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Escravidão, um passado para esquecer? O Brasil teve, na sua curta história de 501 anos, 350 anos de regime escravocrata e apenas 100 anos de trabalho livre. Não levamos em consideração os primeiros 50 anos, quando praticamente o único trabalho era carregar nossa riquezas naturais para fora. Em 1817, o Brasil tinha 3,6 milhões de habitantes e 1,9 milhão de escravos, ou seja, mais da metade da população. Em 1850, esse número pulou para 3,5 milhões. No total, nosso país trouxe da África 4 milhões de escravos, quase a metade importada por todo o continente americano. Com os números acima, pode-se afirmar que o Brasil foi fundado e teve o seu desenvolvimento e a sua economia baseados no trabalho escravo, o que não deixa ninguém orgulhoso, muito pelo contrário. Só no Rio de Janeiro, entre os anos de 1790 e 1830, chegaram 700 mil escravos trazidos por cerca de 1600 navios. Em Salvador, segundo maior importador de escravos, também nessa época, os trabalhadores forçados representavam mais de 40% da população. Neste dia 20 de novembro, o Movimento Negro reverencia o dia da morte de Zumbi dos Palmares, o líder do maior levante de escravos do país, o Quilombo dos Palmares, que tinha aproximadamente 20 mil negros (Leia no box ao lado). Esta data é considerada, pela consciência negra, mais importante que a de 13 de maio, dia em que a Princesa Isabel, há 113 anos, assinou a Lei Áurea que aboliu a escravatura. Alegam os líderes do

Escravidao, Um Passado Para Esq - Sil

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Escravidao, Um Passado Para Esq - Sil

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  • Escravido, um passado para esquecer?

    O Brasil teve, na sua curta histria de 501 anos, 350 anos de regime escravocrata e apenas 100 anos de trabalho livre. No levamos em considerao os primeiros 50 anos, quando praticamente o nico trabalho era carregar nossa riquezas naturais para fora. Em 1817, o Brasil tinha 3,6 milhes de habitantes e 1,9 milho de escravos, ou seja, mais da metade da populao. Em 1850, esse nmero pulou para 3,5 milhes. No total, nosso pas trouxe da frica 4 milhes de escravos, quase a metade importada por todo o continente americano. Com os nmeros acima, pode-se afirmar que o Brasil foi fundado e teve o seu desenvolvimento e a sua economia baseados no trabalho escravo, o que no deixa ningum orgulhoso, muito pelo contrrio. S no Rio de Janeiro, entre os anos de 1790 e 1830, chegaram 700 mil escravos trazidos por cerca de 1600 navios. Em Salvador, segundo maior importador de escravos, tambm nessa poca, os trabalhadores forados representavam mais de 40% da populao. Neste dia 20 de novembro, o Movimento Negro reverencia o dia da morte de Zumbi dos Palmares, o lder do maior levante de escravos do pas, o Quilombo dos Palmares, que tinha aproximadamente 20 mil negros (Leia no box ao lado). Esta data considerada, pela conscincia negra, mais importante que a de 13 de maio, dia em que a Princesa Isabel, h 113 anos, assinou a Lei urea que aboliu a escravatura. Alegam os lderes do

  • movimento que a data da abolio uma "data branca que reflete benevolncia". Segundo Roberto Pompeu de Toledo, em artigo na Revista Veja, "trocou-se um mito pelo outro, o da senhora bondosa, que gentilmente concede a liberdade aos sditos negros, pelo do negro rebelde e audaz, heri do inconformismo. Entre ambos, fica a realidade dura, cotidiana, suarenta, diversa, complexa - e, fora do crculo dos especialistas, ignorada". a mais pura verdade: no Brasil de hoje no se fala muito no regime escravocrata, parece que existe um acordo tcito para esquecer o assunto.

