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Pensa-se acerca da Nação Portuguesas a partir da literatura lusitana.
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Escrever a nao:
literatura e nacionalidade
(uma antologia)
Carlos Manuel Ferreira da Cunha
(ed.)
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__________________________
Escrever a nao:
literatura e nacionalidade
(uma antologia)
__________________________
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Escrever a nao: literatura e nacionalidade (uma antologia)
Carlos Manuel Ferreira da Cunha (ed.)
ISBN: 978-1-4477-3158-0
Carlos Cunha e Opera Omnia
1 edio: Junho de 2011
Opera Omnia
Rua Nova de Fonte Cova,
12 4805-295 Ponte - Guimares
www.operaomnia.pt
5
Esta antologia contm alguns textos importantes sobre a questo da emergncia
histrica das nacionalidades, todos sublinhando a forte dimenso histrico-cultural
(Renan, Benedict Anderson, Eric Hobsbawm) que conduziu desde o sculo XVIII
repartio da Europa em Estados-nao, sem negar a importncia dos factores scio-
polticos e econmicos.
De seguida, apresentamos dois textos fundamentais para a compreenso do papel
da literatura e dos escritores na criao das identidades nacionais (Anne-Marie
Thiesse) e das naes europeias (Itamar Even-Zohar).
Numa segunda parte, seleccionamos alguns textos sobre a construo das
literaturas nacionais em articulao com os Estados-nao, sobretudo no que respeita a
Portugal (Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Tefilo Braga, Fidelino de
Figueiredo, Jacinto do Prado Coelho, Antnio Jos Saraiva), Galiza (Manuel
Castelo) e Amrica Latina (Leyla Perrone-Moiss).
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7
ndice
1- Introduo 13
2- O que uma nao ?
Ernest Renan 29
3- Comunidades imaginadas
Benedict Anderson 45
4- Tradies inventadas
Eric Hobsbawm 53
5- A Europa das Naes
Anne-Marie Thiesse 69
6- O papel da literatura na criao das naes da Europa
Itamar Even-Zohar 77
7- Introduo ao Romanceiro
Almeida Garrett 101
8- Poesia: Imitao, Belo, Unidade
Alexandre Herculano 117
9- Histria da Literatura Portuguesa
Tefilo Braga 125
10- Para uma sociologia da literatura portuguesa
Antnio Jos Saraiva 141
11- Epopeia e Nacionalidade
Fidelino de Figueiredo 155
12- Orientaes da Histria Literria em Portugal
Jacinto do Prado Coelho 159
13- Literatura e autoconstruo da identidade da Galiza
Manuel Castelo 165
14- Paradoxos do nacionalismo literrio na Amrica Latina
Leyla Perrone-Moiss 183
8
9
Breve nota sobre os autores
Almeida Garrett (1799-1854), bacharel em Direito, deputado, ministro e escritor, foi um
combatente da causa liberal e o introdutor do romantismo em Portugal. Fundou o teatro
portugus, na qualidade de dramaturgo (destaca-se a obra-prima Frei Lus de Sousa,
1844) e atravs da criao do Teatro Nacional D. Maria II e do Conservatrio de Arte
Dramtica. Ao mesmo tempo, inicia o romance portugus moderno, atravs da
coloquializao da linguagem literria. O Romanceiro uma recolha da poesia popular,
que segundo Garrett era a verdadeira literatura portuguesa (ideia a que Tefilo deu
continuidade).
Alexandre Herculano (1810-1877), poeta, jornalista (dirigiu O Panorama), bibliotecrio
real, deputado, polemista, historiador e romancista, destacou-se por ter escrito a
primeira Histria de Portugal (1846, 1847, 1849 e 1853), em que nega o milagre de
Ourique (o que lhe valeu uma longa polmica com o clero) e por ter introduzido o
romance histrico em Portugal (O Bobo, 1843; Eurico, o Presbtero, 1844; O Monge de
Cister, 1848). Lutador pela causa liberal, foi, a par de Garrett, o escritor mais
importante do romantismo em Portugal, de que foi o principal teorizador.
Tefilo Braga (1843-1924), doutorado em Direito, poltico republicano (presidente do
Governo Provisrio e Presidente da Repblica) e escritor. Foi professor de literatura no
Curso Superior de Letras desde 1872 (integrado na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa aps a revoluo republicana) e tornou-se um destacado estudioso de
Cames, que celebrou como o maior representante do esprito nacional, em particular
durante as comemoraes do Tricentenrio da morte de Cames, em 1880, de que foi o
principal promotor. Destacou-se como introdutor do positivismo em Portugal e como
historiador da literatura portuguesa.
Fidelino de Figueiredo (1889-1967), deputado, director da Biblioteca Nacional, foi
professor de Literatura em vrias universidades europeias e americanas, em particular
10
na Universidade de S. Paulo (1938-1951). Destacou-se como historiador da literatura
portuguesa, crtico literrio e ensasta, com uma actividade pioneira nas reas da Teoria
da Literatura e da Literatura Comparada.
Antnio Jos Saraiva (1917-1993), doutorado em filologia romnica, destacou-se como
historiador da literatura portuguesa (com scar Lopes) e ensasta (destaca-se a Histria
da Cultura em Portugal), tendo publicado uma vasta obra. Lutador contra o regime do
Estado Novo, viveu no exlio desde 1960 at ao 25 de Abril de 1974, tendo sido
bolseiro do Collge de France, investigador do Centre National de Recherche
Scientifique e professor catedrtico na Universidade de Amsterdo. Regressado a
Portugal, foi docente na Universidade Nova de Lisboa e depois na Universidade
Clssica de Lisboa.
Ernest Renan (1823-1892) foi um escritor e historiador francs de renome, destacando-
se na sua obra os estudos orientais. Celebrizou-se pela Vida de Jesus (1863), traduzida
em inmeras lnguas, em que negava qualquer carcter divino a Jesus, o que lhe valeu a
expulso do Collge de France por Napoleo III (um ano aps a sua nomeao, como
professor de Hebraico; em 1870 readmitido e em 1879 torna-se o seu director).
Escreveu, entre outras obras, a Histria Geral das Lnguas Semticas (1855) e a
Histria das origens do Cristianismo (1863-1881). O seu ensaio Qu'est-ce qu'une
nation? (O que uma nao?, 1882), tornou-se uma referncia obrigatria nos
estudos sobre o nacionalismo.
Benedict Anderson professor emrito de Estudos Internacionais na Cornell University
(Califrnia). Celebrizou-se com a obra Imagined Communities, publicada em 1991, em
que descreve, de acordo com a sua perspectiva marxista, os principais elementos que
contriburam para a emergncia do nacionalismo no mundo a partir do sculo XVIII.
Eric Hobsbawm (1917), historiador de inspirao marxista, professor emrito de
Histria do Birkbeck College (Universidade de Londres) e da New School for Social
Research, de Nova Iorque (no departamento de Cincia Poltica). membro da British
Academy e membro estrangeiro honorrio da American Academy of Arts and Sciences.
11
De entre as suas obras mais famosas, destacam-se A Idade da Revoluo: Europa 1789-
1848 (1962), A Idade do Capital: 1848-1875 (1975), A Idade do Imprio: 1875-1914
(1987), A Idade dos Extremos (1994). O ensaio sobre a Tradies inventadas j um
clssico dos estudos sobre o nacionalismo.
Anne-Marie Thiesse historiadora e directora de investigao no Centre National de
Recherche Scientifique (Centre de sociologie europenne), em Paris. Tem leccionado e
proferido conferncias um pouco por todo o mundo (New York University, Tubingen,
Moscovo, etc.). De entre as suas obras, destaca-se A Criao das Identidades Nacionais
(1999).
Itamar Even-Zohar professor emrito na Universidade de Tel Aviv (Unit of Culture
Research), onde foi Professor de Semitica e Teoria da Literatura. Fundador da teoria
dos polissistemas, que divulgou num nmero completo da revista Poetics Today (11:1,
1990), publicou vrios estudos e obras, traduzidos em vrias lnguas (cf. www.even-
zohar.com). Leccionou e proferiu conferncias um pouco por todo o mundo, em
universidades europeias e americanas.
Manuel Castelo Mexuto professor de Lngua Galega na Corunha e doutorado em
filologia galega pela Universidade da Corunha. Com o pseudnimo Raul Veiga, um
cineasta reconhecido no panorama audiovisual galego (Fenda Filmes). Em 2010 venceu
o prmio Carvalho Calero de ensaio, com um trabalho apresentado por 'Raul Veiga',
Elucidacins na sombra.
Leyla Perrone-Moiss professora emrita da FFLCH-Universidade de So Paulo e j
leccionou na Sorbonne e na Maison des Sciences de L Homme de Paris. Publicou,
entre outros, Intil poesia (2000), Atlas literaturas (1998), Vinte luas (1992) e Flores da
escrivaninha (1990).
12
13
Introduo
Os escritores portugueses, tal como sucedeu noutros Estados-nao, assumiram
desde o romantismo a misso patritica de fundarem uma literatura e uma cultura
centradas na nao. Desde ento, e at h cerca de duas dcadas, a prpria histria
portuguesa acabou por se transformar no tema central da literatura portuguesa, o que
particularmente visvel num vasto conjunto de movimentos e grupos literrios que
procuraram retratar Portugal e propuseram solues para regenerar o pas da decadncia
com que foi diagnosticado (em particular desde Herculano). Basta recordar o
Romantismo, a Gerao de 70, o Neogarrettismo, o Saudosismo, a Renascena
Portuguesa, o Integralismo Lusitano, etc.
