornaleiros da esquina.O secretário dirigiu-se à janela do tribunal e olhou para a rua, em baixo. "Perry Mason, sem dar atenção aos olhares insistentes dos espectadores curiosos, afundou-se na sua poltrona e baixou a cabeça, pensando. Os seus dedos fortes tamborilavam de leve sobre o braço da poltrona.Frank Everly, deixou a janela e voltou a correr em direcção à mesa do conselho.- Há um movimento muito grande, lá em baixo - disse ele. - Um caminhão esteve a distribuir jornais. Parece que se trata de uma edição extra. Os garotos estão a apregoá-la.Perry Mason consultou o relógio e sorriu.- Desça e compre dois jornais - disse ele. Voltou a cabeça e acenou para Bessie Forlbes.- Sinto, Mrs. Forbes, que tivesse passado por tão dura prova, mas agora creio que já não será por muito tempo.Ela fitou-o com um olhar confuso e disse:- Francamente, o que eu ouvi esta manhã, levou-me a acreditar que a causa vai indo pessimamente contra mim.O agente da polícia que estava encarregado dela, adiantou-se ligeiro, colocando-se a seu lado.. Claude Drumm, que estivera a fumar um cigarro no corredor, entrou com imponência na sala do tribunal, convencido do restabelecimento da sua própria importância. Caminhou com digna superioridade em direcção ao advogado criminalista que precisava viver à custa dos julgamentos,

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em vez de se refastelar na facilidade de um ordenado mensal, pago com a regularidade cronométrica com que os funcionários do governo dispendem o dinheiro dos contribuintes.Frank Everly entrou impetuosamente na sala do tribunal com dois jornais na mão, os olhos arregalados, os lábios entreabertos.- Eles encontraram os corpos! - disse ele e precipitou-se na direcção de Perry Mason.Perry Mason pegou num dos jornais e segurou-o de modo a permitir que os olhos espantados de Claude Drumm, pudessem ler os cabeçalhos.

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O PALACETE DO MILIONÁRIO é UM ANTRO DE CRIMES, gritava em espalhafatosas letras garrafais todo o cabeçalho da primeira página. Abaixo, e em tipos um pouco menores, apareciam as palavras: OS CORPOS DE CARTRIGHT E DE SUA ESPOSA DESCOBERTOS SOB O CHÃO DA GARAGE DE FORBES.Claude Drumm retesou-se, olhando com os olhos muito abertos.Um beleguim, segurando um jornal, precipitou-se pela sala do tribunal e entrou, quase a correr, na sala do juiz.Um dos espectadores entrou na sala do tribunal com um jornal meio a/berto, falando excitadamente.Segundos depois, tornara-se o centro de um círculo que o escutava com a respiração suspensa.Claude Drumm, estendeu o braço de repente.- Posso ver este jornal? - perguntou com aspereza.- Com o maior prazer - disse Perry Mason, entregando-lhe o segundo jornal.Thelma Benton aproximou-se do Promotor.- Preciso falar consigo - disse ela.Perry Mason correu os olhos pela notícia do jornal, passando-o em seguida a Frank Everly.

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- Tome, leia Frank. Parece que o The Chronicleconseguiu uma "caixa>.- Mas como é que a polícia não soube disso?- Provavelmente valeram-se de amigos na polícia e conservaram a coisa em segredo até que conseguiram pôr os jornais na rua. Se tivesse chegado ao conhecimento da polícia todos os jornais da cidade teriam sido informados.Perry Mason consultou o relógio, depois levantou-se, espreguiçou-se, bocejou e passou lentamente para a sala do Juiz Markham.O juiz estava sentado à sua mesa, lendo a notícia do jornal com olhos onde havia uma expressão de completa confusão.- Sinto incomodá-lo senhor Juiz - disse Perry Mason, - mas notei que o tempo destinado à suspensão, expirou. Estou ansioso por concluir o interrogatório daquela testemunha antes da suspensão da tarde. Na verdade, creio que talvez seja possível concluirmos o caso hoje mesmo.O Juiz Markham olhou para Perry Mason. Os seus olhos reluziam astutamente.- Gostaria de saber - disse ele, - com que fim... E a voz diminuiu, até cair em completo silêncio.- O que era que gostava de saber, senhor Juiz? - perguntou Perry Mason.O Juiz Markham (franziu as sobrancelhas.- Não sei se devo perguntar-lho - disse ele, - mas gostaria de saber ipor que especial motivo pediu permissão para concluir hoje o interrogatório da testemunha.Perry Mason encolheu os ombros e não disse nada.- Ou o senhor é o homem mais notavelmente feliz que trabalha no foro - disse o Juiz Markham, - ou então o mais astutamente hábil.Perry Mason não deu resposta directa à pergunta, mas disse:

