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R. bras. Est. Pop., São Paulo, v. 24, n. 1, p. 19-35, jan./jun. 2007 Esposas como principais provedoras de renda familiar * Doutoranda do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – Cedeplar, da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. ** Professora do Departamento de Demografia, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – Cedeplar, da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Izabel Guimarães Marri * Simone Wajnman ** Este trabalho procura discutir um aspecto ainda pouco explorado do papel da mulher na formação dos rendimentos familiares, que é a situação na qual as esposas obtêm, no mercado de trabalho, rendimentos superiores aos de seus cônjuges. Além da descrição de características demográficas e socioocu- pacionais destas mulheres e de seus cônjuges, procura-se discutir as seguintes questões: como algumas das características observadas estão correlacionadas com a probabilidade de as famílias terem as esposas como principais provedoras; a não reversão dos padrões tradicionais de divisão do trabalho, já que a mulher mantém um número de horas muito maior do que seus cônjuges nas tarefas domésticas, mesmo quando é a principal provedora financeira do casal; e os diferenciais no rendimento médio de maridos e esposas provedores e a decomposição deste diferencial entre o que pode ser atribuído às características produtivas de ambos os grupos e o que é geralmente chamado de discriminação. Palavras-chave: Esposas provedoras. Rendimento familiar. Desigualdade de rendimentos. Introdução A maior participação das mulheres na atividade econômica e o conseqüente crescimento da importância relativa dos rendimentos femininos têm estimulado estudos que evidenciam a posição des- favorável das mulheres no mercado de trabalho, seja pela segregação aos postos de trabalho de pior qualidade (LAVINAS, 1997; OLIVEIRA, 2003; BARROS, 2001), seja pela discriminação salarial sofrida por elas (LEME e WAJNMAN, 2000; GUIMA- RÃES, 2004), o que afetaria negativamente o bem-estar tanto das próprias mulheres quanto de suas famílias. Neste trabalho, procura-se discutir um aspecto ainda pouco explorado do papel da mulher na formação dos rendimentos familiares, que é a situação na qual as esposas obtêm, no mer- cado de trabalho, rendimentos superiores aos de seus cônjuges. Segundo os dados da PNAD de 2003, as famílias de núcleo composto (marido e esposa) perfaziam aproximadamente 66% do total das famílias brasileiras naquele ano, das quais 12% tinham a mulher como a principal provedora financeira do casal, adotando-se como con- ceito de principal provedor financeiro o cônjuge que obtém os rendimentos do trabalho mais elevados (WAJNMAN, 2005). Este tipo de casal, para o qual a literatura internacional tem apontado mais recen- temente, vem se tornando mais freqüente

Esposas como principais provedoras de renda familiar · esposas obtêm, no mercado de trabalho, rendimentos superiores aos de seus cônjuges. Além da descrição de características

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R. bras. Est. Pop., São Paulo, v. 24, n. 1, p. 19-35, jan./jun. 2007

Esposas como principais provedorasde renda familiar

* Doutoranda do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – Cedeplar, da Universidade Federal de Minas Gerais –UFMG.** Professora do Departamento de Demografia, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional – Cedeplar, da UniversidadeFederal de Minas Gerais – UFMG

Izabel Guimarães Marri*

Simone Wajnman**

Este trabalho procura discutir um aspecto ainda pouco explorado do papelda mulher na formação dos rendimentos familiares, que é a situação na qual asesposas obtêm, no mercado de trabalho, rendimentos superiores aos de seuscônjuges. Além da descrição de características demográficas e socioocu-pacionais destas mulheres e de seus cônjuges, procura-se discutir as seguintesquestões: como algumas das características observadas estão correlacionadascom a probabilidade de as famílias terem as esposas como principais provedoras;a não reversão dos padrões tradicionais de divisão do trabalho, já que a mulhermantém um número de horas muito maior do que seus cônjuges nas tarefasdomésticas, mesmo quando é a principal provedora financeira do casal; e osdiferenciais no rendimento médio de maridos e esposas provedores e adecomposição deste diferencial entre o que pode ser atribuído às característicasprodutivas de ambos os grupos e o que é geralmente chamado de discriminação.

Palavras-chave: Esposas provedoras. Rendimento familiar. Desigualdade derendimentos.

Introdução

A maior participação das mulheres naatividade econômica e o conseqüentecrescimento da importância relativa dosrendimentos femininos têm estimuladoestudos que evidenciam a posição des-favorável das mulheres no mercado detrabalho, seja pela segregação aos postosde trabalho de pior qualidade (LAVINAS,1997; OLIVEIRA, 2003; BARROS, 2001),seja pela discriminação salarial sofrida porelas (LEME e WAJNMAN, 2000; GUIMA-RÃES, 2004), o que afetaria negativamenteo bem-estar tanto das próprias mulheresquanto de suas famílias. Neste trabalho,procura-se discutir um aspecto ainda pouco

explorado do papel da mulher na formaçãodos rendimentos familiares, que é asituação na qual as esposas obtêm, no mer-cado de trabalho, rendimentos superioresaos de seus cônjuges. Segundo os dadosda PNAD de 2003, as famílias de núcleocomposto (marido e esposa) perfaziamaproximadamente 66% do total das famíliasbrasileiras naquele ano, das quais 12%tinham a mulher como a principal provedorafinanceira do casal, adotando-se como con-ceito de principal provedor financeiro ocônjuge que obtém os rendimentos dotrabalho mais elevados (WAJNMAN, 2005).Este tipo de casal, para o qual a literaturainternacional tem apontado mais recen-temente, vem se tornando mais freqüente

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no Brasil e suas características são aindapouco conhecidas.