Na maior parte das vezes, reagiram de modo incisivo a conjunturas polticas
extremamente melindrosas e em articulao com os movimentos gerais (muitas vezes,
liderando-os) de reaco s crises poltico-econmicas e s ameaas de potncias
estrangeiras, como nos anos 90, em que se conjugam o Ultimatum, a revoluo
republicana de 1891 e a crise do estado liberal e das finanas pblicas, o que explica em
grande medida as tendncias nacionalistas culturais e literrias, que se prolongaro nas
primeiras dcadas do sculo XX. De igual modo, a Primeira Guerra Mundial e as crises
da Primeira Repblica, entre outros factores, explicam o acentuar deste nacionalismo.
No surpreende assim que o critrio nacional se tenha tornado dominante na
estruturao da histria literria, quer a nvel da periodologia, quer em termos do
prprio cnone literrio, que passou a ser constitudo pelos autores que melhor tinham
representado a nao ao longo da sua histria. Os prprios estudos literrios modernos,
dominados pelo discurso da histria literria, institucionalizaram-se no ensino superior e
no ensino secundrio sob o signo do conceito romntico de literatura nacional,
articulando-se na sua gnese e evoluo com o conceito de identidade nacional, nos seus
compromissos ideolgicos com os Estados-nao modernos. A histria literria
contribuiu assim para a modelizao da "conscincia da identidade nacional" (cf.
Moisan, 1990: 66) nos planos ideolgico, tico, cvico e moral. Deste modo, o sistema
14
de ensino actuou em sintonia com o processo de nacionalizao da literatura e acentuou-
o. Neste sentido, podemos constatar que a histria literria se apresenta como uma
narrativa que proporciona uma espcie de auto-retrato da nao (cf. Neubauer, 2007).
Com efeito, foi a vinculao da histria literria problemtica da identidade nacional
que definiu o objectivo desta disciplina ao longo do sculo XIX. Na transio do sculo
XIX para o sculo XX, Gustave Lanson defendia a renovao cientfica das
humanidades e a aplicao do rigor cientfico histria literria, mas enfatizava ainda a
sua dimenso cvica, moral e nacional (cf. 1965: 56).
Quando, mais tarde, se comea a rejeitar o critrio nacional em nome da
dimenso esttica e da autonomizao do sistema literrio, assistiu-se a um gradual
processo de "desnacionalizao" do fenmeno literrio, sobretudo nas literaturas com
maior capital simblico e cultural1. Alis, esta desvinculao est presente nas relaes
entre a poltica e as vanguardas artsticas. O aparecimento da arte pela arte na Europa
tem a ver, entre outras razes, com a recusa das funes utilitrias da literatura no
quadro de uma cultura nacional ou de um Estado-nao, no obstante essa funo ter
sido dominante nas pocas de luta pela independncia ou pela autonomia nacionais (cf.
Matvejevic, 1991: 32-3).
No sculo XX, como observa Tzvetan Todorov, no final da Primeira Guerra
Mundial, vrios regimes totalitrios (a Rssia, a Itlia e depois a Alemanha) colocaram
a arte ao servio da sua ideologia, ao mesmo tempo que os principais movimentos
terico-literrios (nestes e noutros pases) sublinhavam a autonomia esttica da
literatura (os formalistas russos, a estilstica e as anlises morfolgicas na Alemanha,
os adeptos de Mallarm em Frana, o new criticism nos Estados Unidos da Amrica).
Tudo se passou, sublinha, como se a recusa de ver a arte e a literatura submetidas
ideologia acarretasse necessariamente a ruptura definitiva entre literatura e pensamento;
1 Neste mbito, a autonomizao do campo literrio relativamente ao campo do poder implica a sua
"despolitizao" e a constituio das "regras da arte" (Bourdieu, 1992, cf. p. 124), da "esttica pura" e
mesmo da "arte pela arte". Como observa Pascale Casanova, a literatura inventa-se como um progressivo
aumentar de capital literrio, numa autonomizao face servido poltica e nacional, com a "inveno de
uma lngua literria" (1999: 116-118), na medida em que a lngua, enquanto sistema modelizante
primrio, tambm um instrumento poltico (id.: 466-7).
15
como se a rejeio das teorias marxistas do reflexo exigissem o desaparecimento de
toda a relao entre a obra e o mundo. Ao utopismo de uns correspondeu o formalismo
dos outros (Todorov, 2007: 66-7; traduo nossa)2.
No caso portugus, este duplo afastamento d-se com a valorizao da dimenso
esttica por parte dos diversos movimentos literrios (modernismo, futurismo, segundo
modernismo, etc.) - com excepo do neo-realismo -, ao mesmo tempo que o Estado
Novo, atravs do sistema escolar, num claro processo revisionista, despolitizava os
escritores incmodos para o regime (em particular a Gerao de 70), valorizando o seu
lado esttico (o que evidente, v.g. com Ea de Queirs, Guerra Junqueiro e Gomes
Leal), sem deixar de aproveitar ideologicamente os escritores e os textos literrios que
melhor se adequavam sua orientao pico-colonial. Os programas, instrues e
manuais do ensino secundrio at 1974 (j desde 1895) revelam-nos um crescente
nacionalismo e patriotismo na formao escolar, pois apostava-se na educao como
factor de regenerao nacional. Nesta orientao, A literatura nacional, com o seu
cnone literrio dos grandes autores, foi um forte instrumento de socializao e
formao dos jovens cidados segundo a imagem oficial da nao.
Por sua vez, a histria da literatura, de acordo com esta valorizao da dimenso
esttica, procurou seguir princpios exclusivamente literrios (a partir da terceira dcada
do sculo XX). Fidelino de Figueiredo foi o iniciador de uma moderna histria da
literatura portuguesa, centrada numa perspectiva esttico-literria3, numa viragem que
se articula com as tendncias anti-histricas do primeiro quartel do sculo XX,
presentes na estilstica romntica e no new criticism anglo-americano, entre outros. Esta
2 Num registo crtico, j Terry Eagleton tinha denunciado que o imanentismo das correntes tericas do
sculo XX favoreceram, a contrario, a ideologia dominante: a histria da moderna teoria literria a
narrativa do afastamento dessas realidades [as situaes existenciais do homem, a vida em toda a sua rica
variedade], e da aproximao de uma gama aparentemente interminvel de alternativas: o poema em si, a
sociedade orgnica, as verdades eternas, a imaginao, a estrutura da mente humana, o mito, a linguagem
e assim por diante. () No acto mesmo de fugir das ideologias modernas, porm, a teoria literria revela
a sua cumplicidade, muitas vezes inconsciente, com elas, revelando o seu elitismo, sexismo ou
individualismo, com a linguagem bastante esttica ou apoltica que lhe parece natural usar para o texto
literrio. (s/d: 211).
3 Figueiredo, Fidelino de, Histria Literria de Portugal (Seculos XII a XX), Coimbra, Nobel, 1944, p. 8.
16
linha de ruptura acentuar-se-ia em meados do sculo, com Jacinto do Prado Coelho,
pela mediao da estilstica4.
Jacinto do Prado Coelho problematiza de modo particular o carcter hbrido da
histria literria (cf. o seu texto nesta antologia) a sua duplicidade de critrios,
especialmente embaraosa no estabelecimento da periodologia, que se apoiava numa
cronologia poltico-cultural (segundo critrios nacionalistas ou com base em
comparaes com as literaturas neolatinas) e no era capaz de dar conta da
especificidade temporal da literatura.
A partir dos anos 50 e 60 do sculo XX, comeou a impor-se no campo dos
estudos literrios a Teoria da Literatura (introduzida nas Faculdades de Letras
portuguesas com a Reforma Leite Pinto, de 1957), que concedia a primazia dimenso
esttica das obras literrias e sua leitura imanente5. Nesta transio de paradigma,
assiste-se ao fechamento acadmico e institucional da histria literria tradicional, ao
passo que a teoria da literatura e a crtica literria se abriam s novas correntes literrias
(modernismo, vanguardas, etc.), anlise textual e aos valores estticos (emerge ento a
noo de literariedade), passando a valorizar-se o leitor e a recepo das obras
literrias. Mais tarde, quando a histria literria se comeou a abrir s novas tendncias
terico-crticas, no foi capaz de se libertar do seu modelo discursivo, voltado para a
narrativa de dados externos aos textos literrios. Permaneceu, assim, uma formao
discursiva hbrida, encaixando no seu esquema tradicional/nacional (perodos, autores e
gneros) algumas (tmidas) anlises textuais de natureza estilstica. Mas, se a histria
literria foi condenada por no apreender a dimenso literria e textual da literatura,
no menos verdade que a desejvel histria da literatura enquanto literatura ainda no
4 Em 1952, num ensaio sobre a Problemtica da histria literria, pe em questo a oposio binria
entre "literatura como arte" e "literatura como documento", entre crtica (estilstica) e histria (da cultura),
que se prope superar, defendendo que se devia historiar o lado esttico (Problemtica da Histria
Literria, 1961).
5 Esta orientao do paradigma formalista-estruturalista da Teoria da Literatura revelou-se pouco
compatvel com a histria literria tradicional, desafiando-a abertamente. A polmica de Roland Barthes e
da da nouvelle critique em torno da morte do autor foi uma das faces mais visveis deste combate
contra a histria literria positivista de Gustave Lanson, que reinava na Sorbonne atravs de Raymond
Picard (cf. Compagnon, 1998: 152).