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- Eu sempre pensei que um processo fosse como um iceberg. Apenas uma fracção dele é visível a olho nu; o resto, fica sob a superfície.O Juiz Markham levantou-se.- Bem, senhor Advogado de Defesa - disse ele, - seja como for, o senhor está autorizado a dar prosseguimento à causa.Perry Mason voltou à sala do tribunal. Quase imediatamente, o Juiz Markham saiu da sua sala. O beleguim batia freneticamente, pedindo ordem, mas teve que fazê-lo por alguns segundos, antes que fosse atendido. A sala do tribunal fervilhava com a vozearia das conversações sussurradas e dos comentários excitados. Finalmente, a ordem foi restabelecida. Os jurados tomaram os seus lugares. Perry Mason afundou-se na sua cadeira, e parecia indiferente aos espantosos acontecimentos dos últimos minutos.- Thelma Benton estava no lugar das testemunhas, para interrogatório - anunciou o Juiz Markham.Claude Drumm levantou-se.- Senhor Juiz - disse ele, - qualquer coisa espantosa) " inesperada acaba de acontecer. Em vista das circunstâncias) sei que o Senhor Juiz não me pedirá que mencione a natureza deste acontecimento, pelo menos em presença dos jurados. Creio que como funcionário do Estado e como Promotor familiarizado com todos os factos deste caso, a minha presença é requerida com urgência noutro lugar e eu solicito um adiamento deste caso até amanhã de manhã.O Juiz Markham olhou através dos óculos para Perry Mason.- Alguma objecção( Senhor Advogado de Defesa? - perguntou.- Sim - disse Perry Mason levantando-se, - os direitos da acusada exigem que o interrogatório desta testemunha seja concluído nesta sessão da corte. Mencionei esta questão antes de iniciar o interrogatório e foi esse o entendimento especial que tive com o tribunal.- É exacto - disse o Juiz Markham.-O pedido para um adiamento está negado.- Mas - disse Claude Drumm, - o senhor deve compreender...- Basta, Senhor Promotor - atalhou o Juiz Markham - o pedido para um adiamento foi negado. Prossiga, Mr. Mason.Perry Mason fitou Thelma Benton por um momento, com um longo e firme olhar de acusação.Ela baixou os olhos e mexeu-se na cadeira das testemunhas. O seu rosto estava tão branco quanto a parede que lhe ficava atrás.- Bem - disse Perry Mason devagar, - segundo deduzi do seu depoimento, Paula Cartright deixou a residência de Milpas Drive num táxi, na manhã de 17 de Outubro.- É verdade - disse ela.- A senhora viu-a sair?- Vi - disse ela em voz baixa.- Devo compreender - disse Perry Mason erguendo a voz, - que viu Paula Cartright na manhã de 17 de Outubro deste ano?A testemunha mordeu o lábio, e hesitou.- Os autos devem registar - disse Perry Mason polidamente, - que a testemunha está a hesitar.Claude Drumm levantou-se num salto.- Isto - disse ele, - é manifestamente incorrecto e eu protesto contra a pergunta como argumentativa, como já tendo sido feita e respondida e como não sendo própria do interrogatório.- O protesto está rejeitado - disse o Juiz Markham. - Nos autos ficará registado que a testemunha hesita apreciavelmente em responder.

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Thelma Benton ergueu o olhar, Os seus olhos estavam escuros de pânico.- Não posso dizer que a tivesse visto pessoalmente - disse ela. - Ouvi passos a descer as escadas do seu quarto. Vi um táxi parado em frente da casa e vi uma mulher a entrar nele. Depois, o carro saiu. Julguei que a mulher fosse Mrs. Cartright.- Quer então dizer que não a viu? - insistiu Perry Mason.- Não - disse ela em voz baixa, - não a vi.- Ora - disse Perry Mason, - a senhora identificou esta carta como sendo escrita por Mrs. Cartright.- Sim, senhor.Perry Mason apresentou a cópia fotográfica do telegrama enviado de Midwick.- E - disse ele - identificará a cópia desse telegrama como sendo também escrita por Paula Cartright?A testemunha olhou para o telegrama, hesitou e mordeu o lábio.- Não acha que estes dois documentos estão escritos com a mesma letra?Quando ela respondeu, foi em voz tão baixa que mal se ouvia.- Sim - disse, - creio que estão escritos na mesma letra.- Não tem a certeza? A senhora não hesitou em identificar a carta como sendo escrita por Paula Cartright. E este telegrama? A letra que nele se vê é ou não é a de Paula Cartright?- Sim - disse a testemunha numa voz quase inaudível, - é a letra de Mrs. Cartright.- De modo que, - disse Perry Mason - Mrs. Cartright enviou este telegrama de Midwick na manhã de 17 de Outubro?- Suponho que sim - respondeu a testemunha em voz baixa.

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O Juiz Markham bateu com o martelo.- Mrs. Benton - disse ele, - a senhora deve falar mais alto a fim de que o Júri possa ouvi-la. Fale mais alto.Ela levantou a cabeça, fitou o juiz e cambaleou ligeiramente.Claude Drumm levantou-se.- Senhor Juiz - disse ele, - ao que parece, a testemunha sente-se mal.. Mais uma vez peço um adiamento, a fim de que possamos ser justo para com ela, que sem dúvida alguma, suportou um grande abalo.O Juiz Markham meneou a cabeça devagar.- Penso que o interrogatório deve prosseguir - disse.- Se esta causa pudesse continuar até amanhã,- - disse Claude Drumm desesperadamente, haveria alguma possibilidade de que fosse arquivada.Perry Mason voltou-se rápido e em atitude belicosa, e falou tão alto que a sua voz parecia ecoar nas vigas da sala do tribunal.- O Tribunal não pode permitir que este julgamento seja adiado. Uma acusação pública foi feita contra a acusada, e ela tem direito a uma absolvição das mãos do júri. Uma desistência por parte da acusação deixá-la-ia com uma mancha sobre o seu nome.A voz do Juiz Markham soou baixa e calma, em comparação com a veemente eloquência de Perry Mason- O pedido está negado uma vez mais - disse ele. A causa prosseguirá.