Neste trabalho, através dos dados daPesquisa por Amostra de Domicílios –PNAD, do IBGE, para 2004, identificam-seos perfis demográfico e socioocupacionaldos casais cujas esposas são as principaisprovedoras, além de indicar como algumascaracterísticas do casal estão correlacio-nadas com a probabilidade de que a es-posa seja a provedora financeira. Discute-se também a evidência de que, entre oscasais nos quais a mulher é a provedora,não há de fato uma reversão dos padrõestradicionais de divisão do trabalho, já que amulher mantém um número de horas muitomaior do que seus cônjuges nas tarefas do-mésticas. Finalmente, estima-se o diferen-cial de rendimentos salariais entre esposase maridos provedores e decompõem-seestes diferenciais entre a parcela explicadapelas diferenças nas características pro-dutivas de homens e mulheres e a partenão explicada, a qual é chamada, usual-mente, de discriminação.

Conhecer melhor o perfil destas traba-lhadoras parece importante, em primeirolugar, porque elas subvertem o sólido este-reótipo segundo o qual cabe aos homens aresponsabilidade econômico-financeira dasfamílias, ficando para as mulheres, quandomuito, o papel de “ajudá-los” nessa tarefa.Em segundo lugar, porque, enquanto umcontingente nada desprezível de mulheresavança os limites da função tradicionalmentereservada a elas na divisão sexual do traba-lho, não há evidências de que seus respecti-vos cônjuges estejam se ajustando a essainversão de papéis, tomando para si aresponsabilidade com o trabalho doméstico.Finalmente, se estas mulheres provedorasdesempenham o papel tipicamente mascu-lino em suas famílias, mas no mercado detrabalho são discriminadas por serem do se-xo feminino, suas famílias podem estar sendoduplamente penalizadas e, portanto, mere-ceriam especial atenção.

Esposas provedoras na literaturainternacional

Enquanto no Brasil e no mundo grandeatenção tem sido dada ao crescimento da

participação da mulher no mercado detrabalho e à relativa redução das diferençassalariais entre os sexos, uma faceta destecontexto, conseqüência natural dessas mu-danças, tem sido menos explorada: o cres-cente número de famílias cujas esposas sãoas principais provedoras do orçamentofamiliar.

A literatura existente sobre o temaindica que o padrão “tradicional” dos casais,segundo o qual os homens têm a função deprincipal provedor da renda familiar, tem da-do espaço a um novo padrão em que asmulheres não só contribuem com partesignificativa do orçamento familiar, comotambém, em muitos casos, são seus princi-pais provedores (CROMPTOM; GERAN,1995; WINKLER; MCBRIDE; ANDREWS,2005; WINKLER, 1998; MOORE, 1990).

A mudança do status da esposa nacomposição da renda familiar traz consigoalterações nos papéis desempenhados porestas no mercado de trabalho, nos casa-mentos e nas famílias. O aumento na rendade um dos parceiros, digamos da mulher,relativamente aos rendimentos do marido,eleva, teoricamente, seu poder de barga-nha. Esposas que recebem mais do queseus maridos têm maior poder de decisão,reduzem o tempo alocado em trabalhos do-mésticos e suas carreiras são tratadas comoas mais importantes (IZRAELI, 1994; JOHN;SHELTON, 1997; KAMO, 1988; STEIL apudDEUTSCH; ROKSA; MEESKE, 2003). Noentanto, apesar de a influência das ren-dasabsoluta e relativa dos cônjuges seressencial para definir a divisão do poderna família, esse pode ser diminuído napresença de ideologias referentes a gênero(BLUMBERG; COLEMAN apud DEUTSCH;ROKSA; MEESKE, 2003).

Deutsch, Roksa e Meeske (2003), emuma ampla revisão bibliográfica sobre otema, colocam que a questão do gênero nasrelações entre os cônjuges é produzida ereproduzida dentro das famílias, à medidaque os papéis e normas tradicionalmentedefinidos são reforçados pelos cônjuges. Oshomens tendem a aceitar a participação desuas esposas no mercado de trabalho, maspreferem ganhar mais do que elas, ou, pelomenos, não depender de suas rendas (ZUOapud DEUTSCH; ROKSA; MEESKE, 2003).

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Além disso, receber mais do que os ma-ridos não necessariamente reduz as horasdedicadas às atividades domésticas. Aindaque trabalhando o mesmo número de horaspor dia, as mulheres despendem muito maistempo nos afazeres domésticos do que seusmaridos (BIANCHI; ROBINSON; SAYER apudBITTMAN; ENGLAND; FOLBRE; SAYER;MATHESON, 2003). Com o crescimento daparticipação dos rendimentos femininos narenda do casal, as mulheres diminuem otempo gasto nos trabalhos domésticos, comconseqüente aumento do tempo des-pendido pelo marido, até o ponto em quedividem o orçamento familiar. A partir daí,em muitos casos, as mulheres absorvemuma parcela ainda maior de trabalhos do-mésticos para compensar o maior rendi-mento e o desvio de uma situação padrãoda divisão das tarefas familiares (este é ocaso, por exemplo, de 86% das famílias emque as mulheres ganham mais do que seusmaridos na Austrália) (ATKINSON; BOLESapud BITTMAN; ENGLAND; FOLBRE;SAYER; MATHESON, 2003).

