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“Estas cenas rebaixam a nossa raça e a nossa Sociedade”: mutualismo e identidade racial entre trabalhadores de cor no pós-abolição Lucas Ribeiro Campos 1 Resumo: A Sociedade Protetora dos Desvalidos foi uma associação de socorros mútuos com sede localizada na cidade de Salvador, constituída por trabalhadores de cor. Tinha como objetivo auxiliar seus associados em momentos de doença, desemprego e ajudando as famílias destes em casos de morte. Durante sua trajetória, a SPD conservou o critério racial para a admissão de seus sócios. Este critério era tão rigoroso que, no artigo 69 de uma espécie de esboço do estatuto de 1894, todos os regulamentos poderiam ser reformulados, menos o artigo 1º, considerado “perpetuo” e “inviolável”, pois se referia à entrada de indivíduos de cor na associação. Deste modo, a instituição permaneceu com uma característica que a diferenciava de muitas associações de auxilio mútuo do século XIX: não existia uma identificação em torno de um ofício, mas sim em relação a cor. Nesta comunicação pretendo discutir os significados e os sentidos atribuídos por estes sujeitos em relação a essa identidade racial. A partir de dois episódios específicos, busco compreender as formas como os membros daquela instituição acionaram sua identidade racial para transmitirem uma imagem alinhada às expectativas das autoridades, com o objetivo de legitimar o espaço de solidariedade que eles haviam construído para os trabalhadores de cor, desde a época do Império. Palavras-chave: mutualismo, raça, trabalhadores. Uma atmosfera de tensão pairava a sala das sessões da Sociedade Protetora dos Desvalidos, localizada no velho sobrado no largo do Cruzeiro de São Francisco, na cidade de Salvador. Era um começo de tarde naquele dia 17 de junho de 1894, quando o vice- presidente da Assembleia Geral, Manoel Anastácio Cajueiro, assumiu interinamente a presidência dos trabalhos que ocorreram naquela sessão, no lugar do presidente titular Juvêncio Diogo de Santana. Com a presença significativa de 101 sócios, o clima da reunião transcorreu cercado por muitos desentendimentos. Um dos associados, Theodoro Gomes, tentou tumultuar a sessão algumas vezes, com questionamentos direcionados ao presidente, mas foi alertado por diversos sócios em relação ao respeito a ordem. Theodoro consentiu em aguardar seu momento de fala, mas foi provocado por Felipe José da Costa e Souza, que disse ao mesmo que “já devia ter aguardado de princípio”. Em resposta, Theodoro afirmou que Felipe “não estava na altura de discutir com ele; e que não tinha 1 Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq). Email: [email protected]

“Estas cenas rebaixam a nossa raça e a nossa Sociedade ... · no exercício de sua cidadania e no mercado de trabalho, por ser difundida a ideia de serem ... 7 Para uma discussão

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“Estas cenas rebaixam a nossa raça e a nossa Sociedade”: mutualismo e identidade

racial entre trabalhadores de cor no pós-abolição

Lucas Ribeiro Campos1

Resumo: A Sociedade Protetora dos Desvalidos foi uma associação de socorros mútuos

com sede localizada na cidade de Salvador, constituída por trabalhadores de cor. Tinha

como objetivo auxiliar seus associados em momentos de doença, desemprego e ajudando

as famílias destes em casos de morte. Durante sua trajetória, a SPD conservou o critério

racial para a admissão de seus sócios. Este critério era tão rigoroso que, no artigo 69 de

uma espécie de esboço do estatuto de 1894, todos os regulamentos poderiam ser

reformulados, menos o artigo 1º, considerado “perpetuo” e “inviolável”, pois se referia à

entrada de indivíduos de cor na associação. Deste modo, a instituição permaneceu com

uma característica que a diferenciava de muitas associações de auxilio mútuo do século

XIX: não existia uma identificação em torno de um ofício, mas sim em relação a cor.

Nesta comunicação pretendo discutir os significados e os sentidos atribuídos por estes

sujeitos em relação a essa identidade racial. A partir de dois episódios específicos, busco

compreender as formas como os membros daquela instituição acionaram sua identidade

racial para transmitirem uma imagem alinhada às expectativas das autoridades, com o

objetivo de legitimar o espaço de solidariedade que eles haviam construído para os

trabalhadores de cor, desde a época do Império.

