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Estatuto Da Cidade. Comentarios. Cities Alliance. MdasC. 2010

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Estatuto Da Cidade. Comentarios. Cities Alliance. MdasC. 2010

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  • O Estatuto da Cidade Comentado

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  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    E79 O Estatuto da Cidade : comentado = The City Statute of Brazil : a commentary

    / organizadores Celso Santos Carvalho, Anaclaudia Rossbach. So Paulo :

    Ministrio das Cidades : Aliana das Cidades, 2010.

    120 p. : il.

    Textos paralelos em portugus e ingls.

    1. Crescimento urbano - Brasil - Legislao. 2. Segregao urbana. 3. Excluso social.

    4. Movimentos sociais. 5. Habitao. 6. Saneamento. 7. Mobilidade residencial. 8.

    Sociologia urbana. I. Carvalho, Celso Santos. II. Rossbach, Anaclaudia.

    CDU 711.4(81)

    316.334.56(81)

    CDD 711.40981

    307.760981

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  • Apresentao

    Com seu processo de urbanizao virtualmente concludo, muitas cidades latino-americanas

    tm respondido cada vez mais ao desafio de superar o legado de dcadas de excluso social.

    No Brasil, anos de presso dos movimentos sociais colocaram a questo do acesso terra urbana

    e a igualdade social no topo da lista das agendas poltica e de desenvolvimento. Confrontado com

    as diferenas sociais criadas por uma das sociedades mais desiguais do mundo, a resposta do

    Brasil foi a de mudar a Constituio a fim de promover uma reforma fundamental de longo prazo

    na dinmica urbana. Como consequncia, as estruturas fundamentais dessa nova ordem jurdico-

    urbanstica foram abrigadas na Constituio Federal de 1988 e na Lei 10.257 de 2001, conhecida

    como o Estatuto da Cidade.

    Entre os desafios encarados pelo governo est o de trabalhar para reverter uma caracterstica

    marcante das suas cidades e comum em outras tantas cidades do mundo: a segregao

    socioespacial. Bairros abastados que dispem de reas de lazer, equipamentos urbanos modernos

    coexistem com imensos bairros perifricos e favelas marcadas pela precariedade ou total ausncia

    de infraestrutura, irregularidade fundiria, riscos de inundaes e escorregamentos de encostas,

    vulnerabilidade das edificaes e degradao de reas de interesse ambiental.

    Durante muitos anos, somente as partes das cidades brasileiras que atraam a ateno dos

    planejadores foram beneficiadas pelos servios pblicos e tiveram uma participao desproporcional

    dos oramentos locais.

    O governo brasileiro sinalizou suas intenes de mudana deste quadro com a criao do

    Ministrio das Cidades, em 2003. O novo Ministrio recebeu a incumbncia de apoiar estados e

    municpios na consolidao de novo modelo de desenvolvimento urbano que engloba habitao,

    saneamento e mobilidade urbana, por meio da Secretaria Nacional de Programas Urbanos, cuja

    principal tarefa apoiar a implementao do Estatuto das Cidades.

    Tambm foi em 2003 que o Ministrio das Cidades liderou o processo para que o Brasil se

    tornasse o primeiro pas em desenvolvimento a se unir Aliana de Cidades. A presente publicao,

    preparada em conjunto pelo Ministrio das Cidades e pela Aliana de Cidades, a primeira tentativa

    de prestar contas das experincias e conceitos que orientam o esforo brasileiro para superao

    da desigualdade urbana. A pea central desses esforos o Estatuto da Cidade, um instrumento

    jurdico nico e inovador, concebido pelo amplo movimento de reforma urbana no pas.

    Esperamos que esta publicao contribua de forma positiva ao debate, extremamente necessrio,

    focado na construo de cidades equilibradas, justas e saudveis para todos.