Nos Estados Unidos, a contribuiçãomédia do rendimento das esposas na rendafamiliar passou de 26,6%, em 1970, para35,2%, em 2003. Considerando as famíliascom duplo rendimento (da esposa e domarido), a participação das mulheres norte-americanas que ganham mais do que seuscônjuges aumentou de 17,8%, em 1987,para 25,2%, em 2003 (US BUREAU OFSTATISTICS, 2005) e, para as canadenses,cresceu de 11% para 25%, entre 1967 e1993 (CROMPTOM; GERAM, 1995).

O aumento no número de esposas queganham mais do que seus maridos estárelacionado, no Canadá, com o movimentode longo prazo das mulheres para ocupa-ções de maior rendimento, com a expe-riência acumulada por elas no mercado detrabalho e com a recessão que afetousobremaneira os empregos ocupados, emsua maioria, por homens, contribuindo para

colocar as mulheres na situação deprimeiras provedoras do lar (CROMPTON;GERAN, 1995).

Nos EUA as principais característicasdos casais com sobre-rendimento dasesposas, que persistem nesta situação, sãoo maior nível educacional das mulheres, emrelação a seus maridos, o menor númerode crianças com menos de cinco anos nafamília e o maior percentual de maridos comalgum tipo de doença em relação às famíliasem que o marido é o principal provedor(WINKLER; MCBRIDE; ANDREWS, 2005).1

Estas famílias também concentram-se nosquintis mais baixos da renda familiar(WRINKLER, 1998).

Enfim, já que grande parte dos ren-dimentos familiares é proveniente dotrabalho, a sub-remuneração das esposasprovedoras afeta o bem-estar financeiro desuas famílias e o reduz comparativamenteao daquelas cujo provedor principal é omarido. Descrever quem seriam, no Brasil,as esposas que são as principais prove-doras de suas famílias, o diferencial entreos rendimentos dessas mulheres e os dosmaridos provedores e algumas caracterís-ticas relacionadas à família que aumentama probabilidade de as esposas serem asprincipais provedoras financeiras do casal,são questões investigadas, que serãoapresentadas nas próximas seções.

Metodologia e base de dados

Os dados analisados neste trabalhoforam obtidos da Pesquisa Nacional porAmostra de Domicílios – PNAD, de 2004,para a região urbana do Brasil.2 As análisesforam feitas com base em três medidas derenda: o rendimento de todos os trabalhos,o rendimento do trabalho principal e osalário-hora de cada um dos cônjuges.

Além de apresentar uma ampla análisedescritiva dos dados, é decomposta adiferença entre o rendimento do trabalho

1 Estes autores também verificam que coortes mais novas não possuem maior tendência de serem “não tradicionais”, em relaçãoàs coortes mais velhas.2 A análise limita-se às famílias urbanas, uma vez que a dinâmica de participação na atividade econômica, tanto quanto decomposição familiar da renda, é inteiramente distinta nos contextos urbanos e rurais.

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principal de esposas e maridos provedores,buscando identificar a parcela do diferencialexplicada por diferenças nas suas caracte-rísticas produtivas entre os dois grupos e adiferença não explicada, comumente atri-buída à discriminação. O modelo de regres-são de mínimos quadrados para a equaçãode salário foi utilizado na decomposição dosdiferenciais de rendimentos de maridos eesposas provedores, utilizando-se comovariável resposta o logaritmo do rendimentomensal do trabalho principal de cada um. Ométodo de decomposição corresponde aométodo de Oaxaca, largamente usado nosestudos que procuram medir a discrimi-nação no mercado de trabalho (LEME;WAJNMAN, 2001). Através do modelo Logit,procurou-se analisar as características dasfamílias que aumentam a probabilidade dea esposa ser a principal provedora financei-ra do casal. As variáveis de análise e/ou decontrole nos modelos estatísticos foramselecionadas com base na literatura exis-tente sobre os determinantes dos diferen-cias de rendimentos entre homens e mu-lheres, no Brasil e no mundo.

TABELA 1Distribuição das famílias, segundo composição do núcleo

Brasil (1) – 2004

A composição das famílias

Em 2004, as famílias de núcleo com-posto (chefe e cônjuge), da região urbana,perfaziam 63,6% do total de famílias. Osdemais arranjos familiares (36,4%) eramconstituídos pelas situações em que há apresença do responsável (ou chefe) dafamília, sem haver presença de cônjuge(Tabela 1). Entre as famílias de núcleo com-posto, 44%, ou 27,5% do total de famílias,possuíam duplo rendimento do trabalho, ouseja, ambos os cônjuges eram ativos etinham rendimento do trabalho, na semanade referência da pesquisa.3 Considerandoa totalidade destas famílias, as esposaseram responsáveis por 33% da renda total,os maridos por 61% e os filhos por 6%.

Adotando-se o conceito de principalprovedor como o cônjuge com rendimentosdo trabalho superiores a 50% dos rendimen-tos do trabalho do casal, verifica-se que, doconjunto de famílias com duplo rendimentodo trabalho, em 17% as esposas eram suasprincipais provedoras, perfazendo um totalde 2.189.457 famílias.