17
foi escrita. De facto, nunca se chegou a articular com rigor a perspectiva histrica com a
orientao esttico-literria.
Com o tempo, porm, esqueceu-se o carcter fundacional do critrio nacional
em relao s literaturas modernas, a forte interdependncia existente entre literatura e
nacionalidade no sculo XIX, a nvel histrico, poltico e cultural. Os movimentos
literrios europeus marcaram, certo, a pauta da histria da literatura portuguesa, mas
para a entendermos decisiva a compreenso da histria do pas (v. g. As Viagens na
Minha Terra, Os Maias e a Mensagem). Podemos mesmo afirmar que ao longo do
sculo XIX (e mesmo depois) a literatura portuguesa funcionou como uma resposta
histria nacional, em termos crticos ou legitimadores. Assim, se a literatura ajudou a
fazer nao, no menos verdade que a nao fez a literatura.
Seleccionamos para esta antologia alguns textos importantes sobre a questo da
emergncia/construo histrica das nacionalidades, que teve uma forte dimenso scio-
cultural (Renan, Benedict Anderson, Eric Hobsbawm), desde o sculo XVIII. Os
ensaios de Anne-Marie Thiesse e de Itamar Even-Zohar so por isso importantes para a
compreenso do papel da literatura e dos escritores na criao das identidades
nacionais e das naes europeias.
Numa segunda parte, inclumos alguns textos demonstrativos do papel das
literaturas nacionais na construo dos Estados-nao, sobretudo no que respeita a
Portugal (Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Tefilo Braga, Jacinto do Prado
Coelho, Fidelino de Figueiredo e Antnio Jos Saraiva), Galiza (Manuel Castelo) e
Amrica Latina (Leyla Perrone-Moiss).
Num dos seus textos mais importantes, "Qu' est-ce qu' une nation? (1882),
Ernest Renan afirma-se como um claro opositor da concepo tnica da nao,
dominante no ltimo quartel do sculo XIX, manifestando-se a favor da ideia de nao
de raiz voluntarista-moral, da nao como um princpio espiritual resultante da vontade
colectiva, defendendo Renan que Uma nao uma alma, um princpio espiritual,
18
resultante do desejo claramente expresso de continuar a vida comum. A existncia de
uma nao (perdoem-me esta metfora) um plebiscito de todos os dias6.
H, deste modo, uma certa continuidade deste ensaio com os dois que se seguem.
Como nos mostra Benedict Anderson, no sculo XIX o Estado-nao construiu-se como
uma "comunidade poltica imaginada" (limitada e soberana), na medida em que os seus
membros nunca se conhecero na sua grande maioria. Deste modo, como sublinha, pela
primeira vez na histria a coeso social estabeleceu-se atravs da escrita e das lnguas
vernculas. A ascenso da burguesia, auxiliada pelo desenvolvimento da imprensa e dos
meios de "comunicao social" (o capitalismo de imprensa), alterou as estruturas de
coeso e solidariedade comunitria. A "revoluo filolgica" dignificou as lnguas
vernculas (que passaram a ser estudadas e ensinadas) e auxiliou a consolidao de
conceitos como os de soberania nacional (colectiva), desempenhando um papel primacial
nos nacionalismos europeus, quer ao nvel da reivindicao de autonomia poltica, quer
ao nvel de uma homogeneizao e unificao do "imaginrio nacional".
Para este processo contribuiu fortemente a "inveno da tradio" (Eric
Hobsbawm) caracterstica de cada nacionalidade, mediante a construo de uma
"memria nacional" e sua utilizao poltica. No seu estudo, Hobsbawm foca trs tipos
de tradies, de acordo com as funes que desempenharam: produo de coeso social
e comunitria; legitimao institucional; socializao, mediante a inculcao de crenas
e de habitus. Em termos da emergncia dos estados nacionais, as trs funes articulam-
se de modo claro, mediante a escolarizao e a divulgao da "lngua nacional".
Segundo Hobsbawm, a inveno da tradio nacional envolveu, desde 1870, a educao
bsica, a inveno de cerimnias pblicas (festas e comemoraes) e a produo
massiva de monumentos.
A importncia da literatura nesta construo nacional desenvolvida nos dois
ensaios seguintes. Como demonstra Anne-Marie Thiesse, no texto introdutrio da sua
6 claro que necessrio ter em conta o contexto histrico em que a conferncia foi pronunciada, na
medida em que tem como pano de fundo a guerra franco-prussiana e a anexao alem da Alscia e
Lorena. Por isso, Renan insiste no facto de as fronteiras no resultarem da lngua, geografia, raa ou
religio, mas da vontade de grupos em persistir como comunidades, definindo a nacionalidade em termos
de uma cultura comum propagada como identidade colectiva. Pretende deste modo refutar a "escola
histrica" alem e as teorias antropolgicas da raa, aludindo Alscia e sua anexao.
19
importante obra, A Criao das Identidades Nacionais (Europa, sculos XVIII e XIX), a
formao dos Estados-nao europeus foi preparada pela criao cultural das
identidades nacionais (que serviram de suporte conscincia colectiva da
nacionalidade), numa actividade conjunta de escritores, artistas e eruditos, que
elaboraram os patrimnios culturais e simblicos nacionais (lngua, historiografia,
monumentos histricos, folclore). Este labor nacionalizante passou em grande medida
pela reviso interpretativa do passado, s possvel pela emergncia de novas concepes
terico-metodolgicas, de um modelo de "nacionalizao" e de integrao de todo o
patrimnio cultural de um dado domnio territorial autnomo (ou em busca de
autonomia) enquanto Estado poltico soberano.
Por outro lado, como ilustra o ensaio de Itamar Even-Zohar, O papel da
literatura na criao das naes da Europa, a literatura e as literaturas nacionais tiveram
uma funo importante na criao das naes europeias (e no s) e das respectivas
identidades nacionais. A funo da literatura na criao das naes europeias consistiu
precisamente na criao uma coeso sociocultural, mediante a vinculao de uma lngua
e literatura especficas, com o seu cnone prprio, identidade cultural de uma nao,
que induziram a um certo sentimento de solidariedade e disponibilidade colectivas7.
Em Portugal, destacamos alguns textos fundamentais de autores que procuraram
fundamentar, a existncia da literatura portuguesa, numa lgica romntica, com base
na poesia e nas tradies populares. A unio entre a literatura e a nao processa-se
atravs do povo, visto como sujeito produtor da literatura nacional (a poesia e as
tradies populares) (Almeida Garrett e Tefilo Braga), ou atravs dos escritores,
considerados mediadores inspirados das tradies populares, ou perspectivados como
idealizadores de um modelo de nao, atravs da sua obra. Neste caso, ocupa um lugar
central a epopeia camoniana, lida como mimese/representao de um certo ideal
nacional (Herculano, Fidelino de Figueiredo).
Garrett e Herculano colocaram em primeiro plano os valores da cultura nacional:
a mitologia nacional, o amor da ptria, a renascena da poesia nacional e popular, e o
7 Even-Zohar considera mesmo que "Nos casos alemo, italiano, blgaro, servo-croata, checo e mesmo com o grego
moderno, a literatura tornou-se mesmo indispensvel para a criao das naes aludidas por esses nomes.
20
estudo das primitivas fontes poticas, onde pensavam que se encontrava a fisionomia do
povo e das suas tradies (cf. Herculano, "Imitao, Belo, Unidade"; 1835). Herculano
contribuiu para esta religao com a sua pioneira Histria de Portugal (apesar de
incompleta) e o romance histrico, cabendo a Garrett a (re)fundao do teatro nacional,
a criao da "lngua literria" moderna e a valorizao das tradies populares como
fundamento da literatura nacional.
Inclumos depois alguns excertos da parte introdutria da Histria da Literatura
Portuguesa - Idade Mdia (1909), de Tefilo Braga, que aplicou na sua histria da
literatura portuguesa os conceitos romnticos de literatura dos irmos Schlegel (que
Garrett adoptou), em articulao com os seus ideais polticos. Tefilo Braga refere que
"As manifestaes mais completas da linguagem, na sua forma escrita, constituem a
Literatura" (1984 [1909]: 89). Deste modo, literatura englobava, por exemplo, a
historiografia e a filosofia, sendo equivalente do que hoje designamos como cultura
nacional e que Tefilo Braga, maneira romntica, designava como expresso do
esprito nacional, manifestando as suas caractersticas especficas: "A Literatura uma
sntese [afectiva] completa, o quadro do estado moral de uma nacionalidade
representando os aspectos da sua evoluo secular e histrica." (id.: 63). Tefilo Braga
concebe mesmo a literatura portuguesa como uma espcie de substituto dos
Descobrimentos na manifestao do gnio dos portugueses.
O breve ensaio de Fidelino de Figueiredo tenta uma definio da nacionalidade
literria da literatura portuguesa ao longo da sua histria, a partir dos seus elementos
(nacionalidade dos autores, lngua de expresso, esprito nacional, etc.). Mas notria
a sua dificuldade em estabelecer um critrio uniforme e satisfatrio. Assim, ao longo da
sua obra, vai trabalhando todas as hipteses at se refugiar numa "soluo" de tipo
idealista (no texto que inclumos aqui), a propsito da epopeia, que, segundo as suas
palavras, por ser um "poema de comunho mais cvica ou de unificao nacional", exige
uma aplicao mais rigorosa do critrio nacional. A prioridade agora concedida ao
"esprito nacional. Mas o autor sabia que se tratava de um critrio contingente, porque
dependia da agudeza do crtico a classificao de uma obra como representativa ou
no do esprito nacional (o qual tambm no de definio simples e unvoca).