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- Quer ter agora a bondade - disse Perry Mason, - de explicar como Paula Cartright poderia ter escrito uma carta e um telegrama na manhã de 17 de Outubro deste ano, quando é do seu próprio conhecimento que Paula Cartright foi assassinada na tarde de 16 de Outubro?Claude Drumm estava de pé.

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- Protesto contra a pergunta - disse ele - como argumentativa, em vista de pedir uma conclusão da testemunha, e como imprópria do interrogatório, em( vista de se apoderar de um facto que não está nos seus autos.O Juiz Markham deteve-se contemplando por um momento o rosto pálido e contorcido da testemunha.- Aceito o protesto - disse ele.Perry Mason pegou na carta que havia sido identificada como escrita por Mrs. Cartright, colocou-a sobre a mesa, em frente da testemunha e bateu com o punho sobre ela.- Não é verdade que foi a senhora quem escreveu esta carta? - perguntou ele à testemunha.- Não - disse ela, colérica.- Esta não é a sua letra?- O senhor bem sabe que não é - disse ela - A letra não se assemelha à minha, em absoluto.- No dia 17 de Outubro - disse Perry Mason, - a sua mão estava ligada, não é verdade?- Sim.- A senhora tinha sido mordida por um cão, não é verdade?- Sim. Prince fora envenenado e quando eu tentei dar-lhe um vomitório, ele mordeu-me a mão, acidentalmente.- Sim - disse Perry Mason, - mas o facto é que a sua mão direita foi ligada no dia 17 de Outubro deste ano e que assim permaneceu por alguns dias ainda, não é verdade?- Sim.- E com esta mão, a senhora não poderia segurar uma pena?Houve um momento de silêncio. Depois, subitamente, a testemunha disse:- Não. E isso serve para provar quanto é falsa a

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sua acusação de que eu escrevi a carta ou o telegrama. A minha mão estava de tal modo que eu não teria podido segurar uma pena com ela.- Esteve em Midwick - perguntou Perry Mason, rapidamente, - no dia 17 de Outubro deste ano?A testemunha hesitou.- Não contratou um aeroplano - continuou Perry Mason sem esperar resposta, - que a levou a Midwick no dia 17 de Outubro deste ano?- Sim - disse a testemunha. - Pensei que poderia encontrar Mrs. Cartright em Midwick e fui até lá, de avião.- E não emitiu este telegrama de Midwick, quando lá esteve? - perguntou Perry Mason.- Não - disse ela. - Já lhe disse que não podia ter escrito este telegrama.- Muito bem - disse Perry Mason, - voltemos por um momento à sua mão. Estava tão gravemente ferida, que a impossibilitava de segurar uma pena?- Sim.

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- E isto foi no dia 17 de Outubro deste ano?- Foi- E também no dia 18 de Outubro?- Sim.- E no dia 19?- Sim.- Muito bem - disse Perry Mason. - Não é verdade que continuou a escrever o seu diário durante este período que mencionei?- Sim - respondeu ela rápida e impensadamente. Depois, suspendeu de súbito a respiração, mordeu o lábio e disse: - Não.- Afinal - disse Perry Mason, - qual é a resposta? Sim ou não?- Não - disse ela.- Não é verdade - disse ele, - que esta é uma

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folha tirada do diário escrito pela senhora naquela data - ou melhor, no dia 18 de Outubro deste ano?A testemunha fitou o pedaço de papel e nada disse.- Não é verdade - disse Perry Mason, - que a senhora é ambi-dextra e que escreveu o diário naquela época, fazendo as anotações com a mão esquerda? Não é verdade que sempre foi capaz de escrever com a mão esquerda e que o fazia todas as vezes que desejava disfarçar a letra? Não é verdade que tem em seu poder o diário de onde esta folha foi tirada e que a letra nela contida é exactamente a mesma que se encontra na carta que se supôs ter sido escrita por Paula Cartright e também no telegrama que se diz ter sido emitido por ela?A testemunha levantou-se, fitou o Juiz Markham com o olhar vidrado e depois, entreabrindo os lábios descorados, gritou.A confusão tomou conta da sala do tribunal. Beleguins batiam insistindo por ordem. Guardas correram para a testemunha. Claude Drumm, em pé, pedia freneticamente um adiamento, mas o seu pedido perdia-se no (turbilhão do barulho.Perry Mason voltou para a mesa do Conselho e sentou-se.Os guardas puseram-se ao lado de Thelma Benton, pegaram-lhe pelos cotovelos e tentaram conduzi-la ao lugar das testemunhas. Ela inesperadamente tombou para a frente, num desmaio.A voz de Claude Drumm conseguiu fazer-se ouvir no meio da algazarra confusa da sala do tribunal.- Senhor Juiz - gritou ele,- em nome da decência comum, em nome da humanidade, exijo um adiamento deste caso a fim de que esta testemunha possa recuperar um pouco de controle e de saúde, antes de ser submetida a novo interrogatório, é evidente, não importa qual seja a causa, que ela se encontra muito doente. Continuar

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com tão cruel interrogatório, neste momento, é falta de humanidade.O Juiz Markham semicerrou os olhos, meditando, e olhou em seguida para Perry Mason.O advogado falou em voz baixa e calma. A algazarra da sala do tribunal sossegou para que os espectadores pudessem ouvi-lo.