Palavras-chave: mutualismo, raça, trabalhadores.

Uma atmosfera de tensão pairava a sala das sessões da Sociedade Protetora dos

Desvalidos, localizada no velho sobrado no largo do Cruzeiro de São Francisco, na cidade

de Salvador. Era um começo de tarde naquele dia 17 de junho de 1894, quando o vice-

presidente da Assembleia Geral, Manoel Anastácio Cajueiro, assumiu interinamente a

presidência dos trabalhos que ocorreram naquela sessão, no lugar do presidente titular

Juvêncio Diogo de Santana. Com a presença significativa de 101 sócios, o clima da

reunião transcorreu cercado por muitos desentendimentos. Um dos associados, Theodoro

Gomes, tentou tumultuar a sessão algumas vezes, com questionamentos direcionados ao

presidente, mas foi alertado por diversos sócios em relação ao respeito a ordem. Theodoro

consentiu em aguardar seu momento de fala, mas foi provocado por Felipe José da Costa

e Souza, que disse ao mesmo que “já devia ter aguardado de princípio”. Em resposta,

Theodoro afirmou que Felipe “não estava na altura de discutir com ele; e que não tinha

1 Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista pelo Conselho Nacional de

Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq). Email: [email protected]

competência, nem se igualava com ele”, aumentando assim o clima de tensão naquela

reunião.2

Depois de chamar diversas vezes à ordem o sócio Theodoro Gomes, ameaçando

retirá-lo do recinto, o presidente Manoel Anastácio Cajueiro se viu diante dos protestos

de outro associado, Felipe Benicio, figura importante e com grande prestígio entre os

membros da SPD. Possivelmente em defesa de Theodoro Gomes ou aproveitando a

situação para manifestar sua insatisfação com a gestão atual da instituição, Benicio tomou

a atitude de “invadir a grade da mesa”, sendo contido por muitos sócios. Daí em diante,

a sessão continuou tumultuosa, com o presidente chamando a atenção dos associados em

vão, pois a sala de reuniões se tornou um verdadeiro campo de guerra entre os membros,

“travando-se grandes pugilatos entre os senhores sócios”, em que alguns se "achavam de

cadeiras em punho", “havendo vozes até de foras ao senhor presidente". Diante desse caos

estabelecido na sala de reuniões da SPD, em que um dos sócios saiu com o nariz

ensanguentado, o presidente declarou “que não podia continuar com a sessão", pois em

presença daquele ambiente hostil não poderia "deliberar-se coisa alguma".3

No dia seguinte, em uma segunda-feira, o Gazeta de Notícias informava à

sociedade baiana sobre o acontecido na sede da SPD. Segundo o jornal, “alguns sócios

exaltaram-se ao ponto de travar-se um grande pugilato em plena rua”. Em um tom de

desaprovação, afirmavam que “cenas semelhantes são bastante deprimentes do nosso

conceito de povo ordeiro e civilizado”.4 De fato, a repercussão da briga na imprensa

demonstra que a confusão ganhou as ruas e ultrapassou os muros da associação.

Provavelmente o clima de tensão proporcionou que antigas desavenças emergissem

naquele momento, fazendo com que a briga se estendesse até a rua, chamando a atenção

do público em geral. Além disso, a forma como o jornal tratou o acontecido, revela o

quanto a SPD não estava longe do olhar vigilante na época. Era uma associação de

trabalhadores de cor, isto fazia dela, desde a época do Império, um espaço a ser vigiado

2 Arquivo da Sociedade Protetora dos Desvalidos (doravante ASPD), ata da sessão extraordinária da

Assembleia Geral de 17 de junho de 1894, aprovada em 23 de setembro de 1894. 3 ASPD, ata da sessão extraordinária da Assembleia Geral de 17 de junho de 1894, aprovada em 23 de

setembro de 1894. 4 Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Gazeta de Notícias, 18 de junho de 1894. Agradeço a Marcelo

