Especial Estadão Saramago_19JUN10

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  • 8/9/2019 Especial Estado Saramago_19JUN10

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    Entrevista

    O crtico literrio Harold Bloom fala doamor e do paraso que mudaram o escritor

    a b t ic

    a b t icESPECIAL

    estado.com.br

    JOS SARAMAGO1922 - 2010Morre o nico autor de lngua portuguesaa ganhar o Prmio Nobel de Literatura.Nesta edio, seu pensamento, suas obras,a repercusso no Brasil e no mundo, asadaptaes para cinema e teatro, amilitncia poltica e as polmicas religiosas.

    ERNESTO RODRIGUES/AE

    %HermesFileInfo:H-1:20100619:H1 SBADO,19DE JUNHODE 2010 O ESTADO DE S. PAULO

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    ANTONIO GONALVES FILHO

    A morte doe s c r i t o rportugusJos Sara-mago, aos87anos,on-t em p e lamanh, ems ua c as aem Lanza-

    rote, nas Ilhas Canrias, de complicaesrespiratrias provocadas por um fungo eleucemiacrnica, causou comoo interna-cional entre leitores, escritores, cineastas,polticos e autoridades governamentais. Oprmio Nobel de Literatura 1998 passoumal apstomar o cafda manhe no resis-tiu, apesar de ter recebido auxlio mdicoimediato. Uma nota assinada pela Funda-o Jos Saramago confirma que o escritormorreu de forma serena e tranquila. Seusrestos mortais sero levados ao cemitriolisboeta de Alto de So Joo e incineradosamanh, segundo fontes da mesma funda-o. O corpo do escritor, velado ontem na

    biblioteca que leva seu nome em Lanzaro-te, chega hoje a Portugal num avio militardo governo do pas e ser exposto no salode honra da Cmara Municipal de Lisboaat o meio-dia. Segundo o administradorda Fundao Jos Saramago, Jos Sucena, possvel que as cinzas do escritor sejam es-palhadas em Lanzarote ou sua terra natal, Azinhaga, masisso vai dependerde sua mu-lher, a jornalista Pilar del Rio, que no sepronunciou a respeito.

    Tambm ganhador do prmio Cames a mais alta condecorao da lngua portu-guesa , Saramago deixouum livro inacaba-do em seu computador, Alabardas, Alabar-das, Espingardas, Espingardas!, que, apesardo ttulo referncia a um verso do drama-turgo portugus Gil Vicente , no umareflexo sobre a obra do compatriota, massobre o trfico de armas. Violncia polticae religio foram suas duas ltimas preocu-paes. Sobre sua mesa de trabalho repou-sava o livro do jornalista e escritor espa-nhol Juan Arias, El Gran Secreto de Jess(OGrande Segredo de Jesus), em que o autor, aexemplo do que Saramago fez com O Evan- gelho de Jesus Cristo, questiona a teologia dacruz e da redeno para propor uma teolo-gia da felicidade. Tambm lia simultanea-mente o ltimo romance de Thomas Mann(Confisses do Impostor Flix Krull) e s Ce- gas, de seu amigo italiano Claudio Magris.

    Como as alabardas de longas hastes usa-das contra invasores de fortalezas na Ida-de Mdia, Saramago era cortante em suascrticas contra as instituies, fossem elaspolticas ou religiosas. Mistura de lana emachado, a alabarda tanto servia para esca-lar muralhas como para afundar as cabe-as dos inimigos. E Saramago fez isso noslivros e na vida. Nascido numa famlia hu-

    milde de camponeses de Azinhaga, vilarejoda provncia portuguesa do Ribatejo, em16 de novembro de 1922 (o registro oficial do dia 18), no pde frequentar uma uni- versidade, comeando a vida como serra-lheiro mecnico. Sua escalada social, por-tanto, teve incio pela literatura de outrosautores. Autodidata, aps publicar o pri-meiro romance, Terra do Pecado(1947), co-meou a traduzir escritores como Tolstie Baudelaire, tendo sido influenciado espe-cialmente pelo russo em sua defesa polti-ca dos menos favorecidos.

    A denncia de injustias sociais marcouat o fim sua carreira literria.No se tra-ta de instruir, seno de educar, escreveuSaramago em seu livro recm-publicado,Democracia e Universidade(pela espanholaEditorial Complutense), em que diz que a

    democracia est gravemente enferma e preciso ensinar cidadania s crianas an-tes que seja tarde, justificando assim queos governos prestem mais ateno edu-cao primria do que universitria. A Companhia das Letras, que publica todosos seus livros no Brasil, ainda no tem pla-nos de lanar Democracia e Universidadeou Alabardas, Alabardasno Brasil.Seu ltimo livro publicado aqui foiCaim(2009), reinveno cida do AntigoTestamento em que Deus aparece com le-tra minscula entre vrgulas e mais vrgu-las Saramago detestava ponto final. Osprotagonistas da histria bblica ganhamnovas personalidades no livro. A conclu-so da histria pessimista: seramos to-dos perversos caimitas, descendentes deum assassino de sangue ruim que, no ep-logo, vocifera contra o Criador pedindoque o mate, o que no acontece. Eles con-tinuam discutindo por toda a eternidade.

    Igreja. Saramago, j malvisto pela Igrejaporcausa de O EvangelhoSegundo Jesus Cris-to (1991) tentativa de humanizar a figurado Cristo como Pasolini fez em seu filme OEvangelho Segundo Mateus(1964) , ficouainda mais distante dela. Ontem, no entan-to, o diretor do Secretariado Nacional daPastoral da Cultura da Conferncia Episco-pal Portuguesa, padre Jos Tolentino, dissea um jornal portugus que a Igreja perdeum crtico com o qual soube dialogar cons-tantemente. Pode ser. Saramago estavasempre pronto a rever suas posies, masnunca poupou crticas ao papa Bento 16.

    ELEAMAVA O BRASILE ERACORRESPONDIDO. EU GOSTAVADEBRINCAR COM ELE E DIZERQUE, DE TANTOREFORAR SEUATESMO, ELENA VERDADE AMAVAA DEUS TANTOQUANTO PILAR.