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.(2) Percentual calculado apenas para casais com duplo rendimento do trabalho.

3 Para fins de comparação entre os rendimentos dos cônjuges, excluíram-se os casais com rendimento total do trabalho (do chefee do cônjuge) igual a zero.

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É interessante notar que, embora cres-ça a importância relativa das mulherescomo principais provedoras financeiras dasfamílias, as pesquisas domiciliares conti-nuam apontando, na maioria esmagadorados casos, os homens como os chefes ouresponsáveis pelas famílias constituídas porcasais com ou sem filhos (Tabela 1). A po-sição de chefe (ou de pessoa de referência,como passa a se chamar essa posição apartir da PNAD de 1992) é definida pelospróprios entrevistados com base em suapercepção e não necessariamente por umcritério econômico-financeiro. Com basenessa percepção, na PNAD 2004, 93% dasfamílias com casais declaravam seu res-ponsável como sendo um indivíduo de sexomasculino. Mesmo entre os 2.189 mil casaisnos quais os rendimentos femininos eramsuperiores aos masculinos, em apenas 13%deles a responsabilidade foi atribuída àmulher. Considerando-se que a noção deresponsabilidade dificilmente está asso-ciada aos encargos do trabalho doméstico,porque se assim fosse as mulheres não

estariam tão sub-representadas nessacategoria, e que, pelo menos neste caso, aresponsabilidade tampouco é financeira,resta apenas a justificativa cultural querelega à mulher o papel secundário nahierarquia familiar, mesmo quando a elacabem os cuidados não só com os familiarese a estrutura física da residência, mas tam-bém com a provisão financeira da família.

Para situar as famílias por grupos derenda, calculou-se a renda familiar percapita, líquida da renda das esposas, ouseja, foram consideradas a renda total dosmaridos e dos filhos de todas as famíliascom núcleo composto (Gráfico 1) e adaquelas com núcleo composto e duplorendimento do trabalho (Gráfico 2), dividindocada um dos dois grupos em 10 decis. Apartir desta distribuição por decil de renda,observou-se a participação do rendimentodas esposas na renda total do trabalho docasal. Como era de se esperar, os dadosdo Gráfico 1 mostram que uma grandeparcela das esposas não participava noorçamento familiar com rendimentos do

GRÁFICO 1Participação do rendimento das esposas no rendimento total do casal, segundo decis de renda familiar per capita,

líquida da renda das esposas, para casais com núcleo compostoBrasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.

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trabalho (em aproximadamente 37% do totaldas famílias), dada a ainda grande inati-vidade feminina no mercado de trabalho. Éinteressante notar, no entanto, que estepercentual é bem menor no primeiro decilda renda, no qual também é possível veri-ficar a maior participação do rendimento dasesposas, notadamente com mais de 75%da renda do casal. À medida que se avançanos decis de renda, a participação das espo-sas na renda do trabalho do casal diminui.

Ao se reduzir a amostra e considerarsomente as famílias com casais com duplorendimento do trabalho (em que ambos sãoativos, mas um dos cônjuges pode ter rendi-mento zero), o percentual de esposas quenão participam da renda do casal diminuibastante (Gráfico 2). Destas famílias, 17%tinham a esposa como principal provedora,ganhando mais de 50% da renda do casal.Aproximadamente um quinto destas famí-lias estava situado no primeiro decil, valorque tende a diminuir à medida que seavança nos decis de renda. O primeiro decil

ainda é o grupo em que as esposas têmmaior participação no orçamento do casal,com mais de 50% ou 75% deste. No entanto,observa-se que a existência de famílias comesposas provedoras não se limita aosestratos socioeconômicos mais pobres,estando representadas em toda a distri-buição. A concentração quase exclusivadelas nos grupos menos favorecidosencontra-se nos casos em que as mulheressão praticamente as únicas provedoras.

Esposas provedoras no Brasil

De acordo com os dados analisados,as esposas provedoras eram, em média,dois anos mais velhas (possuíam 39 anosde idade) do que as co-provedoras,4 56%declararam-se como da cor branca5 etinham, aproximadamente, 9,5 anos deestudo. A maior parte das co-provedorastambém se declarou como branca (60%) ecom uma média de 8,2 anos de estudo. Osmaridos, por sua vez, para ambos os gru-

GRÁFICO 2Participação do rendimento das esposas no rendimento do trabalho do casal, segundo decis de renda familiar per

capita, líquida da renda das esposas, para casais com duplo rendimento do trabalhoBrasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.

4 Entende-se como co-provedor o cônjuge que aporta com menos de 50% da renda do casal.5 Utilizou-se a variável dummy de cor como branca e não branca, agrupando os pretos, amarelos, pardos e indígenas.

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pos, possuíam entre 7 e 8 anos de estudos,ou seja, mesmo os maridos provedoresprincipais da renda dos casais tinham me-nor escolaridade do que as mulheres pro-vedoras. Esta informação será especialmen-te importante para analisar os diferenciaisde rendimento entre esposa e marido pro-vedores.