Observa-se assim que a soluo idealista (a literatura como expresso de um "esprito
nacional", mesmo que em lnguas diferentes) apenas desloca o problema das fronteiras.
Com efeito, a definio deste quid nacional no se revela menos problemtica que o
21
estabelecimento dos limites materiais, na medida em que abrange pocas histricas e
literrias distintas e uniformiza os autores e as suas obras luz dessa tradio nacional,
pressuposta e discutida, marginalizando os que lhe escapam (os "desterritorializados") e
homogeneizando o que os diferencia.
Os textos de Jacinto do Prado Coelho e Antnio Jos Saraiva tm j uma
dimenso crtica. Antnio Jos Saraiva desconstri a ideia da base popular da literatura
portuguesa, demonstrando que at ao romantismo existiu uma profunda separao entre
a literatura erudita e o povo/nao. Por seu turno, Prado Coelho analisa as duas grandes
orientaes das histrias da literatura portuguesa, uma de pendor nacionalista e outra de
base comparativa.
De seguida, apresentamos um texto de carcter ensastico de Manuel Castelo
sobre a literatura galega na sua articulao com a problemtica nacional na Galiza, em
que se destaca a funo idealizadora daquela face s dificuldades da realizao plena
desta. O autor destaca assim o lugar privilegiado da literatura na construo da
identidade da Galiza, que existiu primeiro como nacionalismo potico e serviu de
elemento compensatrio/substituto de um projecto social/nacional frustrado. Com base
na sua tese de doutoramento, centra-se em seis textos representativos da literatura
galega do sculo XX8, vendo como neles se manifestam as mltiplas dimenses da auto-
construo incessante e difcil da identidade galega, dando uma especial ateno aos
lugares do sujeito e da Galiza como ncleos problemticos. Neles se reflecte do modo
particular a temtica omnipresente da histria da cultura contempornea da cultura
galega: a questo da imagem da Galiza que rodeia a literatura desde o Rexurdimento,
que nasce como infatigvel mediao poitica (no sentido de piese) entre a Galiza
real e a Galiza ideal, a fazer-se experincia das fracturas que sulcavam e sulcam o corpo
da Galiza e/ou intento de nova integrao, de refundao plena do social. De onde,
diferentes formas de tal ex-plicao da Galiza, i.e., imagens diversas a despregar-se
nas obras.
Por fim, apresentamos um longo ensaio de Leyla Perrone-Moiss sobre os
Paradoxos do nacionalismo literrio na Amrica Latina. Tal como na Europa dos
8 Na noite estrelecida (Sagas, 1926), de Ramn Cabanillas; Arredor de si, de Otero Pedraio; De catro a
catro (1928), de Manoel-Antonio; Os eidos (1955), de Uxo Novoneyra; O incerto seor don Hamlet
(1958), de lvaro Cunqueiro; Longa noite de pedra (1962), de Celso Emilio Ferreira.
22
sculos XVIII e XIX, os escritores latino-americanos sentiam-se investidos da misso
de criar uma ptria e uma literatura, pelo que A literatura teve um papel efectivo na
constituio de uma conscincia nacional e assim, na construo das prprias naes
latino-americanas.. No entanto, na medida em que as literaturas latino-americanas
usaram as lnguas europeias dos seus colonizadores e se desenvolveram segundo
modelos estrangeiros (europeus), este processo de autonomizao nacional est imbudo
de um paradoxo. Por um lado, o outro europeu de que se querem libertar uma parte
constituinte da sua identidade, a par do elemento ndio e africano; por outro lado, a
Amrica latina , de facto, uma inveno europeia, pois antes de os europeus a
descobrirem, ela era composta por inmeras culturas que ignoravam que pertenciam a
esse todo (a Amrica latina). Por tudo isto, como sublinha Leyla Perrone-Moiss, A
identidade cultural desses pases se constituiu (...) como um diferena no seio da
identidade: uma relao filial. () Assim, as relaes das literaturas latino-americanas
com as literaturas europeias constituem um caso de famlia.
Agradeo de modo particular a Itamar Even-Zohar e a Manuel Castelo, pela
cedncia dos seus textos e pela colaborao inestimvel na sua traduo. Os nossos
agradecimentos dirigem-se tambm para as editoras e autores que autorizaram a
publicao dos diversos textos desta antologia: a Temas e Debates (Anne-Marie
Thiesse), as Edies 70 (Benedict Anderson), a Companhia das Letras e a Professora
Leyla Perrone-Moiss, a Gradiva e o Arquitecto Jos Antnio Saraiva, a Cambridge
University Press e o eminente historiador Eric Hobsbawm.
A bibliografia que se segue permite o aprofundamento da articulao entre a
nacionalidade e a literatura em vrios pases e continentes, nas suas diversas
perspectivas.
23
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28
29
O que uma nao ? *
Ernest Renan
Proponho-me analisar convosco uma ideia, clara em aparncia, mas que se
presta aos mais perigosos mal-entendidos. As formas da sociedade humana apresentam
uma grande diversidade. As grandes aglomeraes de homens maneira da China, do
Egipto, da mais antiga Babilnia; - a tribo maneira dos hebreus, dos rabes; - a cidade
maneira de Atenas e de Esparta; - o agrupamento de pases diversos maneira do
imprio carolngio; - as comunidades sem ptria, mantidas por laos religiosos, como
so as dos israelitas, dos parses; - as naes como a Frana, a Inglaterra e a maior parte
dos estados independentes europeus; - as confederaes maneira da Sua, da
Amrica; - os graus de parentesco como os que a raa, ou sobretudo a lngua,
estabelecem entre os diferentes ramos dos germanos, os diferentes ramos dos eslavos; -
eis alguns modos de agrupamentos que existem ou existiram, e que no saberamos
confundir sem gerar os mais srios inconvenientes. Na poca da Revoluo Francesa,
acreditava-se que as instituies de pequenas cidades independentes, como as de
Esparta e Roma, se poderiam aplicar s nossas grandes naes com trinta ou quarenta
milhes de almas. Hoje, cometemos um erro mais grave: confundimos a raa com a
nao, e atribumos a grupos etnogrficos, ou sobretudo lingusticos, uma soberania
anloga dos povos realmente existentes. Esforcemo-nos para chegar a alguma
exactido nestas questes difceis, em que a menor confuso sobre os sentidos das
palavras, na origem do raciocnio, pode produzir, no final, os erros mais funestos. O que
iremos fazer delicado; quase uma vivisseco; iremos tratar os vivos como
habitualmente tratamos os mortos. F-lo-emos com total frieza e imparcialidade.
_
*RENAN, Ernest (s/d) - "Qu' est-ce qu' une nation? (Confrence faite en Sorbonne, le 11 mars
1882)", Discours et Confrences, 6 ed. Paris: Calmann-Lvy, pp. 277-310.
30
I
Desde o fim do Imprio romano, ou melhor, desde a deslocao do Imprio de
Carlos Magno, a Europa ocidental apareceu bruscamente dividida em naes, das quais
algumas, em certas pocas, procuraram exercer uma hegemonia sobre as outras, sem
jamais serem bem sucedidas de uma maneira durvel. O que Carlos V, Lus XIV e
Napoleo I no puderam, provavelmente ningum poder no futuro. O estabelecimento de
um novo Imprio romano ou de um novo Imprio de Carlos Magno tornou-se uma
impossibilidade. A diviso da Europa muito grande para que uma tentativa de
dominao universal no provoque muito rapidamente uma coligao que faa com que a
nao ambiciosa volte aos seus limites naturais. Uma espcie de equilbrio est
estabelecida durante um longo espao de tempo. A Frana, a Inglaterra, a Alemanha, a
Rssia sero ainda, em centenas de anos, apesar das aventuras as aventuras tero
percorrido, individualidades histricas, as peas essenciais de um tabuleiro, cujas casas
variam sem cessar de importncia e de grandeza, sem jamais se confundirem.
As naes, entendidas desta maneira, so uma coisa bastante nova na histria. A
antiguidade no as conheceu; o Egipto, a China, a antiga Caldeia no foram, em nenhum
grau, naes. Eram tropas conduzidas por um filho do Sol, ou um filho do Cu. No
existiram cidados egpcios, do mesmo modo que no existem cidados chineses. A
antiguidade clssica teve repblicas e realezas municipais, confederaes de repblicas
locais, imprios; ela no teve naes, no sentido em que ns as compreendemos. Atenas,
Esparta, Sdon, Tiro so pequenos centros de admirvel patriotismo; mas so cidades com
um territrio relativamente restrito. A Glia, a Espanha, a Itlia, antes da sua absoro no
Imprio romano, eram conjuntos de pequenas populaes, frequentemente ligadas entre
si, mas sem instituies centrais, sem dinastias. O Imprio assrio, o Imprio persa, o
Imprio de Alexandre tambm no foram ptrias. Nunca existiram patriotas assrios; o
Imprio persa foi um vasto mundo feudal. Nenhuma nao ligou as suas origens
colossal aventura de Alexandre, que foi, no obstante, to rica em consequncias para a
histria geral da civilizao.