    }

    TODA OBRA

    Anbal Cavaco Silva,presidente de Portugal

    Era umarefernciada cultura portuguesa,suaobra literria deveser lida e conhecidapelasgeraes futuras.

    Especial

    Intelectualrespeitadoemtodoo mundo,nuncaesqueceu suasorigens,tornando-semilitante decausas sociaisedaliberdade.LYGIAFAGUNDESTELLES,ESCRITORA

    Sua forma um poucobarrocade levar a lnguaportuguesaao paradoxomostrao lado literal dessacultura e o absurdodavida

    Morto ontem, aos 87 anos, Jos Saramago, Nobelde Literatura de 1998, deixa umlivro inacabadosobre trfico de armas e uma existncia marcadapela reviso constantede suas posies polticas

    Luiz IncioLula da Silva,presidente do Brasil

    Luiz Schwarcz, editor deSaramago no Brasil

    TERRADO PECADO,romance , 1947OSPOEMASPOSSVEIS,poesia, 1966PROVAVELMENTEALEGRIA,poesia, 1970DESTEMUNDOEDOOUTRO,ensaio, 1971ABAGAGEMDO VIAJANTE,ensaio, 1973ASOPINIESQUEO DLTEVE,ensaio, 1974OANODE 1993.poesia, 1975OSAPONTAMENTOS, ensaio, 1976

    MANUALDE PINTURAE CALIGRAFIA,romance, 1977OBJECTOQUASE,romance, 1978POTICADOSCINCOSENTIDOS OOUVIDO,ensaio, 1979A NOITE,teatro, 1979QUEFAREI COMESTELIVRO,teatro, 1980LEVANTADODO CHO,romance, 1980VIAGEMA PORTUGAL,ensaio, 1981MEMORIALDO CONVENTO,romance, 1982OANODAMORTEDERICARDOREIS,romance, 1986A JANGADA DEPEDRA, romance, 1986ASEGUNDAVIDADE SOFRANCISCODEASSIS, teatro, 1987HISTRIADO CERCODE LISBOA,romance, 1989OEVANGELHOSEGUNDOJESUS CRISTO,romance, 1991INNOMINEDEI,teatro, 1993CADERNOSDELANZAROTE,-Vol.1 A 5,diriose memrias, 1994-1998ENSAIOSOBRE ACEGUEIRA,romance, 1995TODOS OSNOMES,romance, 1997OCONTODAILHADESCONHECIDA,romance, 1997FOLHASPOLTICAS,ensaio, 1999DISCURSOSDE ESTOCOLMO, ensaio, 1999AMAIORFLORDOMUNDO,contoinfantil, 2001ACAVERNA,romance, 2001OHOMEMDUPLICADO,romance, 2003ENSAIOSOBREA LUCIDEZ,romance, 2004DONGIOVANNIOU ODISSOLUTOABSOLVIDO,teatro, 2005INTERMITNCIASDAMORTE, romance, 2005AS PEQUENAS MEMRIAS,dirios, 2006A VIAGEM DOELEFANTE,romance, 2008CAIM, r omance, 2009

    VIDA E MORTE DE UMHOMEM DUPLICADO

    L O R E D A N O

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    1922Nascenodia16denovembronaaldeia Azinhaga, provncia deRibatejo, emPortugal,filhodeJosdeSousaeMariadaPiedade,sendoregistradodoisdiasdepois

    1944Casa-secomapintoraIldaReis

    1947Publicaseu primeirolivro,TerradoPecado; nasce sua nica filha, Violante

    1964No dia 13 de maio morre seu pai, JosdeSousa, noHospitaldos Capuchos,aos68anos

    1969Nodia16 de janeiro,filia-seao PartidoComunistaPortugusporindicaodeseuamigoAugustoCostaDias, e comeaaescreverpara diversosjornaisde seupas

    1970Divorcia-sedeIldaReiseiniciaumrelacionamentocoma escritoraportuguesaIsabeldaNbrega,que duraat 1986

    1982Emagosto,morresuameMariadaPiedade,aos 81anos

    1986Conhecea jornalista e tradutoraespanhola Pilar delRio, comquemsecasa doisanos depois

    1989Eleitopresidenteda AssembleiaMunicipaldeLisboa,espciede parlamentoda cidade,com 106membros

    1992Igreja portuguesa comparao livroOEvangelho Segundo Jesus Cristoaalucinaes teolgicase a umaprovocaoteatralao transcendente;nomesmo anoo governoportugus vetaa candidaturadeO EvangelhoSegundoJesusCristoaoPrmioLiterrio Europeu

    1993Muda-separaa ilhade Lanzarote, naEspanha,aps todapolmicacausada emPortugalpor causa do livroO EvangelhoSegundo Jesus Cristo

    1995Recebeo PrmioCames,consideradoo maisimportanteem literatura dalnguaportuguesapelolivroEnsaio Sobre a Cegueira

    1996Participa, emBraslia,comojuradodeumtribunalinternacional simblico que julgoue condenouo Estado brasileiro pelomassacrede trabalhadores sem-terraemEldoradodosCarajs(PA)

    1998Nodia8deoutubro,torna-seoprimeiroautorde lngua portuguesa aganhar o PrmioNobel de Literatura;nodia 3 dedezembro,recebedopresidentedePortugal,JorgeSampaio,o GrandeColar da Ordem deSantiagodaEspada,mximacondecoraoportuguesa,at ento reservadaapenasa chefesde Estado

    2002OdiretorholandsGeorgeSluizer lanaofilme AJangada dePedra, baseado noromancehomnimo deSaramago

    2003Emcarta escritaao jornal espanholElPas,o escritorretiraseu apoioao regime deFidel Castro,em Cuba, apsexecuodetrscubanosquesequestraramumbarconatentativadefugaparaosEUA

    2007Criauma fundaopara preservar suaobrae defenderos direitoshumanos;no mesmoanoo diretorbrasileiroFernandoMeirellesiniciaas filmagens deBlindness, adaptaodolivroEnsaio Sobrea Cegueira

    2008Nodia 15de setembrocomeaa escreverregularmentetextosparaseunovo blog,O Caderno de Saramago

    2009Em5 deabril, hospitalizadopor quinzediasem umaclnicaem Lanzaroteporcausa deproblemas respiratrios

    Prova disso foi sua atuao no episdioem que o governo de Fidel Castro mandouexecutar, em 2003, trs cubanos que se-questraram um barco e tentaram fugir pa-ra os EUA. Saramago condenou o regimecastrista, dizendo que Cuba havia perdidoa sua confiana e trado seus sonhos o es-critor era comunista e ateu , mas, doisanos depois, voltou a elogiar Castro publi-camente e condenar os EUA por sua fisio-nomia fascista. Polmico, ele provocoureaes calorosas de Israel, em 2002, aocomparar o horror nazista no campo de Auschwitz atuao dos militares israelen-ses na Cisjordnia, ocupada por Israel.

