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1 FACULDADE DE ENGENHARIA E ARQUITETURA CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO Disciplina: História da Arte Profª Esp. Laile Almeria de Miranda Texto Sonia Leni Chamon ARTE MEDIEVAL Espírito sobre a matéria Um período de aproximadamente mil anos definem os limites da Idade Média milênio das trevas, muitos já chamaram. Serão trevas rendilhados na arquitetura e explosão de cores em vitrais? Serão trevas iluminuras fascinantes e afrescos enlevados? Alguma treva resiste à sublime música medieval ou à doce literatura dos menestréis? Um conturbado período de guerras sangrentas, extinção de uma economia monetária, supressão da liberdade dos camponeses e domínio ininterrupto da Igreja permitem, de fato, uma interpretação funesta do período medieval; mas a sua extraordinária arte a redime: é pura luz transcendental. Vamos ver neste texto dez séculos de arte cristã, um amálgama de rigor moral iconoclasta, criatividade libertária de imagens e princípio de humanismo na representação. Vamos a esta cruzada! A Arte dos Povos Bárbaros Os últimos séculos do Império Romano foram marcados por um crescente enfraquecimento político e militar. A divisão do Império, com Constantino em 323d.C., deslocou uma das sedes do Império para o Oriente, em Constantinopla, enquanto Roma permanecia enfraquecida. Hordas de povos chamados pejorativamente de bárbaros (pois não possuíam a cultura clássica) invadiram e tomaram o Império do Ocidente: os Vândalos no Norte da África, os Visigodos na Espanha, os Francos na Gália, os Ostrogodos e Lombardos na Itália. Era uma nova geografia quem se vislumbrava, a gênese das línguas modernas que se iniciava, o cristianismo que se consolidava utilizando a belíssima miscigenação das Artes Paleocristã e Bárbara. A Arte Bárbara

Espírito sobre a matéria · PDF fileum manuscrito francês dos Evangelhos de Ebbo. ... Entrada de Cristo em Jerusalém. (1308-11) Museu da Catedral (Siena). Figura 22 Giotto, A Lamentação

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FACULDADE DE ENGENHARIA E ARQUITETURA CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO

Disciplina: História da Arte Profª Esp. Laile Almeria de Miranda Texto Sonia Leni Chamon

ARTE MEDIEVAL

Espírito sobre a matéria Um período de aproximadamente mil anos definem os limites da Idade Média –

milênio das trevas, muitos já chamaram. Serão trevas rendilhados na arquitetura e

explosão de cores em vitrais? Serão trevas iluminuras fascinantes e afrescos

enlevados? Alguma treva resiste à sublime música medieval ou à doce literatura dos

menestréis? Um conturbado período de guerras sangrentas, extinção de uma

economia monetária, supressão da liberdade dos camponeses e domínio ininterrupto

da Igreja permitem, de fato, uma interpretação funesta do período medieval; mas a

sua extraordinária arte a redime: é pura luz transcendental. Vamos ver neste texto dez

séculos de arte cristã, um amálgama de rigor moral iconoclasta, criatividade libertária

de imagens e princípio de humanismo na representação. Vamos a esta cruzada!

A Arte dos Povos Bárbaros

Os últimos séculos do Império Romano foram marcados por um crescente

enfraquecimento político e militar. A divisão do Império, com Constantino em

323d.C., deslocou uma das sedes do Império para o Oriente, em Constantinopla,

enquanto Roma permanecia enfraquecida. Hordas de povos chamados

pejorativamente de bárbaros (pois não possuíam a cultura clássica) invadiram e

tomaram o Império do Ocidente: os Vândalos no Norte da África, os Visigodos na

Espanha, os Francos na Gália, os Ostrogodos e Lombardos na Itália. Era uma nova

geografia quem se vislumbrava, a gênese das línguas modernas que se iniciava, o

cristianismo que se consolidava utilizando a belíssima miscigenação das Artes

Paleocristã e Bárbara.

A Arte Bárbara

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As tradições artísticas bárbaras, espalhadas por diversos territórios e épocas,

traduzem-se principalmente nos motivos de animais criando padrões intrincados

quase abstratos, em madeira talhada, metais, esmaltes e pedrarias. Em objetos de

acentuado realismo porém com decorações abstratas(fig. 1 ) , podemos conferir a

existência de uma cultura religiosa desenvolvida e senso estético esmerado.