O Imprio romano esteve bem mais prximo de ser uma ptria. Em troca da
imensa vantagem do fim das guerras, a dominao romana, primeiramente to dura, foi
31
muito rapidamente apreciada. Esta foi uma grande associao, sinnimo de ordem, de paz
e de civilizao. Nos ltimos tempos do Imprio existiu, entre as almas nobres, entre os
bispos esclarecidos, entre os letrados, um verdadeiro sentimento de pax romana, oposto
ao caos ameaador da barbrie. Mas, um imprio doze vezes maior do que a Frana
actual, no saberia formar um Estado na acepo moderna. A ciso do Oriente e do
Ocidente era inevitvel. Os ensaios de um imprio gauls, no sculo III, no foram bem
sucedidos. a invaso germnica que introduz no mundo o princpio que, mais tarde,
serviu de base existncia das nacionalidades.
Com efeito, o que fizeram os povos germnicos desde suas grandes invases do
sculo V at as ltimas conquistas normandas no sculo X? Eles mudaram pouco o fundo
das raas; mas impuseram dinastias e uma aristocracia militar a partes mais ou menos
considerveis do antigo Imprio do Ocidente, as quais tomaram o nome de seus
invasores. Da uma Frana, uma Burgondia, uma Lombardia; mais tarde, uma Normandia.
A rpida preponderncia que ganhou o imprio franco refez em pouco tempo a unidade
do Ocidente; mas este imprio desfez-se irremediavelmente ao longo do sculo IX; o
tratado de Verdun traa divises inalterveis, em princpio e, desde ento, a Frana, a
Alemanha e a Inglaterra, a Itlia, a Espanha encaminham-se, por vias com frequncia
indiretas e por meio de mil aventuras, sua plena existncia nacional, tal como ns a
vemos desabrochar hoje.
Com efeito, o que caracteriza, estes diferentes Estados? a fuso das populaes
que os compem. Nos pases que acabamos de enumerar, no h nada de anlogo ao que
vs encontrareis na Turquia, onde o turco, o eslavo, o grego, o armnio, o rabe, o srio e
o curdo so to distintos hoje como no dia da conquista. Duas circunstncias essenciais
contriburam para este resultado. Em primeiro lugar, o facto de os povos germnicos
terem adoptado o cristianismo desde que eles tiveram contactos um pouco frequentes com
os povos gregos e latinos. Quando o vencedor e o vencido so da mesma religio, ou,
para dizer melhor, quando o vencedor adopta a religio do vencido, o sistema turco, a
distino absoluta dos homens de acordo com a religio, no se pode produzir novamente.
A segunda circunstncia foi, por parte dos conquistadores, o esquecimento da sua prpria
lngua. Os descendentes de Clvis, de Alarico, de Gondebaud, de Albon, de Rollon,
falavam j o romano. Este facto era ele prprio a consequncia de uma outra
particularidade importante; que os francos, os burgondos, os godos, os lombardos e os
normandos tinham muito poucas mulheres da sua raa entre eles. Durante muitas
32
geraes, os chefes s se casavam com mulheres germanas; mas as suas concubinas eram
latinas, as amas de leite das crianas eram latinas; toda a tribo casava com mulheres
latinas; o que fez com que a lingua francica e a lingua gothica no tivessem, desde o
estabelecimento dos francos e dos godos em terras romanas, mais do que um breve
destino. No sucedeu assim na Inglaterra; visto que a invaso anglo-saxnica tinha, sem
dvida, mulheres com ela; a populao bret desvaneceu-se e, por outro lado, o latim j
no existia a, pode mesmo dizer-se que nunca foi dominante na Bretanha. Se se tivesse
falado, de um modo geral, gauls na Glia, no sculo V, Clvis e os seus no teriam
abandonado o germnico a favor do gauls.
Da o resultado central de, apesar da extrema violncia dos costumes dos
invasores germanos, o modelo que impuseram se tornar, com o passar dos sculos, o
prprio molde da nao. A Frana torna-se muito legitimamente o nome de um pas onde
no tinha entrado mais do que uma imperceptvel minoria de francos. No sculo X, nas
primeiras canes de gesta, que so um espelho to perfeito do esprito do tempo, todos
os habitantes da Frana so franceses. A ideia de uma diferena de raas na populao da
Frana, to evidente em Gregrio de Tours, no se apresenta em qualquer grau entre os
escritores e os poetas franceses posteriores a Hugo Capeto. A diferena do nobre e do
vilo to acentuada quanto possvel; mas a diferena de um para outro no , em nada,
uma diferena tnica; uma diferena de coragem, de hbitos e de educao transmitida
hereditariamente; a ideia que a origem de tudo isso seja uma conquista no ocorre a
ningum. O falso sistema segundo o qual a nobreza deve sua origem a um privilgio
conferido pelo rei por grandes servios prestados nao, se bem que todo o nobre
algum enobrecido, foi estabelecido como um dogma desde o sculo XIII. A mesma coisa
se passou na sequncia de quase todas as conquistas normandas. Ao fim de uma ou duas
geraes, os invasores normandos j no se distinguiam do resto da populao; a sua
influncia no tinha sido menos profunda; eles tinham dado ao pas conquistado uma
nobreza, hbitos militares e um patriotismo que anteriormente no existiam.
O esquecimento, e diria mesmo o erro histrico, so um factor essencial na criao
de uma nao, e assim que o progresso dos estudos histricos frequentemente um
perigo para a nacionalidade. Com efeito, a investigao histrica, na verdade, traz luz
do dia os factos violentos que ocorreram na origem de todas as formaes polticas,
mesmo daquelas cujas consequncias foram as mais benficas. A unificao faz-se
sempre brutalmente; a reunio da Frana do norte e da Frana do sul [midi] foi o resultado
33
de uma exterminao e de um terror continuado durante quase um sculo. O rei da
Frana, que , se ouso diz-lo, o tipo ideal de um cristalizador secular; o rei da Frana,
que fez a mais perfeita unidade nacional que existia; o rei da Frana, visto de muito perto,
perdeu o seu prestgio; a nao que ele tinha formado amaldioou-o, e, hoje, s os
espritos cultivados sabem o que ele valia e o que ele fez.
pelo contraste que estas grandes leis da histria da Europa ocidental se tornam
sensveis. No empreendimento que o rei da Frana, em parte pela sua tirania, em parte
pela sua justia, levou a cabo to admiravelmente levado a termo, muitos pases
fracassaram. Sob a coroa de saint tienne, os magiares e os eslavos permaneceram to
distintos quanto eram h oitocentos anos. Longe de fundir os elementos diversos dos seus
domnios, a casa de Habsburgo manteve-os distintos e frequentemente opostos uns aos
outros. Na Bomia, o elemento checo e o elemento alemo so sobrepostos como o leo e
a gua num copo. A poltica turca da separao das nacionalidades de acordo com a
religio teve consequncias bem mais graves: ela causou a runa do Oriente. Tome-se
como exemplo uma cidade como Salnica ou Esmirna: a se encontraro cinco ou seis
comunidades, cada qual com as suas prprias memrias e com quase nada em comum.
Ora, a essncia de uma nao consiste no facto de todos os indivduos terem muitas coisas
em comum, e tambm de todos terem esquecido muitas outras. Nenhum cidado francs
sabe se ele burgondo, alano, taifalo, visigodo; todo o cidado francs deve ter esquecido
a noite de So Bartolomeu, os massacres do Sul [Midi] no sculo XIII. No h em Frana
dez famlias que possam fornecer a prova de uma origem franca, alm de que uma tal
prova seria essencialmente defeituosa, devido aos mil cruzamentos desconhecidos que
podem desarranjar todos os sistemas dos genealogistas.
A nao moderna , deste modo, um resultado histrico conduzido por uma srie
de factos convergindo no mesmo sentido. s vezes, a unidade foi realizada por uma
dinastia, como o caso da Frana; outras vezes, ela resultou da vontade directa das
provncias, como o caso da Holanda, da Sua e da Blgica; noutras vezes, proveio de
um esprito geral, tardiamente vencedor dos caprichos do mundo feudal, como o caso da
Itlia e da Alemanha. Uma profunda razo de ser presidiu sempre a estas formaes. Os
princpios, em tais casos, emergem atravs das surpresas mais inesperadas. Ns vimos,
hoje em dia, a Itlia unificada pelas suas derrotas e a Turquia demolida pelas suas
vitrias. Cada derrota permitia avanar com os afazeres da Itlia; cada vitria conduzia
perda da Turquia; porque a Itlia uma nao, e a Turquia, fora da sia Menor, no o .
34
a glria da Frana o facto de, pela Revoluo Francesa, ter proclamado que uma nao
existe por ela mesma. No devemos levar a mal que nos imitem. O princpio das naes
nosso. Mas o que ento uma nao? Por que que a Holanda uma nao, ao passo que
Hanover ou o gro-ducado de Parma no o so? Como que a Frana persiste em ser uma
nao, quando o princpio que a criou j desapareceu? Como que a Sua, que tem trs
lnguas, duas religies, trs ou quatro raas, uma nao, quando a Toscana, por
exemplo, que to homognea, no o ? Por que que a ustria um Estado e no uma
nao? Em que que o princpio das nacionalidades difere do princpio das raas? Eis
alguns dos pontos sobre os quais um esprito reflectido deve debruar-se, para se colocar
de acordo consigo mesmo. As coisas do mundo no se regulam por esta espcie de
raciocnios; mas os homens aplicados desejam levar alguma razo a esta matria e
esclarecer as confuses onde se confundem os espritos superficiais.