Quando questionadas se despendiamalgum tempo nos afazeres domésticos, 95%das esposas provedoras responderam gas-tar, em média, 21 horas semanais nas tarefasda casa, enquanto 97% das co-provedoraso faziam, em média, por 25 horas semanais(Tabela 2). Entre os maridos das primeiras,64% declararam se dedicar, aproximada-mente, 11 horas semanais nas atividadesdomésticas, enquanto 52% dos maridos dassegundas (os provedores) gastavam menosde dez horas semanais. Os resultados mos-tram que, apesar de aumentar o percentualde maridos que se dedicavam ao trabalhodoméstico quando as esposas eram a prin-cipal provedora financeira, o tempo despen-dido por elas continua muito maior do que odeles e não se reduziu significativamente emrelação às co-provedoras. Estes dadoscorroboram os resultados das pesquisasinternacionais, até o ponto em que mostramque as esposas, de um modo geral, fazem amaior parte do trabalho doméstico (ver, porexemplo, BITTMAN; ENGLAND; FOLBRE;SAYER; MATHESON, 2003), no entanto, nãosugerem um aumento na participação dosmaridos, ou uma divisão mais igualitária dosafazeres domésticos, quando estes contri-buem menos com o orçamento familiar.

Os números médios de filhos e de filhoscom menos de sete anos de idade nasfamílias também foram analisados e nãoapresentaram grandes diferenças entre asfamílias providas pelas esposas e aquelasprovidas pelos maridos.

Uma característica das famílias provi-das pelas esposas era a existência de umpercentual um pouco maior de maridos apo-sentados pelo Instituto de PrevidênciaPrivada (8%), em relação às demais famílias(4%). Como a renda da aposentadoria éum incentivo para a desocupação, nestescasos há maior probabilidade de o maridoser desocupado, o que, em parte, explicariaa sobre-renda feminina.

Em relação à ocupação das esposasprovedoras, apesar de estarem concen-tradas no grupo trabalhadores dos serviços(29%), que engloba um grande contingentede trabalhadoras dos serviços domésticos,elas estavam sub-representadas nestacategoria quando comparadas ao total deesposas das famílias com duplo rendimentodo trabalho. Por outro lado, estavam super-representadas nos grupos dirigentes emgeral, professores das ciências e das artese técnicos do nível médio e, em muito maiormedida, no grupo membros das ForçasArmadas e auxiliares (Gráfico 3).

Considerando-se apenas as mulheresque ganhavam mais de 75% da renda docasal, verificou-se sua concentração nogrupo referente aos trabalhadores dosserviços (30%), apesar de ainda estaremsub-representadas em relação ao total dasfamílias analisadas, e os mesmos grupos

TABELA 2Dedicação ao trabalho doméstico e horas despendidas nessa atividade, por sexo do provedor principal do casal

Brasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.

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GRÁFICO 3Relação entre o número de esposas provedoras e o número total de esposas, em casais com duplo rendimento do

trabalho, por grupos de atividadeBrasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.

GRÁFICO 4Relação entre o número de esposas que ganham mais de 75% da renda do casal e o número total de esposas, em

casais com duplo rendimento do trabalho, por grupos de atividadeBrasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.

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GRÁFICO 5Relação entre o número de maridos co-provedores e o número total de maridos, em casais com duplo rendimento do

trabalho, por grupos de atividadeBrasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.

GRÁFICO 6Relação entre o número de maridos que ganham até 25% da renda do casal e o total de maridos, em casais com

duplo rendimento do trabalho, por grupos de atividadeBrasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.

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de ocupações se destacaram em relaçãoàs esposas de todas as famílias, comexceção do grupo dos membros das ForçasArmadas, que perdeu um pouco suarepresentatividade, e do grupo dasvendedoras e prestadoras de serviços, queganhou maior importância (Gráfico 4).

Os maridos das esposas provedoras,por sua vez, concentravam-se no grupo detrabalhadores da produção de bens eserviços e de reparação e manutenção(30%). Em relação ao total de maridos dasfamílias em análise, eles estavam muitomenos representados nos grupos de diri-gentes em geral e membros das ForçasArmadas e especialmente sobre-represen-tados nos grupos de trabalhadores dosserviços administrativos e trabalhadoresagrícolas (Gráfico 5).

Os maridos que ganhavam até 25% darenda do casal concentravam-se nostrabalhos agrícolas (33%), estando, semdúvida, super-representados em relação aototal dos maridos (Gráfico 6).6

Com o intuito de captar as caracterís-ticas das famílias que aumentavam a pro-babilidade de as esposas serem as prin-cipais provedoras financeiras, utilizou-se omodelo Logit, em que a variável respostado modelo indica se a esposa é ou não aprovedora do casal, mantendo o critério deque provedor é o cônjuge com maior ren-dimento total dos trabalhos. A medidaproveniente da renda de todos os trabalhos,ao contrário da renda do trabalho principal,ou do salário-hora, indica a contribuição decada um dos cônjuges no orçamento fami-liar e, por isso, parece ser uma medida ade-quada para esta análise, a partir da qual sequer definir quais as características que

fazem as famílias possuírem as esposascomo as principais provedoras financeiras.

Neste modelo interessaram não so-mente as características de cada um doscônjuges, mas também a relação entre elas.Desta forma, as variáveis de controle domodelo incluíram: idade contínua da espo-sa e diferença de idade entre os cônjuges;7

diferença em anos de estudo entre os cônju-ges e dummies para grupos de anos deestudo das esposas (categoria de referên-cia: 0-3 anos de estudo);8 quatro dummiespara a combinação de cor/raça do casal(categoria de referência: casal branco);9

dummies para as regiões do país (categoriade referência: Sudeste); dummies para gru-pos ocupacionais da esposa e do marido(categoria de referência: trabalhadores dosserviços);10 variável dummy do marido seraposentado e/ou pensionista pelo Institutode Previdência Privada; e dummies paraos quartis da renda familiar per capita emque se encontra a família.