    Marcio FortesMinistro

    Ministrio das Cidades

    Billy Cobbett

    DiretorAliana das Cidades

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  • ndice

    O Estatuto da cidade perifrica Ermnia Maricato

    5

    Movimentos populares e o Estatuto da Cidade Evaniza Rodrigues

    Benedito Roberto Barbosa

    23

    A cidade de Diadema e o Estatuto da Cidade Mrio Reali

    Srgio Alli

    35

    O Estatuto da Cidade e a ordem jrdico-urbanstica Edesio Fernandes

    55

    Estatuto da Cidade: a construo de uma lei Jos Roberto Bassul

    71

    O Estatuto da Cidade comentado(Lei N 10. 257 de 10 de julho de 2001)

    Ana Maria Furbino Bretas Barros

    Celso Santos Carvalho

    Daniel Todtmann Montandon

    91

    Autores 119

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  • O Estatuto da Cidade Perifrica Erminia Maricato

    O Estatuto da Cidade (EC), lei federal brasileira n 10.257, aprovada em 2001, tem

    mritos que justifi cam seu prestgio em boa parte dos pases do mundo. As virtudes do

    EC no se esgotam na qualidade tcnica ou jurdica de seu texto. A lei uma conquista

    social cujo desenrolar se estendeu durante dcadas. Sua histria , portanto, exemplo de

    como setores de diversos extratos sociais (movimentos populares, entidades profi ssionais,

    sindicais e acadmicas, pesquisadores, ONGs, parlamentares e prefeitos progressistas)

    podem persistir muitos anos na defesa de uma ideia e alcan-la, mesmo num contexto

    adverso. Ela trata de reunir, por meio de um enfoque holstico, em um mesmo texto,

    diversos aspectos relativos ao governo democrtico da cidade, justia urbana e ao

    equilbrio ambiental. Ela traz tona a questo urbana e a insere na agenda poltica nacional

    num pas, at pouco tempo, marcado pela cultura rural.

    No entanto, a presente publicao no se ater em tecer loas ao texto da lei ignorando os

    limites e constrangimentos presentes no processo de sua aplicao. O EC no ser tratado

    aqui, tampouco, como um exemplo universal aplicvel a qualquer realidade embora vamos

    constatar que muitas cidades do mundo no desenvolvido apresentam semelhanas. Ao

    contrrio, buscar-se- apresent-lo destacando a complexidade e as contradies que esto

    presentes em sua aplicao, mesmo na realidade brasileira, que inspirou sua formulao.

    Veremos, ainda, ao longo das prximas pginas que o texto legal, embora fundamental,

    no sufi ciente para resolver problemas estruturais de uma sociedade historicamente

    desigual na qual os direitos, como por exemplo o direito cidade ou moradia legal, no

    so assegurados para a maioria da populao. Parte das grandes cidades brasileiras tem

    a maioria de sua populao morando informalmente sem observao de qualquer lei ou

    plano urbanstico, sem concurso de arquitetos e engenheiros para construo de seus

    bairros ou casas, sem fi nanciamento para as obras que compem uma gigantesca produo

    domstica de espao urbano que evidentemente resulta precrio. O Brasil no est sozinho

    nessa condio como todos sabem e como revelam os relatrios da UN-HABITAT1. Talvez

    a maior parte dos domiclios urbanos do mundo todo se faa dessa forma, compondo

    amontoados de pessoas em lugares que so no cidades j que ali no esto ausentes

    apenas a infraestrutura que caracteriza o espao urbano, mas tambm todos os servios

    urbanos e equipamentos coletivos.

    1. Ver a respeito as publicaes UN-HABITAT. Cities without slums. Global Report on Human Settlements, 2002;

    UN-HABITAT Cities in a globalizing world. Global Report on Human Settlements, 2001. www.unhabitat.org5

    ndice

    O Estatuto da cidade perifrica Ermnia Maricato

    5

    Movimentos populares e o Estatuto da Cidade Evaniza Rodrigues

    Benedito Roberto Barbosa

    23

    A cidade de Diadema e o Estatuto da Cidade Mrio Reali

    Srgio Alli

    35

    O Estatuto da Cidade e a ordem jrdico-urbanstica Edesio Fernandes

    55

    Estatuto da Cidade: a construo de uma lei Jos Roberto Bassul

    71

    O Estatuto da Cidade comentado(Lei N 10. 257 de 10 de julho de 2001)

    Ana Maria Furbino Bretas Barros

    Celso Santos Carvalho

    Daniel Todtmann Montandon

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    Autores 119

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  • 6Aplicar o Estatuto da Cidade em tal contexto, culturalmente excludente, tradicionalmente conservador, no

    tarefa simples especialmente porque nessas sociedades chamadas de emergentes, no desenvolvidas,

    em desenvolvimento ou perifricas, o poder poltico e social vem associado propriedade patrimonial.