    Poltica. A primaverapoltica de Saramagote- ve incio em 1948-49,quando fez oposio aocandidato dossalazaris-tas presidncia da Re-pblica, apoiando o ge-neral Norton de Matos,o que lhe custou o em-prego. Saramago aderiuao Partido ComunistaPortugus aps a queda de Salazar e suasubstituio por Marcelo Caetano. sem-pre lembrado como o nico militante quese ops a eliminar a expresso ditadura do

    proletariado do programa do partido.Poucos citaram sua militncia ao falaraos jornais sobre a morte de Saramago, quefustigava polticos europeus como Sarkozy e Berlusconi. Tampouco comentaram seuestilo rebuscado, algo barroco, de longospargrafos. Essa tarefa coube ao professorespanhol Fernando Gmez Aguilera, que,em sua biografia cronolgica,A Consistn-cia dos Sonhos, conta como o pensamentoideolgico de Saramago foi se transfor-mando at assinar violentos petardos de- vidamente censurados com lpis verme-lho contra a ditadura portuguesa comoeditorialista doDirio de Notcias. Comnostalgia do ofcio, Saramago, por insis-tncia da mulher jornalista, converteu-seem blogueiro h pouco mais de dois anos.

    Numatesedefendidaem Yale,o acadmi-

    co Horcio Costa argumenta que em suascrnicas jornalsticas est o embrio de suaobra literria, que tem 38 livros entre ro-mances, peas de teatro, dirios, poesias,crnicase memrias.O nome de Jos Sara-mago comeou a serouvidocom mais cons-tncia nas rodas literrias aps a publica-o do romanceMemorial do Convento, em1982, histria irnica que relaciona a cons-truo do convento de Mafra negociadacom Deus em troca de um herdeiro para oreino de Portugal e a delirante relao deum casal envolvido no projeto de criaode uma passarola, representao metafri-ca da liberdade que faltava a Portugal.

    Vem deMemorial do Conventoesse gostopela alegoria que mar-cou to profundamen-te a literatura de Sara-mago, agradando aseus leitores mais fiise desagradando a al-guns crticos. EmA Jangada de Ped ra(1986), Portugal a talembarcao do ttulo vagandosem rumo pe-

    lo oceano. EmEnsaio Sobre a Cegueira(1995), toda uma cidade fica cega s vspe-ras do fimdo milnio, marcado pelo adven-to de uma espcie de mutao antropolgi-

    ca em que todos se curvam ao delrio con-sumista. Finalmente, emA Viagem do Ele- fante (2008), um paquiderme nascido emGoa no sculo 16 transportado pelos ma-res, chegando sujo, cansado e fedorentoem terras portuguesas para cruzar a Espa-nha, a Itlia e os Alpes at chegar a seu des-tino, a ustria.

    A metfora da experinciaexistencial hu-manaaplicada aoelefante indianoera parti-cularmente cara a Saramago no momentoem que comeou a escrever a histria deAViagem do Elefante. Foi exatamente h trsanosque comearam seus problemas respi-ratrios e a epgrafe escolhida para o livrotraduz sua pacificao com a morte: Sem-pre chegamos ao stio aonde nos esperam.Uma epopeia histrica que acabou, enfim,servindo de testamento literrio.

    AOCOMBATER AS RELIGIES,PODERIA SER UM CNICO, MAS NOERA. BUSCAVA ENXERGAR O QUEESTAVA DIANTE DELE DE FORMAOBJETIVA E ISSO LHE DAVA ADIMENSO DO VALOR DA VIDA.

    Ele transformou o lxicoecumpriusempreseu dever deescritor,de escrever de acordocomseus ideais,posiespolticas, com suasentranhas.

    }

    BREVE CRONOLOGIA

    Asletras brasileirasseunem dor dos leitores detodoomundo neste momento. Foiumsbio,grandeescritor e um serhumanode primeira grandeza.

    Seexiste interessemaiorpelosautores lusfonos, issosedeveempartea ele.Almde grande escritor,era umhomem de ideias. FERNANDO MEIRELLES,CINEASTA

    Ccero Sandroni,membro daAcademiaBrasileirade Letras

    **

    Ana Maria Machado,escritora

    Numa obra indita noBrasil ele critica a

    universidadee sugereque a democraciaagoniza no mundo

    **

    Jos Eduardo Agualusa,escritor angolano

    ComFidelCastro. Ao ladoda mulherPilar, Saramago visita o lder cubano

    Militncia. Apsqueda de Salazar,a filiao ao Partido Comunista

    Estocolmo, 1998. Recebe o Nobele os cumprimentos do rei da Sucia

    Infncia. Filho de camponeses, aos 3anos muda para Lisboa com a famlia

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    O ESTADODE S. PAULO SBADO,19DE JUNHODE 2010 Especial H3

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    UBIRATAN BRASIL

    E m 2003,o crtico liter-rio norte-americanoHarold Bloom refor-oua fama de provoca-dor ao afirmar que Sa-ramagoera,em suaopi-nio, o mais talentosoescritor vivo daquelemomento. O nico aombre-lo seria o tam-

    bm americano Philip Roth. Era o incio deumaamizadeintensa,marcadatanto porafa-gos desse quilate como por troca de farpas,especialmente quandosuas opinies discor-davam em relao poltica internacional.