Os resultados da regressão, demons-trados no Quadro 1, permitem inferir que,segundo o coeficiente obtido pela variávelcontínua da diferença de escolaridade entreos cônjuges, estatisticamente significativaa 5% de significância, quanto mais es-colarizada a esposa em relação a seumarido, controlando pelas demais co-variáveis, maior era a probabilidade delaser a principal provedora do casal. Asvariáveis dummy para os grupos de 12 a 15e mais anos de estudo indicam que,controlando pelas demais variáveis domodelo, famílias em que as mulheres apre-sentavam escolaridade igual ou superior a12 anos de estudo possuíam probabilidadecrescente e maior de a esposa ser a prin-

6 Note-se que, apesar de limitar a amostra aos residentes do setor urbano, os postos de trabalho para ocupações agrícolas são parteexpressiva do emprego de mais baixa remuneração.7 A idade é considerada, de acordo com a teoria do Capital Humano, uma proxy da experiência adquirida no mercado de trabalho.O perfil dos rendimentos tende a variar no ciclo de vida das pessoas, sendo necessária a inclusão desta variável no modelo.8 Os grupos de anos de estudo foram definidos como : 0 a 3 anos; 4 a 7 anos; 8 a 11 anos; 12 a 14 anos e 15 e mais anos de estudo.9 As dummies criadas foram: casal branco; esposa branca e marido não branco; esposa não branca e marido branco; casal nãobranco.10 Os grupos ocupacionais incluíram: Dirigentes em Geral; Professores das Ciências e das Artes; Técnicos de Nível Médio;Trabalhadores dos Serviços Administrativos; Trabalhadores dos Serviços; Vendedores e Prestadores de Serviço; TrabalhadoresAgrícolas; Trabalhadores da Produção de Bens e Serviços e de Reparação e Manutenção; e Membros das Forças Armadas eAuxiliares.

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cipal provedora financeira, comparativa-mente àquelas em que as esposas pos-suíam de 0 a 3 anos de estudo (categoriade referência).11

Em termos regionais, as esposas defamílias situadas nas Regiões Norte, Nor-deste e Sul do país possuíam maior chancede serem as provedoras, comparativamente

QUADRO 1Resultado do modelo Logit

Brasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.

àquelas localizadas no Sudeste, região queconcentra o maior dinamismo econômicodo país.

Com relação às ocupações dos côn-juges, as famílias em que os maridos eramtrabalhadores agrícolas, os pior remune-rados entre todos os grupos ocupacionais,apresentavam maior probabilidade de

11 As variáveis dos grupos de escolaridade de 12 a 14 anos e 15 e mais anos de estudo foram significativas a 10% e 5% designificância, respectivamente. As demais variáveis dummy para grupos de escolaridade não foram estatisticamente significativas.

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possuírem esposa provedora, em relaçãoaos trabalhadores dos serviços (categoriade referência). As famílias em que os ma-ridos encontravam-se nas demais ocupa-ções registraram menor probabilidade deterem as mulheres como principais pro-vedoras. Com relação às mulheres, a lógicaé inversa em relação às ocupações dasesposas. As integrantes das ForçasArmadas, dirigentes, professoras e técnicasaumentaram, em maior escala, a proba-bilidade de serem as provedoras quandocomparadas àquelas ocupadas nos servi-ços. As trabalhadoras agrícolas, pior re-muneradas entre todas as ocupações consi-derando esposas e maridos, diminuíram, emmuito maior escala, a probabilidade de setornarem provedoras quando relacionadasàquelas inseridas nos serviços.

Quanto à renda per capita familiar, asfamílias que se situavam no primeiro quartil

de renda possuíam maior probabilidade deterem as esposas como provedoras princi-pais de renda, controlando-se pelas demaisvariáveis do modelo.

Por fim, entre os casais em que pelomenos um dos cônjuges se declarou nãobranco, a probabilidade de a esposa ser aprincipal provedora era maior do que paraaqueles em que os dois se considerarambrancos. Possuir o marido como pensionistaou aposentado também aumentou a pro-babilidade de a esposa ser a provedora,depois de se controlar pelas demais va-riáveis do modelo.

A análise dos rendimentos

A análise descritiva dos rendimentosmédios para esposas e maridos em famíliascom duplo rendimento do casal, demons-trados na Tabela 3, indica que a renda

TABELA 3Rendimentos médios, horas trabalhadas e rendimento/hora de esposas e maridos,

por sexo do provedor principal do casalBrasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.(2) E/M=Relação esposa/marido, em porcentagem.(3) Número de horas trabalhadas no trabalho principal na semana de referência.(4) [Rendimento mensal do trabalho principal/(horas semanais*4)].

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mensal do trabalho principal da esposaprovedora era 62% maior do que a de seumarido, ao passo que a da esposa co-provedora era 62% inferior à de seu marido.O rendimento do marido provedor era ainda19% superior ao da esposa provedora.

