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Ernst Cassirer A Filosofia das  Formas Simbólicas PRIMEIRA PARTE A Linguagem Tradução MARIO N FLEISCHER marüns Martins Fontes

Ernst Cassirer - A Filosofia Das Formas Simbólicas - V. I - A Linguagem

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  • Ernst CassirerA Filosofia das

    Formas SimblicasPRIMEIRA PARTE

    A Linguagem

    Traduo MARION FLEISCHER

    marnsMartins Fontes

  • Esta obra foi publicada originalmente em alemo com o ttulo PHILOSOPHIE DER SYMBOUSCHEN FORMEN - DIE SPRACHE.

    Copyright Yale University Press.Copyright 2001, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

    So Paulo, para a presente edio.

    1! edio 2001 2! tiragem 2009

    TraduoMarin Fleischer

    Reviso tcnica Pedro Pimenta

    Preparao do originai Clia Regina Camargo

    Reviso grfica Solange Martins

    Ivete Batista dos Santos Mrcia da Cruz Nboa Leme

    Produo grfica Geraldo Alves

    Paginaao/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Cassirer, Ernst, 1874-1945.A filosofia das formas simblicas / Emst Cassirer ; traduo

    Marin Fleischer. - So Paulo : Martins Fontes, 2001. - (Coleo tpicos)

    Ttulo original: Philosophie Der Symbolischen Formen : Die Sprache.

    ISBN 85-336-1375-X

    1. Linguagem - Filosofia 2. Linguagem e lnguas 3. Simbolismo I. Ttulo. II. Srie.

    01-0727_______________________________________ CDD-121.68ndices para catlogo sistemtico:

    1. Formas simblicas : Filosofia 121.68

    Todos os direitos desta edio reservados Livraria Martins Fontes Editora Lida.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11)3241.3677 Fax (11) 3105.6993

    e-mail: info@ martinsfonteseditora.com.br http:/Avww.martinsfonteseditora.com.br

  • AA. Warburg,

    pelo seu 60? aniversrio

    Aos 13 de junho de 1926

  • ndice

    Prefcio .............................................................................. 1Introduo e exposio do problem a .......................... 9

    I. O conceito da forma simblica e o sistema dasformas sim blicas.................................................. 11

    II. A funo universal do sinal. O problema da significao ...................................................................... 29

    III. O problema da representao e a estrutura daconscincia.............................................................. -43

    IV A significao ideal do sinal. A subjugao da teoria da reproduo............................................... 61

    Primeira Parte SOBRE A FENOMENOLOGIA DA

    FORMA LINGSTICA

    CAPTULO I. O problema da linguagem na histria da filosofia ............................................................................... 79

    I. O problema da linguagem na histria do Idealismo filosfico (Plato, Descartes, Leibniz)........ 79

  • II. A posio do problema da linguagem nos sistemas do empirismo (Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley).................................................................. 104

    III. A filosofia do Iluminismo francs (Condillac,Maupertuis, D iderot).............................................. 114

    IV A linguagem como expresso da emoo. O problema da Origem da linguagem (Giambattista Vico, Hamann, Herder, o Romantismo)............... 127

    V Wilhelm von Humboldt......................................... 140VI. August Schleicher e o desenvolvimento da tese

    lingstica nas cincias naturais ...................... 152VII. A definio da lingstica moderna e os proble

    mas das leis fonticas ........................................ 159

    CAPTULO II. A linguagem na fase da expresso sensvel .................................................................................... 173

    I. A linguagem como movimento expressivo. Linguagem gestual e linguagem oral......................... 173

    II. Expresso mimtica, analgica e sim blica...... 188

    CAPTULO III. A linguagem na fa se da expresso intuitiva ................................................................................... 207

    I. A expresso do espao e das relaes espaciais 207II. A representao do tempo..................................... 237

    III. O desenvolvimento lingstico do conceito do nmero........................................................................... 256

    IV A linguagem e a esfera da intuio interna. Asfases do conceito do eu........................................... 2971. A formao da subjetividade na expresso

    lingstica............................................................. 2972. Expresso pessoal e possessiva....................... 3143. O tipo nominal e verbal da expresso lin

    gstica ................................................................. 325

  • CAPTULO IV. A linguagem como expresso da reflexo conceituai. A forma da criao de classes e de conceitos lingsticos.................................................................... 347

    I. A construo de conceitos qualificativos.......... 347II. Tendncias fundamentais da formao de clas

    ses na linguagem.................................................... 374

    CAPTULO V. A linguagem e a expresso das formas puras de relao. A esfera do juzo e os conceitos de relao ................................................................................... 389

  • PREFCIO

    O presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboos iniciais remontam s investigaes que se encontram resumidas no meu livro Substanzbegriff und Funktionsbegriff (Conceito de substncia e conceito de funo) (Berlim, 1910). Estas pesquisas diziam respeito, principalmente, estrutura do pensamento no campo da matemtica e das cincias naturais. Ao tentar aplicar o resultado de minhas anlises aos problemas inerentes s cincias do esprito, fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento, na sua concepo tradicional e com as suas limitaes, insuficiente para um embasamento metodolgico das cincias do esprito. Para que o objetivo fosse alcanado, foi necessria uma ampliao substancial do programa epistemolgico. Em vez de restringir a anlise apenas aos pressupostos gerais do conhecimento cientfico do mundo, foi preciso diferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da compreenso humana do mundo e, em seguida, apreender cada uma delas, com a mxima acuidade, na sua tendncia especfica e na sua forma espiritual caracterstica. Somente a partir desta teoria das formas do

  • 2 A FILOSOFIA D AS FORM AS SIMBLICAS

    esprito, ainda que traada apenas em seus contornos gerais, justificava-se a expectativa de encontrar uma viso metodolgica clara e um principio seguro que pudesse embasar as diversas disciplinas das cincias do espirito. A teoria da formao dos conceitos e julgamentos nas cincias naturais define o objeto (Objekt) natural de acordo com os seus traos constitutivos, e apreende o objeto (Gegenstand) do conhecimento em sua dependncia da funo cognitiva; fazia-se necessrio ampliar esta teoria com uma especificao anloga, aplicvel ao mbito da subjetividade pura. Esta subjetividade, longe de esgotar-se na observao cognitiva da natureza e da realidade, sempre se torna atuante quando o mundo dos fenmenos, como um todo, submetido a uma perspectiva especfica do esprito e deste recebe uma configurao determinada. Foi necessrio demonstrar que cada uma dessas configuraes desempenha uma funo especfica na constituio do esprito e regida por leis prprias. No decorrer dos estudos em tomo deste problema, nasceu o projeto de elaborar uma teoria geral das formas de expresso do esprito, cujos componentes so descritos na Introduo deste livro. Quanto execuo de suas partes, a primeira, que ora apresentamos, restringe-se anlise da forma lingstica; um segundo volume que, assim espero, ser publicado dentro de um ano, aproximadamente, dever conter o esboo de uma fenomenologa do pensamento mtico e religioso, enquanto no terceiro e ltimo volume pretendemos expor a teoria do conhecimento propriamente dita, ou seja, a morfologa do conhecimento cientfico.

    De fato, estudar o contedo puramente filosfico da linguagem, e abord-la do ponto de vista de um sistema filosfico determinado, constitui uma tarefa arriscada, raramente empreendida aps o aparecimento dos fundamentais trabalhos pioneiros de Wilhelm von Humboldt. Em carta de 1805, dirigida a Wolf, Humboldt declarava que pensava ter

  • A LINGUAGEM 3

    descoberto a arte de utilizar a linguagem como veculo capaz de percorrer o que h de mais elevado, de mais profundo e de mais diverso no mundo; no entanto, as tendncias da lingstica e da filosofia da linguagem que se desenvolveram no sculo XIX parecem ter enfraquecido progressivamente tal pretenso. Em vez de constituir-se em um veculo do conhecimento filosfico, a linguagem, aparentemente, por vezes transformou-se na arma mais poderosa do ceticismo filosfico. Mas, mesmo que desconsideremos estas concluses da crtica lingstica, para a qual a filosofia da linguagem passou a significar a negao e dissoluo de seu contedo espiritual, cumpre registrar o fortalecimento da convico segundo a qual uma fundamentao filosfica da linguagem - se que concretizvel - somente poderia ser realizada com os instrumentos da pesquisa psicolgica. O ideal de uma gramtica propriamente universal, filosfica, ainda perseguido de diversas maneiras pelos empiristas e racionalistas dos sculos XVII e XVIII, foi, ao que tudo indica, definitivamente destrudo com o advento da cincia da lingstica comparada: em vez de demonstrar a unidade da linguagem no seu contedo lgico, agora restava apenas busc-la na sua gnese e nas leis psicolgicas deste processo. A grande obra de Wundt sobre a linguagem, na qual retomada a tentativa de abranger a totalidade dos fenmenos lingsticos e submet-los a determinada interpretao espiritual, deriva o princpio desta interpretao do conceito da metodologia utilizada pela psicologia dos povos. Na mesma linha de pensamento, Steinthal, em sua Einleitung in die Psychologie und Sprachwissenschaft (Introduo psicologia e lingstica) (1871), procurou usar o conceito da apercepo de Herbart como fundamento do estudo da linguagem. Opondo-se conscientemente aos conceitos de Steinthal e Wundt, Marty (1908) retoma a idia de uma gramtica e de uma filosofia da linguagem universais, que concebe como esboo de uma

  • 4 A FILOSOFIA D AS FORM AS SIMBLICAS

    teoria descritiva dos significados. Mas tambm aqui a construo desta teoria baseia-se em recursos puramente psicolgicos. Na realidade, o autor delimita expressamente a tarefa da filosofia da linguagem, a tal ponto que nela passam a ser incorporados todos os problemas referentes ao carter universal e essencial dos fenmenos lingsticos, sob a condio de que sejam ou de natureza psicolgica, ou ao menos no possam ser resolvidos sem o auxlio decisivo da psicologia. Assim sendo - apesar da oposio que tal concepo encontrou nos meios lingsticos, sobretudo da parte de Karl Vossler parece que o psicologismo e o positivismo se estabeleceram neste campo como ideal metodolgico, po- dendo-se at mesmo afirmar que quase foram entronizados como dogmas universais. E bem verdade que o idealismo filosfico sempre combateu estes dogmas, mas, por outro lado, jamais restituiu linguagem a posio de autonomia que ela ocupara na obra de Wilhelm von Humboldt. Isto porque, em lugar de conceb-la como uma forma espiritual independente, baseada em uma lei especfica, o idealismo filosfico sempre procurou reduzi-la funo geral da expresso esttica. Neste sentido, Benedeto Croce subordinou o problema da expresso lingstica ao da expresso esttica, assim como o sistema filosfico de Hermann Cohen trata a lgica, a tica, a esttica e por fim a filosofia da religio como partes independentes, mas por outro lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas, e em conexo com as questes da esttica.

