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Pensa-se acerca da Nação Portuguesas a partir da literatura lusitana.

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    Escrever a nao:

    literatura e nacionalidade

    (uma antologia)

    Carlos Manuel Ferreira da Cunha

    (ed.)

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    __________________________

    Escrever a nao:

    literatura e nacionalidade

    (uma antologia)

    __________________________

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    Escrever a nao: literatura e nacionalidade (uma antologia)

    Carlos Manuel Ferreira da Cunha (ed.)

    ISBN: 978-1-4477-3158-0

    Carlos Cunha e Opera Omnia

    1 edio: Junho de 2011

    Opera Omnia

    Rua Nova de Fonte Cova,

    12 4805-295 Ponte - Guimares

    www.operaomnia.pt

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    Esta antologia contm alguns textos importantes sobre a questo da emergncia

    histrica das nacionalidades, todos sublinhando a forte dimenso histrico-cultural

    (Renan, Benedict Anderson, Eric Hobsbawm) que conduziu desde o sculo XVIII

    repartio da Europa em Estados-nao, sem negar a importncia dos factores scio-

    polticos e econmicos.

    De seguida, apresentamos dois textos fundamentais para a compreenso do papel

    da literatura e dos escritores na criao das identidades nacionais (Anne-Marie

    Thiesse) e das naes europeias (Itamar Even-Zohar).

    Numa segunda parte, seleccionamos alguns textos sobre a construo das

    literaturas nacionais em articulao com os Estados-nao, sobretudo no que respeita a

    Portugal (Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Tefilo Braga, Fidelino de

    Figueiredo, Jacinto do Prado Coelho, Antnio Jos Saraiva), Galiza (Manuel

    Castelo) e Amrica Latina (Leyla Perrone-Moiss).

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    ndice

    1- Introduo 13

    2- O que uma nao ?

    Ernest Renan 29

    3- Comunidades imaginadas

    Benedict Anderson 45

    4- Tradies inventadas

    Eric Hobsbawm 53

    5- A Europa das Naes

    Anne-Marie Thiesse 69

    6- O papel da literatura na criao das naes da Europa

    Itamar Even-Zohar 77

    7- Introduo ao Romanceiro

    Almeida Garrett 101

    8- Poesia: Imitao, Belo, Unidade

    Alexandre Herculano 117

    9- Histria da Literatura Portuguesa

    Tefilo Braga 125

    10- Para uma sociologia da literatura portuguesa

    Antnio Jos Saraiva 141

    11- Epopeia e Nacionalidade

    Fidelino de Figueiredo 155

    12- Orientaes da Histria Literria em Portugal

    Jacinto do Prado Coelho 159

    13- Literatura e autoconstruo da identidade da Galiza

    Manuel Castelo 165

    14- Paradoxos do nacionalismo literrio na Amrica Latina

    Leyla Perrone-Moiss 183

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    Breve nota sobre os autores

    Almeida Garrett (1799-1854), bacharel em Direito, deputado, ministro e escritor, foi um

    combatente da causa liberal e o introdutor do romantismo em Portugal. Fundou o teatro

    portugus, na qualidade de dramaturgo (destaca-se a obra-prima Frei Lus de Sousa,

    1844) e atravs da criao do Teatro Nacional D. Maria II e do Conservatrio de Arte

    Dramtica. Ao mesmo tempo, inicia o romance portugus moderno, atravs da

    coloquializao da linguagem literria. O Romanceiro uma recolha da poesia popular,

    que segundo Garrett era a verdadeira literatura portuguesa (ideia a que Tefilo deu

    continuidade).

    Alexandre Herculano (1810-1877), poeta, jornalista (dirigiu O Panorama), bibliotecrio

    real, deputado, polemista, historiador e romancista, destacou-se por ter escrito a

    primeira Histria de Portugal (1846, 1847, 1849 e 1853), em que nega o milagre de

    Ourique (o que lhe valeu uma longa polmica com o clero) e por ter introduzido o

    romance histrico em Portugal (O Bobo, 1843; Eurico, o Presbtero, 1844; O Monge de

    Cister, 1848). Lutador pela causa liberal, foi, a par de Garrett, o escritor mais

    importante do romantismo em Portugal, de que foi o principal teorizador.

    Tefilo Braga (1843-1924), doutorado em Direito, poltico republicano (presidente do

    Governo Provisrio e Presidente da Repblica) e escritor. Foi professor de literatura no

    Curso Superior de Letras desde 1872 (integrado na Faculdade de Letras da Universidade

    de Lisboa aps a revoluo republicana) e tornou-se um destacado estudioso de

    Cames, que celebrou como o maior representante do esprito nacional, em particular

    durante as comemoraes do Tricentenrio da morte de Cames, em 1880, de que foi o

    principal promotor. Destacou-se como introdutor do positivismo em Portugal e como

    historiador da literatura portuguesa.

    Fidelino de Figueiredo (1889-1967), deputado, director da Biblioteca Nacional, foi

    professor de Literatura em vrias universidades europeias e americanas, em particular

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    na Universidade de S. Paulo (1938-1951). Destacou-se como historiador da literatura

    portuguesa, crtico literrio e ensasta, com uma actividade pioneira nas reas da Teoria

    da Literatura e da Literatura Comparada.

    Antnio Jos Saraiva (1917-1993), doutorado em filologia romnica, destacou-se como

    historiador da literatura portuguesa (com scar Lopes) e ensasta (destaca-se a Histria

    da Cultura em Portugal), tendo publicado uma vasta obra. Lutador contra o regime do

    Estado Novo, viveu no exlio desde 1960 at ao 25 de Abril de 1974, tendo sido

    bolseiro do Collge de France, investigador do Centre National de Recherche

    Scientifique e professor catedrtico na Universidade de Amsterdo. Regressado a

    Portugal, foi docente na Universidade Nova de Lisboa e depois na Universidade

    Clssica de Lisboa.

    Ernest Renan (1823-1892) foi um escritor e historiador francs de renome, destacando-

    se na sua obra os estudos orientais. Celebrizou-se pela Vida de Jesus (1863), traduzida

    em inmeras lnguas, em que negava qualquer carcter divino a Jesus, o que lhe valeu a

    expulso do Collge de France por Napoleo III (um ano aps a sua nomeao, como

    professor de Hebraico; em 1870 readmitido e em 1879 torna-se o seu director).

    Escreveu, entre outras obras, a Histria Geral das Lnguas Semticas (1855) e a

    Histria das origens do Cristianismo (1863-1881). O seu ensaio Qu'est-ce qu'une

    nation? (O que uma nao?, 1882), tornou-se uma referncia obrigatria nos

    estudos sobre o nacionalismo.

    Benedict Anderson professor emrito de Estudos Internacionais na Cornell University

    (Califrnia). Celebrizou-se com a obra Imagined Communities, publicada em 1991, em

    que descreve, de acordo com a sua perspectiva marxista, os principais elementos que

    contriburam para a emergncia do nacionalismo no mundo a partir do sculo XVIII.

    Eric Hobsbawm (1917), historiador de inspirao marxista, professor emrito de

    Histria do Birkbeck College (Universidade de Londres) e da New School for Social

    Research, de Nova Iorque (no departamento de Cincia Poltica). membro da British

    Academy e membro estrangeiro honorrio da American Academy of Arts and Sciences.

  • 11

    De entre as suas obras mais famosas, destacam-se A Idade da Revoluo: Europa 1789-

    1848 (1962), A Idade do Capital: 1848-1875 (1975), A Idade do Imprio: 1875-1914

    (1987), A Idade dos Extremos (1994). O ensaio sobre a Tradies inventadas j um

    clssico dos estudos sobre o nacionalismo.

    Anne-Marie Thiesse historiadora e directora de investigao no Centre National de

    Recherche Scientifique (Centre de sociologie europenne), em Paris. Tem leccionado e

    proferido conferncias um pouco por todo o mundo (New York University, Tubingen,

    Moscovo, etc.). De entre as suas obras, destaca-se A Criao das Identidades Nacionais

    (1999).

    Itamar Even-Zohar professor emrito na Universidade de Tel Aviv (Unit of Culture

    Research), onde foi Professor de Semitica e Teoria da Literatura. Fundador da teoria

    dos polissistemas, que divulgou num nmero completo da revista Poetics Today (11:1,

    1990), publicou vrios estudos e obras, traduzidos em vrias lnguas (cf. www.even-

    zohar.com). Leccionou e proferiu conferncias um pouco por todo o mundo, em

    universidades europeias e americanas.

    Manuel Castelo Mexuto professor de Lngua Galega na Corunha e doutorado em

    filologia galega pela Universidade da Corunha. Com o pseudnimo Raul Veiga, um

    cineasta reconhecido no panorama audiovisual galego (Fenda Filmes). Em 2010 venceu

    o prmio Carvalho Calero de ensaio, com um trabalho apresentado por 'Raul Veiga',

    Elucidacins na sombra.

    Leyla Perrone-Moiss professora emrita da FFLCH-Universidade de So Paulo e j

    leccionou na Sorbonne e na Maison des Sciences de L Homme de Paris. Publicou,

    entre outros, Intil poesia (2000), Atlas literaturas (1998), Vinte luas (1992) e Flores da

    escrivaninha (1990).

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    Introduo

    Os escritores portugueses, tal como sucedeu noutros Estados-nao, assumiram

    desde o romantismo a misso patritica de fundarem uma literatura e uma cultura

    centradas na nao. Desde ento, e at h cerca de duas dcadas, a prpria histria

    portuguesa acabou por se transformar no tema central da literatura portuguesa, o que

    particularmente visvel num vasto conjunto de movimentos e grupos literrios que

    procuraram retratar Portugal e propuseram solues para regenerar o pas da decadncia

    com que foi diagnosticado (em particular desde Herculano). Basta recordar o

    Romantismo, a Gerao de 70, o Neogarrettismo, o Saudosismo, a Renascena

    Portuguesa, o Integralismo Lusitano, etc.