Remilson Bouças da Silva pela gentileza de ter identificado e fotografado esta fonte para mim.

com cuidado pelas autoridades, pois ali se agrupavam indivíduos que possivelmente

estariam dentro da categoria das chamadas “classes perigosas”.5

No final do mês de junho, em uma outra sessão da Assembleia Geral, o assunto

sobre o comportamento indesejado voltou à pauta e o sócio Felipe Benício, protagonista

da última confusão, protestou “contra o tópico que diz que ele tentou invadir a grade para

desacatar ao senhor presidente e membros da mesa da assembleia”. Concordando com

Benício, o sócio Severiano Pedro da Silva pediu “a assembleia que consinta na

modificação da ata afim de não ficar nos anais da Sociedade está pagina triste visto ter

esperança que não há de reproduzir-se cena de igual teor”. Em seguida, Terencio Aranha

Dantas pediu a palavra e complementou a discussão com uma fala muito interessante. De

acordo com o que foi registrado em ata,

ele [Aranha Dantas] pelo respeito que consagra a sua raça e a esta

corporação faz o mesmo pedido visto que estas cenas rebaixam a nossa

raça e a nossa Sociedade perante as nossas irmãs e perante público

demonstrando que os homens pretos não sabem-se e finge-se não

saberem-se conduzir perante a civilização a ponto da imprensa publicar

(Gazeta de Noticias) que o nosso proceder depunha dos foros de um

povo civilizado.6

Depois de ter sido posto em votação, estes pedidos foram aprovados pelo presidente

Manoel Anastácio Cajueiro, encerrando-se a questão.

A fala de Terencio Aranha Dantas é muito significativa em relação ao contexto

social vivenciado por aqueles homens de cor. No alvorecer da república, alguns anos após

a abolição da escravidão, os negros tiveram espaços de atuação cerceados, seja na política,

no exercício de sua cidadania e no mercado de trabalho, por ser difundida a ideia de serem

bárbaros e primitivos, ou seja, incapazes de serem civilizados, por conta de seu passado

escravista. Os homens de cor estavam a margem do projeto nacional das elites, que

buscavam cada vez mais o ingresso do trabalhador imigrante no Brasil, dentro das

políticas de branqueamento do país. As antigas hierarquias e formas de discriminação da

época da escravidão foram recriadas, fazendo com que estes indivíduos justificassem e

5 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das

Letras, 1996. 6 ASPD, ata da sessão da Assembleia Geral para a nomeação da comissão reformadora dos estatutos; e

aprovação dos balancete do terceiro semestre social, de 01 de abril a 30 de junho de 1894, aprovada em 28

de Outubro daquele mesmo ano.

lutassem constantemente por sua posição na sociedade.7 Não é estranha a atitude de

Terencio Aranha Dantas ao chamar atenção para o restante dos membros sobre a

importância da associação provar que é capaz de se “conduzir perante a civilização”. Era

preciso constantemente construir uma imagem que atendesse as expectativas das elites,

como uma garantia de manutenção do espaço de solidariedade aos trabalhadores de cor.

Durante sua trajetória, de irmandade até se tornar uma sociedade de auxílios

mútuos, a SPD conservou o critério racial para a admissão de seus sócios. Após sua

fundação, em 1832, os membros da então Irmandade de Nossa Senhora da Soledade

Amparo dos Desvalidos discutiram a formulação de um termo de compromisso, que

estabelecia somente a entrada de indivíduos de cor preta como sócios.8 Na segunda

metade do século XIX, o estatuto de 1874 admitia como sócios “todos os cidadãos

brasileiros de cor preta”.9 Este critério era tão rigoroso que, vinte anos depois, no artigo

69 de uma espécie de esboço do estatuto de 1894, todos os regulamentos poderiam ser

reformulados, menos o artigo 1º, considerado “perpetuo” e “inviolável”, pois se referia à

entrada de indivíduos de cor na associação.10

A SPD permaneceu com uma característica que a diferenciava de muitas

associações de auxilio mútuo do século XIX: não existia uma identificação em torno de

um ofício, mas sim em relação a cor. Ao contrário das associações que surgiram na mesma

época, aquela instituição teve como critério racial sua principal referência de identidade.