    Devido a tais circunstncias, o presente trabalho no pde seguir nenhuma orientao filosfica preestabelecida, sendo necessrio, ao invs, buscar permanentemente um caminho metodolgico prprio. Em contrapartida, as fontes resultantes do desenvolvimento da lingstica desde a poca de Wilhelm von Humboldt foram tanto mais fecundas para a execuo do tema aqui proposto. Na obra de Humboldt, a idia de uma

  • A LINGUAGEM 5

    viso realmente universal da linguagem ainda podia afigurar-se um postulado da filosofia idealista, mas desde ento este postulado parece ter-se aproximado mais e mais de sua realizao cientfica concreta. bem verdade, porm, que precisamente devido a esta riqueza do material emprico fornecido investigao cientfica, a reflexo filosfica se confronta com uma dificuldade quase insupervel. Tal obstculo resulta do fato de que ela no pode nem prescindir deste detalhe, nem, se quiser manter-se fiel sua tarefa e aos seus propsitos, deve subordinar-se totalmente ao seu jugo. Diante deste dilema metodolgico, a nica soluo encontrada foi formular de maneira geral e sistemtica as questes da investigao lingstica, mas, por outro lado, derivar as respostas, caso a caso, da pesquisa emprica. Fazia-se necessrio obter uma viso de conjunto to ampla quanto possvel, no apenas dos fenmenos referentes a determinada famlia lingstica, mas tambm da estrutura de diferentes famlias lingsticas, acentuadamente divergentes umas das outras no que diz respeito ao seu embasamento lgico. A literatura que precisei consultar constantemente no percurso destes estudos tornou-se to vasta, que a meta inicial da minha investigao parecia cada vez mais longnqua, e eu me perguntava com freqncia se algum dia chegaria a alcan-la. Se, apesar de tudo, prossegui no caminho uma vez traado, porque, na medida em que se me revelava o carter multifacetado dos fenmenos lingsticos, eu julgava perceber com crescente clareza como, tambm aqui, os fatos individuais e particulares se elucidam mutuamente, e espontaneamente, por assim dizer, se inserem em um contexto geral e coerente. O objetivo das minhas anlises subseqentes reside na descrio e demonstrao deste contexto, e no no estudo de fenmenos isolados. Se a idia epistemolgica bsica que norteia estas anlises ficar confirmada, se a apresentao e caracterizao da forma pura da linguagem, tal como

  • (> A FILOSOFIA D AS FORM AS SIMBLICAS

    aqu intentadas, se revelarem fundamentadas, muitos aspectos que omiti ou interpretei erroneamente podero facilmente ser completados e corrigidos em futuros trabalhos sobre o tema. Durante a elaborao desta obra tornei-me demasiado consciente das dificuldades do assunto e dos limites da minha capacidade de trabalho, para no aceitar de bom grado as crticas dos especialistas; procurei facilitar esta crtica, na medida em que, ao interpretar e avaliar os dados lingsticos, sempre indiquei expressamente os meus autores e as minhas fontes, possibilitando, assim, uma verificao imediata.

    Resta-me, finalmente, expressar os meus agradecimentos a todos aqueles que me ajudaram na elaborao deste livro, seja pelo interesse que a ele devotaram, seja pelos conselhos competentes que me foram dados na discusso de determinados problemas. Na tentativa de obter uma viso mais precisa da estrutura das lnguas ditas primitivas, ser- viram-me de guia, desde o incio, as obras de Carl Meinhof, ao lado dos trabalhos de Boas e de Seler sobre os idiomas dos indgenas americanos. Depois de assumir a ctedra em Hamburgo, em 1919, no apenas pude consultar a rica biblioteca do Instituto de Lnguas da frica e do Pacfico, dirigido por Meinhof, como tambm sempre contei com a sua solicitude e seus conselhos preciosos em numerosos casos difceis com que deparei. Tambm devo agradecimentos aos meus colegas Professor Otto Dempwolff e Professor Heinrich Junker pelas elucidaes que decorreram das conversas que mantivemos. Finalmente, o presente livro deve a Ernst Hoffmann, de Heidelberg, e a Emil Wolfif, de Hamburgo, muito mais do que sugestes isoladas. Estes dois especialistas, eles prprios trabalhando em pesquisas filolgicas e lingsticas, compartilham comigo o ponto de vista fundamental, sobre o qual repousa a concepo deste livro: a convico de que a linguagem, tal como todas as funes bsicas do esprito humano, somente encontrar a sua elucida

  • A LINGUAGEM 1

    o filosfica dentro de um sistema geral do idealismo filosfico. Expresso, ainda, os meus melhores agradecimentos a Ernst Hoffmann que, apesar da sobrecarga do seu prprio trabalho, se prontificou a ler comigo as provas deste primeiro volume. Por motivos tcnicos, algumas observaes e com- plementaes importantes, por ele oferecidas durante a leitura, no puderam ser incorporadas integralmente impresso da obra; no entanto, espero poder aproveit-las quando retomar o assunto futuramente.

    Hamburgo, abril de 1923.

    Ernst Cassirer

  • INTRODUO E EXPOSIO DO PROBLEMA

  • IO ponto de partida da especulao filosfica marcado pelo conceito do ser. No momento em que este conceito se constitui como tal, quando, em oposio multiplicidade e diversidade das coisas existentes, a conscincia desperta para a unidade do ser, a partir deste instante, to-somen- te, que surge a maneira especificamente filosfica de considerar o mundo. Mas por longo tempo ainda esta forma de refletir sobre o mundo permanece vinculada esfera das coisas existentes, da qual busca se libertar e que procura superar. O objetivo determinar o comeo e a origem, os fundamentos ltimos de todo ser: contudo, embora a pergunta esteja articulada claramente, a resposta encontrada, devido sua determinao concreta, se revela insuficiente para esta formulao mais elevada e mais geral do problema. Aquilo que se denomina de essncia, de substncia do mundo, em vez de transcend-lo basicamente, constitui apenas um fragmento deste mesmo mundo. Um aspecto do ser, particular, especfico e limitado, isolado, e a partir dele procura-se de-

  • 12 A FILOSOFIA D AS FORMAS SIMBLICAS

    duzir e explicar geneticamente todo o resto. Pela sua forma geral, tal explicao permanece sempre enquadrada nos mesmos limites metodolgicos, por mais que possam variar os seus contedos. Num primeiro momento, determinado elemento sensvel, uma matria primeva concreta so apresentados como fundamento ltimo da totalidade dos fenmenos; em seguida, a explicao volta-se para o dominio do ideal, e a matria substituida por um principio puramente intelectual de deduo e fundamentao. Mas, tambm este principio, se analisado mais detidamente, flutua ainda entre o fsico e o espiritual. Por mais que possua o colorido do ideal, ele est, por outro lado, intimamente ligado ao mundo das coisas existentes. Neste sentido, o nmero dos pitagricos, o tomo de Demcrito, embora seja grande a distncia que separa ambos da matria primeva dos jnios, representam um hbrido metodolgico que ainda no encontrou em si mesmo a sua natureza essencial, e, por assim dizer, ainda no escolheu a sua verdadeira ptria espiritual. Esta incerteza interior somente ser superada de maneira definitiva na teoria das idias de Plato. Seu grande mrito, tanto do ponto de vista sistemtico como histrico, consiste em ter feito surgir, pela primeira vez e de forma explcita, o pressuposto espiritual essencial a toda compreenso filosfica e a toda e qualquer explicao filosfica do mundo. O que Plato busca sob o nome de idia j estava presente como princpio imnente nas primeiras tentativas que foram empreendidas para explicar o mundo, ou seja, nos eleatas, nos pitagricos, em Demcrito; mas Plato foi o primeiro a tomar conscincia deste princpio como tal e do seu significado, e ele prprio considerou este fato a sua principal contribuio para a filosofia. Em suas ltimas obras, nas quais os pressupostos lgicos de sua doutrina so expostos com a mxima clareza, ele estabelece a diferena decisiva que distingue a sua especulao da dos pr-socrticos: para estes, o ser, compreen-

  • A LINGUAGEM 13

    dido como entidade individual, constitua um ponto de partida definido, enquanto ele, pela primeira vez, identificou o ser como um problema. Ele j no se preocupa em perguntar simplesmente pela organizao, constituio e estrutura do ser; em vez disso prope a questo do seu conceito e do significado deste conceito. Comparadas com a preciso desta interrogao e o rigor destas exigncias, todas as teorias formuladas anteriormente no passam de meras fbulas, de mitos sobre o ser1. A explicao mtica, cosmolgica, deve agora ser superada pela explicao verdadeira, dialtica, que no mais se prende simples existncia do ser, buscando, ao invs, tornar visvel o seu sentido intelectual, a sua organizao sistemtica e teleolgica. E com isso o pensamento, que a filosofia grega, desde Parmnides, entende como um conceito correlato ao do ser, passa a adquirir um significado novo e mais profundo. Somente quando o ser vem a ter o sentido rigorosamente definido de um problema, o pensamento vem a ter o sentido e o valor rigorosamente definidos de um princpio. Ele no mais acompanha apenas o ser, e j no constitui uma simples reflexo sobre o ser: pelo contrrio, a sua prpria forma interna que determina a forma interna do ser.