Os primeiros tempos da Idade Média, chamada Alta Idade Média, são fortemente

influenciados pela estética bárbara. Cruzes com adornos celtas (fig. 2 ), utilização de

pedrarias não lapidadas, iluminuras com padrões intrincados como podemos observar

no manuscrito Evangeliário de Lindisfarne (fig.3), no qual se combinam elementos

célticos e .germânicos. A iluminura da Cruz apresenta o intrincado padrão formal

bárbaro. Diversos manuscritos forram decorados sob esta influência, ajudando a trazer

um novo elemento artístico para a arte ocidental (Gombrich, 1983)

Figura 1 Fig. Cabeça de animal fantástico,

da barca funerária de Oseberg, (c.825d.C).

Madeira, Universidade de Antiguidades (

Estocolmo).

Figura 2 Cruz das escrituras, arte celta (900 d. C).

Museu de Clonmacnoise ( Irlanda).

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A Arte Bizantina

Após a cisão do Império Romano, a região de Bizâncio, com capital em Constantinopla,

tornou-se um esplendoroso Império, com a manutenção de várias tradições clássicas de

representação e arquitetura, agora voltadas para o cristianismo. A religião oficial era

subordinada ao Imperador, e não ao Papa em Roma, a partir do reinado de Justiniano,

no séc. VI. Esta religião, chamada Ortodoxa a partir do séc. XI, tornou-se extremamente

rígida em relação à arte, principalmente quanto à representação religiosa: eram os

iconoclastas que, assim como impediam uma representação naturalista de Deus, Nossa

Senhora e apóstolos, renegavam violentamente as imagens ditas pagãs – esse foi o

principal motivo da destruição das esculturas gregas originais.

Artes Decorativas

A arquitetura religiosa bizantina apresentou diversas contribuições, tanto no oriente,

como no ocidente – pois foi muito forte a sua influência também na Itália..

O mosaico (fig 6) era muito utilizado, seus pequenos cubos de vidro, esmalte e metal

eram dispostos de forma a exaltar a glória e o poder divino e nunca a sua semelhança

com um homem comum.Cobriam imensas paredes e cúpulas, sempre com as

características de rigidez, frontalidade e ausência de perspectiva. As pinturas de

“ícones” também seguiam esta tradição, porém com a representação estática de Nossa

senhora com o Menino (fig. 7). De forte tradição russa, onde a Igreja Ortodoxa também

chegou, estas pinturas também seguem regras rígidas de cromatismos simbólicos

Figura 3 Fig. Página da Cruz dos Evangelhos

de Lindisfarne. (700 d. C). British Library

(Londres).

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(dourados, vermelhos), perfil em três quartos da figura central, rico planejamento e

detalhes do trono.

A Alta Idade Média – Arte Carolíngia e Arte Românica

O séc. IX, na Europa, foi marcado pelo chamado renascimento carolíngio, período em

que o Imperador Carlos Magno fez ressurgir a cultura clássica, principalmente através

de manuscritos ricamente decorados (fig. 8).Os escritos latinos foram recuperados e

transcritos em letras hoje conhecidas por romanas. A arquitetura retomou elementos

clássicos, como o arco romano. O Imperador mandou construir, por volta de 800 d.C.a

Figura 6 Justiniano e seu séquito (detalhe) (c.547 d.C). San

Vitale (Ravena).

Figura 7 Madona Entronizada (c. 1280) provavelmente

pintado em Constantinopla. (Washington D.C.) National

Gallery of Art (Coleção Mellon)

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Igreja de Aix-la-Chapelle, na capital de seu Reino – Aachen.

A partir do séc. XI, as atividades culturais e os trabalhos intelectuais ficam

centralizados nos mosteiros, unidades autossuficientes extremamente tradicionais na

religiosidade, mas que não deixam de ser centros de irradiação de cultura do mundo

laico, como local de encontro de menestréis, mercadores e peregrinos (HAUSER,

1982). Os mosteiros foram os domínios dos monges copistas e iluminadores que deram

continuidade e desenvolvimento a arte dos manuscritos decorados, além de serem

responsórios da cultura clássica1.

Neste período as igrejas tornam-se cada vez mais sólidas, com aspectos defensivos de

fortalezas – são as igrejas românicas2(fig.10), construídas por nobres e bispos levavam

gerações e gerações para se finalizarem, utilizando o trabalho dos servos e colonos e,

dentro dos mosteiros, supervisionados pelo clero (HAUSER, 1982). Solidez e falta de

luminosidade natural caracterizavam essas construções.

1 Sobre esta questão ler O Nome da Rosa – ver referências no final desta Unidade. 2 Na Inglaterra, sob influência dos povos normandos, este estilo é conhecido por Normando.

Figura 10 Ig. Beneditina de Murbach

(remanecentes). (C. 1160) Alsácia

Figura 8 S. Mateus Evangelista . Iluminura carolíngia de

um manuscrito francês dos Evangelhos de Ebbo. (séc. IX).