Apesar do silêncio em relação a cor nas atas, nos relatórios e em outros documentos de

um modo geral, esta identidade racial emergiu diante da briga generalizada entre aqueles

sócios. Ao perceberem o quanto aquele episódio manchava a imagem da instituição, os

membros deixaram de lado suas desavenças e acionaram sua identidade racial para

transmitirem uma imagem alinhada às expectativas de um “conceito de povo ordeiro e

civilizado”. Para Kim D. Butler, que também analisou este episódio, o comentário de

Terencio Dantas revela uma sensibilidade próxima ao que se pode perceber nos escritos

7 Para uma discussão sobre o pós-abolição, ver: ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. O jogo da

dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009; GOMES,

Flávio; DOMINGUES, Petrônio (Orgs.). Experiências de emancipação: biografias, instituições e

movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011; ______. (Org.). Da nitidez

e Invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2013. 8 BRAGA, Júlio. Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandade de cor. Salvador: Ianamá, 1987, p.

28-30. 9 Estatuto da Sociedade Protetora dos Desvalidos, aprovado pelo governo da Província em 26 de agosto de

1874, Ibid., p. 79. 10 ASPD, esboço do Estatuto da Sociedade Protetora dos Desvalidos de 08 de outubro de 1894.

da Frente Negra, em que os membros também tinham um desejo de se inserirem em uma

“ordem civilizada”.11

Não se sabe ao certo as motivações da briga do dia 17 de junho de 1894. Aquele

pequeno atrito entre Felipe Souza e Theodoro Gomes provavelmente foi o catalizador da

confusão generalizada que ocorreu na sede. A querela entre os dois pode ter sido motivada

por uma série de fatores. O pouco que se sabe é que Felipe Souza era solteiro, oficial de

pedreiro e tinha 38 anos de idade quando ingressou na SPD, no ano de 1887.12 Ou seja,

era um sócio relativamente novo na instituição e não havia ocupado nenhum cargo

diretivo. Já em relação a Theodoro, infelizmente não foi possível encontrar seu pedido de

inscrição para obter mais dados sobre o mesmo. A única informação que se pôde ter é que

sua primeira aparição na documentação ocorreu na reunião da Assembleia Geral do dia

29 de abril de 1894.13

De todo modo, ao afirmar que Felipe Souza “não estava na altura de discutir com

ele”, “que não tinha competência” e “nem se igualava com ele”, Theodoro em seu

comentário abriu a possibilidade de pensar as contradições inerentes ao se observar a ideia

de identidade racial. Talvez os dois tivessem algum tipo de desavença, que ultrapassasse

os muros da instituição. É possível que ambos ocupassem ofícios que rivalizassem no

mercado de trabalho de Salvador ou nutrissem posicionamentos políticos que os

tornassem inimigos, tutelados por grandes políticos da Bahia da época. No entanto, o mais

interessante a se pensar é que talvez Theodoro não reconhecesse Felipe Souza como um

igual, um trabalhador de cor membro da SPD, o que abre margem para se pensar os limites

e possibilidades dessa identidade racial.

Mas a gota d’água para a briga generalizada naquele dia foi a atitude do sócio

Felipe Benicio, ao ter avançado em direção a mesa da Assembleia Geral. Felipe Benicio

ingressou na SPD em 28 de agosto de 1881, declarou em seu pedido de inscrição ser

solteiro, com idade de 32 anos e ocupava o oficio de carpinteiro, como empregado na

casa comercial do Tenente Coronel Aristides Novis. Além disso, tinha residência à rua

11 BUTLER, Kim. Freedoms given, freedoms won: Afro-Brazilians in post-abolition São Paulo and

Salvador. New Brunswick/Londres: Rutgers University Press, 1998, p 162. 12 ASPD, pedido de inscrição de Felipe José da Costa e Souza de 20 de Outubro de 1887, aprovado em 20

de Outubro de 1887. 13 ASPD, ata da sessão ordinária da Assembleia Geral do dia 29 de Abril de 1894.

dos Barbeiros, freguesia de São Pedro.14 Era uma figura importante na história da SPD e

ocupou os cargos de 1º e 2º secretário, além de presidente e vice-presidente, chegando até

a receber homenagens com um retrato na sede, por ter trazido grandes conquistas para a

instituição.15 Talvez por não concordar com as ações da direção atual da associação,

poucos anos após ter feito uma gestão impecável, digna até de homenagem, Felipe

Benicio tenha se excedido e tentado supostamente agredir a mesa da Assembleia Geral.