    Trata-se de um processo tpico que se repete em diferentes estgios da evoluo histrica do idealismo. Sempre que a viso realista do mundo se contenta em afirmar que determinada natureza ltima das coisas representa o fundamento de todo conhecimento, o idealismo incumbe-se de transformar esta mesma natureza em uma questo pertinente ao pensamento. Este fenmeno no se restringe apenas histria da filosofia, podendo ser observado igualmente no mbito de cincias especializadas. Tambm aqui o caminho no

    1. Cf. especialmente Sophistes 24S C ss.

  • 14 A FILOSOFIA D A S FORMAS SIMBLICAS

    conduz nica e exclusivamente dos fatos s leis, e destas novamente aos axiomas e postulados: em vez disso, estes mesmos axiomas e postulados, que em determinado nvel do conhecimento se apresentam como expresso ltima e perfeita da soluo, necessariamente devem tornar-se outra vez um problema num estgio posterior. Conseqentemente, aquilo que a cincia designa como sendo o seu ser e o seu objeto no aparece mais como um fato simples e no analisvel; o que se verifica que cada nova maneira de enfoc-lo, cada nova abordagem revela um aspecto novo. Assim sendo, o rgido conceito do ser parece fluir, por assim dizer, e diluir-se em um movimento generalizado - e a unidade do ser j no pode ser concebida como incio deste movimento, mas to-somente como meta a ser atingida. Na medida em que esta concepo se desenvolve e se impe na cincia, a ingnua teoria da reproduo do conhecimento perde terreno. Os conceitos fundamentais de toda e qualquer cincia, os meios pelos quais prope as suas questes e formula as suas solues no mais se apresentam como reprodues de um dado ser, e sim como smbolos intelectuais por ela mesma criados. Foi sobretudo o conhecimento fsico-matemtico que cedo teve ntida conscincia deste carter simblico de seus instrumentos fundamentais2. O novo ideal do conhecimento, para o qual converge toda esta evoluo, encontra-se expresso com a mxima preciso nas consideraes prvias de Heinrich Hertz, na introduo dos seus Princpios da Mecnica. No seu entender, a nossa tarefa primordial e mais urgente com relao ao conhecimento da natureza consiste em nos permitir prever experincias ftu-

    2. Mais detalhes a respeito no meu livro Zur Einsteinschen Relativi- ttstheorie (A teoria einsteiniana da relatividade), Berlim, 1921. Cf. especialmente o primeiro pargrafo sobre Conceitos de medida e conceitos de coisa.

  • A LINGUAGEM 15

    ras: mas os procedimentos de que este conhecimento se serviria para deduzir o futuro do passado consistiriam em foijar- mos simulacros internos ou smbolos dos objetos exteriores, de tal modo que as conseqncias lgicas das imagens seriam sempre imagens naturalmente necessrias dos objetos reproduzidos. No momento em que conseguimos derivar da experincia passada as imagens com as caractersticas requisitadas, em pouco tempo podemos nos servir destas imagens e, como se fossem modelos, delas deduzir as conseqncias que se manifestaro no mundo exterior somente mais tarde ou como resultado de nossa prpria interveno... As imagens s quais nos referimos so nossas representaes das coisas; elas tm uma concordncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento da exigncia mencionada, mas, para que realizem a sua tarefa, no necessrio que possuam nenhuma outra conformidade com as coisas. Na realidade, no sabemos, e tampouco dispomos dos meios para tanto, se as nossas representaes das coisas tm algo em comum com as mesmas, alm daquela relao fundamental acima referida.3

    Assim, a epistemologa das cincias naturais, na qual se baseia Heinrich Hertz, e a teoria dos signos, tal como desenvolvida em profundidade no trabalho pioneiro de Helmholtz, continuam falando a linguagem da teoria da reproduo do conhecimento; mas agora o prprio conceito de imagem sofreu uma transformao interior. Isto porque no lugar da exigncia de semelhanas de contedo entre imagem e coisa, surgiu agora a expresso altamente complexa de uma relao lgica, uma condio intelectual geral, que dever ser satisfeita pelos conceitos bsicos do conhecimento fsico. O seu valor no reside em refletir uma dada existncia, e sim

    3. H. Hertz, Die Prinzipien der Mechanik (Os princpios da mecnica), Leipzig, 1894, pp. 1 ss.

  • 16 A FILOSOFIA D AS FORMAS SIMBLICAS

    no que proporcionam como instrumentos do conhecimento, na unidade dos fenmenos que estes mesmos produzem a partir de si prprios. A relao que existe entre os objetos reais e a natureza de sua interdependncia deve ser abarcada pelo sistema conceituai da fsica - mas isto somente se torna possvel na medida em que estes conceitos sejam, desde o inicio, parte integrante de uma perspectiva definida e homognea do conhecimento. O objeto no pode ser considerado como algo puro em si, independente das categorias essenciais da cincia natural; estas lhe emprestam a forma, e somente dentro dlas que o objeto poder ser apresentado. Neste sentido que para Hertz os conceitos fundamentais da mecnica, particularmente os conceitos de massa e de fora, se tornam simulacros, que, tendo sido criados pela lgica da cincia natural, igualmente se subordinam s exigncias gerais desta mesma lgica, frente das quais se encontra a exigncia apriorstica segundo a qual toda descrio dever ser clara, livre de contradies e inequvoca.

    E verdade que com esta concepo crtica a cincia renuncia esperana e pretenso de apreender e reproduzir de maneira imediata a realidade. Ela compreende que todas as objetivaes de que capaz no passam, com efeito, de mediaes, e jamais sero mais do que isso. Nesta perspectiva est implcita ainda uma outra conseqncia significativa para o idealismo. Se a definio, a determinao de um objeto do conhecimento somente pode realizar-se por intermdio de uma estrutura conceituai lgica peculiar, faz-se necessrio concluir que diversidade desses meios deve corresponder uma diversidade tanto na estrutura do objeto como no significado das relaes objetivas . Portanto, nem no mbito da natureza o objeto da fsica coincide pura e simplesmente com o da qumica, tampouco o da qumica com o da biologia - porque cada uma destas cincias, a fsica, a qumica e a biologia, tem um ponto de vista particular na

  • A LINGUAGEM 17

    proposio de sua problemtica, e submete os fenmenos a uma interpretao e conformao especficas de acordo com este ponto de vista. Quase poderia parecer que este resultado da evoluo do pensamento idealista acabou por enterrar definitivamente a esperana que presidira o incio do processo. O final deste desenvolvimento aparentemente nega o seu comeo - porque novamente a almejada e exigida unidade do ser ameaa dissolver-se em uma simples multiplicidade das coisas existentes. O Ser Uno ao qual se apega o pensamento, e do qual este parece no poder desistir sem destruir a prpria forma, afasta-se mais e mais do terreno do conhecimento. Ele se torna um mero x que, quanto mais proclama categoricamente a sua unidade metafsica como coisa em si, tanto mais se subtrai a toda e qualquer possibilidade do conhecimento, at finalmente ser relegado por completo aos domnios do incognoscvel. Mas a este rgido absoluto metafsico contrape-se o reino dos fenmenos, o mbito propriamente dito do que possvel saber e conhecer, com a sua pluralidade inalienvel, o seu carter limitado e relativo. Mas um exame mais detido mostrar que a multiplicidade irredutvel dos mtodos e dos objetos do saber de forma alguma anula a exigncia fundamental da unidade; ao contrrio, apresenta-a sob uma forma nova. Certamente a unidade do saber j no pode ser garantida e assegurada ao se relacion-la em todas as suas formas a um objeto comum simples, que se comporta diante destas formas como a imagem primordial transcendental em face dos seus reflexos empricos. Em vez disso, surge uma nova exigncia, segundo a qual as diversas orientaes metodolgicas do saber, em que pesem as suas reconhecidas especificidades e a sua independncia, devem ser reunidas em um sistema, cujas partes, precisamente na sua diversidade necessria, se condicionem e interpelem umas s outras. Este postulado de uma unidade puramente funcional substitui, portanto, o pos

  • 18 A FILOSOFIA D AS FORM AS SIMBLICAS

    tulado da unidade do substrato e da origem que dominava essencialmente o conceito do ser da Antiguidade. Resulta daqui uma nova tarefa para a crtica filosfica do conhecimento, que consiste em seguir e apreender em seu conjunto o caminho que cada cincia percorre isolada e individualmente. E necessrio que ela indague se os smbolos intelectuais atravs dos quais as diversas disciplinas examinam e descrevem a realidade devem ser pensados como simples agregaes, ou se podem ser compreendidos como manifestaes diversas de uma mesma funo espiritual bsica. E se esta ltima premissa for verdadeira, cumpre estabelecer as condies gerais desta funo e esclarecer o princpio que a rege. Em vez de se exigir, tal como a metafsica dogmtica, uma unidade absoluta da substncia, qual remontam todas as existncias particulares, busca-se agora uma regra que domine a multiplicidade e diversidade concretas das funes cognitivas e que, sem invalid-las e destru-las, possa reuni- las em uma ao uniforme, em uma atividade espiritual completa em si mesma.

    Neste momento, porm, amplia-se uma vez mais a perspectiva, quando nos damos conta de que o conhecimento, por mais universal e extenso que seja o seu conceito, representa apenas um tipo particular de configurao na totalidade das apreenses e interpretaes espirituais do ser. Ele d forma ao mltiplo, obedecendo a um princpio especfico e, por isso mesmo, nitidamente delimitado. Em ltima anlise, todo conhecimento, por mais diversos que sejam os seus caminhos e suas direes, visa a submeter a multiplicidade dos fenmenos unidade do princpio de razo suficiente. O individual no deve permanecer isolado, e sim integrar-se em um contexto, no qual faa parte de um encadeamento (Gef- ge), seja ele lgico, teleolgico ou causal. O conhecimento busca essencialmente este objetivo: inserir o particular na estrutura de uma lei e uma ordem universais. Mas ao lado

  • A LINGUAGEM 19

    desta forma de sntese intelectual, que se representa e reflete no sistema dos conceitos cientficos, existem outros modos de configurao dentro da totalidade da vida espiritual. Tambm eles podem ser denominados de formas especficas da objetivao : isto , podem ser compreendidos como meios de elevar o individual para o nvel do universalmente vlido; mas eles alcanam este objetivo da validade universal por um caminho completamente diferente daquele trilhado pelo conceito lgico e pela lei lgica. Toda autntica funo do esprito humano partilha com o conhecimento a propriedade fundamental de abrigar uma fora primeva formadora, e no apenas reprodutora (nachbildende Kraft). Ela no se limita a expressar passivamente a presena de um fenmeno, pois possui uma energia autnoma do esprito, graas qual a presena pura e simples do fenmeno adquire um determinado significado, um contedo ideal peculiar. Isto vlido tanto para a arte como para o conhecimento, para o mito tanto quanto para a religio. Todas estas manifestaes do esprito vivem em mundos peculiares de imagens (Bildwel- ten), nos quais os dados empricos no so simplesmente refletidos, e sim criados de acordo com um princpio autnomo. E por este motivo que cada uma destas manifestaes produz as suas prprias configuraes simblicas que, se no so iguais aos smbolos intelectuais, a eles se equiparam no que diz respeito sua origem espiritual. Nenhuma destas configuraes se funde pura e simplesmente com a outra ou dela pode ser derivada, uma vez que cada uma delas designa uma determinada forma de compreenso, na qual e atravs da qual se constitui um aspecto particular do real . Assim sendo, no se trata de maneiras diferentes pelas quais algo real em si se revela ao esprito, e sim de caminhos que o esprito segue em direo sua objetivao, isto , sua au- to-revelao. Se considerarmos neste sentido a arte e a linguagem, o mito e o conhecimento, verificaremos que de ime-

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    diato deles surge um problema comum, capaz de oferecer um novo acesso a urna filosofa geral das cincias do espirito.