    O acesso a terra, seja ela urbana ou rural, sempre foi um dos temas mais importantes da histria

    da humanidade. O acesso a terra nas sociedades pobres que se urbanizam mais crucial. E essa

    a questo-chave tratada no Estatuto da Cidade. Vamos mostrar, portanto, a importncia que a lei, de

    fato, tem para a construo de cidades mais justas e ambientalmente equilibradas e vamos observar os

    conflitos que sua aplicao enfrenta no Brasil, sem sustentar a pretenso ingnua de que uma lei (ou um

    plano) constitui, em si, solues para problemas que so histricos e estruturais.

    O Estatuto da Cidade no trata apenas da terra urbana. Assumindo um enfoque holstico a lei inclui:

    diretrizes e preceitos sobre planos e planejamento urbano, sobre gesto urbana e regulao estatal, fiscal

    e jurdica (em especial sobre as propriedades fundirias e imobilirias), regularizao da propriedade

    informal, participao social nos planos, oramentos, leis complementares e gesto urbana, parcerias

    pblico-privadas, entre outros temas. A reunio de leis previamente existentes, de forma fragmentada,

    com instrumentos e conceitos novos sob o rtulo de Estatuto da Cidade torna mais fcil o reconhecimento

    da questo urbana. A lei deu unidade nacional ao trato das cidades. E se, mesmo aps oito anos de sua

    promulgao, existem juzes que ainda a ignoram e tratam a propriedade privada como um direito absoluto

    e no relativizado pela sua funo social, podemos dizer que essa prtica est cada vez mais difcil, j que

    o formato de unidade abrangente da lei chamada de estatuto tornou mais fcil sua divulgao.

    A Constituio brasileira de 1988, promulgada em um momento de ascenso das foras sociais que

    lutavam pela democratizao do pas, assegura ao poder municipal a competncia para definir o uso e a

    ocupao da terra urbana, e o Estatuto da Cidade refora essa orientao autnoma e descentralizadora.

    O fortalecimento da autonomia do poder local se deu como reao centralizao autoritria da poltica

    urbana exercida pelo governo ditatorial no perodo anterior, entre 1964 e 1985. Com base nas diretrizes

    federais sobre o desenvolvimento urbano e sobre a propriedade privada da terra e imveis, o planejamento

    e a gesto urbanos, bem como a resoluo de grande parte dos conflitos fundirios, foi remetida para

    a esfera municipal2. no municpio, por meio da lei do Plano Diretor ou legislao complementar, que

    sero definidos os conceitos de propriedade no utilizada ou subutilizada e que sero gravadas, em base

    cartogrfica, as propriedades a serem submetidas a sanes de instrumentos previstos no Estatuto da

    Cidade. no municpio ainda que sero definidas as parcerias pblico-privadas, as operaes urbanas, a

    aplicao de um grande nmero de instrumentos jurdicos e fiscais entre outras iniciativas. A autonomia

    municipal no tratamento do tema , portanto, muito grande na legislao brasileira. Dependendo da

    correlao de foras no municpio a lei poder ter aplicao efetiva ou no3.

    2. A definio do modelo de gesto metropolitana foi remetida s Constituies Estaduais e tem sido um tema pouco

    prestigiado no Brasil. Por outro lado, a questo ambiental ficou sob a competncia complementar e concorrencial dos

    trs nveis da federao.

    3. Aos crticos dessa significativa descentralizao queremos lembrar, que em pases de territrio extenso e diversidade

    geogrfica como o Brasil e, as cidades tm caractersticas muito diferenciadas (stio, clima, sociedade, cultura) o que

    recomenda muita ateno com as condies locais. As regras que regulam o direito de propriedade so estabelecidas em

    nvel federal e sua aplicao mais ou menos progressista depender da correlao de foras local.

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  • 7progressivo no tempo e desapropriao sano, que sero

    apresentados em tpicos especficos nesse trabalho.

    Em que pese a abordagem holstica composta por diferentes aspectos, o tema central do EC a funo

    social da propriedade. Em sntese, a lei pretende definir como regular a propriedade urbana de modo

    que os negcios que a envolvem no constituam obstculo ao direito moradia para a maior parte da

    populao, visando, com isso, combater a segregao, a excluso territorial, a cidade desumana, desigual

    e ambientalmente predatria. O EC trata, portanto de uma utopia universal: o controle da propriedade

    fundiria urbana e a gesto democrtica das cidades para que todos tenham o direito moradia e cidade.