Biblioteca Municipal (Epernay),

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As decorações destas igrejas eram igualmente austeras – as esculturas, sempre

estruturais, eram presas à arquitetura. Os pórticos (entrada da igreja) normalmente

apresentavam um Cristo Pantocrator (aquele que tudo rege) - figura vinda da tradição

bizantina, na qual a mão direita erguida apresentava uma benção e a esquerda segurava

as escrituras sagrada, normalmente sentado em um trono e circundado por uma oval. Ao

Seu redor, os símbolos dos quatro evangelistas (São Marcos, leão; São Mateus, anjo;

São Lucas, boi; São João, águia). Na igreja românica de St. Trophime (fig. 11),

podemos observar esta composição sobre o tímpano do pórtico.

As decorações também poderiam ter um caráter expressivo ligado às deformações e

exageros com finalidade de provocar o medo e a opressão do Juízo Final. São comuns

imagens entrelaçadas de criaturas e monstros fabulosos em extravagante delírio e

inspiração apocalíptica ou paradisíaca (fig. 12).A pintura decorativa românica era

bastante escassa, temos exemplos de afrescos (fig.13) sempre com ausência de

naturalismo. A bidimensionalidade imperava em composições geométricas e riqueza

cromática. A representação do espaço era ausente, assim como as figuras humanas

apresentavam distorções na representação.

Figura 11 Igreja de St. Trophime (pórtico). C.

1180, Arles.

Figura 12 Paisagem de primavera.

Manuscrito dos Carmina Burana. Biblioteca

Bávara, Munique. (Séc. XIII)

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Essas representações coincidiam com a visão teocêntrica do período, na qual o homem

não era visto como ser individualizado. O caminho em direção ao realismo da

representação segue o crescimento da mentalidade humanística, como veremos a seguir.

A Baixa Idade Média – Arte Gótica

A partir do séc. XI o sistema econômico feudal entra em declínio, dando lugar a uma

economia comercial, monetária e urbana (HAUSER,1982). O trabalho passa a se

organizar de outras formas, com o reaparecimento do dinheiro na economia (ausente

na economia feudal) – aparece a função dos mestres-de-obras e de mestre pedreiro e

uma imensa diversidade de artista e artífices. Essa nova realidade, com todos os seus

desdobramentos faz surgir uma nova arte, mais fiel à natureza, voltada para a

representação do indivíduo e do espaço: é a Arte Gótica .

A mobilidade estética, característica da cultura ocidental, sobrepôs rapidamente o

estilo românico – primeiramente na arquitetura. Inovações técnicas possibilitaram a

construção de imensas catedrais ( fig. 14) extremamente originais em suas formas.

Figura 14 Catedral de Notre Dame de Paris (1163 a

1250).

Figura 13 Painel de San Quirino e Santa Julita

( séc. XII). Museu de Arte da Cataluña

(Barcelona)

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A primeira inovação deu-se ainda no período anterior, quando os arquitetos normandos

começaram a construir abóbadas a partir de arcos cruzados alicerçados em pilares. Esta

técnica, também chamada de nervura, possibilitou a partir do séc. XII a construção de

altíssimos tetos em nervura, usando o arco ogival Como os arcos somente

necessitavam do apoio de pilares, as paredes perderam a função de sustentação do teto,

o que possibilitou o uso intenso dos vitrais (fig. 15) (vidros coloridos, unidos por

filetes de chumbo, que formam desenhos). Observe na fig.16 o interior de uma catedral

gótica, com as nervuras de arcos ogivais, os pilares com rendilhados e os vitrais

intercalados.

Figura 15 Vitral da Catedral de Chartres (séc. XII)

Figura 16 Interior da Catedral de Sainte

Chapelle ( 1.250) Paris

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As esculturas góticas permanecem estruturais, isto é, ligadas à arquitetura, porém são

tratadas de uma forma completamente diferente da escultura românica: são alongadas

(como a arquitetura) e muito realistas, tendo cada figura um tratamento

individualizado. O pórtico da catedral de Chartres apresenta profetas bíblicos (fig. 19)

os quais podem ser identificados pelos elementos e objetos que os acompanham.

Assim como a França é o berço das transformações

arquitetônicas, é na Itália que ocorrem as revoluções

pictóricas. Retábulos e afrescos vinham de antigas

tradições, ligadas à arte bizantina – portanto hieráticos

e rígidos. Cimabue introduz modificações às tradições

de representações sagradas, painéis grandes, com

figuras mais expressivas (fig. 20) substituem pequenos

ícones. Duccio introduz a representação do espaço

(fig.21) precedendo Giotto de Bondonne, aquele a

quem os renascentistas chamavam de mestre do

treccento (o séc. XIV, para os italianos).