    A revoluo da forma de pensar realizada por Kant dentro da filosofa terica repousa na idia fundamental de que a relao entre o conhecimento e seu objeto, at ento aceita, necessitava de uma inverso radical. Em vez de se partir do objeto como de algo conhecido e dado, era necessrio comear com a lei do conhecimento, uma vez que somente ela verdadeiramente acessvel e primordialmente segura; em lugar de definir as propriedades universais do ser, no sentido da metafsica ontolgica, era preciso, mediante uma anlise do entendimento, estabelecer a forma fundamental do juzo como condio sine qua non para que a objetividade fosse concebvel, e determinar todas as mltiplas ram ificaes desta forma. Somente esta anlise, de acordo com Kant, revela as condies sobre as quais se assentam todo e qualquer saber acerca do ser, bem como o seu prprio conceito. Mas o objeto que a analtica transcendental nos apresenta nestes moldes, sendo um correlato da unidade sinttica do entendimento, tambm, ele prprio, determinado de maneira puramente lgica. Por este motivo, ele no designa toda a objetividade como tal, mas to-somente aquela forma de ordenao objetiva que se pode apreender e descrever nos conceitos fundamentais da cincia, particularmente nos conceitos e princpios da fsica matemtica. Assim, o prprio Kant j considerou este conceito de objeto estreito demais, quando se props desenvolver o verdadeiro Sistema da Razo Pura no conjunto das trs Crticas. Na sua concepo e interpretao idealistas, o ser da matemtica e das cincias naturais no esgota toda a realidade, uma vez que ele est longe de abarcar toda a atividade e espontaneidade do esprito humano. No reino inteligvel da liberdade, cuja lei fundamental desenvolvida pela Crtica da razo prtica, no reino da arte e no das formas orgnicas da natureza, como se apresen-

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    iam na Crtica do juzo, aparece um novo aspecto desta realidade. Esta evoluo progressiva do conceito crtico-idealis- la da realidade e do conceito crtico-idealista do esprito constitui um dos traos mais caractersticos do pensamento kantiano, e est fundamentada em uma espcie de lei estilstica deste pensamento. De acordo com suas intenes, a totalidade verdadeira e concreta do esprito no deve ser condensada desde o incio em uma simples frmula e ser apresentada como algo, por assim dizer, pronto e concludo; pelo contrrio, esta totalidade se desenvolve e somente se encontra a si mesma ao longo de uma progressiva anlise crtica. A dimenso do ser espiritual pode ser determinada unicamente por intermdio desta progresso. E prprio da natureza deste processo que o seu comeo e o seu fim no apenas no coincidam, como aparente e necessariamente conflitam um com o outro - mas o conflito precisamente aquele que existe entre potncia e ato, entre a simples potencialidade lgica de um conceito e o desenvolvimento completo deste conceito e dos seus efeitos. Do ponto de vista destes ltimos, a revoluo coper- nicana, que constitura o ponto de partida de Kant, tambm adquire um sentido novo e mais amplo. Ela j no se refere mais apenas funo lgica do juzo; ao contrrio, pela mesma razo e com igual direito ela se estende a todas as direes e a todos os princpios da configurao espiritual. A questo decisiva consiste sempre em saber se procuramos compreender a funo a partir da configurao, ou a configurao a partir da funo, e se consideramos esta fundamentada naquela ou, inversamente, aquela nesta. Esta questo constitui o elo espiritual que une os diversos campos de problemas entre si: ela revela a unidade metodolgica interior destes setores, sem permitir jamais que estes resvalem para uma uniformidade factual. Isto porque o princpio fundamental do pensamento crtico, o princpio do primado da funo sobre o objeto, assume em cada campo especfico uma^nova

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    forma e exige, a cada vez, uma nova fundamentao autnoma. Ao lado da pura funo cognoscitiva, necessrio compreender a funo do pensamento lingstico, do pensamento mtico-religioso e da intuio artstica, de tal modo que se tome claro como em todas elas se realiza no exatamente uma configurao do mundo, mas uma configurao voltada p a ra o mundo, visando a um nexo objetivo e a uma totalidade objetiva da percepo.

    A crtica da razo transforma-se, assim, em crtica da cultura. Ela procura compreender e provar como todo contedo cultural, na medida em que seja algo mais do que simples contedo isolado, e conquanto esteja baseado em um princpio formal universal, pressupe um ato primordial do esprito. Somente aqui a tese fundamental do idealismo encontra a sua confirmao plena. Enquanto a reflexo filosfica se refere e se limita apenas anlise da forma pura do conhecimento, a fora da cosmoviso ingenuamente realista no pode ser desativada por completo. possvel que o objeto do conhecimento seja, de uma forma ou de outra, determinado e formado por este conhecimento e sua lei original - mas alm disso, ao que parece, ele deve tambm existir como algo autnomo, independente desta relao com as categorias fundamentais do conhecimento. Se, porm, partirmos no do conceito geral do mundo, e sim do conceito geral da cultura, a questo assume imediatamente outro aspecto. Com efeito, o contedo do conceito de cultura inseparvel das formas e orientaes fundamentais da atividade espiritual: aqui o ser somente pode ser apreendido no fazer, ou seja, na ao. Apenas na medida em que existe uma orientao especfica da fantasia e intuio estticas, passa a existir tambm uma esfera de objetos estticos - e o mesmo vlido para as demais energias espirituais em virtude das quais um determinado universo de objetos adquire forma e contornos. A prpria conscincia religiosa - por mais que esteja convencida da

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    realidade e da veracidade do seu objeto - somente transforma esta realidade no nvel mais baixo, no nvel de um pensamento puramente mitolgico, tornando-a uma simples existencia material. Em contrapartida, em todos os nveis superiores da reflexo, a conscincia religiosa se d conta, com maior ou menor clareza, de que somente possui o seu objeto na medida em que com ele estabelece uma relao inteiramente prpria e especial. no modo de se comportar e na direo que o esprito d a si mesmo em relao a algo objetivo que concebeu, que se encontra a garantia ltima desta objetividade. O pensamento filosfico leva em considerao todas estas direes, no apenas com o propsito de observar a evoluo de cada uma delas separadamente, ou de obter uma viso de conjunto, e sim por acreditar na hiptese de que deve ser possvel relacion-las a um centro unificado, ideal. Mas, do ponto de vista do pensamento crtico, este centro nunca poder residir em um ser dado, mas to-somente em uma tarefa comum. Deste modo, apesar de toda a sua diversidade interior, os vrios produtos da cultura espiritual, tais como a linguagem, o conhecimento cientfico, o mito, a arte, a religio, tornam-se parte de um nico grande complexo de problemas - tornam-se mltiplas tentativas direcionadas, todas elas, para a mesma meta de transformar o mundo passivo das meras impresses, que em um primeiro momento aparentemente aprisionam o esprito, em um mundo de pura expresso espiritual.

    Assim como a moderna filosofia da linguagem, ao buscar o ponto de partida adequado para um estudo filosfico da linguagem, elaborou o conceito da forma lingstica interna, pode-se dizer que igualmente lcito procurar e pressupor uma forma interna anloga para a religio e o mito, para a arte e o conhecimento cientfico. E esta forma no significa apenas a soma ou o resumo posterior dos fenmenos particulares nestes campos, e sim a lei que determina as

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    suas estruturas. bem verdade que, em ltima instncia, no h outro meio de nos assegurarmos da existncia desta lei, a no ser demonstrando-a nos prprios fenmenos e abstraindo-a dos mesmos; mas a abstrao, precisamente, mostra que a lei um momento necessrio e constitutivo do contedo concreto dos fenmenos. No curso de sua histria, a filosofia sempre teve maior ou menor conscincia da necessidade desta anlise e crtica das diversas formas da cultura; geralmente, porm, ela desincumbiu-se apenas de partes desta tarefa, e sempre com intenes mais negativas do que positivas. Nesta crtica, os seus esforos freqentemente visavam no tanto exposio e fundamentao dos resultados positivos de cada forma individual, quanto oposio a falsas pretenses. Desde a poca dos sofistas gregos existe uma crtica ctica da linguagem, assim como existe uma crtica ctica dos mitos e do conhecimento. Esta atitude essencialmente negativa torna-se compreensvel quando se considera que, com efeito, toda forma bsica do esprito, ao surgir e desenvolver-se, procura apresentar-se no como uma parte, e sim como um todo, arrogando a si, portanto, uma validez absoluta, e no meramente relativa. Ela no se contenta com a sua esfera particular, buscando, em vez disso, imprimir o seu selo caracterstico na totalidade do ser e da vida espiritual. Desta tendncia ao incondicional, inerente a todas as orientaes individuais, resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de cultura. A cincia tem sua origem em uma forma de reflexo que, antes de poder afirmar-se e impor-se, v-se obrigada em toda parte a entrar em contato com aquelas primeiras associaes e divises do pensamento que encontraram a sua primeira expresso e concretizao na linguagem e nos conceitos lingsticos gerais. Mas, na medida em que a cincia usa a linguagem como material e como fundamento, ela necessria e simultaneamente a transcende. Um novo logos, norteado e dominado por um princpio diferente daquele que

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    orienta o pensamento lingstico, passa a surgir e a estrutu- rar-se de maneira cada vez mais definida e autnoma. Comparadas com este logos, as formaes lingsticas se apresentam to-somente como barreiras e obstculos a serem progressivamente superados pela fora e peculiaridade do novo principio. A crtica da linguagem e da forma lingstica do pensamento torna-se parte integrante do ascendente pensamento cientfico e filosfico. O processo tpico deste desenvolvimento repete-se em todos os outros campos. As diversas orientaes espirituais no comparecem pacificamente uma ao lado da outra, no intuito de se complementarem mutuamente, mas, ao contrrio, cada uma delas se toma aquilo que na medida em que se ope s outras e, na luta contra elas, demonstra a sua fora. Em sua atuao puramente histrica, religio e arte se encontram to prximas, e de tal maneira se interpenetram, que por vezes parece difcil diferenci-las no que concerne aos seus contedos e ao seu princpio intrnseco de configurao. Foi dito que os deuses da Grcia devem o seu nascimento a Homero e Hesodo. No seu desenvolvimento ulterior, entretanto, o pensamento religioso dos gregos se distancia cada vez mais decididamente de suas origens estticas. Desde Xenfanes ele se ope mais e mais claramente aos conceitos mtico-poticos e plstico-sensveis da divindade, reconhecidos e rejeitados como antropomorfismo. Em lutas e conflitos espirituais deste tipo, que se apresentam na histria com uma virulncia e intensidade cada vez maiores, a deciso ltima parece caber filosofia, na qualidade de suprema depositria da unidade. Mas os sistemas da metafsica dogmtica satisfazem apenas em parte esta expectativa. Isto porque eles prprios geralmente ainda se encontram no meio da luta que aqui se trava, e no acima dela: apesar de toda a universalidade conceituai a que aspiram, estes sistemas representam apenas um dos lados do conflito, quando deveriam compreend-lo e medi-lo em toda a sua amplitude e

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    profundidade. Porque a maioria destes sistemas nada mais do que a hipstase de determinado principio lgico, esttico ou religioso. Quanto mais se encerram na universalidade abstrata deste principio, tanto mais se isolam dos aspectos particulares da cultura espiritual e da totalidade concreta de suas formas. A reflexo filosfica somente poderia evitar o risco deste isolamento se conseguisse encontrar um ponto de vista que, sem colocar-se margem destas formas, se situasse acima delas: um ponto de vista que permitisse abarcar a totalidade delas com um nico olhar, e que visasse a mostrar apenas as relaes puramente imanentes que todas estas formas mantm entre si, e no a sua relao com um ser ou principio externo, transcendente. Desta maneira, haveria de surgir um sistema filosfico do esprito, no qual cada forma particular receberia o seu sentido pelo lugar que nele ocupasse, no qual o seu contedo e significado seriam caracterizados pela riqueza e peculiaridade das suas relaes e combinaes com outras energias do esprito e, em ltima anlise, com a totalidade das mesmas.