    Se, no sculo XVIII, a Revoluo Francesa seguiu a utopia de libertar a terra das relaes de servido e

    garantir seu acesso amplo por meio da propriedade privada individual, no sculo XXI a grande utopia

    a restrio ao direito individual de propriedade tendo em vista o interesse coletivo4. Num mundo que se

    urbaniza crescentemente e que a maior contribuio a esse processo de urbanizao mundial tem origem

    nos pases pobres, o tratamento dado a terra no Estatuto da Cidade merece ser conhecido.

    Para compreender assunto to complexo e controverso, vamos partir de algumas perguntas:

    Qual o contedo do Estatuto da Cidade que relativiza e limita o direito de propriedade privada? Como

    pretende o EC regular as propriedades urbanas? Quais as suas virtudes que permitiriam corrigir injustias

    e desequilbrios ambientais? Como a lei assegura a participao social na gesto das cidades? Qual o

    papel que o EC atribui aos diferentes nveis da estrutura federativa?

    Como foi construda socialmente a ideia de limitar o direito de propriedade de forma a subordin-lo a

    uma funo social?

    Como foi possvel ao Congresso Nacional Brasileiro, historicamente conservador, num pas socialmente

    desigual, aprovar o Estatuto da Cidade? Como foi possvel uma sociedade patrimonialista, onde o poder

    poltico e social se confundem com a deteno de patrimnio (especialmente a propriedade de terras e

    imveis), admitir a aprovao de uma lei to avanada?

    Como se d sua aplicao? Quais so os obstculos e constrangimentos colocados sua aplicao?

    Como se tem dado o impacto do EC nas cidades brasileiras?

    4. A Constituio Francesa de 1791, precedida da Declarao dos Direitos do Homem, menciona

    a propriedade como um dos direitos naturais e imprescritveis do homem alm de direito

    inviolvel e sagrado. A Constituio Americana ,de 1787, considerou a propriedade privada

    como um dos direitos essenciais e inalienveis.

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  • 8As especificidades das cidades perifricas5

    Parte dessas questes ser respondida neste primeiro captulo e parte nos captulos seguintes. Para

    comear, faz-se necessrio abordar aspectos fticos e conceituais, especficos da realidade urbana

    dos pases que pertencem quilo que podemos chamar de capitalismo perifrico6. Por que tratar

    dessa especificidade? Porque h uma profunda diferena entre as cidades do mundo desenvolvido

    (basicamente os pases do G7) e no desenvolvido que tem a ver com a regulao estatal sobre o

    espao urbano e o alcance do mercado residencial privado. Por isso Londres, Paris, Nova Iorque,

    Boston, Toronto, Tquio so cidades muito diferentes das cidades do Mxico, So Paulo, Rio de Janeiro,

    Mombai e Joanesburgo, apenas para citar alguns poucos exemplos. Nas primeiras, o Estado exerce,

    de fato, a regulao sobre a totalidade do solo urbano seguindo as leis existentes com excees no

    significativas. Nas demais, frequente observar que a maioria da populao pode habitar espaos

    informais que so tambm segregados em relao cidade oficial ou legal onde os planos e leis

    urbansticas no so aplicados. As excees so mais regra do que excees7.

    Nos pases centrais, o mercado privado atende necessidade de habitao da maior parte da populao

    sendo que uma minoria, que varia de pas para pas, necessita de subsdio ou apoio estatal para a proviso

    da moradia. No Canad, por exemplo, 30% da populao so classificados como non market housing.

    Estas necessitam de auxlio pblico para resolver seu problema de moradia. J no Brasil, ou nos pases

    perifricos de um modo geral, passa-se exatamente o contrrio: mais de 70% da populao (o que inclui

    parte da classe mdia) est fora do mercado privado legal e necessitaria de subsdios8.