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- Posso perguntar ao sr. Promotor - inquiriu Perry Masom, - se esta é a única razão que o leva a pedir um adiamento?- Certamente.-Respondeu Claude Drumm.- Em vista do pedido de adiamento, posso perguntar-lhe também, sr. Promotor se tem outra testemunha, ou se esta é a última?- Esta - disse Claude Drumm, - é a minha última testemunha. Concedi-lhe, Sr. Advogado de Defesa, o direito de a interrogar. A Promotoria compartilha do desejo de descobrir os verdadeiros factos deste caso. Mas eu não posso consentir que se continue a interrogar uma mulher que está evidentemente a sofrer de um terrível abalo nervoso.- Creio - disse o Juiz Markham, - que neste momento a proposta é justa, pelo menos para um adiamento breve.Perry Mason sorriu com polidez.- Senhor Juiz - disse ele, - já não há mais necessidade desta proposta. Tenho a satisfação de anunciar que, em vista do estado mental da testemunha e do meu desejo de concluir o caso, dou o interrogatório por encerrado.E o advogado sentou-se.Claude Drumm pôs-se ao lado da sua cadeira, na mesa do conselho, olhando incredulamente para Perry Mason.- Dá por encerrado? - perguntou ele.- Sim - disse Perry Mason.- Em tais circunstâncias - disse Claude Drumm,- sinto-me deveras surpreendido, Senhor Juiz, e gostaria que o caso fosse adiado até amanhã de manhã.- Por que razão? - perguntou o Juiz Markham.- Simplesmente para que eu possa esclarecer as minhas ideias sobre certos factos e averiguar que rumo desejo tomar - disse Claude Drumm.- Mas - Observou o Juiz Markham, - em resposta a uma pergunta do Sr. Advogado de Defesa, o senhor declarou que esta era a sua última testemunha.- Muito bem - disse Claude Drumm subitamente. - abstenho-me. Que o conselho prossiga com a sua defesa.Perry Mason inclinou-se para o Juiz e para os jurados.- A defesa - disse ele, - também se abstém.- O quê? - gritou Claude Drumm. - O senhor nem sequer apresentou evidências!- A defesa - disse Perry Mason com dignidade, - abstém-se.O Juiz Markham falou em voz calma e judicial. - Os senhores desejam argumentar sobre o caso ? - perguntou ele.- Sim - disse Perry Mason, - gostaria de fazê-lo.- E o Sr. Promotor? - perguntou o Juiz, dirigindo-se a Claude Drumm.- Senhor Juiz, no momento não poderei discutir sobre este caso. Isto exigiria alguma preparação. Por esse motivo, peço mais uma vez um adiamento...- E uma vez mais - disse o Juiz num tom peremptório - o pedido está negado. Acho que os direitos da acusada merecem consideração por parte da corte. Prossiga e argumente, Mr. Drunm.Claude Drumm levantou-se.- Senhor Juiz - disse ele, - penso que pedirei à corte que este processo seja arquivado.

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O Juiz assentiu.- Muito bem - disse, - se...Perry Mason levantou-se.

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- Senhor Juiz - disse ele, - protesto contra o pedido. Creio que esclareci com antecedência a minha posição em face disto. A acusada deste processo merece ter o seu nome limpo. Com uma dissolução da causa, isso não .seria possível.O Juiz Markham semicerrou os olhos e fitou Penry Mason com a observação cautelosa de um gato quando espia o buraco de um rato.- Posso deduzir, Senhor Advogado de Defesa, que se opõe a que a acusação dissolva esta causa?- Oponho-me.- Muito bem - disse o Juiz Markham, - deixemos que o júri decida o caso. O Promotor prosseguirá com o argumento.Claude Drumm levantou-se e dirigiu-se à bancada dos jurados.- Senhores jurados - disse ele, - o mais inesperado dos acontecimentos teve lugar neste processo. Não sei que rumo deva tomar. Tivesse o julgamento sido adiado até amanhã, e eu teria podido examinar os factos, de modo completo. No entanto, julgando-os como se encontram agora, está provado que a acusada esteve na casa em que o crime foi cometido e à hora em que ele foi cometido. Está provado} também, que um motivo bastante forte, a impeliu a assassinar a vítima. A arma que causou a morte, fora comprada por ela. Em virtude das circunstâncias, acho que ela não será absolvida. Sou franco em declarar que não acho que o Estado deva pedir uma pena de morte. Sou franco em declarar, também, que me encontro um tanto confuso em virtude da súbita reviravolta dos acontecimentos, mas acho que estas questões serão por vós consideradas. Senhores, nada mais tenho a dizer.