    Rugendas: Navio Negreiro

    Como tudo comeou

    Depois do Descobrimento, Portugal deixou o Brasil praticamente abandonado durante 30 anos, o territrio sendo disputado entre corsrios franceses, holandeses e ingleses. Com o declnio do comrcio com as ndias, o Rei D. Joo III resolveu iniciar a colonizao e mandou uma expedio comandada por Martin Afonso de Souza, que aportou na Bahia em 13 de maro de 1531. Comeou a a ser escrita a triste pgina da escravido no Brasil. Segundo Francisco Adolfo Varnhagem - Visconde de Porto Seguro, Martin Afonso desembarcou na Bahia alguns escravos encontrados na Caravela Santa Maria do Cabo, um navio que foi aprisionado e incorporado a sua frota. O mesmo expedicionrio teria levado alguns escravos quando fundou a Vila de So Vicente, onde introduziu a cultura da cana-de-acar e construiu o 1 engenho, em janeiro de 1532. Em setembro de 1532 foi adotado o sistema de Capitanias Hereditrias, que dezesseis anos depois mostrou-se ineficiente. Coube ento a Pernambuco o nada honrvel ttulo de primeiro

  • porto brasileiro de desembarque de escravos africanos comercializados. Isso porque Duarte Coelho, o primeiro donatrio de Pernambuco, importou os primeiros escravos quando da sua chegada. A verdade que em 1546 j existiam 76 escravos na colnia. Com o fim das Capitanias, o Rei resolveu, ento, criar o Governo Geral, baseado na Bahia. Em Portugal j existia, desde 1448, um comrcio regular de escravos. Os portugueses tentaram escravizar os ndios, mas no deu certo, sendo eles considerados indolentes, avessos ao trabalho e sem resistncia s doenas do homem branco, o que estranho, pois o mesmo se dizia do negro. O fato que o incio da produo de acar coincidiu com a chegada dos escravos africanos ao Brasil. Em 1590, eles j eram 36 mil escravos e depois passaram a ser usados, tambm, na lavoura do caf, sendo submetidos s mais duras condies de trabalho. Os portugueses, e depois os brasileiros, fizeram do negro africano uma valiosa mercadoria. Os traficantes de escravos da Bahia se abasteciam mais na frica Ocidental, na regio do Golfo de Benin, e os cariocas na frica do centro-sul, onde ficam o Congo e Angola, e depois na costa oriental, em Moambique. No pensem os leitores que para trazer escravos da frica, era necessrio entrar no mato para ca-los. As prprias tribos africanas vendiam aos traficantes outros negros de outras tribos, prisioneiros de guerra ou simplesmente capturados para serem negociados. Vendiam no, faziam escambo: trocavam por farinha, feijo, carne seca, cachaa, rolos de fumo, sal, arroz, tecidos, armas de fogo, facas, navalhas e at espelhos e bugigangas.

  • Castigos - Frederico Guilherme Biggs, circa

    1845-1853

    Desembarque de escravos

    Mais Escravos

    Quem mais trouxe escravos para o Brasil foi o Rio de Janeiro, seguido de perto pela Bahia. Em 1808, a Corte portuguesa se instalou no Rio, fazendo a sua populao crescer muito e consequentemente aumentar a necessidade de mo de obra. Isso significava mais escravos, pois segundo a antroploga Manuela Carneiro da Cunha, "Os escravos carregavam tudo nesse Brasil, onde homens de qualidades se recusavam a levar o mais nfimo pacote". O ouro das Minas Gerais tambm ajudou a transformar o porto do Rio de Janeiro no mais importante da colnia, pois no incio do sculo XIX o Rio era responsvel por cerca de 40% das importaes e exportaes do Brasil, contra 30% da Bahia. Com a economia baseada principalmente na agricultura, Minas Gerais, Rio e So Paulo estavam necessitando cada vez mais de escravos, primeiro nas plantaes de cana-de-acar e nos engenhos, e depois na lavoura do caf que iniciava seu impressionante crescimento. Os traficantes de escravos abasteciam, no s a regio Norte-Fluminense com seus engenhos, como o Vale do Paraba dos bares do caf, sendo responsveis tambm pela remessa de escravos para So Paulo, Minas e a regio Sul do Pas. No foi toa que o Rio de Janeiro comandou o mais importante fluxo de escravos do mundo, uma das maiores operaes de transferncia forada de pessoas na histria da humanidade.