II
No entender de alguns tericos polticos, uma nao , antes de tudo, uma
dinastia, representando uma antiga conquista, primeiramente aceite e depois esquecida
pela massa do povo. Segundo as polticas de que falo, o agrupamento de provncias
efectuado por uma dinastia, pelas suas guerras, pelos seus casamentos, pelos seus
tratados, acaba com a dinastia que o formou. bem verdade que a maior parte das naes
modernas foi feita por uma famlia de origem feudal, que contraiu casamento com o solo
e que foi, em certa medida, um ncleo de centralizao. Os limites da Frana em 1789
no tinham nada de natural nem de necessrio. A larga zona que a casa dos capetos tinha
acrescentado estreita orla do tratado de Verdun foi, a bem da verdade, uma aquisio
pessoal desta casa. Na poca em que foram feitas as anexaes, no se tinha a ideia de
limites naturais, nem do direito das naes, nem da vontade das provncias. A reunio da
Inglaterra, da Irlanda e da Esccia foi, do mesmo modo, um facto dinstico. A Itlia
tardou tanto tempo a ser uma nao porque, entre as suas numerosas casas reinantes,
nenhuma, antes do nosso sculo, se tornou o centro da unidade. Coisa estranha, foi
obscura ilha da Sardenha, terra pouco italiana, que foi buscar um ttulo real. A Holanda,
que se criou a si prpria por um acto de herica resoluo contraiu, todavia, um
35
casamento ntimo com a casa de Orange, e ela corria verdadeiros perigos no dia em que
essa unio se veria comprometida.
Uma tal lei, contudo, absoluta? No, sem dvida. A Sua e os Estados Unidos,
que se formaram como conglomerados de adies sucessivas, no tm nenhuma base
dinstica. No discutiria a questo no que concerne Frana. Seria necessrio ter o
segredo do futuro. Digamos, somente, que esta grande realeza francesa tinha sido to
fortemente nacional que, aps sua queda, a nao pde existir sem ela. E, alm disso, o
sculo XVIII mudou muita coisa. O homem estava de volta, aps sculos de submisso,
ao esprito antigo, ao respeito por si mesmo, ideia os seus direitos. As palavras ptria e
cidado tinham retomado o seu sentido. Assim, pde realizar-se a operao mais ousada,
jamais praticada na Histria, a operao que podemos comparar com aquela que seria, em
psicologia, a tentativa de fazer viver na sua primeira identidade um corpo a que teramos
retirado o crebro e o corao.
Portanto, necessrio admitir que uma nao pode existir sem um princpio
dinstico, e mesmo que as naes que foram formadas por dinastias podem separar-se
desta dinastia sem por isso deixar de existir. O velho princpio que s d conta do direito
dos prncipes j no podia ser mantido; para alm do direito dinstico, existe o direito
nacional. Sobre que critrio fund-lo? Sob que signo podemos conhec-lo? De que facto
tangvel o fazemos derivar?
I. Da raa, dizem muitos com segurana.
As divises artificiais, resultantes do mundo feudal, dos casamentos entre prncipes, dos
congressos de diplomatas, esto caducas. O que permanece firme e fixo a raa das
populaes. Eis o que constitui um direito, uma legitimidade. A famlia germnica, por
exemplo, segundo a teoria que exponho, tem o direito de reaver os membros dispersos do
germanismo, mesmo quando estes membros no pedem para se lhe juntar. O direito do
germanismo sobre tal provncia mais forte do que o direito dos habitantes desta
provncia sobre si mesmos. Criamos, assim, uma espcie de direito primordial anlogo ao
direito divino dos reis; substitumos o princpio das naes pelo da etnografia. Eis um
grande erro que, se se tornar dominante, conduzir perda da civilizao europeia. De
igual modo, o princpio das naes justo e legtimo, assim como o do direito primordial
das raas estreito e cheio de perigos para o verdadeiro progresso.
36
Na tribo e na cidade antigas, o facto da raa tinha, ns reconhec-mo-lo, uma
importncia de primeira ordem. A tribo e a cidade antigas no eram mais do que uma
extenso da famlia. Em Esparta, em Atenas, todos os cidados eram parentes em graus
mais ou menos aproximados. O mesmo se passava com os Beni-Israel; isso ainda assim
nas tribos rabes. De Atenas, de Esparta, da tribo israelita, transportemo-nos para o
Imprio romano. A situao bem diferente. Formado inicialmente pela violncia, depois
mantido pelo interesse, esta grande aglomerao de cidades, de provncias absolutamente
diferentes, traz ideia de raa o golpe mais grave. O cristianismo, com o seu carcter
universal e absoluto, trabalha ainda no mesmo sentido, mas de modo mais eficaz. Ele
contrai com o Imprio romano uma aliana ntima e, pelo efeito destes dois
incomparveis agentes de unificao, a razo etnogrfica afastada do governo das coisas
humanas por vrios sculos. A invaso dos brbaros foi, apesar das aparncias, mais um
passo nessa via. Os recortes dos reinos brbaros no tm nada de etnogrfico; eles so
estabelecidos pela fora ou pelo capricho dos invasores. A raa das populaes que eles
dominavam era para eles a coisa mais indiferente. Carlos Magno refez, sua maneira, o
que Roma j tinha feito: um imprio nico composto pelas raas mais diversas. Os
autores do tratado de Verdun, traando de modo imperturbvel as suas duas grandes
linhas do norte ao sul, no tinham a menor preocupao com a raa dos povos que se
encontravam direita ou esquerda. Os movimentos de fronteira que se operaram na
sequncia da Idade Mdia estiveram tambm fora de toda a tendncia etnogrfica. Se a
poltica levada a cabo pela casa dos capetos chegou a agrupar sob o nome de Frana
grande parte dos territrios da antiga Glia, no se trata de um efeito da tendncia que
teriam tido estes pases para se juntarem aos seus congneres. A Dauphin, a Bresse, a
Provena, o Franco-Condado j no se lembravam de uma origem comum. Toda a
conscincia gaulesa tinha perecido desde o sculo II da nossa era, e s pela via de
erudio, nos nossos dias, reencontrmos retrospectivamente a individualidade do
carcter gauls.
Deste modo, a considerao etnogrfica no contribuiu em nada para a
constituio das naes modernas. A Frana cltica, ibrica e germnica. A Alemanha
germnica, cltica e eslava. A Itlia o pas onde a etnografia mais enredada. Gauleses,
etruscos, pelasgos, gregos, sem falar de muitos outros elementos, cruzam-se a numa
indecifrvel mistura. As ilhas britnicas, no seu conjunto, oferecem uma mistura de
sangue cltico e germnico cujas propores so singularmente difceis de definir.
37
A verdade que no h raa pura e que fazer repousar a poltica sobre a anlise
etnogrfica consiste em conduzi-la a uma quimera. Os mais nobres pases, a Inglaterra, a
Frana, a Itlia, so aqueles em que o sangue est mais misturado. A Alemanha
representar, a esse respeito, uma excepo? Ela um pas germnico puro? Que iluso!
Todo o sul foi gauls. Todo o leste, a partir do Elba, eslavo. E as partes que se pretende
que so realmente puras, s-lo-o na verdade? Tocamos aqui num dos problemas sobre o
qual importa, o mais possvel, tornar as ideias claras e prevenir os mal-entendidos.
As discusses sobre as raas so interminveis, porque a palavra raa tomada
pelos historiadores fillogos e pelos antroplogos fisiologistas em dois sentidos
completamente diferentes. Para os antroplogos, a raa tem o mesmo sentido que em
Zoologia: ela indica uma descendncia real, um parentesco pelo sangue. Ora, o estudo das
lnguas e da histria no conduz s mesmas divises da fisiologia. As palavras
braquicfalos e dolicocfalos no tm lugar na histria nem na filologia. No grupo
humano que criou as lnguas e a disciplina arianas, havia j braquicfalos e dolicocfalos.
necessrio dizer outro tanto do grupo primitivo que criou as lnguas e as instituies
ditas semticas. Por outras palavras, as origens zoolgicas da humanidade so
enormemente anteriores s origens da cultura, da civilizao, da linguagem. Os grupos
ariano primitivo, semtico primitivo e turaniano primitivo no tinham nenhuma unidade
psicolgica. Estes agrupamentos so factos histricos que tiveram lugar numa certa
poca, digamos h quinze ou vinte mil anos, enquanto que a origem zoolgica da
humanidade se perde nas trevas incalculveis. O que chamamos filolgica e
historicamente a raa germnica seguramente uma famlia bem distinta na espcie
humana. Mas ser uma famlia no sentido antropolgico? No, seguramente. A apario
da individualidade germnica na histria s se d poucos sculos antes de Jesus Cristo.
Aparentemente, os germanos no saram da sua terra nesta poca. Antes disso, fundidos
com os eslavos na grande massa indistinta dos citas, eles no tinham uma individualidade
parte. Um ingls bem um tipo uno no conjunto da humanidade. Ora, o tipo daquilo a
que chamamos muito impropriamente a raa anglo-saxnica no nem o breto do tempo
de Csar, nem o anglo-saxo de Hengist, nem o dinamarqus de Knut, nem o normando
de Guilherme, o conquistador; o resultante de tudo isso. O francs no nem um gauls,
nem um franco, nem um burgondo. Ele o que saiu do grande caldeiro onde, sob a
presidncia do rei da Frana, fermentaram, conjuntamente, os elementos mais diversos.