    Na maior parte das vezes, reagiram de modo incisivo a conjunturas polticas

    extremamente melindrosas e em articulao com os movimentos gerais (muitas vezes,

    liderando-os) de reaco s crises poltico-econmicas e s ameaas de potncias

    estrangeiras, como nos anos 90, em que se conjugam o Ultimatum, a revoluo

    republicana de 1891 e a crise do estado liberal e das finanas pblicas, o que explica em

    grande medida as tendncias nacionalistas culturais e literrias, que se prolongaro nas

    primeiras dcadas do sculo XX. De igual modo, a Primeira Guerra Mundial e as crises

    da Primeira Repblica, entre outros factores, explicam o acentuar deste nacionalismo.

    No surpreende assim que o critrio nacional se tenha tornado dominante na

    estruturao da histria literria, quer a nvel da periodologia, quer em termos do

    prprio cnone literrio, que passou a ser constitudo pelos autores que melhor tinham

    representado a nao ao longo da sua histria. Os prprios estudos literrios modernos,

    dominados pelo discurso da histria literria, institucionalizaram-se no ensino superior e

    no ensino secundrio sob o signo do conceito romntico de literatura nacional,

    articulando-se na sua gnese e evoluo com o conceito de identidade nacional, nos seus

    compromissos ideolgicos com os Estados-nao modernos. A histria literria

    contribuiu assim para a modelizao da "conscincia da identidade nacional" (cf.

    Moisan, 1990: 66) nos planos ideolgico, tico, cvico e moral. Deste modo, o sistema

  • 14

    de ensino actuou em sintonia com o processo de nacionalizao da literatura e acentuou-

    o. Neste sentido, podemos constatar que a histria literria se apresenta como uma

    narrativa que proporciona uma espcie de auto-retrato da nao (cf. Neubauer, 2007).

    Com efeito, foi a vinculao da histria literria problemtica da identidade nacional

    que definiu o objectivo desta disciplina ao longo do sculo XIX. Na transio do sculo

    XIX para o sculo XX, Gustave Lanson defendia a renovao cientfica das

    humanidades e a aplicao do rigor cientfico histria literria, mas enfatizava ainda a

    sua dimenso cvica, moral e nacional (cf. 1965: 56).

    Quando, mais tarde, se comea a rejeitar o critrio nacional em nome da

    dimenso esttica e da autonomizao do sistema literrio, assistiu-se a um gradual

    processo de "desnacionalizao" do fenmeno literrio, sobretudo nas literaturas com

    maior capital simblico e cultural1. Alis, esta desvinculao est presente nas relaes

    entre a poltica e as vanguardas artsticas. O aparecimento da arte pela arte na Europa

    tem a ver, entre outras razes, com a recusa das funes utilitrias da literatura no

    quadro de uma cultura nacional ou de um Estado-nao, no obstante essa funo ter

    sido dominante nas pocas de luta pela independncia ou pela autonomia nacionais (cf.

    Matvejevic, 1991: 32-3).

    No sculo XX, como observa Tzvetan Todorov, no final da Primeira Guerra

    Mundial, vrios regimes totalitrios (a Rssia, a Itlia e depois a Alemanha) colocaram

    a arte ao servio da sua ideologia, ao mesmo tempo que os principais movimentos

    terico-literrios (nestes e noutros pases) sublinhavam a autonomia esttica da

    literatura (os formalistas russos, a estilstica e as anlises morfolgicas na Alemanha,

    os adeptos de Mallarm em Frana, o new criticism nos Estados Unidos da Amrica).

    Tudo se passou, sublinha, como se a recusa de ver a arte e a literatura submetidas

    ideologia acarretasse necessariamente a ruptura definitiva entre literatura e pensamento;

    1 Neste mbito, a autonomizao do campo literrio relativamente ao campo do poder implica a sua

    "despolitizao" e a constituio das "regras da arte" (Bourdieu, 1992, cf. p. 124), da "esttica pura" e

    mesmo da "arte pela arte". Como observa Pascale Casanova, a literatura inventa-se como um progressivo

    aumentar de capital literrio, numa autonomizao face servido poltica e nacional, com a "inveno de

    uma lngua literria" (1999: 116-118), na medida em que a lngua, enquanto sistema modelizante

    primrio, tambm um instrumento poltico (id.: 466-7).

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    como se a rejeio das teorias marxistas do reflexo exigissem o desaparecimento de

    toda a relao entre a obra e o mundo. Ao utopismo de uns correspondeu o formalismo

    dos outros (Todorov, 2007: 66-7; traduo nossa)2.

    No caso portugus, este duplo afastamento d-se com a valorizao da dimenso

    esttica por parte dos diversos movimentos literrios (modernismo, futurismo, segundo

    modernismo, etc.) - com excepo do neo-realismo -, ao mesmo tempo que o Estado

    Novo, atravs do sistema escolar, num claro processo revisionista, despolitizava os

    escritores incmodos para o regime (em particular a Gerao de 70), valorizando o seu

    lado esttico (o que evidente, v.g. com Ea de Queirs, Guerra Junqueiro e Gomes

    Leal), sem deixar de aproveitar ideologicamente os escritores e os textos literrios que

    melhor se adequavam sua orientao pico-colonial. Os programas, instrues e

    manuais do ensino secundrio at 1974 (j desde 1895) revelam-nos um crescente

    nacionalismo e patriotismo na formao escolar, pois apostava-se na educao como

    factor de regenerao nacional. Nesta orientao, A literatura nacional, com o seu

    cnone literrio dos grandes autores, foi um forte instrumento de socializao e

    formao dos jovens cidados segundo a imagem oficial da nao.

    Por sua vez, a histria da literatura, de acordo com esta valorizao da dimenso

    esttica, procurou seguir princpios exclusivamente literrios (a partir da terceira dcada

    do sculo XX). Fidelino de Figueiredo foi o iniciador de uma moderna histria da

    literatura portuguesa, centrada numa perspectiva esttico-literria3, numa viragem que

    se articula com as tendncias anti-histricas do primeiro quartel do sculo XX,

    presentes na estilstica romntica e no new criticism anglo-americano, entre outros. Esta

    2 Num registo crtico, j Terry Eagleton tinha denunciado que o imanentismo das correntes tericas do

    sculo XX favoreceram, a contrario, a ideologia dominante: a histria da moderna teoria literria a

    narrativa do afastamento dessas realidades [as situaes existenciais do homem, a vida em toda a sua rica

    variedade], e da aproximao de uma gama aparentemente interminvel de alternativas: o poema em si, a

    sociedade orgnica, as verdades eternas, a imaginao, a estrutura da mente humana, o mito, a linguagem

    e assim por diante. () No acto mesmo de fugir das ideologias modernas, porm, a teoria literria revela

    a sua cumplicidade, muitas vezes inconsciente, com elas, revelando o seu elitismo, sexismo ou

    individualismo, com a linguagem bastante esttica ou apoltica que lhe parece natural usar para o texto

    literrio. (s/d: 211).

    3 Figueiredo, Fidelino de, Histria Literria de Portugal (Seculos XII a XX), Coimbra, Nobel, 1944, p. 8.

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    linha de ruptura acentuar-se-ia em meados do sculo, com Jacinto do Prado Coelho,

    pela mediao da estilstica4.

    Jacinto do Prado Coelho problematiza de modo particular o carcter hbrido da

    histria literria (cf. o seu texto nesta antologia) a sua duplicidade de critrios,

    especialmente embaraosa no estabelecimento da periodologia, que se apoiava numa

    cronologia poltico-cultural (segundo critrios nacionalistas ou com base em

    comparaes com as literaturas neolatinas) e no era capaz de dar conta da

    especificidade temporal da literatura.

    A partir dos anos 50 e 60 do sculo XX, comeou a impor-se no campo dos

    estudos literrios a Teoria da Literatura (introduzida nas Faculdades de Letras

    portuguesas com a Reforma Leite Pinto, de 1957), que concedia a primazia dimenso

    esttica das obras literrias e sua leitura imanente5. Nesta transio de paradigma,

    assiste-se ao fechamento acadmico e institucional da histria literria tradicional, ao

    passo que a teoria da literatura e a crtica literria se abriam s novas correntes literrias

    (modernismo, vanguardas, etc.), anlise textual e aos valores estticos (emerge ento a

    noo de literariedade), passando a valorizar-se o leitor e a recepo das obras

    literrias. Mais tarde, quando a histria literria se comeou a abrir s novas tendncias

    terico-crticas, no foi capaz de se libertar do seu modelo discursivo, voltado para a

    narrativa de dados externos aos textos literrios. Permaneceu, assim, uma formao

    discursiva hbrida, encaixando no seu esquema tradicional/nacional (perodos, autores e

    gneros) algumas (tmidas) anlises textuais de natureza estilstica. Mas, se a histria

    literria foi condenada por no apreender a dimenso literria e textual da literatura,

    no menos verdade que a desejvel histria da literatura enquanto literatura ainda no

    4 Em 1952, num ensaio sobre a Problemtica da histria literria, pe em questo a oposio binria

    entre "literatura como arte" e "literatura como documento", entre crtica (estilstica) e histria (da cultura),

    que se prope superar, defendendo que se devia historiar o lado esttico (Problemtica da Histria

    Literria, 1961).

    5 Esta orientao do paradigma formalista-estruturalista da Teoria da Literatura revelou-se pouco

    compatvel com a histria literria tradicional, desafiando-a abertamente. A polmica de Roland Barthes e

    da da nouvelle critique em torno da morte do autor foi uma das faces mais visveis deste combate

    contra a histria literria positivista de Gustave Lanson, que reinava na Sorbonne atravs de Raymond

    Picard (cf. Compagnon, 1998: 152).