    A penosa viagem

  • No trfico de escravos eram utilizados diversos tipos de navios, sendo os mais comuns o bergantim e a galera. Na mdia, cada embarcao trazia 440 escravos e a travessia do atlntico durava cerca de 43 dias se o ponto de partida fosse o centro-sul da frica, e at o dobro desse tempo se os escravos fossem embarcados em Moambique. "A histria dos navios negreiros a mais comovente epopia de dor e de desespero da raa negra: homens, mulheres e crianas eram amontoados nos cubculos monstruosamente escuros dos navios, onde iam se misturando com o bater das vagas e o ranger dos mastros na vastido dos mares. A fome e a sede, de mos dadas com as doenas, no lhes ceifavam sempre a vida, concedendo-lhes perdo e misericrdia que no encontravam aconchego nos coraes daqueles homens severos e maus de todas embarcaes que s se preocupavam com o negcio rendoso que a escravaria oferecia. A taxa de mortalidade de escravos nessas viagens variava de 6% a 9%, quando vinham do Congo e Angola, e o dobro quando partiam de Moambique. Nada que se possa comparar mortandade de escravos na prpria frica: Segundo o estudioso Joseph Miller, 40% dos escravos capturados em Angola morriam durante a marcha forada at o litoral e outros 10% a 20% morriam nos armazns onde ficavam esperando para serem embarcados. Ou seja, mais da metade dos negros escravizados morriam em seu prprio pas, nas mos dos seus pares. As causas das mortes eram doenas, maus tratos, alimentao insuficiente, superlotao de navios. O recorde negativo de morte de negros em viagem de navio da galera So Jos Indiano, que em 1811, no caminho entre Cabinda e o Rio de Janeiro, perdeu 121 dos 667 escravos que transportava. importante ressaltar que, alm de fornecer escravos para os traficantes, os prprios africanos tambm se utilizavam do trabalho forado. No Congo, por exemplo, depois de uma guerra, os vitoriosos usavam os inimigos como escravos. Em outros pases a guerra era feita justamente para capturar escravos, que eram trocados por mercadorias com os traficantes. O curioso que no Brasil, o ex-escravo tambm tinha escravo, justamente para mostrar sociedade a sua atual condio. A histria registra at casos de escravo que tinha escravo! Na verdade, dependendo da safra, o negro era uma mercadoria barata e qualquer pobre podia ter um, at mesmo para alugar, ou prostituir, se fosse mulher.

  • Debret, 1825

    Quilombo dos Palmares e Zumbi

    A formao dos quilombos se deu como uma forma coletiva e

    organizada de rebeldia por parte dos negros escravos, que no se

    conformavam com sua situao e desejavam a liberdade. Os primeiros

    apareceram na Bahia j no final do sculo XVI, perodo em que a

    implantao do trabalho escravo no Brasil ainda estava em seu incio.

    Com o grande aumento do trfico de escravos para o Brasil, cresceu

    tambm o nmero de fugas de negros. Eles procuravam se refugiar em

    locais de difcil acesso, serto adentro e l formavam mocambos, um

    conjunto de casas. O conjunto de mocambos era chamado quilombo.

    Cada quilombo tinha um chefe militar, denominado zumbi e os

    habitantes eram os quilombolas. Eles trabalhavam pela prpria

    subsistncia: cultivavam lavouras, caavam, faziam artesanato e at

    chegavam a praticar transaes comerciais para conseguirem

    ferramentas e tecidos.

    Sem dvidas, o maior e mais famoso quilombo foi Palmares, localizado

    na Serra da Barriga, em Alagoas. Surgiu no incio do sculo XVII e

    ganhou grandes propores j em 1630. Chegou a contar com mais de

    20 mil escravos fugidos. Os pequenos produtores brancos, que tambm

    se sentiam prejudicados pelos grandes senhores de engenho, passaram

    a apoiar os negros de Palmares e com eles estabeleceram slidas

    relaes comerciais, o que era duramente criticado pela Coroa. Em 1665

    nasceu no quilombo aquele que ficaria conhecido como o herico Zumbi.

    Mas ele foi levado de l por um padre. Aprendeu latim e portugus e foi

    coroinha, mas fugiu em 1670, retornando a Palmares. Aps passar por

    muitas provas de coragem tornou-se um mito, sendo escolhido para

    chefe das armas.

    A metrpole tentava reagir de todas as formas e, depois de fracassar

    em muitas tentativas de atacar Palmares, o governo de Pernambuco

    contratou os servios do bandeirante Domingos Jorge Velho, em 1694.

    Com homens, armas e mantimentos, Portugal comeou a represso

    assassina. Roupas contaminadas eram usadas para disseminar doenas

    nos quilombolas, enfraquecendo-os, para depois intensificar os ataques.