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Numa dignidade furiosa, Claude Drumm marchou de volta para o seu lugar, na mesa do conselho.Perry Mason aproximou-se dos jurados e encarou-os com ar zombeteiro durante alguns momentos.- Senhores - disse ele, - um passo em falso dado pela principal testemunha da acusação, colocou-vos a salvo da possibilidade de cometer uma irreparável injustiça contra uma mulher inocente. Os elementos de prova neste caso são puramente circunstanciais. Baseada nas circunstâncias, a acusação tem o direito de tirar as conclusões que quiser. Direito idêntico é concedido à defesa. Deixem-me, por conseguinte, delinear, primeiro, a impossibilidade do crime ter sido cometido pela acusada e, segundo, a possibilidade de que tenha sido cometido por outra qualquer pessoa. Em primeiro lugar, os elementos de prova mostram que a pessoa que assassinou Clinton Forbes entrou na casa com uma chave mestra ou então com uma chave que estivesse legitimamente em poder da tal pessoa. Os elementos de prova mostram que a pessoa entrou no aposento onde Forbes se encontrava a fazer a barba e que este saiu do seu quarto de dormir, entrando na biblioteca para ver quem era o intruso: que então, alarmando-se, voltou à casa de banho e libertou o cão-polícia que lá estava acorrentado. É evidente que Forbes ao ouvir passos na biblioteca, para lá se dirigiu e limpou a espuma do rosto com uma toalha enquanto para lá se encaminhava. Depois de ter visto o intruso, desacorrentou o cachorro. Quando o fez, usou as duas mãos e deixou cair a toalha que continha a espuma que removera do rosto. Esta toalha caiu perto da borda da banheira, na posição exacta em que, lógica, e naturalmente, teria caído em tais circunstâncias. O cachorro avançou para o intruso com os dentes à mostra. E, como tão apertadamente o observou o Sr. Promotor e a testemunha da acusação tão verdadeiramente declarou, empenhou-se em salvar a vida do dono. O assassino disparou sobre o cachorro à queima roupa. As

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queimaduras de pólvora estão visíveis no pelo do animal. Isto prova que quando os tiros foram desfechados ele estava realmente a atacar o assassino.Depois de desfechar estes tiros, o intruso ocupou-se de Clinton Forbes. Nunca se saberá se o intruso foi ao encontro de Forbes, ou se Forbes se precipitou sobre ele, mas os tiros que mataram Clinton Forbes foram desfechados à queima roupa.- Senhores, a acusação insiste em que os tiros foram desfechados pela ré.->Há uma objecção irrefutável contra esta hipótese! Esta objecção é a seguinte: se o intruso tivesse sido a ré, o cachorro não a teria atacado e ela não teria tido necessidade de o matar por que o cachorro a conhecia e gostava dela. Ele nunca a teria atacado, naquelas circunstâncias. Em vez disso, teria começado a soltar alegres latidos de satisfação canina ao ver reunidas as duas pessoas que ele amava.Isto, senhores, deixa sem efeito a causa da acusação.Segundo a lei que se refere a provas Circunstanciais, é necessário que antes de um veredicto de culpa sair das mãos de um júri, os jurados estejam convencidos de que não há hipótese razoável que possa explicar as circunstâncias, além da culpabilidade do acusado.Agora, deixem-me apontar as circunstâncias significativas que indicam que o crime foi cometido por outra pessoa.Há provas nos autos segundo as quais Arthur Cartright se queixou de um cachorro que uivou nos terrenos pertencentes a Clinton Forbes, na noite de 15 de Outubro. Durante essa noite, o cachorro uivou continuamente. Estes uivos vinham do fundo da casa e das proximidades do prolongamento que estava a ser construído na garage.Senhores, suponhamos que tenha havido uma discussão entre Paula Cartright e Clinton Forbes. Suponhamos que Clinton Forbes durante essa discussão tenha assassinado Paula Cartright. Suponhamos que ele e Thelma Benton tenham feito uma cova rasa no local que ia ser cimentado, E poderemos mesmo supor, em vista dos termos da carta que Thelma Benton subsequentemente escreveu, como se viesse da pena de Paula Cartright, que a discussão resultou da descoberta de uma intimidade entre Forbes e Thelma Benton, por Paula Cartright.Mrs. Cartright renunciara à sua posição social, ao seu direito de ser considerada membro respeitável da sociedade, a fim de fugir com Clinton Forbes, com quem viveu sob tais circunstâncias, que foi obrigada a renunciar a todas as amizades da sua vida passada e a não travar novas relações. Era uma mulher constantemente perseguida pelo medo de ser descoberta, e que verificou depois; que o sacrifício que fizera tinha sido inútil, que o amor que ela pensava ter ganho por tal sacrifício não passava, em realidade, de uma completa falsidade, visto que Clinton Forbes não lhe era mais fiel do que o fora para com a mulher que abandonara em Santa Bárbara.Paula Cartright discutiu amargamente e os seus lábios foram fechados para sempre pelos dois assassinos que secretamente enterraram o seu corpo. O cozinheiro chinês estava a dormir. Somente as estrelas e as consciências culpadas do par assassino que fizera a cova rasa, sabiam o que se passava. Mas havia outro que sabia também. Este outro era o fiel cão-polícia. Ele farejou o cadáver e descobriu que estava enterrado naquela cova rasa, Olhando então para a cova, pôs-se a uivar.Arthur Cartright tinha estado a observar a casa. Não compreendeu logo o significado dos uivos insistentes do cachorro, mas como aquilo actuasse sobre os seus nervos extenuados, tomou medidas para que o cachorro