Somente algo muito grave tenha levado um sujeito querido por todos, a ser agressivo em

uma reunião. Ou quem sabe as mãos que escreveram a ata tinham um interesse particular

em construir esta narrativa de um Felipe Benicio agressivo.

De qualquer sorte, independente das motivações para a briga, o que interessa é

observar os significados e os sentidos atribuídos por estes sujeitos em relação a essa

identidade racial. É imprescindível perceber que a noção de identidade baseada na ideia

de raça é um campo fluido e carregado por interesses diversos. Antonio Sérgio Alfredo

Guimarães observa que analisar identidade racial “envolve riscos”, pois os modos de se

identificar racialmente podem ser múltiplos, seguindo uma lógica subjetiva "de se

autodenominar e partilhar com outros a diferença racial". Existem estratégias que podem

variar de acordo com a situação social dos indivíduos, como condição financeira,

instrução e a formação social de cada área geográfica em que vivem. Ou seja, a posição

social do indivíduo influencia na forma de reconhecimento de sua identidade racial.16 No

caso dos membros da SPD, existiu um interesse maior após a briga, em construir uma

narrativa de harmonia entre eles, no sentido de demonstrar que a solidariedade entre os

homens de cor pode superar suas divergências pessoais.

14 ASPD, pedido de inscrição de Felipe Benicio do dia 6 de Agosto de 1881, aprovado em 28 de Agosto de

1881 15 ASPD, ata da sessão magna em Assembleia Geral do dia 10 de Dezembro de 1893. 16 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. “Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa negra de

São Paulo e Rio de Janeiro, 1925 -1950”. Afro-Ásia, 30, 2003, pp. 247-269.

Imagem 1 – Retrato do sócio Felipe Benicio

Fonte: REIS, Lysie. A liberdade que veio do ofício: práticas sociais e cultura dos artífices na Bahia do

século XIX. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 316

Dois anos antes dessa fatídica briga narrada acima, Heleodoro Catilina do Espirito

Santo protagonizou uma situação também um tanto quanto curiosa na SPD. Heleodoro

era solteiro, 23 anos de idade, de “cor preta”, exercia o oficio de sapateiro e morava na

rua da Valla.17 Por intermédio de Américo Cardoso de Vasconcelos, que era oficial de

alfaiate e sócio efetivo da SPD desde 1881, conseguiu solicitar sua admissão como sócio

também desta instituição.18 Na sessão de 21 de setembro de 1892 o pedido foi aceito,

aguardando a presença do candidato na sede.19 Uma semana depois, Heleodoro

compareceu no velho sobrado da SPD para se apresentar diante do Conselho

Administrativo e pagar o valor de sua entrada. No entanto, o Conselho analisou o

requerimento e, através de um dos sócios, foi colocado em xeque a sua cor:

entra em discussão o requerimento do Sr. Heliodoro Catilina do Espirito

Santo pede a palavra o sócio visitador que diz que o candidato não lhe

parece de cor preta segundo marca os estatutos pelo que não pode votar

a favor do requerimento usa da palavra alguns dos funcionários sobre o

requerimento sendo ele adiado para a próxima sessão afim de verificar-

17 ASPD, pedido de inscrição de Heliodoro Ctilina do Espirito Santo de 21 de setembro de 1892, aprovado

em 05 de Outubro de 1892. 18 ASPD, pedido de inscrição de Américo Cardoso de Vasconcelos de 26 de Outubro de 1881, aprovado

em 26 de Outubro do mesmo ano. 19 ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 21 de Setembro de 1892, aprovada em 28 de

Setembro de 1892.