    Desde os incios da filosofia moderna e do idealismo filosfico moderno, no faltaram esforos no sentido de construir tal sistema. Embora o programtico Discurso do mtodo de Descartes bem como as suas Regulae ad directionem ingenii rejeitem como empreendimento vo a tentativa da antiga metafsica de abarcar a totalidade das coisas e de desvendar os segredos ltimos da natureza, ambos insistem enfaticamente que deve ser possvel esgotar e medir racionalmente a universitas do esprito humano. Ingenii limites definire, definir a extenso e os limites do esprito: esta mxima de Descartes toma-se agora a divisa de toda a filosofia moderna. Mas o conceito do esprito continua dividido e ambguo, uma vez que usado ora em sentido amplo, ora em sentido mais restrito. Assim como a filosofia de Descartes parte de um conceito novo e mais abrangente da conscincia, mas em se

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    guida, ao denomin-lo de cogitatio, toma a identific-lo com o pensamento puro, da mesma forma, tanto para Descartes como para todo o racionalismo, o sistema do esprito coincide com o do pensamento. Por este motivo, a universitas do esprito, sua totalidade concreta, somente considerada verdadeiramente compreendida e filosoficamente dominada no momento em que se torna possvel deduzi-la de um nico princpio lgico. Com isso, a forma pura da lgica toma-se novamente o prottipo e o modelo para todo ser espiritual e para toda e qualquer forma espiritual. E assim como em Descartes, que deu incio srie de sistemas do idealismo clssico, tambm em Hegel, que encerrou esta srie, se nos apresenta, uma vez mais e com toda clareza, esta correlao metodolgica. A exigncia de se pensar a totalidade do esprito como totalidade concreta, ou seja, de no se aceitar como satisfatrio o seu simples conceito, e sim desenvolv-lo no conjunto de suas manifestaes, foi feita por Hegel com um rigor sem precedentes na histria do pensamento. Por outro lado, porm, a Fenomenologa do esprito, com a qual ele procurou satisfazer esta exigncia, tem como objetivo apenas preparar o terreno e o caminho para a Lgica. A multiplicidade das formas espirituais, tal como descrita na Fenomenologa, culmina, por assim dizer, em um extremo lgico - e somente neste ponto que ela encontra a sua verdade e essncia perfeitas. Por mais rica e multiforme que seja em seu contedo, na estrutura ela se subordina a uma lei nica e, em certo sentido, uniforme - lei do mtodo dialtico que representa o ritmo invarivel do movimento autnomo do conceito. Todos os movimentos de configurao do esprito culminam no saber absoluto, na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de sua existncia, o conceito. Nesta sua meta derradeira todos os estgios percorridos anteriormente ainda esto contidos como momentos; mas, reduzidos a meros momentos, estes estgios deixam de ser rele-

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    vantes. Assim sendo, parece que dentre todas as formas espirituais apenas a forma da lgica, a forma do conceito e do conhecimento tm direito a uma autntica e verdadeira autonomia. O conceito no apenas o meio de representar a vida concreta do esprito, mas, na verdade, constitui o elemento substancial propriamente dito do esprito. Conseqentemente, todo ser e toda ao espirituais, por mais que se trate de apreender e reconhecer a sua particularidade especfica, so referidos e reduzidos a uma nica dimenso - e somente nesta referncia que seu contedo mais profundo e seu verdadeiro significado podem ser apreendidos.

    E, de fato, o prprio conceito da filosofia e, particularmente, o princpio fundamental do idealismo filosfico parecem exigir esta reduo ltima de todas as formas espirituais a uma nica forma lgica. Porque, se renunciamos a esta unidade, parece ser totalmente impossvel obter uma sistemtica rigorosa destas formas. Assim sendo, como reverso do mtodo dialtico resta apenas o procedimento puramente emprico. Se for inexeqvel descobrir uma lei universal, segundo a qual uma forma espiritual necessariamente se origina a partir da outra, at que finalmente a srie completa das configuraes espirituais possa ser apreendida de acordo com este princpio, ento, ao que parece, o conjunto destas configuraes j no pode mais ser concebido como um cosmos fechado em si mesmo. Neste caso, as formas individuais en- contram-se simplesmente justapostas: elas podem, sem dvida, ser visualizadas em toda a sua extenso e descritas em suas peculiaridades, mas nelas j no se expressa um contedo ideal comum. Conseqentemente, a filosofia destas formas teria que finalmente desembocar em sua histria, a qual, de acordo com os seus objetos, haveria de apresentar-se especificamente como histria da linguagem, da religio, do mito, da arte etc. Neste ponto, deparamos com um curioso dilema. Se nos ativermos exigncia da unidade lgica, a

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    individualidade de cada campo e a caracterstica do seu principio correm o risco de dissolver-se na universalidade da forma lgica; se, em contrapartida, mergulharmos nesta mesma individualidade e nos limitarmos sua anlise, h o perigo de nos perdermos nela e de no encontrarmos mais o caminho de volta para o universal. Um meio de escapar deste dilema metodolgico somente poderia ser encontrado se fosse possvel descobrir e fixar um momento que se reencontra em cada uma das formas espirituais fundamentais, mas que, por outro lado, no se repete completamente da mesma forma em nenhuma delas. Graas a este momento poder-se-ia, ento, afirmar a conexo ideal entre os campos individuais - a conexo entre a funo fundamental da linguagem e do conhecimento, da esfera esttica e da religiosa - sem que nesta conexo se perdesse a especificidade no comparvel de cada um destes campos. Se fosse possvel encontrar um elemento intermedirio pelo qual tivessem que passar todas as configuraes, tais como se realizam nas diversas direes fundamentais do esprito, e no qual a sua natureza particular bem como o seu carter especfico fossem preservados, ter- se-ia obtido o elo necessrio para uma anlise que transferiria para a totalidade das formas espirituais aquilo que a crtica transcendental realiza para o conhecimento puro. Portanto, a prxima questo que devemos propor consiste em verificar se, de fato, existem este campo intermedirio e esta funo mediadora para as mltiplas direes do esprito, e se esta funo possui determinados traos caractersticos que permitam reconhec-la e descrev-la.

    II

    Com este propsito, inicialmente voltamos ao conceito do smbolo, tal como Heinrich Hertz o exige e define do

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    ponto de vista dos conhecimentos da fsica. O que o fsico busca nos fenmenos a representao de seus encadeamen- tos necessrios. Mas esta representao somente se realiza na medida em que ele no apenas deixa para trs o mundo imediato das impresses sensveis, como, aparentemente, as abandona totalmente. Os conceitos com os quais opera, os conceitos de espao e tempo, de massa e de fora, do ponto material e da energia, do tomo ou do ter, so simulacros livres, construdos pelo conhecimento, no intuito de dominar o mundo da experiencia sensvel e de abarc-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leis. Mas no que respeita aos dados sensveis propriamente ditos, nada corresponde a estes simulacros. Mas, embora no exista tal correspondncia - ou talvez pelo fato de ela no existir - , o mundo conceituai da fsica est completamente fechado em si mesmo. Cada conceito individual, cada simulacro e signo particulares se equiparam palavra articulada de uma linguagem que possui um significado e um sentido em si prpria, e organizada de acordo com regras fixas. J nos primordios da fsica moderna, j em Galileu, encontramos a comparao, segundo a qual o livro da natureza redigido em linguagem matemtica e somente pode ser lido como um cdigo matemtico cifrado. E desde ento toda a evoluo das cincias naturais exatas mostra como, de fato, cada progresso na formulao dos seus problemas e nos seus meios conceituais se realizou de mos dadas com um progressivo refinamento do seu sistema de signos. A compreenso plena dos conceitos fundamentais da mecnica de Galileu somente foi possvel quando, atravs do algoritmo do clculo diferencial, se logrou determinar o lugar lgico universal destes conceitos e criar para eles um signo lgico matemtico de validade universal. E a partir daqui, a partir dos problemas relacionados com a anlise infinitesimal, Leibniz pde em breve determinar com a mxima preciso o problema geral

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    contido na funo da simbolizao e elevar o projeto de sua caracterstica universal ao nvel de um verdadeiro significado filosfico. De acordo com as suas convices, a lgica das coisas, ou seja, dos contedos conceituais fundamentais c das relaes fundamentais, sobre os quais repousa a estrutura de uma cincia, no pode ser desvinculada da lgica dos signos. Porque o signo no um invlucro fortuito do pensamento, e sim o seu rgo essencial e necessrio. Ele no serve apenas para comunicar um contedo de pensamento dado e rematado, mas constitui, alm disso, um instrumento, atravs do qual este prprio contedo se desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido. O ato da determinao conceituai de um contedo realiza-se paralelamente sua fixao em um signo caracterstico. Assim sendo, todo pensamento rigoroso e exato somente vem a encontrar sustentao no simbolismo e na semitica sobre os quais se apia. Para o nosso pensamento, toda e qualquer lei da natureza assume a forma de uma frmula universal - mas uma frmula somente pode ser representada por intermdio de uma combinao de signos universais e especficos. Sem estes signos universais, tal como fornecidos pela aritmtica e pela lgebra, seria impossvel expressar alguma relao especial da fsica, ou alguma lei particular da natureza. Nisto se evidencia o princpio fundamental do conhecimento, segundo o qual o universal somente pode ser captado no particular, e o particular pode ser concebido to-somente em relao com o universal.