Como o número médio de horas traba-lhadas da esposa provedora (40 horas) émenor do que o do seu marido (42 horas) eo do marido provedor (46 horas), analisa-ram-se também os rendimentos por horatrabalhada. Observa-se que o salário-horada esposa provedora continua 62% maiordo que o de seu marido e que a esposa co-provedora possui um salário-hora 50% in-ferior ao de seu marido (a esposa co-pro-vedora possuía salário-hora ainda menordo que o do marido co-provedor). O salário-hora do marido provedor era aproxima-damente 6% superior ao da esposaprovedora.

Esposas e maridos provedores: adecomposição da diferença dosrendimentos

O modelo de regressão de MínimosQuadrados Ordinários para equaçõessalariais foi utilizado na decomposição dosdiferenciais de rendimentos de maridos eesposas provedores, efetuada pelo métodode Oaxaca, largamente utilizado nosestudos que procuram medir a discrimina-ção no mercado de trabalho (LEME;WAJNMAN, 2001). Esta metodologiapermite verificar quanto da diferença salarialse explica pelas diferenças observáveisentre dois grupos de indivíduos, e as dife-renças não observáveis, ou não explicáveis,comumente atribuídas à discriminação.

O componente explicado da decom-posição salarial é definido pelas diferençasmédias nas características pessoais dosindivíduos, definidas pelas variáveis decontrole determinadas para uma dadaequação salarial. O componente não expli-cado, por sua vez, é definido pelas dife-

renças nos coeficientes estimados, mesmoapós controlar pelas características obser-váveis dos indivíduos, indicando a parcelado diferencial resultante da discriminaçãosofrida no mercado de trabalho. Algunsautores, entretanto, chamam a atenção parao fato de que qualquer variável de controleimportante, não incluída no modelo, tambémafetará os coeficientes da equação salariale, conseqüentemente, o componente nãoexplicado da decomposição efetuada. Damesma forma, a discriminação sofrida pelaspessoas pode definir as característicasobserváveis dos indivíduos, como, porexemplo, a ocupação de postos no mercadode trabalho menos qualificados, não sendo,assim, captada pelo componente não ex-plicado da decomposição (ALTONJI;BLANK, 1999).12

A diferença salarial, neste trabalho, foimedida através do log do rendimento médiomensal do trabalho principal de maridos eesposas provedores. O conceito de prove-dor, então, passa a ser o do cônjuge quepossui a maior renda do trabalho principal.As variáveis explicativas incluíram o númerode horas semanais trabalhadas no trabalhoprincipal, a idade do provedor, a idade aoquadrado,13 variável dummy para cor/raça(categoria de referência: branco), novedummies para grupos ocupacionais (cate-goria de referência: trabalhadores dosserviços), quatro dummies para a região dopaís em que se encontram (categoria dereferência: Sudeste) e cinco dummies paragrupos de anos de estudo (categoria dereferência: 0 a 3 anos de estudo).

A Tabela 4 traz os principais resultadosda decomposição. Verifica-se que, sedependesse das características observáveisentre homens e mulheres, especificadaspelas variáveis dependentes do modelo daequação salarial, o log dos salários dosmaridos provedores seriam inferiores aosdas esposas provedoras em aproxima-damente 17%, devido, principalmente,à maior escolaridade das mulheres,

12 Para formalização da decomposição salarial pelo método utilizado, ver Altonji e Blank (1999).13 Os coeficientes dos termos idade e idade ao quadrado, positivo e negativo, respectivamente, indicam a concavidade da curvade rendimento observado. Ela mostra que os ganhos nos rendimentos tendem a ser decrescentes com a idade.

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notadamente do grupo de 15 e mais anosde estudo. No entanto, características nãoobserváveis, entre as quais a existência dediscriminação do mercado de trabalho emfavor dos homens, mais do que compensama diferença em favor das mulheres, reduzindoem 13% os rendimentos destas relativamen-te aos dos homens.14 Em contraste com ototal de esposas e maridos (e não apenasos provedores), a decomposição revela quea parte explicada é favorável aos homens,sobretudo pelo maior número de horas tra-balhadas (bem maior do que entre esposase maridos provedores). A escolaridade aindaprioriza as mulheres, mas perde relevânciadiante da diferença no número de horastrabalhadas.

Considerações finais e agenda deestudos subseqüentes

Com base nos dados da PNAD de2004, verificou-se que, entre as famílias

TABELA 4Principais resultados da decomposição da diferença no log do salário do trabalho principal de maridos e esposas

provedores, em casais com duplo rendimento do trabalhoBrasil (1) – 2004

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2004.(1) Corresponde somente à área urbana.(2) Termo constante obtido nas regressões, relacionado com a parte não explicada dadecomposição.

com casais com duplo rendimento do tra-balho, aquelas nas quais as esposas eramas provedoras principais perfaziam 17%(contra uma média de 20% a 25%, indicadapela literatura internacional, em países de-senvolvidos) (CROMPTON; GERAN, 1995;US BUREAU OF STATISCTICS, 2005;WINKLER et.al., 2005). Os rendimentos dasesposas provedoras, quando analisadosatravés dos rendimentos totais, do trabalhoou salário-hora dos cônjuges, eram menoresdo que os dos maridos provedores. Estasmulheres não só possuíam rendimentossuperiores à média das outras esposas (asco-provedoras), como seus maridos tam-bém tinham rendimentos muito inferioresaos dos demais maridos (os provedores).Em relação aos maridos provedores, a de-composição da diferença salarial mostrouque ainda existe uma grande parte destadiferença não explicada pelas caracterís-ticas observáveis, como idade, escolarida-de, grupo ocupacional, região do país e

14 Os rendimentos médios das esposas e maridos provedores são R$ 1.024,00 e R$ 1.155,00, respectivamente, e diferem daquelesdescritos anteriormente, devido ao novo critério de provedor aqui assumido.