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não uivasse mais, pensando, ao tomá-las, que os uivos do cachorro não passavam de uma excentricidade do animal. Mas, em algum momento, durante a noite seguinte, o terrível significado daqueles uivos se tornou evidente para ele. A possibilidade do cachorro estar a lamentar a morte de alguém a quem era afeiçoado, veio-lhe de chofre. Cheio de suspeitas, Arthur Cartright pôs-se a caminho, para investigar.Clinton Forbes e a sua pseudo-governanta haviam tomado a senda do crime. Imaginaram-se diante de acusação de homicídio. Um homem que se encontrara quase privado de razão exigiu que o levassem à presença de Paula Cartright a fim de que ele pudesse ver, por si mesmo, se ela estava viva e com saúde..- Senhores - disse Perry Mason baixando a voz sugestivamente, - havia apenas uma coisa que os conspiradores podiam fazer a fim de preservar o seu segredo. Havia mais um terrível passo que ainda poderiam dar} para que o selo, do silêncio fosse colocado sobre os lábios daquele homem que estava a vociferar acusações que, feitas às autoridades, dariam motivo a uma investigação. Ambos caíram sobre ele e o mataram como já haviam feito à sua esposa enterrando o corpo ao lado dela. Sabiam que no dia seguinte os trabalhadores derramariam cimento no lugar onde ficavam as covas, encobrindo desse modo, para sempre, a terrível prova do covarde crime.O par criminoso viu-se então diante da necessidade de explicar as ausências simultâneas de Arthur Cartright e sua esposa. Só havia uma coisa que podiam fazer: dar a entender que marido e mulher se tinham reconciliado e fugido juntos. Thelma Benton era ambi-dextra. Clinton Forbes sabia disto e sabia também que era extremamente improvável que alguém possuísse uma amostra da letra genuína de Paula Cartright. Ela era uma mulher estranha ao mundo; alguém que desfizera

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todos os laços que a ligavam ao passado. Não tinha amigos a quem se interessasse em escrever. Não havia ninguém que pudesse apresentar-se com uma amostra da sua letra. Desse modo, a carta foi forjada, o nome assinado e os laços mais uma vez desfeitos. O par criminoso prosseguia assim na senda do crime.Senhores, não necessito mencionar o resultado inevitável dessa combinação de maldades que teve por base o crime, que se alimentou na mentira e que culminou no assassínio. Havia dois conspiradores, cada um deles sabendo que o outro podia mandar o longo braço da lei cair sobre si, numa justa represália. Thelma Benton foi a primeira a agir. As seis horas saiu de casa, afim de se encontrar com um amigo. O que ela lhe disse não necessitamos perguntar. Estamos interessados, apenas, no que aconteceu. E lembrem-se, que eu não estou fazendo acusações contra Thelma Benton e seu cúmplice. Estou apenas indicando o que é possível que tenha acontecido, como uma hipótese razoável. Thelma Benton e o seu cúmplice voltaram à casa e entraram, usando a chave da pseudo-governanta. Sobre pés criminosos, o par espreitou a presa, como se ela fosse uma fera selvagem. Mas os ouvidos sensíveis do cachorra perceberam e compreenderam o que estava acontecendo. Alarmado pelos latidos do animal, Clinton Forbes saiu da casa de banho. Viu a sua governanta parada ali e removeu a espuma do rosto, quando lhe dirigiu as primeiras palavras. Vendo em seguida o homem que a acompanhava compreendeu o propósito da visita. Tomado de pânico, correu à casa de banho e libertou o cão. Este saltou sobre o intruso e o homem atirou. O cachorro caiu no chão, sem vida. Forbes lutou com a mulher e dois outros tiros foram então desfechados à queima roupa. E depois disto... silêncio.Perry Mason fez uma pausa repentina. Sério e solene, encarou os jurados. Numa voz tão baixa que mal se podia ouvir, disse:

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- Senhores, é tudo.E virando-se, caminhou de volta para o seu lugar.Claude Drumm olhou incerto para os jurados, para o juiz e para as fisionomias hostis dos que se achavam na sala do tribunal. Depois, encolheu os ombros e disse:- Não há argumentação.