    Os comandados de zumbi dos Palmares resistiam bravamente e as

    perdas foram muito numerosas para ambos os lados. S que o Rei

    Zumbi estava sitiado e no tinha como repor suas armas. Foi ento que

    Domingos Jorge Velho conseguiu entrar no mocambo dos Macacos em

  • Palmares e destru-lo totalmente. Os sobreviventes, doentes e com

    fome, eram caados pelas matas e muitos foram presos. Zumbi atirou-

    se num penhasco com seus guerreiros como forma de resistncia.

    Preferia a morte a se entregar.

    Um grupo bem menor continuou resistindo, com um novo Rei Zumbi,

    sobrinho do anterior. Mas no final de 1695 ele foi trado por um

    companheiro, sendo capturado e morto no dia 20 de novembro. Sua

    cabea foi cortada e levada a Recife e exibida pblico para servir de

    exemplo aos escravos que tivessem pretenso de fugir.

    A mercadoria

    Depois de receber os escravos do comerciante local, o capito do navio atravessava o oceano e ao chegar no porto do Rio com a mercadoria (assim eram tratados), pagavam os direitos alfandegrios e os negros eram levados para os mercados de escravos da Rua do Valongo, onde eram expostos. s vezes eram oferecidos de porta em porta. A maioria, entretanto, ia direto para as fazendas do interior. Mas eram realmente tratados como mercadoria: o escravo podia ser vendido, trocado, emprestado, alugado, doado e dentro do Direito, podia ser penhorado, servir de embargo, seqestro, depsito, adjudicao, etc. O escravo s era considerado gente quando cometia um crime, quando ento lhe aplicavam o Cdigo Penal. Em funo disso, escreveu Jacob Gorender: "O primeiro ato humano de um escravo o crime." Era longo o caminho do escravo, desde os florestas africanas at o interior do Brasil. Entre a sua captura nas savanas africanas e o desembarque aqui no pas, considerando tambm o tempo em que ficavam esperando os navios nos armazns africanos, poderiam se passar at 160 dias. Os que chegavam vivos, eram ento submetidos ao vexame de serem expostos, como mercadoria, nos armazns de escravos, at aparecer o comprador. Comeava a outra longa viagem at a fazenda onde ia trabalhar, no interior do Rio, So Paulo ou Minas Gerais. Os escravos no Brasil, ao contrrio do que muita gente pensa, no eram unidos, no se consideravam iguais. Provinham de diferentes pases, de diferentes raas, de diferentes tribos, tinham costumes e lnguas diferentes. E ainda existia o criolo, nascido aqui, que se considerava diferente do negro africano. Existia rivalidade entre os escravos, o que era incentivado pelo homem branco, pois a ele no interessava um bom entendimento entre os negros, dentro daquela mxima "dividir para governar." Um

  • viajante ingls, Robert Walsh, escreveu que a massa negra tinha "oito ou nove castas diferentes e se empenhavam em lutas e batalhas". Por causa disso, levou algum tempo at que os negros realmente se rebelassem contra o branco opressor, que alm do trabalho forado, lhe impingia castigos terrveis

    Detalhe da obra Boutique de la rue du

    Val-Longo, de Debret, 1825

    Castigos Protegidos por uma brutal legislao negra que permitia castigos, penas e maus tratos ao escravo, os fazendeiros e donos de engenho abusavam do direito de maltratar o negro, sendo eles chicoteados, presos a correntes de ferro a um cepo, obrigados a usar um colar de ferro (caso dos que tentavam fugir), etc. Na sua primeira fuga, o negro era castigado com cinqenta chicotadas, e na segunda, com cem. Vrios eram os instrumentos de punio: cangas, correntes, botas de ferro, colares e anjinhos, segundo Debret "um instrumento que servia para esmagar os polegares e de que se serviam os capites-do-mato para fazer o negro confessar o nome e o endereo do seu senhor." Continua o viajante francs: "O colar de ferro, que tem vrios braos em forma de ganchos, o castigo aplicado ao negro que tem o vcio de fugir. A polcia tem ordem de prender qualquer escravo que o use, e encontrado noite, deix-lo na cadeia at o dia seguinte. Avisado ento, o dono vai procurar o seu negro ou o envia priso dos negros do Castelo." No julgamento dos negros que fugiram com Manuel Congo (condenado morte), sete escravos foram condenados a 650 aoites cada um - 50 por dia - conforme mandava a lei e obrigados a andar trs anos com o colar de ferro no pescoo. Privao da liberdade, trabalho forado e duros castigos so apenas alguns dos motivos que levavam os escravos a se rebelarem. Os primeiros levantes de escravos ocorreram na Bahia, em Salvador e no Recncavo Baiano. A revolta dos Mals,