    Ele era um homem inigualvel, comen-tou Bloom ao Estado , de sua casa, em No- va York, em entrevista realizada ontem,

    por telefone. A literatura vai sentir muitosua falta. Para o crtico, o escritor portu-gus aproximava-se de Shakespeare porconta de sua versatilidade, trafegando cominteligncia do drama comdia. E, a partirda unio de Saramago com a espanhola Pi-lar, Bloom que organizou um livro sobreo ficcionista identificou traos mais vis- veis da paixona prosado ganhador do No- bel. Houve maior exaltao do amor hete-rossexual, disse ele, na entrevista a seguir.

    Qual o principallegado de JosSaramago, em suaopinio?Eu o conheci h dez anos, quando estive-mos juntos na Universidade de Coimbra einiciamos uma troca de correspondncia.Naquela poca, eu j escrevera alguns en-

    saios entusiasmadossobre suaobra e o con-siderava um homem notvel. Claro quehouve o controverso perodo da ditadurade Antonio Salazar, quando ele foi acusadode se manter distante dos horrores daquelemomento poltico. Na verdade, isso nome interessa prefiro v-lo como o escri-tor que deixou ao menos oito romances degrande qualidade. Trata-se de um feito ra-ro. Em meu pas, creio que Philip Rothtem, por enquanto, duas obras incompar- veis, assim como outros nomes talentosos:Thomas Pynchon tambm tem dois livrosmemorveis, enquantoDon DeLillo e CormacMcCarthy despontamcom apenas um cada. Volto a dizer,isso no-tvel. Saramago tam- bm era autor de tex-tos bem-humorados,

    aocontrriodo queata-cavam seus crticos.

    Qual seulivropreferi-do entre osescritos porSaramago?Talvez O Ano da Morte de Ricardo Reis, quetraz uma prosa saborosa, divertida at. Euo reli h alguns anose notei um frescor pre-servado. Para mim, Saramago tanto escre- via comdias deliciosas como romances te-nebrosos e melanclicos. Mas ainda estouconvencido de que seu melhor romancecontinua sendo O Evangelho Segundo JesusCristo: corajoso, polmico contra o cristia-nismo em particular mas contra as reli-gies em geral. Hpoucos livros que conse-guem tratar Cristo e o catolicismo sem sesujeitara um respeito obrigatrio. Aqui, Sa-ramago conseguiu, assim como D. H. La-

    wrence e, em menor grau, Norman Mailer.Creio que, entre os premiados com o No- bel de literatura nos ltimos anos, ele foiquem realmente mereceu.

    O curioso que, apesar de suaveementeposio poltica (elese descrevia como umcomunistahormonal),Saramago no foium autor de umaobra abertamentepoltica, no?Sim,de fato, ele preferia a alegoria, entendi-da muita vezes como uma espcie de ce-gueira. Ele era poltico como cidado e, emmuitos casos, um polmico poltico. Lem- bro-me de quando ele certa vez estava naPolnia (em 2002) e criticou a ocupao is-raelense dos territrios palestinos, compa-rando-a com o campo de extermnio nazis-ta de Auschwitz. Claro que isso gerou umapolmica muito grande, creio que ele foiat impedido de entrar em Israel. Escrevisobre esse assunto desagradvel na pocae, meses depois, quando nos reencontra-mos, tivemos conversas no muito amisto-sas sobre o assunto. Infelizmente, quandofalava de poltica, Saramago assumia, s ve-zes, o esteretipo stalinista de sempre.

    Comenta-se quea mudana do escritor pa-ra a ilhade Lanzarote foideterminante em

    suaprosa. O senhorconcorda? Acredi to que s im,pois ele se tornou umhomem iluminado aose mudar para as Ca-nrias. Saramago foiinfeliz em seu primei-

    ro casamento, assun-to do qual pouco con- versamos. Mas reen-

    controu a felicidade com Pilar, uma mu-lher mais jovem, bonita, interessada emseu trabalho. Isso influenciou seu traba-lho. Como em A Histria do Cerco de Lis-boa em outros romances, houve maiorexaltao do amor heterossexual. Lembro-me de poucos livros do sculo 20 e mes-mo do incio do sculo 21 que trataram apaixo de forma to charmosa. Outro ro-mance que me surpreendeu foi As Intermi-tncias da Morte, cujos personagens tmsua rotina modificada tanto pela Morte,que entra em greve, como por um violon-celista que gosta da Sute N 6 para Violon-celo de Bach. Trata-se de uma memorvelforma de se utilizar a imaginao.

    Entre os vencedoresdo Prmio Nobel de

    Literatura nos ltimosanos, creio que ele foi oque realmente mereceu

    **

    Guardo a emoodoabraocarinhoso aps a pea. Eletinhaautoridadeadmirvel, figurainstigante.Vivernos muitospersonagensquecriou.

    QUANDO ADAPTEI PARA O TEATROO EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO , CONHECI UM HOMEMAFVEL, BEM-HUMORADO EEXTREMAMENTEGENEROSO.UMAPERDA ENORME.

    Percoum grandeamigo.Perdemos todos nsum serhumanoadmirvel, um escritorimenso, zelador apaixonadoda lngua portuguesa.

    }

    MARIAADELAIDEAMARAL,DRAMATURGA

    Especial

    Em entrevista aoEstado , o crtico americanoHaroldBloom relata sua admiraopelo autorportugus, a quem atribui uma extraordinriaversatilidade para o drama e para a comdia

    Esta balsa depedra que elecantou,aquelaqueune Espanhae Portugal, sente a perda deuma desuas vozes maishumanas e universais.

    **

    ThiagoLacerda, ator, doelencode O Evangelho...