CAPÍTULO XXII

Passavam mais de duas horas da entrega do veredicto, quando Perry Mason entrou no seu escritório. Havia muito que escurecera, mas Della Street com os olhos muito brilhantes ainda o esperava. Paul Drake lá estava também, com um cigarro a pender-lhe indiferente de um dos cantos da boca. A sua fisionomia risonha denotava calma e satisfação.Perry Mason vinha a conduzir um cão polícia, por uma trela.O detective e a jovem olharam primeiro para o cachorro e depois para o advogado.- Céus! - exclamou Paul Drake, - Você decididamente tem génio para o dramático e o espectacular. Agora, só porque se valeu de um cachorro para conseguir uma absolvição, vai adoptar um e andar às voltas com ele. Isto servirá para deixar toda a gente familiarizada com o seu dramático triunfo.- Não é bem isso - disse Perry Mason.-Deixem-me pôr o cachorro aqui no meu gabinete. Ele está nervoso e é melhor que vá para lá.Levou o cachorro para o gabinete, fê-lo deitar-se no chão, reanimou-o com uma conversa baixa e cantarolada e saiu, fechando a porta. Voltou então para receber o aperto de mão de Paul Drake. Os braços de Della Street rodearam-lhe o pescoço, e ela, atraindo-o para si, começou a dançar num êxtase de alegria.

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- Oh - exclamou - foi esplêndido! Li o seu argumento no jornal. Eles fizeram uma edição extra, na qual publicaram os seus argumentos palavra por palavra. Foi simplesmente maravilhoso!- Os jornais chamam-lhe o Mestre do Drama do Tribunal - disse Paul Drake.- Foi tudo uma questão de sorte - disse Perry Mason modestamente.- A coisa foi cuidadosamente planeada - disse Paul Drake. Você contava com cerca de seis cordas para o seu arco. Se tivesse sido forçado a fazê-lo, podia ter usado os elementos de prova fornecidos pelo cozinheiro chinês, a fim de provar que o cachorro uivara. Poderia também ter posto Mae Sibley no lugar das testemunhas e feito um brinquedo do caso todo. Você poderia ter lançado mão de um recurso qualquer dentre uma dúzia.Della Street disse excitadamente:- Logo que li o seu argumento, descobri quais as razões que o tinham levado a compreender onde estavam os corpos...Olhando de repente para Paul Drake, calou-se.- Mas - disse Paul Drake - no seu argumento, há duas ou três coisas que não se ligam muito bem. Em primeiro lugar, se Thelma Benton voltou à casa com esse tal Cari Trask e junto com ele assassinou Clinton Forbes, por que é que Wheeler e Drake não os viram?

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- Wheeler e Drake não eram testemunhas - disse Perry Mason.- Eu sei disso - disse o detective. - Você conseguiu ajeitar as coisas de tal modo que o Promotor não ficou a saber que dois secretas, a seu mando tinham vigiado a casa. Se ele desconfiasse do que sabiam aqueles camaradas teria removido céu e terra para os encontrar.Perry Mason parou com os pés separados, os ombros erectos, o queixo impelido para a frente.- Escutem - disse ele. - Eu já lhes disse uma vez, e repito agora, que não sou juiz. Sou advogado. O Promotor faz tudo o que pode para alinhar provas contra um acusado. Cabe ao advogado de defesa esforçar-se para derrotar a acusação. Vejam o motorista do táxi, por exemplo. Eu e vocês sabemos que nem num milhão de anos, ele poderia identificar a mulher que deixara o lenço no seu carro. Ele sabia que ela usava certo tipo de perfume, tinha uma ideia geral de como estava vestida e de qual era a sua estatura - apenas isso. Foi o que ficou eficazmente demonstrado, quando mandámos Mae Sibley procurá-lo e provar quanto era falível a identificação dele. Todavia, o Promotor valendo-se do poder que o Estado lhe confere, pôs em prática um subtil plano de sugestão, pelo qual realmente convenceu o motorista não somente de que ele podia identificá-la positivamente, mas também de que, sem dúvida alguma, fora a acusada quem estivera no carro dele. Estas foram as espécies de táctica que tivemos de enfrentar neste caso. Aliás, tácticas desta espécie são sempre enfrentadas por um advogado de defesa. Afirmo-lhes que ele não é um juiz e nem tampouco um júri: é um simples franco atirador, um representante contratado pela acusada com a autorização do Estado, e cujo dever solene é apresentar a causa de um acusado, sob a luz mais forte possível, é este o meu credo e o que me esforço por fazer.- Bem - disse Drake, - Você arriscou-se muito desta vez, mas sem dúvida alguma conseguiu o que queria. Mereça parabéns. Os jornais estão a dar-lhe milhões de dólaresi de publicidade. Você está a ser considerado um mágico legal - e por Deus que é mesmo!Ele estendeu a mão e Perry Mason tomou-a.- Bem - disse Drake - caso queira verificar alguma coisa, estarei no meu escritório. Creio que você está fatigado e quer ir para casa descansar um pouco.

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- As coisas têm acontecido um tanto depressa demais, - disse Perry Mason - mas eu gosto de emoções.Drake saiu do escritório.Della Street fitou Mason com os olhos muito abertos e brilhantes.- Oh! - exclamou. - Estou tão contente! Tão contente de que a tenha posto em liberdade. Foi maravilhoso!Ela fitou-o por um momento, com os lábios a tremer com palavras que ela não podia expressar. Depois, de repente, abriu os braços e abraçou-o uma vez mais.Da entrada partiu o som de uma tosse discreta.Della Street recuou e olhou espantada.Bessie Forbes parou à entrada.- Perdoe-me a intromissão - disse ela. - Fui posta em liberdade e, assim que pude reunir as minhas coisas, vim ao seu escritório.- Está bem - disse Perry Mason, - Temos muito prazer em receber a sua visita.Ouviu-se o som de um movimento bravio e impetuoso. A porta do gabinete abriu-se com estrondo e o cão polícia precipitou-se pela sala dentro, com as unhas a arranharem