se se o proponente se acha nas condições que marca os referidos

estatutos.20

O visitador não identificou o candidato a sócio como um homem de cor e sua

atitude talvez tenha convencido o resto do Conselho que realmente existia uma dúvida

sobre a condição racial daquele indivíduo, sendo adiada a decisão por votos. Então no dia

05 de outubro daquele mesmo ano, o 1º secretário do Conselho Administrativo, Jacinto

Francisco de Andrade, enviou aos membros da SPD um documento em defesa de

Heleodoro. Jacinto de Andrade era viúvo, com 36 anos de idade e oficial de marceneiro,

quando entrou na SPD em 30 de dezembro de 1886.21 Provavelmente tinha alguma

ligação com o candidato, pois além de informar e justificar sua ausência na sessão daquele

dia, devido as suas ocupações, o 1º secretário expôs sua posição, demonstrando que

conhecia a família daquele sujeito.

Sou de opinião que seja aprovada a entrada do suplicante, em vista dos

seus Pais serem de cor Preta, assim como, se o conselho julgar

conveniente que esta minha opinião, seja lançada na ata, eu muito

ficarei agradecido, a estes companheiros de Conselho, a prova de

consideração, de um dos mais humilde (sic) membro do conselho,

aproveito a ocasião de minha Estima e consideração.22

No mesmo dia, o caso de Heleodoro foi discutido em ata e os membros, depois de

terem lido o comunicado do 1º Secretário emitindo sua opinião sobre o caso, decidiram

através de votação a aprovação do requerimento. A descendência do candidato foi crucial

para legitimar sua aprovação na associação, aparentemente colocando fim a qualquer tipo

de dúvida que existia sobre sua cor:

entra em discussão o requerimento do Sr. Heliodoro Catilina que ficou

adiado na última sessão declarando o presidente que deve merecer a

aprovação do conselho visto estar reconhecido ser ele cidadão de cor

preta o 2º secretário acompanha a opinião do presidente o arquivista

vota a favor do requerimento o Sr. visitador vota contra o Sr. tesoureiro

vota com a maioria sendo aprovado o requerimento nada mais havendo

a tratar foi suspensa a sessão às 9 ¼ da noite.23

20 ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 28 de Setembro de 1892, aprovada em 05 de Outubro

de 1892. 21 ASPD, pedido de inscrição de Jacinto Francisco de Andrade de 28 de Setembro de 1886, aprovado em

07 de Outubro de 1886. 22 ASPD, comunicado de Jacinto Francisco de Andrade de 05 de Outubro de 1892. 23 ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 05 de Outubro de 1892, aprovada em 12 de Outubro

de 1892.

É interessante observar que todos os presentes na reunião votaram a favor da

aprovação de Heleodoro, exceto o visitador Faustiniano Fernandes de Oliveira, membro

da SPD desde 1879.24 Ao que parece fez questão de registar ao final da ata, uma reiteração

acerca de sua posição contra a aprovação deste sócio, ao ter afirmado que “declara votar

contra por se achar em desacordo de ser o senhor Heleodoro Catilina de cor preta".25 Isso

demonstra mais uma vez o quanto a ideia de raça era um tanto quanto maleável de acordo

com as circunstâncias, passível de manipulação através de interesses diversos. É possível

que Faustiniano já conhecesse Heleodoro e conservasse algum tipo de desafeto com ele

ou quem sabe com sua família, que colocasse em questão a condição racial do mesmo.

Ou talvez existisse também um empenho de alguns sócios em reservar o acesso a SPD

somente para os retintos, aqueles em que a cor não pudesse ser questionada. Apesar desse

desacordo, no dia 19 de outubro, Heleodoro pagou sua entrada na importância de 10$000

réis e conseguiu o reconhecimento de uma parte dos sócios como novo membro da SPD.26