  • em 1835, que ensangentou as ruas da capital baiana, envolveu 1500 negros. Em 1789, houve uma fuga de escravos criolos na Fazenda Santana, em Ilhus, na Bahia. Eles deixaram escritas suas reivindicaes e ficaram dois anos escondidos no mato. Entre outras coisas, disseram: "Meu senhor, no queremos guerra, queremos paz.. Queremos permisso para trabalhar nas nossas roas nas sextas e no Sbado e no Domingo at brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impea e nem seja preciso licena." Em novembro de 1838, liderados por Manuel Congo, 80 escravos fugiram da fazenda Freguesia, em Vassouras - RJ, pertencente a Manuel Francisco Xavier. Era a primeira fuga na regio envolvendo grande nmero de escravos. Mas, para ao fazendeiros, o pior estava por vir: na noite seguinte os fugitivos invadiram outra fazenda do mesmo senhor, a Maravilha, e levaram outros escravos, ferramentas e mantimentos. Depois seguiram para a fazenda de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar e fizeram a mesma coisa. O nmero de escravos rebelados chegava agora a cerca de 400. Eles foram perseguidos e liquidados por uma milcia comandada pelo coronel chefe da Guarda Nacional na regio, Francisco Peixoto de Lacerda Verneck, que tambm teve fazendas e escravos. Dos sobreviventes, 16 foram a julgamento. Os primeiros quilombos, que a princpio foram reduzidos, de poucos negros, muitos dos quais famintos, e doentes, que fugiam dos engenhos, das fazendas e dos eitos, s foram possveis graa a associao que o negro efetuou com o ndio na causa da resistncia a escravido, e no sculo XVIII foi o de grandes protestos da raa africana, quando se formaram os maiores e mais tremendos quilombos que tantas apreenses causaram aos colonos e ao governo. O Maior quilombo foi o de Palmares, em Alagoas. O quilombo era, sem dvida, a ltima fase de protesto - pois o negro na sua aflio de liberdade, no sentia dificuldades nem hesitava em privar-se da vida para se livrar de seus sofrimentos e por isto s restava ao escravo a fuga para as montanhas. Em 1807, a Inglaterra aboliu seu trfico de escravos e passou a reprimir o trfico dos outros pases, inclusive Portugal (leia Para Ingls ver no box ao lado). Para reconhecer a Independncia do Brasil, a Coroa inglesa exigiu o fim do comrcio de escravos e o

  • Brasil assinou um acordo, em 1827, comprometendo-se a acabar com o navio negreiro. Mas esse acordo no seria cumprido, o que no de se entranhar neste pas, e o trfico continuou at 1850. Neste ano encerrou-se o trfico ocenico, mas continuou internamente, o Sudeste comprando escravos do Nordeste do pas. O movimento abolicionista foi crescendo, e depois de vrias leis paliativas, finalmente foi promulgada a Lei urea, em 13 de maio de 1888, que acabou com a escravido no Brasil. Acabou? O que talvez leve o Movimento Negro a desdenhar a data de 13 de maio, que encerrou oficialmente uma pgina triste da nossa histria, foi a forma como ela foi feita. De uma "penada" acabaram com a escravido tipo assim: vocs esto livres, agora se virem. Com o fim do regime, no houve um assentamento de colonos negros em terras, no lhes deram as mnimas condies para desenvolverem um trabalho. Os escravos ficaram meio perdidos, sem saber direito o que fazer com a to sonhada liberdade, tanto que muitos deles continuaram trabalhando no mesmo local, em um regime de semi-escravido. Outros se aglomeraram em cortios, cabeas-de-porco, nas periferias e morros das cidades. O resultado disso est a, para todo mundo ver... e sentir.

    Rugendas: Habitaes de escravos

    Os excludos

    No vamos nos aprofundar no assunto racismo, que no cabe aqui, mas a verdade que nem todos os problemas entre as classes sociais do Brasil esto ligados escravido. Segundo o historiador Flvio dos Santos Gomes, " problemtico pensar em continuidades. Se h no Brasil um sistema racial opressivo, no necessariamente porque aqui houve escravido. A explicao do racismo tambm se encontra no que ocorreu depois da abolio.