    Mas esta inter-relao no se limita cincia, permeando, ao invs, todas as outras formas fundamentais da atividade espiritual. Para todas elas vlido que somente podero evidenciar as suas maneiras peculiares de compreenso e configurao, na medida em que criarem para as mesmas um determinado substrato sensorial. Este substrato to essencial, que ele por vezes parece encerrar todo o contedo significativo, o prprio sentido destas formas. A linguagem parece

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    poder definir-se e pensar-se integralmente como um sistema de signos fonticos - o mundo da arte e o do mito parecem esgotar-se no mundo das formas particulares, sensorialmente tangveis, que ambos nos apresentam. E assim, com efeito, dispomos de um elemento mediador abrangente, no qual todas as criaes espirituais se encontram, por mais diferentes que sejam. O contedo do espirito se revela to-somente na sua manifestao; a forma ideal reconhecida somente na e pela totalidade dos signos sensoriais dos quais se serve para expressar-se. Se fosse possvel obter uma viso de conjunto sistemtica das diversas direes deste tipo de expresso - se se conseguisse mostrar os seus traos tpicos e comuns, bem como as suas gradaes particulares e as diferenas internas que existem entre elas, o ideal da caracterstica universal, formulado por Leibniz para o conhecimento, se realizaria para a totalidade da atividade espiritual. Possuiramos ento uma espcie de gramtica da funo simblica como tal, que abarcaria e co-determinaria, de um modo geral, suas expresses e os seus idiomas, tal como se nos apresentam na linguagem e na arte, no mito e na religio.

    A idia de uma gramtica desta natureza implica um alargamento do tradicional conceito histrico doutrinrio do idealismo. Este sempre buscou opor ao mundus sensibilis um outro cosmos, o mundus intelligibilis, e definir claramente as fronteiras entre ambos. Em essncia, porm, a fronteira se delineava de tal maneira, que o mundo do inteligvel era determinado pelo princpio da ao pura, enquanto o mundo do sensvel era governado pelo princpio da receptibilidade. L reinava a espontaneidade livre do esprito, aqui a conteno, a passividade do sensvel. Para a caracterstica universal, entretanto, cuja problemtica e tarefa neste momento se nos apresentam em suas linhas mais gerais, esta oposio j no mais irreconcilivel e excludente, uma vez que o sensvel e o espiritual esto agora ligados por uma nova forma de reci

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    procidade e de correlao. O dualismo metafsico das duas csleras parece estar superado, na medida em que pode ser mostrado que precisamente a prpria funo pura do espiritual precisa buscar a sua realizao concreta no mundo sensvel, e que ela, em ltima anlise, somente poder encontr-la aqui. No mbito do sensvel necessrio fazer uma distino rigorosa entre a simples reao e a pura ao, bem como entre aquilo que pertence aos domnios da impresso e aquilo que faz parte da esfera da expresso. O sensualismo dogmtico no erra apenas ao subestimar o significado e a produtividade dos fatores puramente intelectuais, mas tambm e principalmente porque ele no apreende a sensibilidade em toda a extenso do seu conceito e na totalidade de sua produtividade, embora afirme que ela constitui a verdadeira fora fundamental do esprito. O sensualismo dogmtico, alm disso, oferece uma imagem insuficiente e truncada da sensibilidade, ao limit-la meramente ao mundo das impresses, ao dado imediato das simples sensaes. Assim sendo, ele falha em reconhecer que tambm existe uma atividade do prprio sensvel, que, como disse Goethe, existe uma imaginao sensvel exata, que se manifesta nos mais diversos campos da atividade espiritual. Com efeito, em todos estes campos o veculo propriamente dito do seu desenvolvimento imnente consiste no fato de produzirem um mundo de smbolos prprio e livre, situado ao lado e acima do mundo das percepes: um mundo que, de acordo com a sua natureza imediata, ainda traz as cores do sensvel, as quais, porm, representam uma sensibilidade j configurada e, portanto, dominada pelo esprito. No se trata aqui de algo sensvel simplesmente dado e encontrado, e sim de um sistema de multiplicidades sensveis, produzidas por alguma forma de atividade criadora livre.

    Assim, por exemplo, o processo da formao da linguagem mostra como, para ns, o caos das impresses imediatas

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    somente passa a se aclarar e articular no momento em que lhe damos nome, permeando-o, assim, com a funo do pensamento lingstico e da expresso lingstica. Neste novo mundo dos signos lingsticos, tambm o mundo das impresses adquire uma nova consistncia, pois passa a ter uma nova articulao espiritual. A diferenciao e a separao, a fixao de certos momentos do contedo atravs da palavra no se limitam a neles designar uma determinada qualidade intelectual, mas, na verdade, lhes conferem esta qualidade, em virtude da qual eles vm a situar-se acima do me-ro imediatismo das qualidades ditas sensveis. Assim, a linguagem torna-se um instrumento espiritual fundamental, graas ao qual realizamos a passagem do mundo das meras sensaes para o mundo da intuio e da representao. J em suas origens a linguagem contm aquele trabalho intelectual que em seguida se manifesta na formao do conceito como conceito cientfico, como unidade lgica de sua forma. Veri- fica-se aqui o incio daquela funo universal de separao e unio que encontra a sua mais elevada expresso consciente nas anlises e snteses do pensamento cientfico. E ao lado do mundo dos signos lingsticos e conceituais encontra-se - sem a ele poder ser comparado, mas a ele aparentado por suas origens espirituais - o mundo das formas criadas pelo mito ou pela arte. Porque tambm a fantasia mtica, embora profundamente enraizada no sensvel, situa-se muito alm da mera passividade do sensvel. Se a avaliarmos de acordo com as normas empricas habituais, fornecidas pela nossa experincia sensorial, concluiremos que as suas criaes so totalmente irreais, mas precisamente nesta irrealidade que se manifestam a espontaneidade e a liberdade interior da funo mtica. E esta liberdade de modo algum significa um arbtrio, destitudo de toda e qualquer lei. O mundo do mito no um mero produto do capricho ou do acaso, uma vez que ele possui .s suas, prprias leis fundamentais que, regendo to

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    das as suas criaes, atuam em todas as suas manifestaes particulares. Na esfera da intuio artstica toma-se mais evidente ainda que a concepo de uma forma esttica no mundo sensvel somente possvel na medida em que ns mesmos criamos os elementos fundamentais da forma. Toda compreenso de formas espaciais, por exemplo, depende, em l- lima instncia, desta atividade de produzi-las interiormente e das leis que regem esta produo. Evidencia-se, assim, que a atividade espiritual suprema e mais pura que a conscincia conhece est condicionada e mediada por determinados modos da atividade sensvel. Tambm aqui constatamos que a vida autntica e essencial da idia pura somente se nos apresenta no reflexo colorido dos fenmenos. No poderemos compreender o sistema das mltiplas manifestaes do esprito, a no ser acompanhando as diversas direes de sua fora imagtica original. Nela vemos refletida a essncia do esprito, pois esta somente se nos revelar na configurao do material sensvel. E o fato de realmente tratar-se de uma pura atividade do esprito, a qual se manifesta na criao dos diversos sistemas de smbolos sensveis, evidencia-se na medida em que todos estes smbolos, desde o princpio, comparecem com uma determinada pretenso de objetividade e valor. Todos eles transcendem o mbito dos fenmenos da conscincia meramente individuais; diante dos mesmos pretendem estabelecer algo universalmente vlido. Sobre o pano de fundo de uma posterior anlise crtico-filosfica e do conceito de verdade por ela desenvolvido, esta pretenso talvez perca a sua validade; mas o simples fato de existir esta reivindicao faz parte da essncia e do carter das prprias formas fundamentais. Elas prprias no apenas consideravam as suas criaes objetivamente vlidas, como, geralmente, nelas viam o verdadeiro cerne da objetividade, do real. Assim, caracterstico das primeiras manifestaes ingnuas e irre- fletidas do pensamento lingstico, bem comc do Bengwaal

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    to mtico, que para ambos o contedo da coisa e o do signo no se diferenciam nitidamente, e, em vez disso, costumam mesclar-se indistintamente. O nome de uma coisa e a prpria coisa fundem-se de maneira indissolvel; a simples palavra ou imagem encerra uma fora mgica atravs da qual se nos revela a essncia da coisa. E basta transferir esta concepo do real para o ideal, do material para o funcional, para nela descobrir, de fato, um cerne de legitimidade. Porque no desenvolvimento imnente do esprito, a aquisio do signo realmente sempre representa o primeiro e necessrio passo para o conhecimento objetivo da essncia das coisas. Para a conscincia, o signo constitui, por assim dizer, a primeira etapa e a primeira prova da objetividade, porque ele interrompe a constante modificao dos contedos da conscincia, e porque nele se define e enfatiza algo permanente. Nenhum contedo da conscincia, uma vez pertencente ao passado e substitudo por outros, se repete, como tal, de forma rigorosamente idntica. Uma vez desaparecido da conscincia, ele deixa definitivamente de ser o que era. Mas a esta constante modificao das qualidades de contedo a conscincia ope a unidade de si mesma e de sua forma. A sua identidade no se evidencia pelo que ela ou possui, mas pelo que ela faz. Atravs do signo ligado ao contedo, este adquire em si mesmo uma nova consistncia e uma nova durao. Isto porque, em contraposio s alternncias reais dos contedos particulares da conscincia, o signo possui uma significao ideal que, como tal, persiste. Ele no , como a simples sensao dada, algo particular e nico, representando, ao invs, uma totalidade, um conjunto de contedos possveis, e em face de cada um deles que ele representa, portanto, uma primeira universalidade. Na funo simblica da conscincia, tal como ela se manifesta na linguagem, na arte e no mito, determinadas formas fundamentais invariveis, de natureza em parte conceituai, em parte puramente

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    intuitiva, se destacam em primeiro lugar do fluxo da conscincia; a fluidez do contedo substituida pela unidade da forma, fechada e permanente em si mesma.