  • 17

    foi escrita. De facto, nunca se chegou a articular com rigor a perspectiva histrica com a

    orientao esttico-literria.

    Com o tempo, porm, esqueceu-se o carcter fundacional do critrio nacional

    em relao s literaturas modernas, a forte interdependncia existente entre literatura e

    nacionalidade no sculo XIX, a nvel histrico, poltico e cultural. Os movimentos

    literrios europeus marcaram, certo, a pauta da histria da literatura portuguesa, mas

    para a entendermos decisiva a compreenso da histria do pas (v. g. As Viagens na

    Minha Terra, Os Maias e a Mensagem). Podemos mesmo afirmar que ao longo do

    sculo XIX (e mesmo depois) a literatura portuguesa funcionou como uma resposta

    histria nacional, em termos crticos ou legitimadores. Assim, se a literatura ajudou a

    fazer nao, no menos verdade que a nao fez a literatura.

    Seleccionamos para esta antologia alguns textos importantes sobre a questo da

    emergncia/construo histrica das nacionalidades, que teve uma forte dimenso scio-

    cultural (Renan, Benedict Anderson, Eric Hobsbawm), desde o sculo XVIII. Os

    ensaios de Anne-Marie Thiesse e de Itamar Even-Zohar so por isso importantes para a

    compreenso do papel da literatura e dos escritores na criao das identidades

    nacionais e das naes europeias.

    Numa segunda parte, inclumos alguns textos demonstrativos do papel das

    literaturas nacionais na construo dos Estados-nao, sobretudo no que respeita a

    Portugal (Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Tefilo Braga, Jacinto do Prado

    Coelho, Fidelino de Figueiredo e Antnio Jos Saraiva), Galiza (Manuel Castelo) e

    Amrica Latina (Leyla Perrone-Moiss).

    Num dos seus textos mais importantes, "Qu' est-ce qu' une nation? (1882),

    Ernest Renan afirma-se como um claro opositor da concepo tnica da nao,

    dominante no ltimo quartel do sculo XIX, manifestando-se a favor da ideia de nao

    de raiz voluntarista-moral, da nao como um princpio espiritual resultante da vontade

    colectiva, defendendo Renan que Uma nao uma alma, um princpio espiritual,

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    resultante do desejo claramente expresso de continuar a vida comum. A existncia de

    uma nao (perdoem-me esta metfora) um plebiscito de todos os dias6.

    H, deste modo, uma certa continuidade deste ensaio com os dois que se seguem.

    Como nos mostra Benedict Anderson, no sculo XIX o Estado-nao construiu-se como

    uma "comunidade poltica imaginada" (limitada e soberana), na medida em que os seus

    membros nunca se conhecero na sua grande maioria. Deste modo, como sublinha, pela

    primeira vez na histria a coeso social estabeleceu-se atravs da escrita e das lnguas

    vernculas. A ascenso da burguesia, auxiliada pelo desenvolvimento da imprensa e dos

    meios de "comunicao social" (o capitalismo de imprensa), alterou as estruturas de

    coeso e solidariedade comunitria. A "revoluo filolgica" dignificou as lnguas

    vernculas (que passaram a ser estudadas e ensinadas) e auxiliou a consolidao de

    conceitos como os de soberania nacional (colectiva), desempenhando um papel primacial

    nos nacionalismos europeus, quer ao nvel da reivindicao de autonomia poltica, quer

    ao nvel de uma homogeneizao e unificao do "imaginrio nacional".

    Para este processo contribuiu fortemente a "inveno da tradio" (Eric

    Hobsbawm) caracterstica de cada nacionalidade, mediante a construo de uma

    "memria nacional" e sua utilizao poltica. No seu estudo, Hobsbawm foca trs tipos

    de tradies, de acordo com as funes que desempenharam: produo de coeso social

    e comunitria; legitimao institucional; socializao, mediante a inculcao de crenas

    e de habitus. Em termos da emergncia dos estados nacionais, as trs funes articulam-

    se de modo claro, mediante a escolarizao e a divulgao da "lngua nacional".

    Segundo Hobsbawm, a inveno da tradio nacional envolveu, desde 1870, a educao

    bsica, a inveno de cerimnias pblicas (festas e comemoraes) e a produo

    massiva de monumentos.

    A importncia da literatura nesta construo nacional desenvolvida nos dois

    ensaios seguintes. Como demonstra Anne-Marie Thiesse, no texto introdutrio da sua

    6 claro que necessrio ter em conta o contexto histrico em que a conferncia foi pronunciada, na

    medida em que tem como pano de fundo a guerra franco-prussiana e a anexao alem da Alscia e

    Lorena. Por isso, Renan insiste no facto de as fronteiras no resultarem da lngua, geografia, raa ou

    religio, mas da vontade de grupos em persistir como comunidades, definindo a nacionalidade em termos

    de uma cultura comum propagada como identidade colectiva. Pretende deste modo refutar a "escola

    histrica" alem e as teorias antropolgicas da raa, aludindo Alscia e sua anexao.

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    importante obra, A Criao das Identidades Nacionais (Europa, sculos XVIII e XIX), a

    formao dos Estados-nao europeus foi preparada pela criao cultural das

    identidades nacionais (que serviram de suporte conscincia colectiva da

    nacionalidade), numa actividade conjunta de escritores, artistas e eruditos, que

    elaboraram os patrimnios culturais e simblicos nacionais (lngua, historiografia,

    monumentos histricos, folclore). Este labor nacionalizante passou em grande medida

    pela reviso interpretativa do passado, s possvel pela emergncia de novas concepes

    terico-metodolgicas, de um modelo de "nacionalizao" e de integrao de todo o

    patrimnio cultural de um dado domnio territorial autnomo (ou em busca de

    autonomia) enquanto Estado poltico soberano.

    Por outro lado, como ilustra o ensaio de Itamar Even-Zohar, O papel da

    literatura na criao das naes da Europa, a literatura e as literaturas nacionais tiveram

    uma funo importante na criao das naes europeias (e no s) e das respectivas

    identidades nacionais. A funo da literatura na criao das naes europeias consistiu

    precisamente na criao uma coeso sociocultural, mediante a vinculao de uma lngua

    e literatura especficas, com o seu cnone prprio, identidade cultural de uma nao,

    que induziram a um certo sentimento de solidariedade e disponibilidade colectivas7.

    Em Portugal, destacamos alguns textos fundamentais de autores que procuraram

    fundamentar, a existncia da literatura portuguesa, numa lgica romntica, com base

    na poesia e nas tradies populares. A unio entre a literatura e a nao processa-se

    atravs do povo, visto como sujeito produtor da literatura nacional (a poesia e as

    tradies populares) (Almeida Garrett e Tefilo Braga), ou atravs dos escritores,

    considerados mediadores inspirados das tradies populares, ou perspectivados como

    idealizadores de um modelo de nao, atravs da sua obra. Neste caso, ocupa um lugar

    central a epopeia camoniana, lida como mimese/representao de um certo ideal

    nacional (Herculano, Fidelino de Figueiredo).

    Garrett e Herculano colocaram em primeiro plano os valores da cultura nacional:

    a mitologia nacional, o amor da ptria, a renascena da poesia nacional e popular, e o

    7 Even-Zohar considera mesmo que "Nos casos alemo, italiano, blgaro, servo-croata, checo e mesmo com o grego

    moderno, a literatura tornou-se mesmo indispensvel para a criao das naes aludidas por esses nomes.

  • 20

    estudo das primitivas fontes poticas, onde pensavam que se encontrava a fisionomia do

    povo e das suas tradies (cf. Herculano, "Imitao, Belo, Unidade"; 1835). Herculano

    contribuiu para esta religao com a sua pioneira Histria de Portugal (apesar de

    incompleta) e o romance histrico, cabendo a Garrett a (re)fundao do teatro nacional,

    a criao da "lngua literria" moderna e a valorizao das tradies populares como

    fundamento da literatura nacional.

    Inclumos depois alguns excertos da parte introdutria da Histria da Literatura

    Portuguesa - Idade Mdia (1909), de Tefilo Braga, que aplicou na sua histria da

    literatura portuguesa os conceitos romnticos de literatura dos irmos Schlegel (que

    Garrett adoptou), em articulao com os seus ideais polticos. Tefilo Braga refere que

    "As manifestaes mais completas da linguagem, na sua forma escrita, constituem a

    Literatura" (1984 [1909]: 89). Deste modo, literatura englobava, por exemplo, a

    historiografia e a filosofia, sendo equivalente do que hoje designamos como cultura

    nacional e que Tefilo Braga, maneira romntica, designava como expresso do

    esprito nacional, manifestando as suas caractersticas especficas: "A Literatura uma

    sntese [afectiva] completa, o quadro do estado moral de uma nacionalidade

    representando os aspectos da sua evoluo secular e histrica." (id.: 63). Tefilo Braga

    concebe mesmo a literatura portuguesa como uma espcie de substituto dos

    Descobrimentos na manifestao do gnio dos portugueses.

    O breve ensaio de Fidelino de Figueiredo tenta uma definio da nacionalidade

    literria da literatura portuguesa ao longo da sua histria, a partir dos seus elementos

    (nacionalidade dos autores, lngua de expresso, esprito nacional, etc.). Mas notria

    a sua dificuldade em estabelecer um critrio uniforme e satisfatrio. Assim, ao longo da

    sua obra, vai trabalhando todas as hipteses at se refugiar numa "soluo" de tipo

    idealista (no texto que inclumos aqui), a propsito da epopeia, que, segundo as suas

    palavras, por ser um "poema de comunho mais cvica ou de unificao nacional", exige

    uma aplicao mais rigorosa do critrio nacional. A prioridade agora concedida ao

    "esprito nacional. Mas o autor sabia que se tratava de um critrio contingente, porque

    dependia da agudeza do crtico a classificao de uma obra como representativa ou

    no do esprito nacional (o qual tambm no de definio simples e unvoca).