Um habitante de Jersey ou de Guernesey no difere em nada, pelas origens, da populao
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normanda da costa vizinha. No sculo XI, o olho mais penetrante no teria podido
vislumbrar a mais ligeira diferena nos dois lados do canal. Insignificantes circunstncias
fazem com que Filipe Augusto no tome estas ilhas com o resto da Normandia. Separadas
umas das outras desde h cerca de setecentos anos, as duas populaes tornaram-se no
s estrangeiras umas s outras, mas tambm totalmente dissemelhantes. A raa, como a
entendemos ns, os historiadores, portanto uma coisa que se faz e que se desfaz. O
estudo da raa capital para o sbio que se ocupa da histria da humanidade. Ele no tem
aplicao na poltica. A conscincia instintiva que presidiu confeco do mapa da
Europa no considerou de forma alguma a raa, e as primeiras naes da Europa so
naes de sangue essencialmente misturado.
O facto da raa, capital na origem, vai, ento, perdendo sempre a sua importncia.
A histria humana difere essencialmente da zoologia. A raa no tudo, como entre os
roedores ou os felinos, e no temos o direito de ir pelo mundo a fazer experincias com o
crnio das pessoas, para depois lhes pegar pela garganta para lhes dizer: Tu s do nosso
sangue; tu pertences-nos! Para alm dos caracteres antropolgicos, h a razo, a justia,
a verdade e o belo, que so os mesmos para todos. Reparai, esta poltica etnogrfica no
segura. Hoje, vs tirais partido dela contra os outros; depois, v-la-eis voltar-se contra vs
mesmos. certo que os alemes, que elevaram to alto a bandeira da etnografia, no
vero um dia os eslavos chegarem para analisar, por sua vez, os nomes das cidades da
Saxnia e da Luscia, procurar os traos dos Vilzes ou dos Obotritas e tirar satisfaes
pelos massacres e pelas vendas em massa dos seus antepassados que os Othons fizeram?
Para todos, bom saber esquecer.
Eu gosto muito da etnografia; uma cincia de um raro interesse; mas, como eu a
quero livre, quero-a sem aplicao poltica. Em etnografia, como em todos os estudos, os
sistemas mudam; a condio do progresso. Os limites dos Estados sobrevivem s
flutuaes da cincia. O patriotismo dependeria de uma dissertao mais ou menos
paradoxal. Se fssemos dizer ao patriota: o senhor enganou-se; o senhor derramou o seu
sangue por tal causa; o senhor acreditava que era celta; no, o senhor germano. Depois,
passados dez anos, viriam dizer-vos que sois eslavo. Para no falsificar a cincia,
dispens-mo-la de dar uma opinio sobre estes problemas, em que esto envolvidos tantos
interesses. Estai seguros de que, se a encarregamos de fornecer elementos diplomacia,
ns iremos surpreend-la muitas vezes em flagrante delito de complacncia. Ela tem
coisas melhores para fazer: peamos-lhe muito simplesmente a verdade.
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II. O que acabamos de dizer da raa, necessrio diz-lo da lngua. A lngua
convida a reunir, mas no fora essa unio. Os Estados Unidos e a Inglaterra, a Amrica
espanhola e a Espanha falam a mesma lngua e no formam uma s nao. Pelo contrrio,
a Sua, to bem construda, visto que ela foi realizada com o acordo das suas diferentes
partes, tem trs ou quatro lnguas. H no homem alguma coisa superior lngua: a
vontade. A vontade da Sua de estar unida, apesar da variedade dos seus idiomas, um
facto muito mais importante do que uma similitude frequentemente obtida atravs de
humilhaes. Um facto honroso para a Frana consiste em ela nunca ter procurado obter a
unidade da sua lngua atravs de medidas coercivas. No podemos ter os mesmos
sentimentos e os mesmos pensamentos, amar as mesmas coisas em lnguas diferentes?
Falvamos h pouco do inconveniente que seria fazer depender a poltica internacional da
etnografia. No o seria menos faz-la depender da filologia comparada. Deixemos a esses
interessantes estudos a inteira liberdade das suas discusses; no os misturemos com
aquilo que alteraria a sua serenidade. A importncia poltica que atribumos s lnguas
vem do facto de as olharmos como signos da raa. Nada de mais falso. A Prssia, onde
no se fala mais do que o alemo, falava eslavo h alguns sculos; o Pas de Gales fala
ingls; a Glia e a Espanha falam o idioma primitivo da Alba Longa; o Egipto fala rabe;
os exemplos so inumerveis. Mesmo nas origens, a similitude da lngua no implicava a
similitude da raa. Tomemos por exemplo a tribo proto-ariana ou proto-semita;
encontravam-se a escravos, que falavam a mesma lngua que a dos seus mestres; ora, o
escravo era ento muito frequentemente de uma raa diferente da do seu mestre. Devemos
repeti-lo: estas divises entre lnguas indo-europeias, semticas e outras, criadas com uma
to admirvel sagacidade pela filologia comparada, no coincidem com as divises da
antropologia. As lnguas so formaes histricas, que indicam poucas coisas sobre o
sangue daqueles que as falam, e que, em todo caso, no saberiam prender a liberdade
humana quando se trata de determinar a famlia com a qual nos unimos para a vida e para
a morte.
Esta considerao exclusiva da lngua tem, como a ateno demasiado forte
concedida raa, os seus perigos, os seus inconvenientes. Quando colocamos a algum
exagero, enclausuramo-nos numa cultura determinada, tida por nacional; limitamo-nos,
emparedamo-nos. Deixamos o grande ar que respiramos no vasto campo da humanidade
para nos fecharmos em conventculos de compatriotas. Nada de pior para o esprito; nada
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de mais errado para a civilizao. No abandonemos este princpio fundamental de que o
homem um ser racional e moral, antes estar delimitado por tal ou tal lngua, antes de ser
um membro de tal ou tal raa, um membro de tal ou tal cultura. Antes da cultura francesa,
da cultura alem, da cultura italiana, h a cultura humana. Vede os grandes homens da
Renascena; eles no eram nem franceses, nem italianos, nem alemes. Eles tinham
reencontrado, pelo seu contacto com a antiguidade, o segredo da educao verdadeira do
esprito humano, devotavam-se-lhe de corpo e alma. Como eles fizeram bem!
III. A religio tambm no poderia oferecer uma base suficiente para o
estabelecimento de uma nacionalidade moderna. Na origem, a religio tinha a ver com
a prpria existncia do grupo social. O grupo social era uma extenso da famlia. A
religio, os ritos, eram ritos de famlia. A religio de Atenas era o culto mesmo de Atenas,
dos seus fundadores mticos, das suas leis e dos seus costumes. Ela no implicava
nenhuma teologia dogmtica. Esta religio era, em toda a fora do termo, uma religio de
Estado. No se era ateniense se a sua prtica fosse recusada. Era, no fundo, o culto da
Acrpole personificado. Jurar sobre o altar de Aglaura era prestar o juramento de morrer
pela ptria. Esta religio era o equivalente do que , entre ns, o tirar sorte ou o culto
bandeira. A recusa de participar em tal culto seria como recusar o servio militar nas
sociedades modernas. Era declarar que no se era ateniense. Por outro lado, claro que
um tal culto no tinha sentido para aquele que no era de Atenas; tambm no se
exercitava nenhum proselitismo para forar os estrangeiros a aceit-lo; os escravos de
Atenas no o praticavam. O mesmo sucedeu nalgumas pequenas repblicas da Idade
Mdia. No se era um bom veneziano se no se prestasse juramento a S. Marcos; no se
era bom amalfitano se no se colocasse Santo Andr acima de todos os outros santos do
paraso. Nessas pequenas sociedades, o que foi mais tarde perseguio, tirania, era
legtimo e tinha to poucas consequncias como o facto de, entre ns, se festejar o pai de
famlia e de lhe enderear os votos no primeiro dia do ano.
O que era verdade em Esparta, em Atenas, j no o era nos reinos sados da
conquista de Alexandre e sobretudo no Imprio Romano. As perseguies de Antoco
Epifnio para levar o Oriente ao culto de Jpiter Olmpico, ou as do Imprio romano para
manter uma pretendida religio de Estado foram um erro, um crime, um verdadeiro
absurdo. Nos nossos dias, a situao perfeitamente clara. J no h massas de crentes de
uma maneira uniforme. Cada um cr e pratica sua maneira, como pode, como quer. J
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no h religio de estado; pode-se ser francs, ingls, alemo, sendo-se catlico,
protestante, israelita, ou no praticando nenhum culto. A religio tornou-se uma coisa
individual; ela diz respeito conscincia de cada um. A diviso das naes em catlicas,
protestantes, j no existe. A religio, que, h cinquenta e dois anos foi um elemento to
considervel na formao da Blgica, guarda toda a sua importncia no foro interior de
cada um; mas ela saiu quase inteiramente das razes que traam os limites dos povos.
IV. A comunidade de interesses seguramente um lao poderoso entre os homens.
Porm, bastaro os interesses para fazer uma nao? Eu no o creio. A comunidade de
interesses faz os tratados de comrcio. H na nacionalidade um lado sentimental; ela
alma e corpo ao mesmo tempo; um Zollverein no uma ptria.