Figura 19 Esculturas do pórtico do transepto

da Catedral de Chartres. (1194).

Figura 20 Cimabue. Virgem em majestade.

(1280-90) Galeria Uffizi ( Florença

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Giotto criou em afrescos cenas bíblicas (como em Pádua) ou sobre a vida de santos

(como os de são Francisco, em Assis) de profundo realismo, não apenas a

representação do espaço em perspectiva, mas a gestualidade, a proporção, a posição e

expressão de cada figura da cena – era uma narrativa presencial da cena contada, como

nunca havia sido feito (fig. 22 ). O sagrado finalmente passava a ser visível.

Para saber mais...

Livros ou capítulo

Figura 21 Duccio. Entrada de Cristo em

Jerusalém. (1308-11) Museu da Catedral

(Siena).

Figura 22 Giotto, A Lamentação de

Cristo. ( 1306) Capella dell’Arena (

Pádua)

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História Social da Literatura e da Arte. A 4ª Parte deste livro trata da Idade

Média e é uma ótima leitura para compreender a complexidade do contexto

histórico medieval, principalmente sob o ponto de vista da economia. Mas

sempre relacionando contexto e arte que neste livro se amplia para a

interessante literatura medieval. Veja referências.

A História da Arte. Se você optou por ler o Gombrich inteirinho (espero que

sim!), veja os capítulos: (8) A Arte Ocidental em Fase de Assimilação, (9) A

Igreja Militante, (10) A Igreja Triunfante. Veja referências .

O Nome da Rosa. Este maravilhoso romance de Umberto Eco ambientado em

um mosteiro medieval, permite vários níveis de leitura: uma trama

investigativa, com assassinatos misteriosos, um verdadeiro tratado de semiótica

através da literatura, uma visão da Idade Média, seus contextos e personagens.

Vale a pena “encarar” alguns parágrafos em latim...que tal? Veja referências.

Sites

http://www.kultur.gov.tr Site do Ministério da cultura e Turismo da Turquia,

apresenta uma rápido tour virtual da Igreja de Santa Sofia.

http://www.italyguides.it/us/pisa/leaning_tower.htm . Tour virtual do famoso

campanário românico de Pisa, uma das jóias desta arquitetura.

http://www.notredamedeparis.fr Site oficial da famosa catedral gótica, apresenta

sua história e arquitetura em detalhes. Também tem tour virtual.

Filmes

Rei Arthur (King Arthur, 2004, EUA)Dir. Antoine Fuqua. O filme é

baseado no lendário Rei Arthur e seus cavaleiros da távola redonda. Mas lhe dá uma

roupagem mais possível, como um líder cristão de formação clássica que percebe que

os Bárbaros podem não ser tão incivilizados quanto parece.

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O Nome da Rosa (Der Name Der Rose, 86, Alemanha). Dir. Jean-Jacques

Annaud. Este filme, baseado no romance homônimo de Umberto Eco, além de ser um

ótimo suspense e o Sean Connery estar demais como um frei, nos transporta para um

mosteiro beneditino nos tempos medievais com direito a uma maravilhosa arquitetura

românica .

O Corcunda de Notre Dame ( The Huntchback of Notre Dame, 96, EUA) Dir.

Gary Trousdale e Kirk Wise. Esta animação da Disney ameniza bastante a história

original do Victor Hugo, mas os desenhos dos interiores da catedral são demais! Vale

também para ter uma ideia das cidades góticas, com suas agitadas feiras livres. Ah,

sim: depois de assistir a este desenho animado passamos a ver a gárgulas de maneira

menos monstruosa...

Dicas

Visite o Mosteiro de São Bento no Centro de São Paulo. A construção atual data de

1910 e tem características da arquitetura românica (pode chamá-la de neo-românica

ou eclética). A Missa de domingo (10h) tem Canto Gregoriano que é a música sacra

no formato medieval. Depois da missa, compre os pães ou bolos (receitas secretas)

dos monges beneditinos. Uhmm!

Procure em livros e sites:

Mitologia dos povos bárbaros.

A história das Cruzadas.

As lendas em torno do Santo Graal.

Iconografia dos vitrais góticos.

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Referências

ECO, UMBERTO.O Nome da Rosa. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1983.

GOMBRICH,E.H. A História da Arte .Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

HAUSER. A. História Social da Literatura e da Arte. 2 vol. São Paulo: Mestre Jou,

1982

JANSON, H. W. História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1992

PANOFKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo: Ed. Martins Fontes,

1991.