    Observa-se assim que a soluo idealista (a literatura como expresso de um "esprito

    nacional", mesmo que em lnguas diferentes) apenas desloca o problema das fronteiras.

    Com efeito, a definio deste quid nacional no se revela menos problemtica que o

  • 21

    estabelecimento dos limites materiais, na medida em que abrange pocas histricas e

    literrias distintas e uniformiza os autores e as suas obras luz dessa tradio nacional,

    pressuposta e discutida, marginalizando os que lhe escapam (os "desterritorializados") e

    homogeneizando o que os diferencia.

    Os textos de Jacinto do Prado Coelho e Antnio Jos Saraiva tm j uma

    dimenso crtica. Antnio Jos Saraiva desconstri a ideia da base popular da literatura

    portuguesa, demonstrando que at ao romantismo existiu uma profunda separao entre

    a literatura erudita e o povo/nao. Por seu turno, Prado Coelho analisa as duas grandes

    orientaes das histrias da literatura portuguesa, uma de pendor nacionalista e outra de

    base comparativa.

    De seguida, apresentamos um texto de carcter ensastico de Manuel Castelo

    sobre a literatura galega na sua articulao com a problemtica nacional na Galiza, em

    que se destaca a funo idealizadora daquela face s dificuldades da realizao plena

    desta. O autor destaca assim o lugar privilegiado da literatura na construo da

    identidade da Galiza, que existiu primeiro como nacionalismo potico e serviu de

    elemento compensatrio/substituto de um projecto social/nacional frustrado. Com base

    na sua tese de doutoramento, centra-se em seis textos representativos da literatura

    galega do sculo XX8, vendo como neles se manifestam as mltiplas dimenses da auto-

    construo incessante e difcil da identidade galega, dando uma especial ateno aos

    lugares do sujeito e da Galiza como ncleos problemticos. Neles se reflecte do modo

    particular a temtica omnipresente da histria da cultura contempornea da cultura

    galega: a questo da imagem da Galiza que rodeia a literatura desde o Rexurdimento,

    que nasce como infatigvel mediao poitica (no sentido de piese) entre a Galiza

    real e a Galiza ideal, a fazer-se experincia das fracturas que sulcavam e sulcam o corpo

    da Galiza e/ou intento de nova integrao, de refundao plena do social. De onde,

    diferentes formas de tal ex-plicao da Galiza, i.e., imagens diversas a despregar-se

    nas obras.

    Por fim, apresentamos um longo ensaio de Leyla Perrone-Moiss sobre os

    Paradoxos do nacionalismo literrio na Amrica Latina. Tal como na Europa dos

    8 Na noite estrelecida (Sagas, 1926), de Ramn Cabanillas; Arredor de si, de Otero Pedraio; De catro a

    catro (1928), de Manoel-Antonio; Os eidos (1955), de Uxo Novoneyra; O incerto seor don Hamlet

    (1958), de lvaro Cunqueiro; Longa noite de pedra (1962), de Celso Emilio Ferreira.

  • 22

    sculos XVIII e XIX, os escritores latino-americanos sentiam-se investidos da misso

    de criar uma ptria e uma literatura, pelo que A literatura teve um papel efectivo na

    constituio de uma conscincia nacional e assim, na construo das prprias naes

    latino-americanas.. No entanto, na medida em que as literaturas latino-americanas

    usaram as lnguas europeias dos seus colonizadores e se desenvolveram segundo

    modelos estrangeiros (europeus), este processo de autonomizao nacional est imbudo

    de um paradoxo. Por um lado, o outro europeu de que se querem libertar uma parte

    constituinte da sua identidade, a par do elemento ndio e africano; por outro lado, a

    Amrica latina , de facto, uma inveno europeia, pois antes de os europeus a

    descobrirem, ela era composta por inmeras culturas que ignoravam que pertenciam a

    esse todo (a Amrica latina). Por tudo isto, como sublinha Leyla Perrone-Moiss, A

    identidade cultural desses pases se constituiu (...) como um diferena no seio da

    identidade: uma relao filial. () Assim, as relaes das literaturas latino-americanas

    com as literaturas europeias constituem um caso de famlia.

    Agradeo de modo particular a Itamar Even-Zohar e a Manuel Castelo, pela

    cedncia dos seus textos e pela colaborao inestimvel na sua traduo. Os nossos

    agradecimentos dirigem-se tambm para as editoras e autores que autorizaram a

    publicao dos diversos textos desta antologia: a Temas e Debates (Anne-Marie

    Thiesse), as Edies 70 (Benedict Anderson), a Companhia das Letras e a Professora

    Leyla Perrone-Moiss, a Gradiva e o Arquitecto Jos Antnio Saraiva, a Cambridge

    University Press e o eminente historiador Eric Hobsbawm.

    A bibliografia que se segue permite o aprofundamento da articulao entre a

    nacionalidade e a literatura em vrios pases e continentes, nas suas diversas

    perspectivas.

  • 23

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  • 28

  • 29

    O que uma nao ? *

    Ernest Renan

    Proponho-me analisar convosco uma ideia, clara em aparncia, mas que se

    presta aos mais perigosos mal-entendidos. As formas da sociedade humana apresentam

    uma grande diversidade. As grandes aglomeraes de homens maneira da China, do

    Egipto, da mais antiga Babilnia; - a tribo maneira dos hebreus, dos rabes; - a cidade

    maneira de Atenas e de Esparta; - o agrupamento de pases diversos maneira do

    imprio carolngio; - as comunidades sem ptria, mantidas por laos religiosos, como

    so as dos israelitas, dos parses; - as naes como a Frana, a Inglaterra e a maior parte

    dos estados independentes europeus; - as confederaes maneira da Sua, da

    Amrica; - os graus de parentesco como os que a raa, ou sobretudo a lngua,

    estabelecem entre os diferentes ramos dos germanos, os diferentes ramos dos eslavos; -

    eis alguns modos de agrupamentos que existem ou existiram, e que no saberamos

    confundir sem gerar os mais srios inconvenientes. Na poca da Revoluo Francesa,

    acreditava-se que as instituies de pequenas cidades independentes, como as de

    Esparta e Roma, se poderiam aplicar s nossas grandes naes com trinta ou quarenta

    milhes de almas. Hoje, cometemos um erro mais grave: confundimos a raa com a

    nao, e atribumos a grupos etnogrficos, ou sobretudo lingusticos, uma soberania

    anloga dos povos realmente existentes. Esforcemo-nos para chegar a alguma

    exactido nestas questes difceis, em que a menor confuso sobre os sentidos das

    palavras, na origem do raciocnio, pode produzir, no final, os erros mais funestos. O que

    iremos fazer delicado; quase uma vivisseco; iremos tratar os vivos como

    habitualmente tratamos os mortos. F-lo-emos com total frieza e imparcialidade.

    _

    *RENAN, Ernest (s/d) - "Qu' est-ce qu' une nation? (Confrence faite en Sorbonne, le 11 mars

    1882)", Discours et Confrences, 6 ed. Paris: Calmann-Lvy, pp. 277-310.

  • 30

    I

    Desde o fim do Imprio romano, ou melhor, desde a deslocao do Imprio de

    Carlos Magno, a Europa ocidental apareceu bruscamente dividida em naes, das quais

    algumas, em certas pocas, procuraram exercer uma hegemonia sobre as outras, sem

    jamais serem bem sucedidas de uma maneira durvel. O que Carlos V, Lus XIV e

    Napoleo I no puderam, provavelmente ningum poder no futuro. O estabelecimento de

    um novo Imprio romano ou de um novo Imprio de Carlos Magno tornou-se uma

    impossibilidade. A diviso da Europa muito grande para que uma tentativa de

    dominao universal no provoque muito rapidamente uma coligao que faa com que a

    nao ambiciosa volte aos seus limites naturais. Uma espcie de equilbrio est

    estabelecida durante um longo espao de tempo. A Frana, a Inglaterra, a Alemanha, a

    Rssia sero ainda, em centenas de anos, apesar das aventuras as aventuras tero

    percorrido, individualidades histricas, as peas essenciais de um tabuleiro, cujas casas

    variam sem cessar de importncia e de grandeza, sem jamais se confundirem.

    As naes, entendidas desta maneira, so uma coisa bastante nova na histria. A

    antiguidade no as conheceu; o Egipto, a China, a antiga Caldeia no foram, em nenhum

    grau, naes. Eram tropas conduzidas por um filho do Sol, ou um filho do Cu. No

    existiram cidados egpcios, do mesmo modo que no existem cidados chineses. A

    antiguidade clssica teve repblicas e realezas municipais, confederaes de repblicas

    locais, imprios; ela no teve naes, no sentido em que ns as compreendemos. Atenas,

    Esparta, Sdon, Tiro so pequenos centros de admirvel patriotismo; mas so cidades com

    um territrio relativamente restrito. A Glia, a Espanha, a Itlia, antes da sua absoro no

    Imprio romano, eram conjuntos de pequenas populaes, frequentemente ligadas entre

    si, mas sem instituies centrais, sem dinastias. O Imprio assrio, o Imprio persa, o

    Imprio de Alexandre tambm no foram ptrias. Nunca existiram patriotas assrios; o

    Imprio persa foi um vasto mundo feudal. Nenhuma nao ligou as suas origens

    colossal aventura de Alexandre, que foi, no obstante, to rica em consequncias para a

    histria geral da civilizao.