    Chico Buarque,escritor e compositor

    UM TALENTOQUE LEMBRAVA SHAKESPEARE

    CAMINHO ABERTOGRAAS AO MEMORIAL

    JosLuisRodrguezZapatero,primeiro-ministro espanhol

    Pena afiada. Saramago preferiaaalegoria.Erapolticocomocidadoe,emmuitoscasos,um polmicopoltico,comentaoensasta

    RAQUEL COZER

    J oo Tordo faz parte deuma gerao que cresceutendo Jos Saramago co-mo maior referncia lite-rria dentro de seu pas.Nasceu em 1975, em Lis- boa, e beirava os 7 anosquandooromanceMemo-rialdo Conventofezdo j

    veterano autor um nome reconhecido emtodo o mundo. Para a minha gerao, ele sem dvida o escritor mais importante dosltimos 100 anos. Geraes anteriores ti-nhamEade Queiroz,CamiloCasteloBran-co,mas, para ns,foi elequemmudoua ma-neira de entendera literatura.

    Tordo,hojecom34anos,foio ltimoescri-tora receber dasmosdo conterrneoo Pr-mioJosSaramago,emoutubrodoanopassa-do,por AsTrsVidas(o romance saino Brasilemagosto,pela editora LnguaGeral).O que viu sua frente foi um homem muito fraco,muitodoente,masoqueguardoufoiopesodedaliparaafrentecarregaronomeJosSara-mago numa obra de suaautoria.Dedicadaaficcionistascomat35anosqueescrevememlngua portuguesa,a honraria tambmentre-gueaautorescomoolusitanoJosLuisPeixo-to(2001)ea brasileiraAdrianaLisboa(2003)reflete um interesse do Nobel de Literaturaemdaroportunidadeajovensquetenhampo-tencial para manterem destaque a produonoidioma.Ele criouo prmio eacompanha- vade perto.Semprelia oslivros,dizo editordeSaramagoem Portugal,ZeferinoCoelho.

    GonaloM.Tavares,de 39anos,agraciadoem2005por Jerusalm,vainflunciadeSara-mago de forma indireta, no sentido de terfeito editores de vrios pases passarem aprestar ateno num idioma pouco falado econhecido.Ele umarefernciaparatodaaliteraturaportuguesa,sepensarmosemrefe-rncia como um ponto de partida. No vejocomo umainflunciadiretaporquea escritade Saramago muito particular, muito pr-pria, seja noestilo,seja napontuao,sejanacapacidade de criar um universo, por assimdizer,improvvel noqual o leitorse vtotal-menteacreditadoao fim,argumenta.

    DeumageraoanterioradeJooTordo,o jornalista e escritorportugus Francisco Jo-sViegas,de48anos,tinhadoislivrosdepoe-siaspublicados quando Memorialdo Conven-to fez o que considera uma revoluo na fic-oproduzidaem Portugal. Deuma s vez,Saramagoreinventou a linguagem do barro-co, reconstruiu a histria do pas, por meiodas pessoas humildes em vez da nobreza, ecriou aquela personagem fabulosa que era aBlimunda.Com aquilo,ele comeava a fazera literaturaportuguesa reaprendera lio de

    seusautores clssicos,diz.Para o escritor, outros passos gigantes-cos foram dados na dcada seguinte, comaparbola sobre o mundo contemporneocontidaem Ensaiosobre a Cegueira,de1995cuja apresentao ficou a cargo de Viegas,que j tinha ento cinco romances publica-dos e o Nobel, trs anos depois. Aquiloento se tornou uma espcie de meta paratodo escritor portugus. Imagina, este ho-mem vive da literatura, vive do que escreve,como um profissional. Para todo escritorportugus,mas tambmpara todo o conjun-to das literaturas em lngua portuguesa, co-mosintetizao angolanoJosEduardo Agua-lusa: Quando recebeu o Nobel, Saramagoabriu caminhoparatodosns.

    Colaborou Jair Rattner

    ERNESTO RODRIGUES/AE

    Bloom. Elogiosao estilo do autorde O Ano da Mortede Ricardo Reis

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    JOOMARCOS COELHO

    Deus, Pai, Senhor, aqui me tens (...) Sou oda cruz alta, a que est ao centro, e os ho-mensquemefazemcompanhia(...)sodois

    ladres vulgares, daqueles que se conten-tam com roubar pouco, que se fossem dosque roubam muito de certeza no viriamaquicrucificados.Comessaspalavras,Sara-mago iniciou seus comentrios sobre cadauma das sete ltimas palavras de Cristo. emocionante v-lo, na sala de sua casa, nasIlhas Canrias, lendo seu texto, no DVDAsSeteltimasPalavrasdeCristonaCruz,lanaagorapelomsicocataloJordSavall.

    Como o escritor portugus, Savall vaialmdesuaarteparapensardemodocrticoa realidade. Talveznoto cido quanto Sa-ramago, ele faz de cada gravao um alertaao mundo contemporneo.As Sete Palavrasforam encomendadas a Haydn em 1787 porclrigos de Cdiz e Savall recria no DVDesse acontecimento: as luzes apagadas naigreja e prdicas entre a execuo de cada

    umdosseteadgios.Foinormalaescolhadotelogo catalo Raimon Panikkar, mas sur-preendeu Saramago como segundo prega-dor, j que ele era ateu. Mas o eixo de seuuniversocriativo sempre girou em torno daBbliae do catolicismo, at seu derradeirolivro,Caim,e seultimotestemunhoaudio- visualregistrado neste raroDVD.

    morte deveria assistir-se em silncio,provoca Saramago ao comentar a primeiradasltimaspalavras de Cristo: Pai,perdoa-lhes,porquenosabemoquefazem.Pergun-ta-se:Eeu,vireiasaberoquefiznomundo?Dvida que se dissipa no fim do comentrioda quarta palavra: Razo tinha aquele quedisse que Deus o silncio do universo e ohomemogritoquedsentidoaessesilncio. Acabe-seohomemetudoseacabar.

    TudonesteDVDespecial.AqualidadedainterpretaodeSavallregendoasuaorques-tra Le Concert des Nations j bastaria; mas

    ele vai mais longe. Transfere msica umadimensoestticaincomparvel.NumtextoprimorosocomoodeSaramago,pergunta-sesepodemoshoje desfrutar inteiramentedamensagem que Haydn nos quer transmitircom a sua msica, ignorando o contexto dasua criao e funo original. Relembra osdoissculosquenosseparam,testemunhasdaduralutadohomemporlentaedifcilcon-quistadeideaisdejustiaeliberdade,tolern-cia e solidariedade; dois sculos que, apesardissoedetodooenormeprogressocientficoe tecnolgico, foramtambm, eainda o so,testemunhasdeterrveisatosdecrueldadeefanatismo,debarbrie e inumanidade.