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número de horas trabalhadas, e que pro-vavelmente está relacionada com a discri-minação ainda presente no mercado detrabalho.

O fenômeno dos sobre-rendimentosdas esposas, apesar de se concentrar nacauda inferior da distribuição de renda, nãose restringia a ela. Estas informações sãocorroboradas pela regressão logística quemostrou que ser mais escolarizada, maisvelha, estar em ocupações de melhorqualidade aumentavam a probabilidade dea esposa ser a provedora financeira docasal, ao mesmo tempo em que famíliassituadas no quartil mais baixo da distribuiçãode renda também tinham maior proba-bilidade de terem a esposa como principalprovedora.

Soma-se a isto o fato de que a mulher,por ser provedora, não se qualificava paraser dispensada de parte significativa dosafazeres domésticos. O tempo despendidopelo marido nestes trabalhos praticamentenão mudou com relação à sua maior oumenor participação no orçamento familiare correspondia, aproximadamente, à me-tade do tempo gasto pelas esposas.

Esta análise permitiu fazer algumasinferências sobre quem são as mulheresprovedoras e o que as colocava nestasituação. Foi possível constatar, também,que estas mulheres acabam sendoduplamente penalizadas, porque, do pontode vista doméstico, apesar de serem asprovedoras financeiras, isto não as liberadas tarefas familiares tradicionalmentefemininas. Do ponto de vista do mercado

de trabalho, por outro lado, estas mulheressão discriminadas salarialmente, além deestarem sobre-representadas nos quartismais pobres de renda, o que deprime o bem-estar destas famílias comparativamente àstradicionais.

No entanto, tomando como referênciaa literatura internacional sobre o tema, aindahá muito a ser pesquisado. Em primeiro lu-gar, se carece de uma perspectiva intertem-poral que indique como se comporta a pro-porção de casais com esposas provedorasatravés do tempo no Brasil. Estimativaspreliminares confirmam que, como seespera, esta é uma tendência crescente.15

Contudo, também seria importanteverificar se a condição de provedora dasesposas na vida dos casais é transitória oupermanente16 e quão vulneráveis estariamestas famílias com relação à perda de bem-estar e suscetíveis ao empobrecimento, pornão terem o homem como seu principalprovedor. Vendo por um outro ângulo, tam-bém seria interessante verificar o impactodo rendimento das esposas no bem-estardas famílias e na distribuição de renda intrae entre as famílias.

Do ponto de vista qualitativo, é neces-sário entender melhor o efeito desta inver-são dos papéis tradicionais na vida doscasais. Os estudos nessa linha na literaturainternacional tendem a evidenciar o clarodesconforto sentido por ambos os cônjugesnesta situação. Pouco se sabe sobre a formacomo os casais brasileiros lidam com essacircunstância, mas é difícil supor que ascoisas sejam mais fáceis por aqui.

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15 Dados da PNAD indicam que havia, aproximadamente, 455 mil famílias cujas esposas eram as principais provedoras do casal em1981, em contraste com 2.189 mil famílias, em 2004.16 Ver estudo de Winkler, McBride e Andrews (2005).

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Resumen

Esposas como principales proveedoras de la renta familiar

Este trabajo procura discutir un aspecto aún poco explorado del papel de la mujer en laformación de los rendimientos familiares, que es la situación en la cual las esposas obtienen,

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Recebido para publicação em 22/02/2007.Aceito para publicação em 31/05/2007.

en el mercado de trabajo, rendimientos superiores a los de sus cónyuges. Además de ladescripción de características demográficas y socio-ocupacionales de estas mujeres y de suscónyuges, se busca discutir los siguientes aspectos: como algunas de las característicasobservadas están correlacionadas con la probabilidad de que las familias tengan a las esposascomo principales proveedoras; la no reversión de los estándares tradicionales de división deltrabajo, ya que la mujer dedica un número de horas mucho mayor que sus cónyuges a lastareas domésticas, aún cuando es la principal proveedora financiera de la pareja; losdiferenciales en el rendimiento promedio de maridos y esposas proveedores y ladescomposición de este diferencial entre lo que puede ser atribuido a las característicasproductivas de ambos grupos y lo que es generalmente llamado discriminación.

Palabras-clave: Esposas proveedoras. Rendimiento familiar. Desigualdad de rendimientos.

Abstract

Wives as the main household earners

In this article three questions related to wives who outearn their husbands in Brazil are examined.First we discuss the demographic and socio-economic characteristics associated with theprobability that the wife will be the main earner. Second, the patterns of the division of laboramong couples where the women are the primary earners are examined, especially as towhether the women spend more time on domestic work than their husbands. Third, we quantifydifferentials in income between wife and husband earners and examine how these differentialsare explained by differences in (1) professional characteristics between men and women and(2) discrimination.

Key words: Wives as main earners. Family income. Income inequality.

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