    O Imprio romano esteve bem mais prximo de ser uma ptria. Em troca da

    imensa vantagem do fim das guerras, a dominao romana, primeiramente to dura, foi

  • 31

    muito rapidamente apreciada. Esta foi uma grande associao, sinnimo de ordem, de paz

    e de civilizao. Nos ltimos tempos do Imprio existiu, entre as almas nobres, entre os

    bispos esclarecidos, entre os letrados, um verdadeiro sentimento de pax romana, oposto

    ao caos ameaador da barbrie. Mas, um imprio doze vezes maior do que a Frana

    actual, no saberia formar um Estado na acepo moderna. A ciso do Oriente e do

    Ocidente era inevitvel. Os ensaios de um imprio gauls, no sculo III, no foram bem

    sucedidos. a invaso germnica que introduz no mundo o princpio que, mais tarde,

    serviu de base existncia das nacionalidades.

    Com efeito, o que fizeram os povos germnicos desde suas grandes invases do

    sculo V at as ltimas conquistas normandas no sculo X? Eles mudaram pouco o fundo

    das raas; mas impuseram dinastias e uma aristocracia militar a partes mais ou menos

    considerveis do antigo Imprio do Ocidente, as quais tomaram o nome de seus

    invasores. Da uma Frana, uma Burgondia, uma Lombardia; mais tarde, uma Normandia.

    A rpida preponderncia que ganhou o imprio franco refez em pouco tempo a unidade

    do Ocidente; mas este imprio desfez-se irremediavelmente ao longo do sculo IX; o

    tratado de Verdun traa divises inalterveis, em princpio e, desde ento, a Frana, a

    Alemanha e a Inglaterra, a Itlia, a Espanha encaminham-se, por vias com frequncia

    indiretas e por meio de mil aventuras, sua plena existncia nacional, tal como ns a

    vemos desabrochar hoje.

    Com efeito, o que caracteriza, estes diferentes Estados? a fuso das populaes

    que os compem. Nos pases que acabamos de enumerar, no h nada de anlogo ao que

    vs encontrareis na Turquia, onde o turco, o eslavo, o grego, o armnio, o rabe, o srio e

    o curdo so to distintos hoje como no dia da conquista. Duas circunstncias essenciais

    contriburam para este resultado. Em primeiro lugar, o facto de os povos germnicos

    terem adoptado o cristianismo desde que eles tiveram contactos um pouco frequentes com

    os povos gregos e latinos. Quando o vencedor e o vencido so da mesma religio, ou,

    para dizer melhor, quando o vencedor adopta a religio do vencido, o sistema turco, a

    distino absoluta dos homens de acordo com a religio, no se pode produzir novamente.

    A segunda circunstncia foi, por parte dos conquistadores, o esquecimento da sua prpria

    lngua. Os descendentes de Clvis, de Alarico, de Gondebaud, de Albon, de Rollon,

    falavam j o romano. Este facto era ele prprio a consequncia de uma outra

    particularidade importante; que os francos, os burgondos, os godos, os lombardos e os

    normandos tinham muito poucas mulheres da sua raa entre eles. Durante muitas

  • 32

    geraes, os chefes s se casavam com mulheres germanas; mas as suas concubinas eram

    latinas, as amas de leite das crianas eram latinas; toda a tribo casava com mulheres

    latinas; o que fez com que a lingua francica e a lingua gothica no tivessem, desde o

    estabelecimento dos francos e dos godos em terras romanas, mais do que um breve

    destino. No sucedeu assim na Inglaterra; visto que a invaso anglo-saxnica tinha, sem

    dvida, mulheres com ela; a populao bret desvaneceu-se e, por outro lado, o latim j

    no existia a, pode mesmo dizer-se que nunca foi dominante na Bretanha. Se se tivesse

    falado, de um modo geral, gauls na Glia, no sculo V, Clvis e os seus no teriam

    abandonado o germnico a favor do gauls.

    Da o resultado central de, apesar da extrema violncia dos costumes dos

    invasores germanos, o modelo que impuseram se tornar, com o passar dos sculos, o

    prprio molde da nao. A Frana torna-se muito legitimamente o nome de um pas onde

    no tinha entrado mais do que uma imperceptvel minoria de francos. No sculo X, nas

    primeiras canes de gesta, que so um espelho to perfeito do esprito do tempo, todos

    os habitantes da Frana so franceses. A ideia de uma diferena de raas na populao da

    Frana, to evidente em Gregrio de Tours, no se apresenta em qualquer grau entre os

    escritores e os poetas franceses posteriores a Hugo Capeto. A diferena do nobre e do

    vilo to acentuada quanto possvel; mas a diferena de um para outro no , em nada,

    uma diferena tnica; uma diferena de coragem, de hbitos e de educao transmitida

    hereditariamente; a ideia que a origem de tudo isso seja uma conquista no ocorre a

    ningum. O falso sistema segundo o qual a nobreza deve sua origem a um privilgio

    conferido pelo rei por grandes servios prestados nao, se bem que todo o nobre

    algum enobrecido, foi estabelecido como um dogma desde o sculo XIII. A mesma coisa

    se passou na sequncia de quase todas as conquistas normandas. Ao fim de uma ou duas

    geraes, os invasores normandos j no se distinguiam do resto da populao; a sua

    influncia no tinha sido menos profunda; eles tinham dado ao pas conquistado uma

    nobreza, hbitos militares e um patriotismo que anteriormente no existiam.

    O esquecimento, e diria mesmo o erro histrico, so um factor essencial na criao

    de uma nao, e assim que o progresso dos estudos histricos frequentemente um

    perigo para a nacionalidade. Com efeito, a investigao histrica, na verdade, traz luz

    do dia os factos violentos que ocorreram na origem de todas as formaes polticas,

    mesmo daquelas cujas consequncias foram as mais benficas. A unificao faz-se

    sempre brutalmente; a reunio da Frana do norte e da Frana do sul [midi] foi o resultado

  • 33

    de uma exterminao e de um terror continuado durante quase um sculo. O rei da

    Frana, que , se ouso diz-lo, o tipo ideal de um cristalizador secular; o rei da Frana,

    que fez a mais perfeita unidade nacional que existia; o rei da Frana, visto de muito perto,

    perdeu o seu prestgio; a nao que ele tinha formado amaldioou-o, e, hoje, s os

    espritos cultivados sabem o que ele valia e o que ele fez.

    pelo contraste que estas grandes leis da histria da Europa ocidental se tornam

    sensveis. No empreendimento que o rei da Frana, em parte pela sua tirania, em parte

    pela sua justia, levou a cabo to admiravelmente levado a termo, muitos pases

    fracassaram. Sob a coroa de saint tienne, os magiares e os eslavos permaneceram to

    distintos quanto eram h oitocentos anos. Longe de fundir os elementos diversos dos seus

    domnios, a casa de Habsburgo manteve-os distintos e frequentemente opostos uns aos

    outros. Na Bomia, o elemento checo e o elemento alemo so sobrepostos como o leo e

    a gua num copo. A poltica turca da separao das nacionalidades de acordo com a

    religio teve consequncias bem mais graves: ela causou a runa do Oriente. Tome-se

    como exemplo uma cidade como Salnica ou Esmirna: a se encontraro cinco ou seis

    comunidades, cada qual com as suas prprias memrias e com quase nada em comum.

    Ora, a essncia de uma nao consiste no facto de todos os indivduos terem muitas coisas

    em comum, e tambm de todos terem esquecido muitas outras. Nenhum cidado francs

    sabe se ele burgondo, alano, taifalo, visigodo; todo o cidado francs deve ter esquecido

    a noite de So Bartolomeu, os massacres do Sul [Midi] no sculo XIII. No h em Frana

    dez famlias que possam fornecer a prova de uma origem franca, alm de que uma tal

    prova seria essencialmente defeituosa, devido aos mil cruzamentos desconhecidos que

    podem desarranjar todos os sistemas dos genealogistas.

    A nao moderna , deste modo, um resultado histrico conduzido por uma srie

    de factos convergindo no mesmo sentido. s vezes, a unidade foi realizada por uma

    dinastia, como o caso da Frana; outras vezes, ela resultou da vontade directa das

    provncias, como o caso da Holanda, da Sua e da Blgica; noutras vezes, proveio de

    um esprito geral, tardiamente vencedor dos caprichos do mundo feudal, como o caso da

    Itlia e da Alemanha. Uma profunda razo de ser presidiu sempre a estas formaes. Os

    princpios, em tais casos, emergem atravs das surpresas mais inesperadas. Ns vimos,

    hoje em dia, a Itlia unificada pelas suas derrotas e a Turquia demolida pelas suas

    vitrias. Cada derrota permitia avanar com os afazeres da Itlia; cada vitria conduzia

    perda da Turquia; porque a Itlia uma nao, e a Turquia, fora da sia Menor, no o .

  • 34

    a glria da Frana o facto de, pela Revoluo Francesa, ter proclamado que uma nao

    existe por ela mesma. No devemos levar a mal que nos imitem. O princpio das naes

    nosso. Mas o que ento uma nao? Por que que a Holanda uma nao, ao passo que

    Hanover ou o gro-ducado de Parma no o so? Como que a Frana persiste em ser uma

    nao, quando o princpio que a criou j desapareceu? Como que a Sua, que tem trs

    lnguas, duas religies, trs ou quatro raas, uma nao, quando a Toscana, por

    exemplo, que to homognea, no o ? Por que que a ustria um Estado e no uma

    nao? Em que que o princpio das nacionalidades difere do princpio das raas? Eis

    alguns dos pontos sobre os quais um esprito reflectido deve debruar-se, para se colocar

    de acordo consigo mesmo. As coisas do mundo no se regulam por esta espcie de

    raciocnios; mas os homens aplicados desejam levar alguma razo a esta matria e

    esclarecer as confuses onde se confundem os espritos superficiais.