    Uma das caractersticas dessas cidades perifricas um mercado formal ou legal limitado que

    frequentemente oferece um produto de luxo para uma minoria da populao. Os lucros, decorrentes

    de atividades especulativas com imveis, ocupam um lugar muito importante nesse mercado,

    pressionando a disputa por terras e ampliando seu preo. A reteno de terras ociosas nas cidades

    parte estrutural desse modelo que combina: mercado restrito e frequentemente luxuoso, lucro

    especulativo, ausncia de polticas sociais em escala significativa (isto , uma escala que v alm das

    festejadas best practices ), escassez de moradia, segregao e informalidade9.

    5. Certamente a classificao das cidades do mundo todo exigiria um maior detalhamento tipolgico. Vamos utilizar uma abordagem dual cidades

    perifricas e cidades desenvolvidas ou centrais como recurso simplificador adequado para o que se pretende nessa rpida apresentao.

    6.Usaremos indiferentemente, sem rigor acadmico, os conceitos correntes aplicados por instituies internacionais na classificao dos diferentes

    pases do mundo embora reconhecendo que essas denominaes no so neutras: pases desenvolvidos ou em desenvolvimento; pases centrais,

    semiperifricos ou perifricos; pases emergentes ou pobres; pases do sul ou do norte.

    7. Muitas das afirmaes feitas aqui esto baseadas em observao emprica, alm de bibliogrfica, que resultado de atividades de consultoria ou

    de pesquisa da autora em cidades de vrios pases do mundo. Entretanto a maior parte das informaes provm do universo urbano brasileiro. As

    generalizaes devem ser vistas com alguma cautela.

    8. A retomada do investimento habitacional pelo Governo Federal, no Brasil, a partir de 2004, que estava relativamente paralisada desde os anos 1980,

    tem apontado para uma mudana nesse padro. Foi lanado um novo programa que busca a construo de um milho de moradias Minha Casa, Minha

    Vida reforando essa tendncia e buscando ao anticclica em relao crise que eclodiu em setembro de 2008. Tudo indica que o mercado privado

    legal est em ampliao para atender o que poderamos chamar de classes mdia e mdia baixa. Na Amrica Latina, esse movimento de produo

    massiva de moradias pde ser observado no Chile (anos 1990) e Mxico, mais recentemente.9. Estamos desenvolvendo a ideia de que a segregao e a informalidade no so resultados espontneos, mas produto de um processo histrico de

    produo do espao que segue, espelha e reproduz as caractersticas da sociedade desigual. Cabe lembrar, entretanto, que frequentemente o Estado

    atua diretamente produzindo a segregao ou a excluso urbanstica seja por regulao legal como aconteceu na frica do Sul com o apartheid, seja pela

    transferncia de favelas que so retiradas do contexto urbanizado valorizado pelo mercado para reas distantes da cidade formal.

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  • Escassez de moradia, agresso ambiental, ilegalidade e violncia Outra das principais consequncias da falta de alternativas de moradias legais (ou

    seja, moradias reguladas pela legislao urbanstica e inseridas na cidade oficial) est na

    agresso ambiental. A ocupao de reas ambientalmente frgeis beira dos crregos,

    encostas deslizantes, vrzeas inundveis, reas de proteo de mananciais, mangues

    a alternativa que sobra para os excludos do mercado e dos programas pblicos pouco

    abrangentes. No por falta de leis ou planos que essas reas so ocupadas, mas por falta

    de alternativas habitacionais para a populao de baixa renda. Em algumas metrpoles

    brasileiras, como So Paulo e Curitiba, as regies onde a ocupao por moradias ilegais

    mais cresceu na dcada de 2000 foram as reas de Proteo dos Mananciais, ou seja,

    reas produtoras de gua potvel, onde a ocupao proibida por lei, mas no o na prtica

    da ocupao do territrio. So as reas vulnerveis, protegidas por legislao ambiental que

    no interessam ao mercado imobilirio privado legal e sobram para as moradias pobres.

    As principais formas de moradia precria so produtos de loteamentos piratas e

    clandestinos ou de invases de terra que do incio formao de favelas. Os cortios,

    moradias ou cmodos alugados em reas centrais ou no tm relevncia relativa

    nas diferentes cidades. Em geral no tm a mesma importncia quantitativa das primeiras

    formas citadas, embora sejam fundamentais para a requalificao de reas urbanas centrais

    sem que se expulsem moradores pobres.