Na tabela abaixo, elaborada por Klebson Oliveira, é possível perceber que em uma

amostra de 332 pedidos de inscrição enviados a SPD, na segunda metade do século XIX,

apenas 193 (58,1%) eram de sujeitos que se declaravam como de cor preta. No entanto,

existe um número considerável de requerimentos, 139 (41,9 %) em que não consta

nenhuma declaração sobre a cor. De acordo com Oliveira, não foi possível identificar em

sua amostra nenhuma denominação de cabra ou pardo, categorias que indicavam

mestiçagem, assim como não foi possível observar a existência de candidatos a sócios

que fossem brancos. Oliveira ainda aponta que desses 139 indivíduos que não declararam

sua cor, é possível que tenham sido levados pelo raciocínio de que era consenso entre

todos que os candidatos a sócios fossem negros, sendo dispensável qualquer menção a

cor.27

24 ASPD, pedido de inscrição para ser readmitido de Faustiniano Fernandes de Oliveira de 30 de Abril de

1879, aprovado em 04 de Maio de 1879. Faustiniano Fernandes de Oliveira havia saído da SPD por de

inadimplência. 25 ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 05 de Outubro de 1892, aprovada em 12 de Outubro

de 1892. 26 ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 19 de Outubro de 1892, aprovada em 16 de

Novembro de 1892. 27 OLIVEIRA, Klebson. Negros e escrita no Brasil do século XIX: sócio-história filológica de documentos

e estudo linguístico. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2006,

p 151. Os pedidos de inscrição utilizados na composição da tabela são requerimentos enviados pelos

candidatos a sócios, em que constam dados como idade, estado civil, cor, ofício, número de filhos e

endereço.

Tabela 1

Cor Número de indivíduos %

Crioulo 60 18.1

Preta 133 40.1

Não declarada 139 41.8

Total 332 100.0

Fonte: LOBO, Tânia; OLIVEIRA, Klebson. Escrita liberta: letramento de forros na Bahia do século XIX. In: CASTILHO, Ataliba de; TORRES, Maria Aparecida; CIRINO, Sônia (Orgs.). Descrição, História e Aquisição do Português Brasileiro: estudos dedicados a Mary Aizawa Kato. São Paulo: Fapesp, 2007, p. 449.

Neste sentido, se confiarmos nesses dados, a situação envolvendo Heleodoro se

torna mais complexa, pois não abre margem nem para se pensar que existiram mestiços

na SPD. No entanto, acredito na possibilidade que sua condição de homem de cor, talvez

tivesse sido contestada, justamente por conta de uma possível confusão por ser mestiço.

É provável que esta condição lhe proporcionasse passar por branco em algumas situações.

No caso especifico, o visitador Faustiniano entendeu que Heleodoro não era um homem

de cor e não se encaixava naquilo que os estatutos estabeleciam. Diante do exposto, fica

a seguinte pergunta: qual motivo levaria um homem que talvez pudesse se passar por

branco, quisesse fazer parte de uma associação de homens de cor, em um contexto de

grande discriminação racial, nos primeiros anos do pós-abolição? A resposta dessa

pergunta, talvez seja a chave para perceber a importância que aqueles indivíduos davam

a sua condição racial, como um critério de identidade importante para legitimar um

espaço de solidariedade para os trabalhadores de cor.

Cabe observar então os significados que aqueles sujeitos atribuíram a ideia de

raça, tendo em vista o contexto em que estavam inseridos. Lilia Moritz Schwarcz observa

que o conceito de raça surgiu em um momento específico do Brasil, 1871 a 1930, através

de teorias raciais pautadas em princípios biológicos, mas com uma forte interpretação

social, sendo objeto de justificativa para projetos diversos no país por parte da elite. Para

Walter Fraga Filho, o termo “raça” começa a aparecer nos documentos como definidor

da condição do liberto, ao satisfazer as pretensões de reforçar e manter intactas novas

políticas de controle sobre toda a população afrodescendente. Pensando também o mesmo

contexto, Wlamyra Albuquerque observa que o processo de racialização no Brasil no fim

do século XIX, embora dissimulado, foi essencial para o surgimento de diversos critérios

de cidadania e para o estabelecimento de lugares sociais distintos. A ideia de racialização

representou a decadência do escravismo e a tentativa de garantir que a hierarquia social

escravista fosse preservada.28

Ao observar um outro contexto, que também pode nos ajudar a pensar a ideia de

raça, Iacy Maia Mata chama atenção para a construção da identidade racial, na segunda