    JOO MARCOS COELHO JORNALISTAE CRTICO MUSICAL

    Maisfotos, anlisese especial

    Guardamos,na memriae nossentidos, o encantodenossosencontros, as caminhadas,oaconchego de sua casa.Sintomuitoo peso dafaltadele.

    NS NOSENCONTRAMOSEMUMJANTARE CONVERSAMOS. EU DISSEQUE TINHA LIDOSEUS POEMAS,E ELE SORRIU, ACHOU CURIOSA AMINHA OBSERVAO. SEMPREOADMIREI POR SUAINTEGRIDADE.

    Hojeumpssimodia.onicoescritorde quempossodizerqueconheotudo.Eleperfeito. Quando saaumlivro,tinhaqueler,eracompulsivo.

    Foiumhomem extremamentecrticodascaractersticasda vidanesseinciodosculo21,custico, deixa literaturareconhecidano mundo todo.

    estado.com.br/e/saramago

    }

    Apesar da escritarida,sem pontua-o, a obra de Jos Saramago inspirouencenadores,especialmente no Brasil.Em 2001, o escritor veioespecialmente

    a SoPaulo para acompanhar a versocnicade um de seus romances maiscontroversos, O Evangelho SegundoJesusCristo .Adaptadapor Maria Adelaide Amaral edirigida porJos Possi Neto, a reinter-pretaoda histria bblica, qued areshumanos a Jesus, aodiabo e atmes-mo a Deus, contoucom Walderez deBarrose Paulo GoulartcomoMaria eDeus Jesus e Madalena foram vividospor EribertoLeo (depoissubstitudoporThiagoLacerda) e Maria FernandaCndida. Depois da estreia, o escritorsubiu ao palco com umflornasmoseum largo sorriso. Quando eu soubequeuma daspersonagensprincipaisdolivro,Jos, noestavana adaptao,estranhei.Mas, ao ver a pea, com-preendi quefoi umaopo.MariaAdelai-de Amaral manteve a presena cont-nuado personagemdurante toda a pe-a,criando umaespcie de ausncia dapresena,disseao Estado, poca.Tambmfamiliarizada coma obra deSaramago, a talentosaatriz e diretoraChristiane Jatahylevou ao teatroa adap-tao de Memorial do Convento , tam-bmem 2001. O projetoenvolveutalen-toscomo o dramaturgoespanhol JosSanchisSinisterra (responsvel pelaverso para o palco)e o cengrafopor-tugusJos Manuel Castanheira. Porconta da enormedimenso do roman-ce,a pea privilegiouos personagensannimos. / UBIRATANBRASIL

    MARCOS ANTNIO VILLAA,PRESIDENTE DA ABL

    UM ATEUDIANTE DEPALAVRASDE CRISTO

    ESPIRITUALIDADE MESA, EM ESTOCOLMO

    Jos Carlos Dias, advogado,ex-ministro da Justia

    SUSANAVERA/REUTERS NACHODOCE/REUTERS

    O EVANGELHOSEGUNDOJESUS CHEGOUAOTEATRO

    CleoniceBerardinelli, espe-cialistaem lnguaportuguesa

    JucaFerreira, ministroda Cultura do Brasil

    ComFernandoMeirelles

    MAURILOCLARETO/AE DENISE ANDRADE/DIVULGAO

    estado.com.br

    O PONTO CEGO DA CIVILIZAOLUIZZANINORICCHIO

    C oube ao diretor brasi-leiroFernandoMeirel-les fazer a melhoradaptao de umaobra de Jos Sarama-go para o cinema,En- saio Sobre a Cegueira(2008),filmequepar-ticipou do Festival deCannes. Meirelles temia a reao do escri-

    tor, mas sossegou quando assistiu ao filmeem sua companhia, em Lisboa. Saramagoacompanhou a sesso sem dizer uma pala- vra e, no final, emocionado, agradeceu aocineasta. Disse que se sentia to contentequanto estava ao acabar de escrever o ro-mance, talvez suaobramais popular.

    Nahistriadolivro,filmadaemSoPaulo(natelaumacidadeindefinida),umaestra-nha doena tira a viso das pessoas, comexceodapersonagemdeJulianneMoore.Na parbola de Saramago, e que Meirellestenta mimetizar em termos de imagens, atnuecrostadecivilizaonoresisteper-dadeumdossentidosbsicosdoserhuma-no. No subtexto, nem to sutil assim, o serhumano, alienado pela violncia do capita-lismo (no esqueamos que Saramago era

    comunista), no consegue mais enxergar asua condio de ser social. Por paradoxo,seriaumacegueirarealquepoderialev-loaenxergarde novo algo sobresi.

    Nofoianicaadaptao.Antes,em2002,ofrancsnaturalizadoholandsGeorgeSlui-zerjhavialevadoparaatelaoromance Jan- gada de Pedra.O desafio era transformarem imagens outra das metforas ferozes deSaramago a histria fala de um estranhofenmeno ssmico que separa a PennsulaIbricadorestodaEuropa.PortugaleEspa-nha,enfimss,livresdopesoeuropeu,saemnavegando no Atlntico. O filme aposta norealismomgicoimplcitono texto,masnoalcanaseu propsito. Constaque o primei-roencontroentreSluizereSaramagonofoi

    muitoamistoso.O cineastamostrouo rotei-ro ao escritor, que teria comentado: Vocno entendeu bem o que escrevi. O scriptfoirefeito, maso resultado na telareflete asdificuldadesdeproduo. Noconvence.