  • comum ouvir falar hoje em relaes escravistas ou semi-escravistas no campo. Quando se diz isso, pensa-se que num modelo que no generalizante. Houve vrios tipos de relao com escravos no Brasil. Houve, por exemplo, escravos a quem era permitido manter pequenas roas, fazer um pequeno comrcio ou receber por dia. Ora, relao que hoje so tachadas de escravistas podem na verdade ser piores que certos modelos que vigoraram na escravido". Continua Manolo Garcia Florentino: "A escravido foi a base a partir da qual se fundou uma civilizao... E ao faz-lo, viabilizou um projeto excludente, em que o objetivo das elites manter a diferena com relao ao restante da populao". E para complementar, diz Luiz Felipe Alencastro: "A escravido legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que est na raiz da estratgia das classes sociais mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo s para elas, onde a segurana est privatizada, a escola est privatizada e a sade tambm". Segundo ainda o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, "Falar do legado da escravido, hoje, no Brasil, falar da pobreza. Da misria. Ou, para usar uma palavra mais atual - e apropriada -, da excluso." E cita Manolo Garcia Florentino, que afirma: "O trfico foi o maior negcio de importao brasileiro at 1850. Comprar pessoas para estabelecer diferenas foi o empreendimento deste pas." O Brasil no o nico pas do mundo a esquecer, ou tentar esquecer, certos acontecimentos do passado. O incrvel que, no nosso caso, estamos falando de um passado recente, de pouco mais de 100 anos. O dia da Abolio e o dia de Zumbi dos Palmares so datas que devem ser comemoradas. Entretanto, o mais importante a permanente conscincia do que somos, pois sem a exata noo dos acontecimentos que nos informam a respeito da nossa existncia, sem saber de onde viemos e o que fomos, no saberemos para onde ir.

    Para ingls ver

    Em 1807, Portugal j tinha perdido a supremacia dos mares, tanto que a

    famlia real, em fuga para o Brasil, veio escoltada por navios de guerra

    ingleses. Os portugueses fugiram por causa da invaso do pas pelas

    tropas napolenicas, justamente por no aderir ao bloqueio continental

    contra o Reino Unido decretado pelo imperador francs. Nesse mesmo

    ano, a Inglaterra aboliu o seu trfico de escravos e passou a pressionar

    os demais pases, inclusive Portugal, a fazer a mesma coisa.

  • Os ingleses no s condenaram os navios negreiros, como passaram a

    exercer permanente vigilncia nos mares, seus vasos de guerra parando

    as embarcaes procedentes da costa africana. Quando encontravam

    um navio carregando escravos, soltavam os presos e afundavam a

    embarcao.

    Os traficantes portugueses, que no pretendiam parar com esse

    lucrativo comrcio, bolaram uma forma de enganar os ingleses.

    Mandaram construir um fundo falso nos navios e embaixo deste

    colocavam os negros africanos. Entre esse fundo falso e o convs -

    primeira coberta do navio - carregavam mercadorias. Quando eram

    abordados no mar pelos britnicos, mostravam-lhes a carga que

    transportavam sem provocar desconfiana. A verdadeira e lucrativa

    mercadoria, estava embaixo do fundo falso. A mercadoria de cima, era

    para ingls ver... Foi assim que surgiu esse provrbio.

    Gamboa Rua do Valongo e Rua da Harmonia na histria da escravatura

    A Gamboa e Sade constituem hoje bairros que abrigam uma populao de baixa renda. Situados adjacentes ao centro da cidade, por trs da Central do Brasil e entre esta, o cais do porto e o Morro do Valongo (Conceio). A ocupao destas reas data do sculo XVI, quando o local ainda era atingido pela praia. Alm de ter o cemitrio mais antigo da cidade, o dos Ingleses (1815), na Gamboa ficava tambm o cemitrio dos escravos, inicialmente improvisado e depois definitivamente implantado, com capela dedicada a So Jorge e So Joo. Tambm no bairro ficava o cais para desembarque dos mortos vindos dos navios negreiros. Ali foi erguida, entre 1702 e 1719, a quarta parquia da cidade, a Igreja de Santa Rita. sua frente, em 1765, por serem deficientes os terrenos destinados ao sepultamento de escravos, mandaram abrir covas na rua e nela lanaram os cadveres. Nos "autos de homens de negcios e mercadores de escravos", de 1758 a 1768, l-se, ao lado de uma certido do vigrio de Santa Rita, comentrio a respeito, lanado por "um advogado adverso dos possuidores de escravos". E comenta Noronha Santos: "Forte impiedade: enterrar na rua, por onde andam os povos e os animais a despedaar os cadveres. Que desconhecimento de Humanidade!"