    Se considerarmos o nmero de favelas e o nmero de seus moradores que invadem terra

    para morar, podemos dizer que uma gigantesca invaso de terras urbanas consentida pelo

    Estado, nos pases no desenvolvidos, mesmo contrariando as leis urbansticas ou de proteo

    ambiental. Essas invases no so dirigidas por movimentos contestatrios, mas pela falta de

    alternativas. J que todos precisam de um lugar para morar e ningum vive ou se reproduz

    sem um abrigo, esse consentimento ocupao ilegal, no assumido oficialmente, funciona

    como uma vlvula de escape para a flexibilizao das regras. Mas esse consentimento e

    flexibilizao se do apenas em reas no valorizadas pelo mercado imobilirio. O mercado

    mais do que a lei norma jurdica que define onde os pobres podem morar ou invadir

    terras para morar. H uma lgica que relaciona mercado e aplicao da lei.

    Alm disso, nas grandes e mdias cidades, os rios, riachos, lagos, mangues e praias

    tornaram-se canais ou destino dos esgotos domsticos. No Brasil, 34,5 milhes de pessoas

    no so atendidos pelas redes de esgotos nas cidades. Somando-se a estes os domiclios

    que contam com apenas fossa sptica, teremos 50% do total da populao brasileira.

    Alm do mais, 80% do esgoto coletado no so tratados, sendo despejado nos cursos de

    gua. Mais do que efluentes industriais atualmente, o esgoto domstico o poluidor, por

    excelncia, dos recursos hdricos10.

    10. Esses dados so do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) para 2009, com base nas fontes

    do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), ambos organismos do Governo Federal.9

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  • A ausncia da lei urbanstica parece fornecer um espao profcuo para a ausncia

    generalizada de leis, cortes, tribunais e advogados para a resoluo de conflitos

    e para a garantia de direitos sociais, civis e humanos. A falta da gesto pblica, e

    a inexistncia de qualquer contrato social, remetem os bairros homogeneamente

    pobres para a situao de terra de ningum onde a lei a do mais forte.

    compreensvel o aumento do nmero de homicdios e do crime organizado nas

    grandes cidades do mundo no desenvolvido nos ltimos 30 anos. Em alguns bairros

    dominados por um poder que, apenas aparentemente paralelo, vamos encontrar

    a concentrao de mazelas que demonstram que a excluso um todo. Alm

    da ilegalidade urbanstica, dos altos ndices de violncia, esto presentes, nesses

    bairros mais vulnerveis (socialmente e ambientalmente) a desproporcional taxa de

    mulheres chefes de famlias, maior taxa de desemprego, maior proporo de negros,

    taxa de escolaridade abaixo da mdia urbana, renda mdia abaixo da renda mdia

    urbana, taxa mais alta de mortalidade infantil, ocorrncia frequente de doenas por

    epidemia etc. Podemos denominar esses bairros de bombas socioecolgicas. As

    autoridades pblicas e at mesmo a polcia tm dificuldade de circular livremente

    por essas reas que esto liberadas do contrato social.

    Razes da sociedade perifrica engano frequente considerar que as cidades perifricas esto num estgio mais

    atrasado em relao ao percurso seguido pelas cidades do mundo desenvolvido e

    que um esforo de gesto e condies favorveis de governabilidade suficiente

    para superar o gap entre elas. No faltam receitas que so oferecidas por agncias

    internacionais e consultores que tm origem nos pases do norte para superar

    essa distncia. evidente que determinados governos urbanos, em determinadas

    condies polticas e econmicas, podem minorar as mazelas das cidades mais

    pobres e isso no pouco importante. Mas o que se quer destacar aqui que jamais

    ser possvel equipar-las com as cidades desenvolvidas mantendo a relao de

    dependncia subordinada e utilizando receitas do primeiro mundo. Isto porque elas

    so estruturalmente diferentes e no esto em diferentes etapas de um mesmo

    percurso histrico rumo ao desenvolvimento. Nas cidades perifricas constatamos a

    convivncia da falta de esgoto e frequentemente at de alimento com o consumo de

    bugigangas eletrnicas, tnis de marca ou TV a cabo como acontece nas favelas do

    Rio de Janeiro ou de So Paulo. Num mesmo momento histrico, esto presentes

    o modo de vida pr-moderno (a produo domstica da moradia, a proximidade dos

    dejetos, por exemplo) convivendo com o modo de vida ps-moderno baseado na

    comunicao revolucionada. No Brasil, em 2005, 163 milhes de pessoas tinham

    acesso a TV em cores enquanto 123 milhes 32% a menos tinham acesso ao

    esgoto por meio de uma rede coletora ou fossa sptica (IBGE/PNAD 2005).10

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  • 11

    Os imperativos de um modelo de consumo, que universal nos pases do ncleo

    hegemnico, penetram as mentes e coraes da maior parte da humanidade, que se

    mantm na pobreza, e dificultam a possibilidade de uma construo endgena.