    II

    No entender de alguns tericos polticos, uma nao , antes de tudo, uma

    dinastia, representando uma antiga conquista, primeiramente aceite e depois esquecida

    pela massa do povo. Segundo as polticas de que falo, o agrupamento de provncias

    efectuado por uma dinastia, pelas suas guerras, pelos seus casamentos, pelos seus

    tratados, acaba com a dinastia que o formou. bem verdade que a maior parte das naes

    modernas foi feita por uma famlia de origem feudal, que contraiu casamento com o solo

    e que foi, em certa medida, um ncleo de centralizao. Os limites da Frana em 1789

    no tinham nada de natural nem de necessrio. A larga zona que a casa dos capetos tinha

    acrescentado estreita orla do tratado de Verdun foi, a bem da verdade, uma aquisio

    pessoal desta casa. Na poca em que foram feitas as anexaes, no se tinha a ideia de

    limites naturais, nem do direito das naes, nem da vontade das provncias. A reunio da

    Inglaterra, da Irlanda e da Esccia foi, do mesmo modo, um facto dinstico. A Itlia

    tardou tanto tempo a ser uma nao porque, entre as suas numerosas casas reinantes,

    nenhuma, antes do nosso sculo, se tornou o centro da unidade. Coisa estranha, foi

    obscura ilha da Sardenha, terra pouco italiana, que foi buscar um ttulo real. A Holanda,

    que se criou a si prpria por um acto de herica resoluo contraiu, todavia, um

  • 35

    casamento ntimo com a casa de Orange, e ela corria verdadeiros perigos no dia em que

    essa unio se veria comprometida.

    Uma tal lei, contudo, absoluta? No, sem dvida. A Sua e os Estados Unidos,

    que se formaram como conglomerados de adies sucessivas, no tm nenhuma base

    dinstica. No discutiria a questo no que concerne Frana. Seria necessrio ter o

    segredo do futuro. Digamos, somente, que esta grande realeza francesa tinha sido to

    fortemente nacional que, aps sua queda, a nao pde existir sem ela. E, alm disso, o

    sculo XVIII mudou muita coisa. O homem estava de volta, aps sculos de submisso,

    ao esprito antigo, ao respeito por si mesmo, ideia os seus direitos. As palavras ptria e

    cidado tinham retomado o seu sentido. Assim, pde realizar-se a operao mais ousada,

    jamais praticada na Histria, a operao que podemos comparar com aquela que seria, em

    psicologia, a tentativa de fazer viver na sua primeira identidade um corpo a que teramos

    retirado o crebro e o corao.

    Portanto, necessrio admitir que uma nao pode existir sem um princpio

    dinstico, e mesmo que as naes que foram formadas por dinastias podem separar-se

    desta dinastia sem por isso deixar de existir. O velho princpio que s d conta do direito

    dos prncipes j no podia ser mantido; para alm do direito dinstico, existe o direito

    nacional. Sobre que critrio fund-lo? Sob que signo podemos conhec-lo? De que facto

    tangvel o fazemos derivar?

    I. Da raa, dizem muitos com segurana.

    As divises artificiais, resultantes do mundo feudal, dos casamentos entre prncipes, dos

    congressos de diplomatas, esto caducas. O que permanece firme e fixo a raa das

    populaes. Eis o que constitui um direito, uma legitimidade. A famlia germnica, por

    exemplo, segundo a teoria que exponho, tem o direito de reaver os membros dispersos do

    germanismo, mesmo quando estes membros no pedem para se lhe juntar. O direito do

    germanismo sobre tal provncia mais forte do que o direito dos habitantes desta

    provncia sobre si mesmos. Criamos, assim, uma espcie de direito primordial anlogo ao

    direito divino dos reis; substitumos o princpio das naes pelo da etnografia. Eis um

    grande erro que, se se tornar dominante, conduzir perda da civilizao europeia. De

    igual modo, o princpio das naes justo e legtimo, assim como o do direito primordial

    das raas estreito e cheio de perigos para o verdadeiro progresso.

  • 36

    Na tribo e na cidade antigas, o facto da raa tinha, ns reconhec-mo-lo, uma

    importncia de primeira ordem. A tribo e a cidade antigas no eram mais do que uma

    extenso da famlia. Em Esparta, em Atenas, todos os cidados eram parentes em graus

    mais ou menos aproximados. O mesmo se passava com os Beni-Israel; isso ainda assim

    nas tribos rabes. De Atenas, de Esparta, da tribo israelita, transportemo-nos para o

    Imprio romano. A situao bem diferente. Formado inicialmente pela violncia, depois

    mantido pelo interesse, esta grande aglomerao de cidades, de provncias absolutamente

    diferentes, traz ideia de raa o golpe mais grave. O cristianismo, com o seu carcter

    universal e absoluto, trabalha ainda no mesmo sentido, mas de modo mais eficaz. Ele

    contrai com o Imprio romano uma aliana ntima e, pelo efeito destes dois

    incomparveis agentes de unificao, a razo etnogrfica afastada do governo das coisas

    humanas por vrios sculos. A invaso dos brbaros foi, apesar das aparncias, mais um

    passo nessa via. Os recortes dos reinos brbaros no tm nada de etnogrfico; eles so

    estabelecidos pela fora ou pelo capricho dos invasores. A raa das populaes que eles

    dominavam era para eles a coisa mais indiferente. Carlos Magno refez, sua maneira, o

    que Roma j tinha feito: um imprio nico composto pelas raas mais diversas. Os

    autores do tratado de Verdun, traando de modo imperturbvel as suas duas grandes

    linhas do norte ao sul, no tinham a menor preocupao com a raa dos povos que se

    encontravam direita ou esquerda. Os movimentos de fronteira que se operaram na

    sequncia da Idade Mdia estiveram tambm fora de toda a tendncia etnogrfica. Se a

    poltica levada a cabo pela casa dos capetos chegou a agrupar sob o nome de Frana

    grande parte dos territrios da antiga Glia, no se trata de um efeito da tendncia que

    teriam tido estes pases para se juntarem aos seus congneres. A Dauphin, a Bresse, a

    Provena, o Franco-Condado j no se lembravam de uma origem comum. Toda a

    conscincia gaulesa tinha perecido desde o sculo II da nossa era, e s pela via de

    erudio, nos nossos dias, reencontrmos retrospectivamente a individualidade do

    carcter gauls.

    Deste modo, a considerao etnogrfica no contribuiu em nada para a

    constituio das naes modernas. A Frana cltica, ibrica e germnica. A Alemanha

    germnica, cltica e eslava. A Itlia o pas onde a etnografia mais enredada. Gauleses,

    etruscos, pelasgos, gregos, sem falar de muitos outros elementos, cruzam-se a numa

    indecifrvel mistura. As ilhas britnicas, no seu conjunto, oferecem uma mistura de

    sangue cltico e germnico cujas propores so singularmente difceis de definir.

  • 37

    A verdade que no h raa pura e que fazer repousar a poltica sobre a anlise

    etnogrfica consiste em conduzi-la a uma quimera. Os mais nobres pases, a Inglaterra, a

    Frana, a Itlia, so aqueles em que o sangue est mais misturado. A Alemanha

    representar, a esse respeito, uma excepo? Ela um pas germnico puro? Que iluso!

    Todo o sul foi gauls. Todo o leste, a partir do Elba, eslavo. E as partes que se pretende

    que so realmente puras, s-lo-o na verdade? Tocamos aqui num dos problemas sobre o

    qual importa, o mais possvel, tornar as ideias claras e prevenir os mal-entendidos.

    As discusses sobre as raas so interminveis, porque a palavra raa tomada

    pelos historiadores fillogos e pelos antroplogos fisiologistas em dois sentidos

    completamente diferentes. Para os antroplogos, a raa tem o mesmo sentido que em

    Zoologia: ela indica uma descendncia real, um parentesco pelo sangue. Ora, o estudo das

    lnguas e da histria no conduz s mesmas divises da fisiologia. As palavras

    braquicfalos e dolicocfalos no tm lugar na histria nem na filologia. No grupo

    humano que criou as lnguas e a disciplina arianas, havia j braquicfalos e dolicocfalos.

    necessrio dizer outro tanto do grupo primitivo que criou as lnguas e as instituies

    ditas semticas. Por outras palavras, as origens zoolgicas da humanidade so

    enormemente anteriores s origens da cultura, da civilizao, da linguagem. Os grupos

    ariano primitivo, semtico primitivo e turaniano primitivo no tinham nenhuma unidade

    psicolgica. Estes agrupamentos so factos histricos que tiveram lugar numa certa

    poca, digamos h quinze ou vinte mil anos, enquanto que a origem zoolgica da

    humanidade se perde nas trevas incalculveis. O que chamamos filolgica e

    historicamente a raa germnica seguramente uma famlia bem distinta na espcie

    humana. Mas ser uma famlia no sentido antropolgico? No, seguramente. A apario

    da individualidade germnica na histria s se d poucos sculos antes de Jesus Cristo.

    Aparentemente, os germanos no saram da sua terra nesta poca. Antes disso, fundidos

    com os eslavos na grande massa indistinta dos citas, eles no tinham uma individualidade

    parte. Um ingls bem um tipo uno no conjunto da humanidade. Ora, o tipo daquilo a

    que chamamos muito impropriamente a raa anglo-saxnica no nem o breto do tempo

    de Csar, nem o anglo-saxo de Hengist, nem o dinamarqus de Knut, nem o normando

    de Guilherme, o conquistador; o resultante de tudo isso. O francs no nem um gauls,

    nem um franco, nem um burgondo. Ele o que saiu do grande caldeiro onde, sob a

    presidncia do rei da Frana, fermentaram, conjuntamente, os elementos mais diversos.