V. A geografia, o que chamamos de fronteiras naturais, certamente tem uma
parte considervel na diviso das naes. A geografia um dos factores essenciais da
histria. Os cursos de gua conduziram as raas; as montanhas travaram-nas. Os
primeiros favoreceram, os segundos limitaram os movimentos histricos. Podemos
dizer, contudo, como o crem certos partidos, que os limites de uma nao esto escritos
sobre o mapa e que esta nao tem o direito de se apropriar do que necessrio para
aumentar alguns contornos, para alcanar tal montanha, tal rio, ao qual atribumos uma
espcie de faculdade limitante a priori? No conheo doutrina mais arbitrria nem mais
funesta. Com ela, justificamos todas as violncias. E, em primeiro lugar, so as
montanhas ou os rios que formam estas pretendidas fronteiras naturais? incontestvel
que as montanhas separam; mas os rios renem sobretudo. E, alm disso, nem todas as
montanhas separariam os Estados. Quais so aquelas que separam e aquelas que no
separam? De Biarritz Tornea no h nenhuma embocadura de rio que tenha mais que
outra um carcter limtrofe. Se a histria o tivesse desejado, o Loire, o Sena, o Meuse, o
Elba, o Oder teriam, assim como o Reno, este carcter de fronteira natural que fez
cometer tantas infraces ao direito fundamental, que a vontade dos homens. Falo de
razes estratgicas. Nada absoluto; claro que muitas concesses devem ser feitas
necessidade. Mas, no necessrio que estas concesses cheguem longe demais. De
outro modo, todos reclamaro as suas convenincias militares, e isso gerar uma guerra
sem fim. No, no a terra, mais que a raa, que faz uma nao. A terra fornece o
substrato, o campo da luta e do trabalho; o homem fornece a alma. O homem est
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inteiro na formao desta coisa sagrada a que chamamos um povo. Para isso, nada de
material suficiente. Uma nao um princpio espiritual, resultante das complicaes
profundas da histria, uma famlia espiritual, no um grupo determinado pela
configurao do solo.
Acabamos de ver o que no basta para criar um tal princpio espiritual: a raa, a
lngua, os interesses, a afinidade religiosa, a geografia, as necessidades militares. Que
mais, ento, necessrio? Pela sequncia do que foi dito anteriormente, eu no poderia,
daqui em diante, manter a vossa ateno por muito tempo.
III
Uma nao uma alma, um princpio espiritual. Duas coisas que, para dizer a
verdade, no so mais do que uma, constituem esta alma, este princpio espiritual. Uma
est no passado, a outra no presente. Uma a possesso em comum de um rico legado de
lembranas; outra o consentimento actual, o desejo de viver em conjunto, a vontade de
continuar a fazer valer a herana indivisa que se recebeu. O homem, Senhores, no se
improvisa. A nao, como o indivduo, o resultado de um longo passado de esforos, de
sacrifcios e de dedicaes. O culto dos antepassados de todos o mais legtimo; os
antepassados fizeram de ns o que somos. Um passado herico, grandes homens, a glria
(quero referir-me verdadeira glria), eis o capital social sobre o qual se assenta uma
ideia nacional. Ter glrias comuns no passado, uma vontade comum no presente; ter feito
grandes coisas em conjunto, querer faz-las ainda, eis as condies essenciais para se ser
um povo. Amamos na proporo dos sacrifcios que consentimos, dos males que
sofremos. Amamos a casa que construmos e que transmitimos. O canto esparciata: Ns
somos o que vocs foram; ns seremos o que vocs so, , na sua simplicidade, o hino
resumido de toda a ptria.
No passado, uma herana de glria e de tristezas a partilhar; no futuro, um
programa comum a realizar; ter sofrido, ter tido alegrias, ter esperado em conjunto, eis o
que vale mais do que alfndegas comuns e fronteiras conformes s ideias estratgicas; eis
o que pensamos, apesar das diversidades da raa e da lngua. Eu disse h pouco: ter
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sofrido em conjunto; sim, o sofrimento em comum une mais do que a alegria. Em
matria de memrias nacionais, os lutos valem mais que os triunfos, porque eles impem
deveres, eles comandam o esforo em comum.
Uma nao , ento, uma grande solidariedade, constituda pelo sentimento dos
sacrifcios que se fizeram e daqueles que ainda se est disposto a fazer. Ela supe um
passado; ela resume-se, portanto, no presente, por um facto tangvel: o consentimento, o
desejo claramente expresso de continuar a vida comum. A existncia de uma nao
(perdoem-me esta metfora) um plebiscito de todos os dias, como a existncia do
indivduo uma afirmao perptua da vida. Oh! Eu sei-o, isto menos metafsico do que
o direito divino, menos brutal que o pretendido direito histrico. Na ordem das ideias que
eu vos submeto, uma nao no tem mais direito do que um rei de dizer a uma provncia:
Tu pertences-me, eu ocupar-te-ei. Uma provncia, para ns, so os seus habitantes; se
algum, neste caso, tem o direito de ser consultado, o habitante. Uma nao nunca tem
um verdadeiro interesse em ser anexada ou em reter um pas a contragosto. O voto das
naes , em definitivo, o nico critrio legtimo, aquele ao qual necessrio sempre
retornar.
Ns afastmos da poltica as abstraces metafsicas e teolgicas. Que permanece
ento, depois disso? Permanece o homem, os seus desejos, as suas necessidades. A
diviso, diro vocs, e, ao longo do tempo, a fragmentao das naes, so as
consequncias de um sistema que coloca estes velhos organismos merc de vontades
frequentemente pouco esclarecidas. claro que em tal matria nenhum princpio deve ser
levado ao excesso. As verdades desta ordem s so aplicveis no seu conjunto e de um
modo muito geral. As vontades humanas mudam; mas o que que no muda? As naes
no so uma coisa eterna. Elas comearam, elas acabaro. A confederao europeia,
provavelmente, ir substitu-las. Mas no essa a lei do sculo em que vivemos. Na hora
presente, a existncia das naes boa, necessria mesmo. A sua existncia a garantia
da liberdade, que seria perdida se o mundo no tivesse mais do que uma lei e um mestre.
Pelas suas dificuldades diversas, frequentemente opostas, as naes esto ao
servio da obra comum da civilizao; todas trazem uma nota para este grande concerto
da humanidade que, em suma, a mais alta realidade ideal que atingimos. Isoladas, elas
tm as suas fraquezas. Eu digo-me frequentemente que um indivduo que tomasse os
defeitos das naes por qualidades se nutriria de glria v; que seria a tal ponto ciumento,
egosta, briguento; que no poderia suportar nada sem sacar de uma arma, seria o mais
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insuportvel dos homens. Mas todas estas dissonncias de detalhe desaparecem no
conjunto. Pobre humanidade, o que tu sofreste! Que provas te esperam ainda? Que o
esprito da sabedoria te possa guiar, para te preservar dos inumerveis perigos semeados
no teu caminho!
Eu resumo, Senhores. O homem no escravo nem da sua raa, nem da sua
lngua, nem da sua religio, nem do curso dos rios, nem da direco das cadeias
montanhosas. Uma grande assembleia de homens, s de esprito e quente de corao, cria
uma conscincia moral a que se chama nao. Quando esta conscincia moral prova a sua
fora, pelos sacrifcios que exige a abdicao do indivduo em proveito de uma
comunidade, ela legtima, ela tem o direito de existir. Se se levantam dvidas sobre as
suas fronteiras, consultem as populaes disputadas. Elas tm o direito de ter uma opinio
sobre essa questo. Eis o que far sorrir os transcendentes da poltica, esses infalveis que
passam a sua vida a errar e que, do alto dos seus princpios superiores, tm pena do nosso
terra--terra. Consultar as populaes, credo! Que ingenuidade! Eis bem representadas
estas franzinas ideias francesas que pretendem substituir a diplomacia e a guerra por
medidas de uma simplicidade infantil. Esperemos, Senhores; deixemos passar o reino
dos transcendentes; saibamos desculpar a arrogncia dos fortes. Talvez, aps muitas
procuras infrutferas, se volte s nossas modestas solues empricas. Em certos
momentos, o modo de ter razo no futuro consiste em saber resignar-se a estar fora de
moda [dmod].
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Comunidades Imaginadas - Introduo *
Benedict Anderson
Talvez sem ser ainda muito notada, temos perante ns uma transformao
fundamental na histria do marxismo e dos movimentos marxistas. Os sinais mais
visveis dessa transformao so as guerras recentes entre o Vietname, o Camboja e a
China. Estas guerras tm uma importncia histrica mundial porque so as primeiras a
ser travadas entre regimes com uma independncia e credenciais revolucionrias
inegveis, e porque nenhum dos beligerantes fez mais do que umas tentativas totalmente
inconsequentes para justificar o banho de sangue em termos de uma perspectiva terica
que pudesse ser reconhecida como marxista. Enquanto os confrontos na fronteira sino-
-sovitica em 1969 ou as intervenes militares soviticas na Alemanha (1953), na
Hungria (1956), na Checoslovquia (1968) e no Afeganisto (1980) podiam, ainda que
no limite, ser interpretados em termos de segundo os gostos imperialismo
social, defesa do socialismo, etc., imagino que ningum acredite seriamente que
estes vocbulos tenham muito suporte em relao com o que aconteceu na Indochina.
Se a invaso e ocupao do Camboja pelo Vietname em Dezembro de 1978 e
Janeiro de 1979 representou a primeira guerra convencional em larga-escala
empreendida por uma regime marxista revolucionrio contra outro1. A agresso da
* Benedict Anderson (2005) - Comunidades Imaginadas. Reflexes sobre a Origem e a Expanso do
Nacionalismo. Lisboa: Edies 70 [1996 - 7 reimpresso da 2 ed. revista, de 1991], pp. 21-9.
1 Escolhi esta formulao simplesmente para enfatizar a escala e o estilo da luta, e no para atribuir
culpas. Para evitar possvei