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e a rasparem a madeira do soalho. Atingindo o tapete, avançou com rapidez, atirando-se com ímpeto na direcção da figura assustada de Bessie Forbes.O cachorro saltou para ela, ganindo de alegria. A sua língua tocou-lhe o rosto e ela, dando um grito de contentamento, inclinou-se e colocou os braços em volta do forte corpo do animal.- Prince! - exclamou - Prince!- Desculpe - disse Perry Mason, - mas o nome dele não é Prince. Prince morreu.Ela fitou-o com incredulidade e espanto.- Deita, Prince - disse.O cachorro desceu e, deitando-se no chão, ficou a contemplá-la com o olhar límpido de emoção e a cauda a bater alegremente.- Onde o encontrou? - perguntou ela.- Consegui imaginar exactamente, porque é que o cachorro tinha uivado na noite de 15 de Outubro - disse Perry Mason, - Não podia compreender porque não uivara, também, na noite de 16 de Outubro, se ainda estava vivo. Também não podia compreender, como um cachorro que convivia há mais de dois anos com Thelma Benton pudesse tornar-se feroz e atacá-la ao ponto de lhe ferir tão gravemente a mão direita. Depois que o caso terminou, dei uma volta pelos canis da vizinhança. Encontrei num deles um cachorro polícia que havia sido trocado, na noite de 16 de Outubro, por outro de aparência muito semelhante. Comprei-o.- Mas, - disse Bessie Forbes - o que pretende fazer com ele?- Dá-lo à senhora - disse Perry Mason. - Ele está a precisar de um lar. Sugiro que o leve consigo. Gostaria de sugerir, também, que deixe a cidade imediatamente.E o advogado passando a trela entregou-o a Bessie Forbes.- Comunique-nos onde se encontra - disse ele - a fim de que possamos ficar em contacto com a senhora, que é a pessoa beneficiada pelo testamento. Será procurada e entrevistada pelos jornalistas, Eles far-lhe-ão perguntas embaraçosas. Seria melhor se não estivesse visível.Ela fitou-o em silêncio durante um momento. Depois, subitamente, estendeu a mão.- Obrigada - disse. E voltou-se, rapidamente.- Prince, vem!O cachorro saiu do escritório acompanhando a sua dona, passo a passo. A sua cauda levantada, ondulava orgulhosamente no ar.Quando a porta do escritório se fechou, Della Street olhou para Perry Mason com súbita consternação.- Mas - disse ela - o único argumento verdadeiro que usou para convencer os jurados de que não fora Bessie Forbes quem dera os tiros, foi o de que o cachorro não a teria atacado. Se Clinton Forbes o havia substituído ..A voz dela foi baixando, até cair em silêncio.- Eu já lhe repeti várias vezes - disse ele - que não sou juiz. Além disso, nunca ouvi a história de Bessie Forbes. Ninguém tampouco a ouviu, também, é possível que tudo o que ela fez tenha sido em legítima defesa. Estou certo de que o foi, Ela precisou defender-se de um cachorro e de um homem. Mas eu agi como um advogado, apenas.- Mas se eles a prenderem a fim de a submeter a novo julgamento? -perguntou Della Street.Perry Mason sorriu e sacudiu a cabeça.- Oh, isso é coisa que eles não farão. Por este motivo mesmo é que eu não consenti que a causa fosse arquivada. Uma dissolução da causa não seria barreira contra outra acusação. Agora, ela já enfrentou um júri e já esteve em perigo uma vez. Enquanto

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viver, nunca mais poderá ser julgada por este crime, - mesmo que outra prova venha a ser descoberta.- O senhor - disse Della Street fitando-o - é um misto de santo e de demónio.- Todos os homens o são - disse Perry Mason, impertubável. - Hoje, enquanto estive no tribunal, chegou alguma novidade?- Uma jovem - disse ela - que deu o nome de Helen Crocker, esperou por si durante quase uma hora. Ela achava-se no tribunal no momento em que os jurados apresentaram o veredicto. Disse que precisava consultá-lo sobre um caso de vida ou de morte.- Miss ou Mrs, Crocker?-perguntou ele.- Creio que se tratava de uma noiva - disse Della Street.- Porquê? -inquiriu Mason.- Por uma série de coisas. O seu vestuário, era novo e ela passou o tempo todo a rodar uma aliança em volta do dedo, como se aquilo fosse um brinquedo novo.- Disse o que queria? - perguntou Mason com os olhos brilhando de interesse.- Foi a única coisa que não disse - respondeu a secretária, - Quis saber se nós tratávamos de casos de divórcio; se era verdade que uma pessoa não podia ser processada por crime, caso a polícia não conseguisse encontrar o <corpo da vítima. Mostrou curiosidade acerca de uma porção de assuntos.Os olhos de Perry Mason estavam agora cintilando com vivo interesse.- A noiva curiosa, hein? Ela prometeu voltar, Della?- Sim, disse que voltaria.Mason fez com a cabeça um lento sinal de assentimento.- Bem; esperá-la-ei.

FIM