    Um habitante de Jersey ou de Guernesey no difere em nada, pelas origens, da populao

  • 38

    normanda da costa vizinha. No sculo XI, o olho mais penetrante no teria podido

    vislumbrar a mais ligeira diferena nos dois lados do canal. Insignificantes circunstncias

    fazem com que Filipe Augusto no tome estas ilhas com o resto da Normandia. Separadas

    umas das outras desde h cerca de setecentos anos, as duas populaes tornaram-se no

    s estrangeiras umas s outras, mas tambm totalmente dissemelhantes. A raa, como a

    entendemos ns, os historiadores, portanto uma coisa que se faz e que se desfaz. O

    estudo da raa capital para o sbio que se ocupa da histria da humanidade. Ele no tem

    aplicao na poltica. A conscincia instintiva que presidiu confeco do mapa da

    Europa no considerou de forma alguma a raa, e as primeiras naes da Europa so

    naes de sangue essencialmente misturado.

    O facto da raa, capital na origem, vai, ento, perdendo sempre a sua importncia.

    A histria humana difere essencialmente da zoologia. A raa no tudo, como entre os

    roedores ou os felinos, e no temos o direito de ir pelo mundo a fazer experincias com o

    crnio das pessoas, para depois lhes pegar pela garganta para lhes dizer: Tu s do nosso

    sangue; tu pertences-nos! Para alm dos caracteres antropolgicos, h a razo, a justia,

    a verdade e o belo, que so os mesmos para todos. Reparai, esta poltica etnogrfica no

    segura. Hoje, vs tirais partido dela contra os outros; depois, v-la-eis voltar-se contra vs

    mesmos. certo que os alemes, que elevaram to alto a bandeira da etnografia, no

    vero um dia os eslavos chegarem para analisar, por sua vez, os nomes das cidades da

    Saxnia e da Luscia, procurar os traos dos Vilzes ou dos Obotritas e tirar satisfaes

    pelos massacres e pelas vendas em massa dos seus antepassados que os Othons fizeram?

    Para todos, bom saber esquecer.

    Eu gosto muito da etnografia; uma cincia de um raro interesse; mas, como eu a

    quero livre, quero-a sem aplicao poltica. Em etnografia, como em todos os estudos, os

    sistemas mudam; a condio do progresso. Os limites dos Estados sobrevivem s

    flutuaes da cincia. O patriotismo dependeria de uma dissertao mais ou menos

    paradoxal. Se fssemos dizer ao patriota: o senhor enganou-se; o senhor derramou o seu

    sangue por tal causa; o senhor acreditava que era celta; no, o senhor germano. Depois,

    passados dez anos, viriam dizer-vos que sois eslavo. Para no falsificar a cincia,

    dispens-mo-la de dar uma opinio sobre estes problemas, em que esto envolvidos tantos

    interesses. Estai seguros de que, se a encarregamos de fornecer elementos diplomacia,

    ns iremos surpreend-la muitas vezes em flagrante delito de complacncia. Ela tem

    coisas melhores para fazer: peamos-lhe muito simplesmente a verdade.

  • 39

    II. O que acabamos de dizer da raa, necessrio diz-lo da lngua. A lngua

    convida a reunir, mas no fora essa unio. Os Estados Unidos e a Inglaterra, a Amrica

    espanhola e a Espanha falam a mesma lngua e no formam uma s nao. Pelo contrrio,

    a Sua, to bem construda, visto que ela foi realizada com o acordo das suas diferentes

    partes, tem trs ou quatro lnguas. H no homem alguma coisa superior lngua: a

    vontade. A vontade da Sua de estar unida, apesar da variedade dos seus idiomas, um

    facto muito mais importante do que uma similitude frequentemente obtida atravs de

    humilhaes. Um facto honroso para a Frana consiste em ela nunca ter procurado obter a

    unidade da sua lngua atravs de medidas coercivas. No podemos ter os mesmos

    sentimentos e os mesmos pensamentos, amar as mesmas coisas em lnguas diferentes?

    Falvamos h pouco do inconveniente que seria fazer depender a poltica internacional da

    etnografia. No o seria menos faz-la depender da filologia comparada. Deixemos a esses

    interessantes estudos a inteira liberdade das suas discusses; no os misturemos com

    aquilo que alteraria a sua serenidade. A importncia poltica que atribumos s lnguas

    vem do facto de as olharmos como signos da raa. Nada de mais falso. A Prssia, onde

    no se fala mais do que o alemo, falava eslavo h alguns sculos; o Pas de Gales fala

    ingls; a Glia e a Espanha falam o idioma primitivo da Alba Longa; o Egipto fala rabe;

    os exemplos so inumerveis. Mesmo nas origens, a similitude da lngua no implicava a

    similitude da raa. Tomemos por exemplo a tribo proto-ariana ou proto-semita;

    encontravam-se a escravos, que falavam a mesma lngua que a dos seus mestres; ora, o

    escravo era ento muito frequentemente de uma raa diferente da do seu mestre. Devemos

    repeti-lo: estas divises entre lnguas indo-europeias, semticas e outras, criadas com uma

    to admirvel sagacidade pela filologia comparada, no coincidem com as divises da

    antropologia. As lnguas so formaes histricas, que indicam poucas coisas sobre o

    sangue daqueles que as falam, e que, em todo caso, no saberiam prender a liberdade

    humana quando se trata de determinar a famlia com a qual nos unimos para a vida e para

    a morte.

    Esta considerao exclusiva da lngua tem, como a ateno demasiado forte

    concedida raa, os seus perigos, os seus inconvenientes. Quando colocamos a algum

    exagero, enclausuramo-nos numa cultura determinada, tida por nacional; limitamo-nos,

    emparedamo-nos. Deixamos o grande ar que respiramos no vasto campo da humanidade

    para nos fecharmos em conventculos de compatriotas. Nada de pior para o esprito; nada

  • 40

    de mais errado para a civilizao. No abandonemos este princpio fundamental de que o

    homem um ser racional e moral, antes estar delimitado por tal ou tal lngua, antes de ser

    um membro de tal ou tal raa, um membro de tal ou tal cultura. Antes da cultura francesa,

    da cultura alem, da cultura italiana, h a cultura humana. Vede os grandes homens da

    Renascena; eles no eram nem franceses, nem italianos, nem alemes. Eles tinham

    reencontrado, pelo seu contacto com a antiguidade, o segredo da educao verdadeira do

    esprito humano, devotavam-se-lhe de corpo e alma. Como eles fizeram bem!

    III. A religio tambm no poderia oferecer uma base suficiente para o

    estabelecimento de uma nacionalidade moderna. Na origem, a religio tinha a ver com

    a prpria existncia do grupo social. O grupo social era uma extenso da famlia. A

    religio, os ritos, eram ritos de famlia. A religio de Atenas era o culto mesmo de Atenas,

    dos seus fundadores mticos, das suas leis e dos seus costumes. Ela no implicava

    nenhuma teologia dogmtica. Esta religio era, em toda a fora do termo, uma religio de

    Estado. No se era ateniense se a sua prtica fosse recusada. Era, no fundo, o culto da

    Acrpole personificado. Jurar sobre o altar de Aglaura era prestar o juramento de morrer

    pela ptria. Esta religio era o equivalente do que , entre ns, o tirar sorte ou o culto

    bandeira. A recusa de participar em tal culto seria como recusar o servio militar nas

    sociedades modernas. Era declarar que no se era ateniense. Por outro lado, claro que

    um tal culto no tinha sentido para aquele que no era de Atenas; tambm no se

    exercitava nenhum proselitismo para forar os estrangeiros a aceit-lo; os escravos de

    Atenas no o praticavam. O mesmo sucedeu nalgumas pequenas repblicas da Idade

    Mdia. No se era um bom veneziano se no se prestasse juramento a S. Marcos; no se

    era bom amalfitano se no se colocasse Santo Andr acima de todos os outros santos do

    paraso. Nessas pequenas sociedades, o que foi mais tarde perseguio, tirania, era

    legtimo e tinha to poucas consequncias como o facto de, entre ns, se festejar o pai de

    famlia e de lhe enderear os votos no primeiro dia do ano.

    O que era verdade em Esparta, em Atenas, j no o era nos reinos sados da

    conquista de Alexandre e sobretudo no Imprio Romano. As perseguies de Antoco

    Epifnio para levar o Oriente ao culto de Jpiter Olmpico, ou as do Imprio romano para

    manter uma pretendida religio de Estado foram um erro, um crime, um verdadeiro

    absurdo. Nos nossos dias, a situao perfeitamente clara. J no h massas de crentes de

    uma maneira uniforme. Cada um cr e pratica sua maneira, como pode, como quer. J

  • 41

    no h religio de estado; pode-se ser francs, ingls, alemo, sendo-se catlico,

    protestante, israelita, ou no praticando nenhum culto. A religio tornou-se uma coisa

    individual; ela diz respeito conscincia de cada um. A diviso das naes em catlicas,

    protestantes, j no existe. A religio, que, h cinquenta e dois anos foi um elemento to

    considervel na formao da Blgica, guarda toda a sua importncia no foro interior de

    cada um; mas ela saiu quase inteiramente das razes que traam os limites dos povos.

    IV. A comunidade de interesses seguramente um lao poderoso entre os homens.

    Porm, bastaro os interesses para fazer uma nao? Eu no o creio. A comunidade de

    interesses faz os tratados de comrcio. H na nacionalidade um lado sentimental; ela

    alma e corpo ao mesmo tempo; um Zollverein no uma ptria.