    Mas no se trata, aqui, de um ato isolado, e sim de um progressivo processo de determinao, que caracteriza todo o desenvolvimento da conscincia. No primeiro nvel, a fixao que conferida ao contedo atravs do signo lingstico, da imagem mtica ou artstica, aparentemente no ultrapassa o estgio da reteno deste contedo na memoria, ou seja, de sua simples reproduo. Ao que tudo indica, o signo nada acrescenta ao contedo ao qual se refere, limitando-se simplesmente a preserv-lo e repeti-lo em sua pura substncia. At mesmo na historia da evoluo psicolgica da arte acreditou-se poder provar a existncia de urna fase de arte meramente rememorativa, na qual toda configurao artstica visava apenas a ressaltar determinados aspectos da percepo sensvel, e a apresent-los em uma imagem criada pela prpria memria4. Mas quanto mais claramente as diversas direes fundamentais se delineiam em sua energia especfica, tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente reproduo pressupe sempre um trabalho original e autnomo da conscincia. A reprodutibilidade do contedo em si est vinculada produo de um signo para o mesmo, um processo no qual a conscincia age de maneira livre e independente. Com isso, tambm o conceito da memria adquire um sentido mais rico e profundo. Para recordar determinado contedo, necessrio que antes, e no apenas pela via da sensao ou da percepo, a conscincia tenha interiorizado este contedo. No basta, aqui, a simples repetio, em outra poca, do fato dado, sendo impres-

    4. Cf. W. Wundt, Vlkerpsychologie (Psicologia dos povos), vol. III, A arte. 2. ed. pp. 115 ss.

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    cindvel, ao invs, que nesta repetio se manifeste simultaneamente um novo tipo de concepo e configurao. Porque cada reproduo do contedo j encerra um novo estgio da reflexo . Na medida em que a conscincia no o considera simplesmente como algo presente, mas o imagina como algo passado, porm no desaparecido para ela prpria, ela cria uma nova relao com este contedo e, ao faz-lo, atribui a ele e a si mesma uma significao ideal modificada. E esta se manifesta de maneira cada vez mais ntida e rica, proporo que o mundo das imagens, prprio do Eu, se torna diferenciado. Agora, o Eu no apenas exerce uma atividade original formadora de imagens, como ao mesmo tempo aprende a compreend-las cada vez mais profundamente. E somente assim que as fronteiras entre o mundo subjetivo e o objetivo se delineiam claramente. Uma das tarefas fundamentais da crtica geral do conhecimento consiste em demonstrar as leis, de acordo com as quais, median- te os mtodos do pensamento cientfico, se realiza esta delimitao no campo puramente terico. Ela mostra que o ser subjetivo e o objetivo no se contrapem, desde o incio, como esferas rigidamente distintas e totalmente determinadas quanto ao contedo, mas que, ao invs, ambos adquirem a sua determinao to-somente no processo do conhecimento, e de acordo com os mtodos e as condies do mesmo. Assim, a distino categorial entre o Eu e o No- Eu evidencia-se como uma funo essencial e sempre atuante do pensamento terico, enquanto a maneira pela qual esta funo se realiza, o modo, portanto, pelo qual os contedos do ser subjetivo e do ser objetivo se delimitam mutuamente, variam de acordo com o nvel de conhecimento alcanado. Para a viso terico-cientfica do mundo, a objetividade da experincia consiste nos seus prprios elementos constantes e necessrios - mas a quais contedos so atribudas esta constncia e esta necessidade, isto depende, por

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    um lado, do critrio metodolgico geral aplicado experincia pelo pensamento, e, por outro, do nvel de conhecimen- lo correspondente, do conjunto de suas apercepes emprica e teoricamente afianadas. Neste contexto, o modo como aplicamos e realizamos a oposio conceptual do subjetivo c do objetivo na configurao do mundo da experincia, na construo da natureza, constitui no tanto a soluo do problema do conhecimento, e sim, muito mais, a expresso perfeita do mesmo5. Mas esta oposio somente aparece em toda a sua riqueza e na sua complexidade interna, quando a analisamos para alm dos limites do pensamento terico e dos seus meios conceituais prprios. No apenas a cincia, mas tambm a linguagem, o mito, a arte e a religio carac- terizam-se pelo fato de nos fornecerem os materiais com os quais se constri, para ns, o mundo do real e do espiritual, o mundo do Eu. Estas esferas tampouco podem ser colocadas em um mundo dado como simples conformaes, pelo contrrio, necessrio compreend-las como funes, em virtude das quais se realiza, em cada caso, uma configurao particular do ser, bem como uma diviso e uma separao peculiares do mesmo. Assim como so diversos os meios dos quais se serve cada funo, assim como so diferentes os padres e critrios pressupostos e aplicados por cada uma delas, so igualmente diferentes os resultados. O conceito de verdade e de realidade da cincia diferente daquele da religio ou da arte - assim como existe uma relao bsica, especial e incomparvel, que nelas criada, muito mais do que designada, entre o interior e o exterior, entre o ser do Eu e o do mundo. Antes que uma deciso possa ser tomada en-

    5. Um a anlise mais detalhada encontra-se em meu livro Subs- tanzbegriff und Funktionsbegriff (Conceito de substncia e conceito de funo), Berlim, 1910, captulo VI.

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    tre estas pretenses e perspectivas mltiplas, que se cruzam e contradizem, necessrio que, inicialmente, sejam diferenciadas com preciso e rigor crticos. O desempenho de cada uma deve ser medido de acordo com ela prpria, e no segundo padres e exigncias de qualquer outra - e somente ao final desta anlise que se poder perguntar se e como todas estas diferentes formas de concepo do mundo e do Eu podem ser harmonizadas - se, embora no reproduzam uma mesma e nica coisa existente em si, elas se completam para formar uma totalidade e um sistema unificado da atividade espiritual.

    Wilhelm von Humboldt foi o primeiro a conceber com clareza este tipo de abordagem, e a aplic-lo filosofia da linguagem. Para Humboldt, o signo fontico, que constitui a matria de toda formao da linguagem, , por assim dizer, a ponte entre o subjetivo e o objetivo, porque nele se unem os momentos essenciais de ambos. Porque o som, por um lado, falado e, portanto, produzido e articulado por ns mesmos; por outro lado, porm, enquanto som escutado, ele faz parte da realidade sensvel que nos rodeia. Por isso, nso apreendemos e conhecemos ao mesmo tempo como algo interior e exterior - como uma energia do interior que se traduz e objetiva em algo exterior. Na medida em que na linguagem a energia do esprito abre o seu caminho atravs dos lbios, o produto da mesma retorna ao prprio ouvido. A representao, portanto, transposta para a objetividade real, sem, com isso, ser subtrada da subjetividade. Somente a linguagem capaz disso; e sem esta transposio, ainda que silenciosa, para a objetividade que retorna ao sujeito - e que sempre ocorre quando h a participao da linguagem - torna-se impossvel a formao do conceito e, portanto, de todo verdadeiro pensamento... Porque a linguagem no pode ser vista como um material que se encontra presente, que pode ser apreendido e abarcado como um todo ou paulati-

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    namcnte comunicado; ela deve ser compreendida como algo i|iiL' sc est eternamente produzindo, em que as leis que regem ;i produo so definidas, enquanto o alcance e, de certa maneira, a natureza do produto permanecem totalmente indefinidos. Assim como o som constitui um elemento mediador entre o objeto e o ser humano, da mesma maneira a linguagem, como um todo, opera entre o homem e a natureza que sobre ele age interna e externamente. Ele se rodeia de um mundo de sons, a fim de assimilar e elaborar o mundo dos objetos.6 Nesta concepo critico-idealista da linguagem,I lumboldt assinala um fator que vlido para toda espcie e toda forma de simbolizao. Em cada signo que ele proje- la livremente, o esprito apreende o objeto e, ao mesmo lempo, apreende a si mesmo e a prpria legalidade que determina a sua atividade formadora de imagens. E somente esta interpenetrao peculiar que prepara o terreno para a determinao mais profunda da subjetividade e da objetividade. No primeiro nvel desta determinao, como se os dois momentos antitticos ainda estivessem simplesmente separados, justapostos e contrapostos. A linguagem, por exemplo, em suas formaes primitivas, tanto pode ser interpretada como expresso pura do interior ou do exterior, como expresso da simples subjetividade ou da simples objetividade. No primeiro caso, o fonema parece no significar outra coisa alm do som que expressa um excitamento e uma emoo; no segundo, ele aparentemente significa apenas uma imitao onomatopica. As diversas especulaes sobre a origem da linguagem movem-se, de fato, entre estes dois extremos, nenhum dos quais alcana o mago e a essncia espiritual da linguagem propriamente dita. Porque a

    6. Vide Humboldt, Einleitung zum Kawi-W erk (Introduo obra de Kawi), S.-W. (Akademie-Ausg.) (Edio da Academia), VII, 55 ss.

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    linguagem no designa e no expressa nem uma subjetividade unilateral, nem uma objetividade unilateral, verificando-se, em vez disso, que nela ocorre uma nova mediao, uma correlao peculiar entre os dois fatores. Portanto, nem a mera descarga da emoo, nem a repetio de estmulos sonoros objetivos representam, por si, o sentido e a forma caractersticos da linguagem: estes somente surgem quando as duas extremidades se unem, produzindo, assim, uma nova sntese de eu e mundo, que no existia anteriormente. E uma relao anloga se estabelece em toda direo verdadeiramente autnoma e original da conscincia. Tampouco a arte pode ser definida e compreendida como mera expresso do interior, como reproduo das figuras de uma realidade exterior, porque tambm nela o momento decisivo e caracterstico reside na maneira pela qual atravs dela se fundem o subjetivo e o objetivo, o sentimento puro e a figura pura, adquirindo nesta fuso uma nova existncia e um novo contedo. Com nitidez maior do que seria possvel se nos limitssemos funo puramente intelectual, em todos estes exemplos evidencia-se que, ao analisarmos as formas do esprito, no podemos comear por uma distino dogmtica rgida entre o subjetivo e o objetivo, mas que, pelo contrrio, a delimitao e fixao dos seus domnios somente se realizam atravs destas prprias formas. Cada energia espiritual particular contribui de maneira especfica para esta definio, e, portanto, participa da constituio do conceito do Eu e do mundo. O conhecimento, bem como a linguagem,o mito e a arte: nenhum deles constitui um mero espelho que simplesmente reflete as imagens que nele se formam a partir da existncia de um ser dado exterior ou interior; eles no so instrumentos indiferentes, e sim as autnticas fontes de luz, as condies da viso e as origens de toda configurao.