    Existemoutras adaptaes, comoEmbar- go,de Antonio Ferreira, baseado emObjetoQuase, eA Maior Flor do Mundo, de Juan Pa- bloEtcheberry,animaobaseadaemcontoinfantildoportugus.MasEnsaioSobreaCe- gueira, de longe, a mais interessante. De- ve-se registrar queum texto deSaramago,oprefcio para o livro de fotos de SebastioSalgado,Terra, inspirou o curta de Mauro

    GiuntiniPor Longos Dias,uma viso histri-co-potica das lutas do MST. Os militantessovistosemsuavidacotidiananosacampa-mentosatsuachegadaaBraslianaMarchapelaReforma Agrria,de 1997.

    Saramago ser personagem do documen-trio JosePilar,produzidopelaO2,empresadeFernandoMeirelles,edirigidopeloportu-gusMiguelGonalvesMendes.SuamatriaocotidianodoescritoresuamulhernailhadeLanzarote.Ofilmetempr-estreiaprogra-madaparaaMostradeSoPaulo,emnovem- bro. Em Lisboa seria apresentado no dia 16denovembro, aniversriode Saramago.

    Com Susan Sontag Com Gabriel G. Mrquez Com Chico Buarque Com Luiz Schwarcz Com Baltasar Garzon

    DIVULGAO

    REPRODUO RAFAEL PEREZ/REUTERS

    LEONARDO BOFF

    Saramago se considerava ateu, mas de umatesmomuito particular. Entendiao fatorDeuscomoveiculadopelasreligiese pelasIgrejas como forma de alienao das pes-soas. Seu atesmo era tico, negava aqueleDeusquenoproduziavidaenoanuncia- vaa libertaodosoprimidos.

    Essacompreensopudediscuti-lapessoal-mentenumencontroem2001,naSucia.Ele

    vieraaEstocolmoparaumencontrodetodosos portadores do Nobel. Eu l estava, poisfora indicado para o prmioThe Right Live-lihood Award. Convidou a mim e minhacompanheiraMrcia paraum jantar.Foi umfestimde espiritualidademaisdoquedelite-ratura. Levei-lhe um livro de contos indge-nas,OCasamentodoCucomaTerra,eparaasuaesposaPilarumoutro,Espiritualidade:Ca-minho de Realizao. Ele logo foi dizendo:queroolivrodeespiritualidade,poispreten-domeaprofundarnestetema.Falamoslon-gamentesobrereligio,Deuse espiritualida-de.Negavaareligio,masnoaespiritualida-decomo sentimentodo mistrio domundo,daprofundidadehumanaedoamoraosopri-midos.MostrousuaadmiraopelaTeologiadaLibertaopor fazer dofatorDeusumafora de superao da misria humana. Fo-

    mosmadrugadaadentro,jemseuquartodehotel, como se fssemos velhos amigos. Oe-mailaseguirrevelaaexperinciaespiritualque juntos vivenciamos: Querido Leonar-do,queridaMrcia:parans,ograndeaconte-cimento em Estocolmo foi ter-vos conheci-do.Noexageramos.(...)Otempoqueestive-mos juntos foi um banho para o esprito.Quemderaqueembrevesurjaoutraocasio.Osanossotodosterrveisparaaquelesparaquemavidaterrvel.svezesascoisascor-remmelhornomundoeissoleva-nosapen-sar que estamos em paz, mas o mesmo no

    poderiamdizerosmilhesdesereshumanoscujasopiniescontamtopoucoquepratica-mentenosedporelas.Esedealgumama-neirachegamamanifestar-se,osmodosdeassilenciar,no faltam.O vossotrabalho criaerefora conscincias livres ou em processodelibertao.(...).Ganhamosumamigoeaf me diz que ele agora mergulhou naqueleMistriode amor quesemprebuscou.

    LEONARDOBOFF TELOGOE ESCRITOR

    EnsaioSobre a Cegueira . Histria ambientada em um pasindefinido

    %HermesFileInfo:H-5:20100619:

    O ESTADODE S. PAULO SBADO,19DEJUNHODE2010Especial H5

  • 8/9/2019 Especial Estado Saramago_19JUN10

    6/6

    LILIAMORITZ SCHWARCZ

    M orreu Jo-sSarama-go. Pr-mio No- bel da lite-ratura, au-tor de per-sonagensinesquec- veis, to-

    dos eles representados, no meu entender,na pele de Blimunda: aquela que precisavacomer o po para no enxergar o que seusolhos podiam (e deviam) ver. Realidade eimaginao sempre estiveram em contatona obra desse autor, assim como o univer-so do sonho e da poltica cotidiana. Donode posies polticas das mais polmicas,comunista de formao e de convico, de-fendia causas com a alma e o corao, adespeito de muitas vezes gerar dissenso ecausar polmica. Talvez por isso tenha seconvertido em voz pblica, sendo chama-do a opinar nos momentos mais inespera-dos. Era nessas horas que o literato se fa-zia poltico, e largava um pouco da imagi-nao para se dedicar realidade; ou me-lhor, atravessava essa ponte de duas mosque ope e une fico e no fico.

    Todos sabemos que figuras pblicasno esto isentas de seu lado privado. Enesse, Jos reinava discreto, num mundofeito de pequenas e grandes realidades: Pi-

    lar sua grande companheira , seus ca-chorros, seus amigos, seu jardim, sua ca-sa, sua biblioteca. Tambm no descuravado humor, das paixes e, igualmente, desuas averses to particulares como predi-letas. E dentre elas estava o coco. Jos ti-nha verdadeira ojeriza a esse inocente ali-mento, e era capaz de dizer os piores im-proprios diante dele.

    O pior que, quando no Brasil, jamaisescapava desse produto e de seus deriva-dos: uma gua de coco, um quindim, umacocada, um camaro com leite de coco,uma boa moquecacom coco e por a vai.Educado, tentava dri- blar a descortesia,diante dessa iguariatropical, e se escuda- va, sempre que podia,com uma boa descul-pa. Estava sem fome,tinha perdido repenti-namente o apetite, en-contrava-se inapetente, o calor lhe fecha-ra o estmago, ou padecia com uma indis-posio repentina. s vezes a desculpa da- va certo; s vezes, tudo resultava em maisinsistncia e novo desfile de argumentos.