    V. A geografia, o que chamamos de fronteiras naturais, certamente tem uma

    parte considervel na diviso das naes. A geografia um dos factores essenciais da

    histria. Os cursos de gua conduziram as raas; as montanhas travaram-nas. Os

    primeiros favoreceram, os segundos limitaram os movimentos histricos. Podemos

    dizer, contudo, como o crem certos partidos, que os limites de uma nao esto escritos

    sobre o mapa e que esta nao tem o direito de se apropriar do que necessrio para

    aumentar alguns contornos, para alcanar tal montanha, tal rio, ao qual atribumos uma

    espcie de faculdade limitante a priori? No conheo doutrina mais arbitrria nem mais

    funesta. Com ela, justificamos todas as violncias. E, em primeiro lugar, so as

    montanhas ou os rios que formam estas pretendidas fronteiras naturais? incontestvel

    que as montanhas separam; mas os rios renem sobretudo. E, alm disso, nem todas as

    montanhas separariam os Estados. Quais so aquelas que separam e aquelas que no

    separam? De Biarritz Tornea no h nenhuma embocadura de rio que tenha mais que

    outra um carcter limtrofe. Se a histria o tivesse desejado, o Loire, o Sena, o Meuse, o

    Elba, o Oder teriam, assim como o Reno, este carcter de fronteira natural que fez

    cometer tantas infraces ao direito fundamental, que a vontade dos homens. Falo de

    razes estratgicas. Nada absoluto; claro que muitas concesses devem ser feitas

    necessidade. Mas, no necessrio que estas concesses cheguem longe demais. De

    outro modo, todos reclamaro as suas convenincias militares, e isso gerar uma guerra

    sem fim. No, no a terra, mais que a raa, que faz uma nao. A terra fornece o

    substrato, o campo da luta e do trabalho; o homem fornece a alma. O homem est

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    inteiro na formao desta coisa sagrada a que chamamos um povo. Para isso, nada de

    material suficiente. Uma nao um princpio espiritual, resultante das complicaes

    profundas da histria, uma famlia espiritual, no um grupo determinado pela

    configurao do solo.

    Acabamos de ver o que no basta para criar um tal princpio espiritual: a raa, a

    lngua, os interesses, a afinidade religiosa, a geografia, as necessidades militares. Que

    mais, ento, necessrio? Pela sequncia do que foi dito anteriormente, eu no poderia,

    daqui em diante, manter a vossa ateno por muito tempo.

    III

    Uma nao uma alma, um princpio espiritual. Duas coisas que, para dizer a

    verdade, no so mais do que uma, constituem esta alma, este princpio espiritual. Uma

    est no passado, a outra no presente. Uma a possesso em comum de um rico legado de

    lembranas; outra o consentimento actual, o desejo de viver em conjunto, a vontade de

    continuar a fazer valer a herana indivisa que se recebeu. O homem, Senhores, no se

    improvisa. A nao, como o indivduo, o resultado de um longo passado de esforos, de

    sacrifcios e de dedicaes. O culto dos antepassados de todos o mais legtimo; os

    antepassados fizeram de ns o que somos. Um passado herico, grandes homens, a glria

    (quero referir-me verdadeira glria), eis o capital social sobre o qual se assenta uma

    ideia nacional. Ter glrias comuns no passado, uma vontade comum no presente; ter feito

    grandes coisas em conjunto, querer faz-las ainda, eis as condies essenciais para se ser

    um povo. Amamos na proporo dos sacrifcios que consentimos, dos males que

    sofremos. Amamos a casa que construmos e que transmitimos. O canto esparciata: Ns

    somos o que vocs foram; ns seremos o que vocs so, , na sua simplicidade, o hino

    resumido de toda a ptria.

    No passado, uma herana de glria e de tristezas a partilhar; no futuro, um

    programa comum a realizar; ter sofrido, ter tido alegrias, ter esperado em conjunto, eis o

    que vale mais do que alfndegas comuns e fronteiras conformes s ideias estratgicas; eis

    o que pensamos, apesar das diversidades da raa e da lngua. Eu disse h pouco: ter

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    sofrido em conjunto; sim, o sofrimento em comum une mais do que a alegria. Em

    matria de memrias nacionais, os lutos valem mais que os triunfos, porque eles impem

    deveres, eles comandam o esforo em comum.

    Uma nao , ento, uma grande solidariedade, constituda pelo sentimento dos

    sacrifcios que se fizeram e daqueles que ainda se est disposto a fazer. Ela supe um

    passado; ela resume-se, portanto, no presente, por um facto tangvel: o consentimento, o

    desejo claramente expresso de continuar a vida comum. A existncia de uma nao

    (perdoem-me esta metfora) um plebiscito de todos os dias, como a existncia do

    indivduo uma afirmao perptua da vida. Oh! Eu sei-o, isto menos metafsico do que

    o direito divino, menos brutal que o pretendido direito histrico. Na ordem das ideias que

    eu vos submeto, uma nao no tem mais direito do que um rei de dizer a uma provncia:

    Tu pertences-me, eu ocupar-te-ei. Uma provncia, para ns, so os seus habitantes; se

    algum, neste caso, tem o direito de ser consultado, o habitante. Uma nao nunca tem

    um verdadeiro interesse em ser anexada ou em reter um pas a contragosto. O voto das

    naes , em definitivo, o nico critrio legtimo, aquele ao qual necessrio sempre

    retornar.

    Ns afastmos da poltica as abstraces metafsicas e teolgicas. Que permanece

    ento, depois disso? Permanece o homem, os seus desejos, as suas necessidades. A

    diviso, diro vocs, e, ao longo do tempo, a fragmentao das naes, so as

    consequncias de um sistema que coloca estes velhos organismos merc de vontades

    frequentemente pouco esclarecidas. claro que em tal matria nenhum princpio deve ser

    levado ao excesso. As verdades desta ordem s so aplicveis no seu conjunto e de um

    modo muito geral. As vontades humanas mudam; mas o que que no muda? As naes

    no so uma coisa eterna. Elas comearam, elas acabaro. A confederao europeia,

    provavelmente, ir substitu-las. Mas no essa a lei do sculo em que vivemos. Na hora

    presente, a existncia das naes boa, necessria mesmo. A sua existncia a garantia

    da liberdade, que seria perdida se o mundo no tivesse mais do que uma lei e um mestre.

    Pelas suas dificuldades diversas, frequentemente opostas, as naes esto ao

    servio da obra comum da civilizao; todas trazem uma nota para este grande concerto

    da humanidade que, em suma, a mais alta realidade ideal que atingimos. Isoladas, elas

    tm as suas fraquezas. Eu digo-me frequentemente que um indivduo que tomasse os

    defeitos das naes por qualidades se nutriria de glria v; que seria a tal ponto ciumento,

    egosta, briguento; que no poderia suportar nada sem sacar de uma arma, seria o mais

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    insuportvel dos homens. Mas todas estas dissonncias de detalhe desaparecem no

    conjunto. Pobre humanidade, o que tu sofreste! Que provas te esperam ainda? Que o

    esprito da sabedoria te possa guiar, para te preservar dos inumerveis perigos semeados

    no teu caminho!

    Eu resumo, Senhores. O homem no escravo nem da sua raa, nem da sua

    lngua, nem da sua religio, nem do curso dos rios, nem da direco das cadeias

    montanhosas. Uma grande assembleia de homens, s de esprito e quente de corao, cria

    uma conscincia moral a que se chama nao. Quando esta conscincia moral prova a sua

    fora, pelos sacrifcios que exige a abdicao do indivduo em proveito de uma

    comunidade, ela legtima, ela tem o direito de existir. Se se levantam dvidas sobre as

    suas fronteiras, consultem as populaes disputadas. Elas tm o direito de ter uma opinio

    sobre essa questo. Eis o que far sorrir os transcendentes da poltica, esses infalveis que

    passam a sua vida a errar e que, do alto dos seus princpios superiores, tm pena do nosso

    terra--terra. Consultar as populaes, credo! Que ingenuidade! Eis bem representadas

    estas franzinas ideias francesas que pretendem substituir a diplomacia e a guerra por

    medidas de uma simplicidade infantil. Esperemos, Senhores; deixemos passar o reino

    dos transcendentes; saibamos desculpar a arrogncia dos fortes. Talvez, aps muitas

    procuras infrutferas, se volte s nossas modestas solues empricas. Em certos

    momentos, o modo de ter razo no futuro consiste em saber resignar-se a estar fora de

    moda [dmod].

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    Comunidades Imaginadas - Introduo *

    Benedict Anderson

    Talvez sem ser ainda muito notada, temos perante ns uma transformao

    fundamental na histria do marxismo e dos movimentos marxistas. Os sinais mais

    visveis dessa transformao so as guerras recentes entre o Vietname, o Camboja e a

    China. Estas guerras tm uma importncia histrica mundial porque so as primeiras a

    ser travadas entre regimes com uma independncia e credenciais revolucionrias

    inegveis, e porque nenhum dos beligerantes fez mais do que umas tentativas totalmente

    inconsequentes para justificar o banho de sangue em termos de uma perspectiva terica

    que pudesse ser reconhecida como marxista. Enquanto os confrontos na fronteira sino-

    -sovitica em 1969 ou as intervenes militares soviticas na Alemanha (1953), na

    Hungria (1956), na Checoslovquia (1968) e no Afeganisto (1980) podiam, ainda que

    no limite, ser interpretados em termos de segundo os gostos imperialismo

    social, defesa do socialismo, etc., imagino que ningum acredite seriamente que

    estes vocbulos tenham muito suporte em relao com o que aconteceu na Indochina.

    Se a invaso e ocupao do Camboja pelo Vietname em Dezembro de 1978 e

    Janeiro de 1979 representou a primeira guerra convencional em larga-escala

    empreendida por uma regime marxista revolucionrio contra outro1. A agresso da

    * Benedict Anderson (2005) - Comunidades Imaginadas. Reflexes sobre a Origem e a Expanso do

    Nacionalismo. Lisboa: Edies 70 [1996 - 7 reimpresso da 2 ed. revista, de 1991], pp. 21-9.

    1 Escolhi esta formulao simplesmente para enfatizar a escala e o estilo da luta, e no para atribuir

    culpas. Para evitar possvei