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    O primeiro problema que se nos apresenta na anlise

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    cincia, e deste adquirindo o seu sentido qualitativo. Se procurarmos abarcar em uma primeira viso de conjunto a totalidade das relaes pelas quais a unidade da conscincia se caracteriza e constitui como tal, inicialmente nos veremos remetidos a uma srie de determinadas relaes bsicas, que se opem umas s outras como modos de associao peculiares e autnomos. O momento da justaposio, tal como se apresenta na forma do espao, o momento da sucesso, tal como aparece na forma do tempo - a combinao das determinaes do ser, de tal maneira que uma seja interpretada como coisa, a outra como atributo, ou a associao de acontecimentos sucessivos, de sorte que um seja entendido como causa do outro: eis vrios exemplos destes tipos originais de relao. O sensualismo busca inutilmente deriv-los e explic-los a partir do contedo imediato das impresses particulares. Cinco sons tocados em uma flauta podem, certamente, de acordo com a conhecida teoria psicolgica de Hume, resultar na idia do tempo - mas este resultado somente se toma possvel se o momento da relao e da ordem, caracterstico da sucesso, tiver sido tacita- mente includo no contedo de cada som, pressupondo-se, por conseguinte, a presena do tempo em sua estrutura universal. Para a anlise psicolgica, bem como para a epistemolgica, portanto, as formas bsicas da relao provam ser qualidades da conscincia to simples e irredutveis quanto as qualidades simples dos sentidos, os elementos da viso, da audio ou do tato. Por outro lado, no entanto, o pensamento filosfico no se pode contentar em aceitar a multiplicidade destas relaes como tal, como um simples fato objetivamente existente. No que diz respeito s sensaes, talvez seja suficiente enumerar simplesmente as suas diversas classes bsicas e consider-las uma pluralidade desprovida de conexes internas; no entanto, quando se trata das relaes, aquilo que elas realizam, enquanto formas particula-

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    i cs dc associaes, somente parece concebvel e compreensvel quando podemos imagin-las, por sua vez, reunidas em uma sntese superior. Desde que Plato, em Os sofistas, formulou o problema da Kotvcova tjv yevov, da comunidade sistemtica das idias puras e dos conceitos formais, nunca mais esta questo deixou de ser discutida na histria do pensamento filosfico. Mas as solues crtica e metaf- .ico-especulativa deste problema divergem na medida em que ambas pressupem conceitos diferentes do universal c, portanto, um sentido diferente do prprio sistema lgico. A primeira remonta ao conceito da universalidade analtica, a segunda visa ao da universalidade sinttica. No primeiro caso, contentamo-nos em unir a multiplicidade das possveis formas de conexo em um conceito sistemtico supremo, subordinando-as, assim, a determinadas leis fundamen- lais; no ponto de vista metafsico, procuramos compreender romo a partir de um nico princpio primevo se desenvolve a totalidade, o conjunto concreto de formas particulares. Se esta ltima concepo admite apenas um ponto de partida e um ponto de chegada, conectados e intermediados ambos pela aplicao constante de um mesmo princpio metodolgico na demonstrao sinttico-dedutiva - a outra no apenas admite, como exige uma pluralidade de diferentes dimenses da anlise. Ela formula o problema de uma unidade que, desle o incio, renuncia simplicidade. Os diversos modos da conformao que o esprito imprime realidade so reconhecidos como tais, sem que se procure integr-los em uma nica srie simplesmente progressiva. E no entanto, justamente, tal perspectiva no renuncia, de modo algum, conexo entre as formas individuais; pelo contrrio, a idia do sistema enfatizada, na medida em que o conceito de um sistema simples substitudo pelo conceito de um sistema complexo. Cada forma , por assim dizer, referida a um plano particular, dentro do qual ela se realiza e desenvolve o seu car-

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    ter especfico com total independencia - mas precisamente no conjunto destas maneiras de atuao que se revelam certas analogias, determinados comportamentos tpicos que, como tais, podem ser destacados e descritos.

    Neste contexto, o primeiro aspecto que nos chama a ateno consiste em uma diferena, que podemos denominar de diferena da qualidade e da modalidade das formas. Por qualidade de urna determinada relao entendemos aqui o tipo especfico de conexo atravs do qual ela cria sries dentro da totalidade da conscincia, sujeita a uma lei especial de organizao dos seus elementos. Assim, por exemplo, a justaposio, oposta sucesso, a forma da associao simultnea, em oposio associao sucessiva, constituem uma qualidade autnoma desta natureza. Por outro lado, a mesma forma de relao pode sofrer uma transformao interior, no momento em que se encontrar em um contexto formal diferente. Cada relao individual - independentemente de sua particularidade - sempre pertence simultaneamente a uma totalidade de sentido que, por sua vez, possui a sua prpria natureza, a sua lei formal autnoma. Assim, por exemplo, aquela relao universal que chamamos de tempo tanto um elemento do conhecimento terico-cientfico, quanto representa um momento essencial para determinadas formaes da conscincia esttica. O tempo, explicado no incio da Mecnica de Newton como a base imutvel de todos os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaes, parece, em um primeiro momento, no ter mais que o nome em comum com o tempo que determina a obra musical e as suas medidas rtmicas. Ainda assim esta unidade na denominao encerra uma unidade da significao, na medida em que em ambas est estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos com a expresso sucesso. Mas em cada caso trata-se, sem dvida, de uma maneira especial, de um modo prprio de sucesso que reina

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    n;i conscincia das leis naturais, enquanto leis da forma temporal dos acontecimentos, e que se impe na percepo das disposies rtmicas de uma obra musical. De maneira anloga, podemos interpretar determinadas formas espaciais, determinados complexos de linhas e figuras, ora como ornamentos artsticos, ora como desenhos geomtricos, atribuindo, assim, a um mesmo material um sentido completamente diferente. A unidade de espao que construmos na contemplao e produo estticas, na pintura, na escultura, na arquitetura pertence a um nvel totalmente diferente daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomtricos. Aqui reina a modalidade do conceito lgico-geom- Irico, l a modalidade da fantasia espacial artstica: aqui o espao concebido como a essncia mesma de relaes interdependentes, como um sistema de causas e efeitos, l ele compreendido como um todo, na interpenetrao dinmica de seus momentos individuais, como uma unidade da intuio e da emoo. E com isso a srie de configuraes possveis na conscincia do espao no est esgotada ainda, porque tambm no pensamento mtico encontramos uma concepo muito especial do espao, uma maneira de organizar e de orientar o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais, que se distingue nitidamente e de forma caracterstica do modo como o pensamento emprico realiza a organizao espacial do cosmos7. Da mesma maneira, a forma geral da causalidade, por exemplo, aparece sob uma luz completamente diferente, conforme a consideremos no nvel do pensamento cientfico, ou do pensamento mtico.O mito tambm conhece o conceito da causalidade: ele o uti-

    7. Cf. a respeito o meu estudo D ie Begrffsform im mythischen Denken (A forma conceituai no pensamento mtico). Estudos da Biblioteca Warburg, I, Leipzig, 1922.

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    liza tanto em suas teogonias e cosmogonas gerais, como dele se serve na interpretao de uma srie de fenmenos particulares que, a partir deste conceito, explica miticamente. Mas a motivao ltima desta explicao completamente diferente daquela que rege o conhecimento da causalidade por intermdio de conceitos terico-cientficos. O problema da origem, como tal, comum cincia e ao mito; mas o tipo e o carter, a modalidade da origem mudam, assim que passamos de um domnio para o outro - to logo utilizamos e aprendemos a compreender a origem como um principio cientfico, em vez de entend-la como urna potencia mtica.

    Evidencia-se, assim, que, para se caracterizar uma determinada forma de relao em sua aplicao e significao concretas, necessria no apenas a indicao de sua natureza qualitativa, mas, tambm, a meno do sistema geral no qual se encontra. Se designam os esquemticamente as diversas espcies de relao - a relao do espao, do tempo, da causalidade etc. - como R b R 2, R3..., ser imprescindvel acrescentar a cada uma destas relaes um ndice de modalidade especial, (j, i2, que indicar em qual contexto funcional e significativo se dever inseri-la. Porque cada um destes contextos, a linguagem como o conhecimento cientfico, a arte como o mito, possui o seu prprio princpio constitutivo, que, por assim dizer, imprime o seu selo em todas as suas configuraes particulares. O resultado uma extraordinria multiplicidade de conexes formais, cuja riqueza, porm, e cuja complexidade interna somente se revelam atravs de uma anlise minuciosa de cada forma global vista individualmente. Mas mesmo independentemente destas especificaes, j o exame mais geral da totalidade da conscincia remete a determinadas condies fundamentais da unidade, s condies da conexo, da sntese e da representao espirituais em geral. Faz parte da natureza da conscincia 0 fato de que nela nenhum contedo pode ser

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    depositado, sem que, atravs deste simples ato, seja simul- inucamente depositado um complexo de outros contedos. Kant, em seu ensaio sobre o conceito de grandeza negativa, formulou o problema da causalidade indagando como se deve entender o fato de que por algo ser, algo mais, totalmente diferente, pode e deve ser simultaneamente. Se, de acordo com a metafsica dogmtica, tomarmos o conceito da existencia absoluta como ponto de partida, esta questo, em ltima anlise, deve afigurar-se insolvel. Porque um ser absoluto exige tambm elementos ltimos absolutos, cada um dos t| uais constitui em si mesmo uma substncia esttica, e deve ser compreendido por si mesmo. Mas este conceito da substncia no apresenta nenhuma passagem necessria, ou ao menos compreensvel para a multiplicidade do mundo, para a diversidade dos seus fenmenos particulares. Tambm em Spinoza a transio da substncia - concebida como aquilo que in se est et per se concipitur para a seqncia dos diversos modi, dependentes e mutveis, no algo deduzido, e sim conseguido por artimanhas. De um modo geral, a metafsica - como nos mostra a sua histria - se confronta cada vez mais nitidamente com um dilema do pensamento. Ela precisa ou tomar a srio o conceito fundamental da existncia absoluta - caso em que todas as relaes esto ameaadas de dissipar-se, toda a multiplicidade do espao, do tempo, da causalidade correm o risco de dissolver-se em meras aparncias - ou necessrio que ela permita que estas relaes se associem ao ser, reconhecendo-as como algo meramente exterior e fortuito, como um acidente. Mas ocorre ento um contragolpe caracterstico: porque agora se torna mais e mais evidente que este fortuito, precisamente, aquilo que o conhecimento pode alcanar e apreender em suas formas, enquanto a essncia pura, que deveria ser pensada como fundamento das determinaes particulares, se perde no vazio de uma mera abstrao. O que deveria ser

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    compreendido como o todo da realidade, como essncia de toda realidade, prova ser, afinal, algo que contm apenaso momento da simples determinabilidade, mas j no possui nenhuma determinao autnoma e positiva.

    Esta dialtica da doutrina metafsica do ser somente pode ser evitada quando, desde o comeo, contedo e forma, elemento e relao so concebidos no como determinaes independentes umas das outras, e sim como dados simultneos e reciprocamente determinados. Quanto mais a tendncia moderna, subjetiva, da especulao se destacou na histria do pens