    A situao era to recorrente, que gerouuma espcie de tese, devidamente com-partilhada (por aqueles que desfrutavamsua companhia no Brasil), mas jamais pu- blicada. Indita, por definio e vocao,a dissertao j alcanara algumas ver-dades cientficas, que considervamos ir-

    refutveis. O coco seria redondo como a vida, mas peludo como as agruras do desti-no ou a pele dos homens. Ele era duro porfora, porm suave por dentro. E ainda: se-co na sua extremidade e molhado em seuinterior. Para terminar, apresentava umacasca escura e de tom marrom, mas con-servava uma pele interna alva como a ne- ve. O fato que tal objeto, enfadonhamen-te redondo, possibilitava prever uma cer-ta dialtica, amplamente testada e am-pliada a cada nova passagem de Jos poraqui. Melhor ainda, tudo acabava em gar-

    galhada, j que no ha- via ocasio em que umchef no se acercassede ns com a boa no- va: Saramago, te pre-parei um prato feito base de coco! E, dian-te do inevitvel, con-cluamos que o cocoera como a vida: fun-cionava na base do

    ora sim, ora no; do dia que carrega a noi-te e vice-versa.

    A vida foi longa, mas interrompeu mui-tas das teses do Jos. Essa era apenasuma delas: quem sabe a mais divertida einconsequente. Ou talvez no; afinal,uma boa piada s faz sentido quando reve-la um universo de aluses partilhadas.Quem sabe, por meio dessa filosofia dococo seja possvel recuperar um certo vis de Saramago; aquele que fez dele umgrande polemista, no melhor sentido que

    o termo pode merecer. Por meio dos co-cos, no entanto, ele tambm exercitava hoje vejo bem seus dotes de escritor; da-quele que testa a todo momento os limi-tes e a lgica da linguagem. Talvez tenhasido por meio desse movimento pendu-lar, aparentemente sem sentido, que em A Jangada de Pedra, Portugal se descoloudo continente e saiu sem rumo, navegan-do deriva. No ser esse, tambm, o jo-go de inverses que ocorre emTodos osNomes, quando num cemitrio o alcovitei-ro troca inadvertidamente os ttulos daslpides? Tambm me parece semelhantea dualidade praticada emEnsaio Sobre aCegueira, quando, invertendo nossa lgi-ca cartesiana, somos tomados por repenti-na e passageira impossibilidade de fazeraquilo que realizamos por ordem da natu-reza: enxergar.

    Dizem que no h como saber quando a vida provoca a imaginao e vice-versa.Por certo, no pretendo fazer da dialti-ca do coco um exerccio de predestina-o. Mas o fato que a brincadeira tolapode iluminar um pouco do processo cria-tivo de Jos Saramago feito de inverses,ambivalncias e dualidades, que nascempara ficar sem reposta e soluo. Ou, en-to, nada disso: o jogo era apenas um jo-go. Muito mais que um jogo.

    LILIA MORITZ SCHWARCZ PROFESSORA DEANTROPOLOGIA DA USP E AUTORA DEA LONGAVIAGEM DA BIBLIOTECA DOS REIS

    A PRINCPIO, RESPONDIA QUEESCREVIAPARA QUEASPESSOAS ME QUISESSEMBEM.LOGO ESTA

    RESPOSTA ME PARECEU INSUFICIENTE E DECIDIQUEESCREVIA PORQUE NO ME AGRADAVA

    A IDEIA DETER QUE MORRER. AGORADIGO,E TALVEZISSO SEJA CERTO,QUE, NO FUNDO,

    ESCREVO PARA COMPREENDER

    NO ENCONTRO NENHUM MOTIVOPARADEIXARDE SER O QUE

    SEMPREFUI: ALGUM QUEESTSEGURODE QUE O MUNDOEM QUE

    VIVEMOSNO ESTBEM-FEITO

    ESTOUCONVENCIDO DE QUEH DESE SEGUIRDIZENDO NO,AINDA

    QUE SETRATE DEUMA VOZPREDICANDO NO DESERTO

    MINHAARTE CONSISTE EM TENTARMOSTRARQUENO EXISTEDIFERENAENTREO

    IMAGINRIOE O VIVIDO. O VIVIDOPODERIASER IMAGINADO, ASSIM

    COMO O CONTRRIO

    NO SOUPESSIMISTA, O MUNDO PSSIMO. SOOS PESSIMISTAS OS NICOSQUE

    QUEREMMUDARO MUNDO,PARAOS OTIMISTAS TUDOEST MUITO BEM.

    DEVERIA-SE FAZERPROFISSOE MILITNCIADO PESSIMISMO

    NUNCASEPARO O ESCRITORDO CIDADO. ISSO NOSIGNIFICA

    QUEQUEIRA CONVERTER MINHAOBRAEM PANFLETO.SIGNIFICA

    QUE NOESCREVOPARAO ANODE 2427, MASPARA HOJE

    MINHA OBRA PODESER ENTENDIDACOMO UMAREFLEXO SOBRE O ERRO. SIM,SOBRE O ERRO COMO VERDADEINSTALADA

    E PORISSO SUSPEITA

    EUDIRIAQUE SOUUM COMUNISTALIBERTRIO.ALGUMQUE DEFENDEA LIBERDADEDE

    NOACEITAR TUDOQUE VENHA, PORMQUEASSUME O COMPROMISSO COMTRS

    PERGUNTAS QUEDEVEMSER NOSSOS GUIASDE VIDA: PORQU? PARA QU? PARAQUEM?

    Frases

    Jos tinha verdadeiraojeriza a esse inocentealimento, e era capaz

    de dizer os pioresimproprios diante dele

    Artigo

    **

    **

    DAS PROPRIEDADES DE SER COCO

    SARAMAGO

    POR ELE MESMO

    JONNE RORIZ/AE

    J O S E P A T R I C I O / A E

    Convivncia.O melhor quetudo acabavaem gargalhada,observa Lilia

    %HermesFileInfo:H-6:20100619:H6 Especial SBADO,19DE JUNHODE 2010 O ESTADO DE S. PAULO