metade do século XIX em Cuba. Ao analisar uma conspiração ocorrida naquela ilha, a

historiadora mostra como negros e mulatos da região oriental, entre 1864 e 1881,

passaram a acionar uma identidade racial, carregada de significados e sentidos conferidos

pelos sujeitos. No decorrer desses acontecimentos, de lutas anticoloniais e antiescravistas,

os insurretos de cor passaram a se auto identificar como “raça de cor”, em função da

descendência comum africana. No entanto, eles tinham como referência a ideia de raça

biológica em voga no século XIX, mas talvez não percebessem que estavam

“ressignificando” e “positivando” a ideia de raça, na tentativa de superar as classificações

biológicas baseadas na cor. 29

Deste modo, me interessa compreender para este trabalho os sentidos sociais

atribuídos pelos homens de cor da SPD em relação a raça. Inseridos em um contexto em

que a ideia de raça era baseada em princípios biológicos, muito utilizados para legitimar

projetos diversos da elite, os membros daquela associação deram um significado

particular a ideia de raça, para legitimar o espaço de solidariedade que eles haviam

construído para os trabalhadores de cor.

No entanto, a autora norte-americana Kim D. Butler sustenta a ideia que a

presença de uma ação ou militância coletiva em torno de uma identidade racial no período

do pós-abolição, só ganhou popularidade em São Paulo, e muito pouco em Salvador, por

alguns motivos. De acordo com a autora, a população de cor em Salvador era composta

de muitas comunidades menores, algumas até provindas dos grupos construídos com base

28 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil –

1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade:

histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p. 349-350;

ALBUQUERQUE, op. cit, 2009. 29 MATA, Iacy Maia. Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de

Cuba (1864-1881). Campinas: Editora da Unicamp, 2015, p. 37.

nos laços de "nações" surgidos durante a escravidão. Ou seja, não existiu uma identidade

racial coesa, como em São Paulo, por conta do caráter fragmentário da população de cor

em Salvador. Além disso, a autora acredita que os tipos de redes criadas pelos afro-

brasileiros em Salvador tiveram o modelo de patronagem como norteador de suas ações.

De acordo com Butler, os membros da SPD operavam dentro da cultura política do

clientelismo tão central para o ethos brasileiro. O modelo de patronagem requer uma clara

distinção entre os membros do grupo e os outsiders. Como uma espécie de princípio

orientador para os membros da SPD, a patronagem, segundo Butler, serviu para

neutralizar uma possível solidariedade baseada na ideia de raça.30

Acredito que a comparação entre São Paulo e Salvador, merece ser lida com

cuidado. Me parece que Kim Butler desconsidera que a SPD é uma instituição quase que

bicentenária e que sobreviveu o período escravista conservando o critério racial em seus

estatutos. Ou seja, não consigo perceber uma organização que conservou durante boa

parte do século XIX o critério racial para a admissão de seus membros, como uma

instituição que não construiu uma ação coletiva através de um princípio ligado ao critério

racial. Me parece que a SPD estabeleceu uma espécie de solidariedade de cor dentro das

possibilidades que lhe eram postas, diante de uma vigilância e um controle do Estado. Se

autodenominar em seus estatutos como uma associação de trabalhadores de cor no século

XIX, com a presença da estrutura escravista, é diferente de uma associação negra no

século XX, como a Frente Negra.

Quando menciono as possibilidades que estavam disponíveis para aqueles

trabalhadores de cor na associação, me refiro justamente a prática da patronagem. Uma

coisa não exclui a outra. O modelo da patronagem não neutralizou a solidariedade baseada

em um critério racial. Não é porque estes indivíduos estavam dentro do jogo político do

clientelismo, negociando frequentemente com autoridades políticas da época, benefícios

para a associação, que eles não se reconhecessem enquanto trabalhadores de cor. Muito

pelo contrário, o jogo político foi uma ferramenta importante para conseguirem angariar

recursos e se capitalizarem politicamente para manterem uma instituição que de fato, com

todos os problemas que enfrentaram, protegia e garantia direitos básicos para aqueles

trabalhadores de cor.

30 BUTLER, op. cit, p.162.