    Rua do Valongo (Atual Rua Camerino)

    A Rua Camerino comeou a ser aberta em 1741. Inicialmente denominada Rua do Valongo, tirou o seu nome da zona em que se originava, isto , o Valongo, que compreendia trecho entre Sade

  • e a Gamboa. A partir de 1779, por ordem do Vice-Rei Marques do Lavradio, nela se localizou o mercado de compra e venda de negros - depsitos e armazns de escravos - tendo em vista evitar que os escravos desembarcados transitassem pelas ruas nus, doentes, com aspectos de bichos, de "tal maneira que as pessoas honestas no se atreviam a chegar s janelas e os inocentes, vendo-os, aprendiam o que ignoravam" (depoimento do Marqus do Lavradio). A partir de 1843, por ocasio da chegada da Imperatriz D. Tereza Cristina, esposa de D. Pedro II, e por ter ela percorrido a Rua do Valongo, passou a denominar-se Rua da Imperatriz, at 1890, quando recebeu o nome atual em homenagem ao sergipano Francisco Camerino de Azevedo, heri da guerra do Paraguai.

    Augustus Earle, detalhe da obra Slave market at Rio de

    Janeiro

    Caminho do Cemitrio - Rua da Harmonia (atual Pedro Ernesto)

    A Rua Pedro Ernesto era conhecida em 1750 como caminho da Gamboa, fazendo a ligao com a praia do mesmo nome. Mais tarde, chamou-se Rua do Cemitrio, pois ali eram enterrados em valas comuns muitos dos escravos chegados doentes da Costa da frica. O cemitrio de Santa Rita, que era destinado aos negros recm chegados da frica que morressem nos depsitos onde ficavam aguardando os compradores. Funcionou regularmente, at que o mercado de escravos fosse transferido da Rua Direita (atual Primeiro de Maio) para o Valongo. Depois o cemitrio dos "pretos novos" foi transferido para as proximidades do mercado, facilitando assim o transporte dos corpos dos que l morriam.

  • Em 1814-1815, um viajante que esteve no Brasil, G.W. Freireyss, citado por Mary Karasch -, esteve no cemitrio do Valongo e o descreveu como tendo, na entrada um homem em vestimentas de padre, que lia oraes para as almas dos mortos, enquanto alguns negros prximos a ele tapavam "seus compatriotas" com um pouco de terra. No meio do cemitrio estava uma montanha de terra e de corpos despidos em decomposio, parcialmente descobertos pela chuva. Segundo o viajante, o "mau cheiro" era insuportvel, o que fez supor que os mortos eram enterrados somente uma vez na semana, e que de tempos em tempos a "montanha" de cadveres era queimada. Os negros vivos, segundo ele, ficavam localizados to perto do cemitrio de seus companheiros que eles tambm deveriam ter visto os corpos. Em 1853 a rua recebeu o nome de Harmonia (!?). Em 1863 ali foi criado o Teatro de Amadores, que depois virou a escola Jos Bonifcio e hoje o Centro Cultural Jos Bonifcio dedicado a Cultura afro-brasileira. Em 1946, receberia sua denominao atual em homenagem a Pedro Ernesto.

    Litiere C. Oliveira, Monique Cardoso e Mercedes Guimares.

    Fontes: Viagem pitoresca e histrica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret; Das cores do

    Silncio, de Hebe Maria M. de Castro; Em Costas Negras, de Manolo Garcia Florentino;

    Negros, Estrangeiros, de Manuela Carneiro da Cunha; Negociao e Conflito, de Joo

    Jos Reis e Eduardo Silva; Histria de Quilombolas, de Flvio dos Santos Gomes; site

    Trafico de escravos, revista Veja e Histria do Brasil de Luiz Kochiba.