    Essa simultaneidade de diferentes padres tecnolgicos a marca da sociedade

    urbana perifrica e consequentemente das cidades. O processo de modernizao

    incompleta inclui avanos modernizantes sem abandonar as marcas do atraso. Trata-

    se de um capitalismo que, mesmo durante o perodo da industrializao tardia, foi

    caracterizado pelo assalariamento precrio ou pela informalidade predominante nas

    relaes de trabalho. No estava e no est garantido o que poderamos considerar um

    padro mnimo conquistado pela modernidade: previdncia social, moradia, educao

    universalizada, saneamento bsico etc., mas sobre essa base precria est presente

    a presso exercida pelo mercado na direo do consumo de produtos de ponta que

    poderiam ser classificados como suprfluos ou no prioritrios. O poder da logomarca,

    a penetrao da publicidade so avassaladores e criam novas necessidades. Os

    valores do consumo conspcuo penetram todos os poros vazios da existncia dos

    adolescentes pobres. A tica do trabalho no se sustenta at porque a oferta de

    emprego ou de trabalho, ainda que informal, dificilmente acompanha, especialmente

    nas ltimas dcadas do sculo XX e incio do sculo XXI, o crescimento da chamada

    populao economicamente ativa. Exatamente nesse perodo, as mazelas trazidas

    pela globalizao neoliberal aprofundaram a pobreza e a desigualdades urbanas nas

    cidades perifricas. Por globalizao entendemos a ampliao internacional dos

    mercados revolucionada por grandes mudanas tecnolgicas (movimento estrutural)

    combinada ao iderio neoliberal: primazia do mercado, enfraquecimento dos Estados-

    Nao, recuo das polticas sociais, privatizaes e mercantilizao dos servios

    coletivos, e consequente aumento do desemprego e da violncia.

    A busca das razes dessa condio nos remete, num primeiro momento, relao

    colonial e depois imperialista: associao do capital internacional com uma elite

    local visando interesses complementares. Interesses esses que resultaram, durante

    sculos, na exportao da riqueza excedente a produzida, na utilizao da mo de obra

    barata ou mesmo escrava (que assegura uma cultura de desprestgio do trabalho e do

    trabalhador), na importncia crucial do latifndio e no travamento do mercado interno.

    Seja por meio da exportao de produtos primrios, seja por meio de um processo

    tardio de industrializao ou de um engate passivo na globalizao financeirizada, a

    histria nos mostra a persistente falta de autonomia poltica e a fragilidade do mercado

    interno que pode conduzir ao desenvolvimento social e econmico mais includente.

    Esse tema no ser desenvolvido aqui. Ele pretende mostrar apenas que alguns

    pases do mundo apresentam caractersticas comuns que lhes permitem um dilogo

    proveitoso ainda que as especificidades das cidades e das experincias sociais locais

    sejam nicas e exijam todo respeito e ateno.

    PULICCOMPLETA FINALport.indd 11 3/11/10 12:47:28 PM

  • Motivos para esperana: propostas aderentes realidadeNo se pretende, com essa constatao crtica, levar o leitor ao desnimo a partir de um pensamento

    eivado de fatalidade. Ao contrrio, pretende-se mostrar que apenas o conhecimento cientfico dessa

    realidade pode nos conduzir a propostas adequadas e especficas. O conhecimento da situao concreta

    de cada cidade, ou seja, o combate ao analfabetismo urbanstico pode constituir uma vacina contra

    ideias inadequadas realidade local11. A influncia do pensamento urbanstico dos pases do norte e a

    importao de modelos de planejamento e gesto urbanos s fizeram aprofundar a cidade partida entre

    includos e excludos onde se verifica a existncia de verdadeiras ilhas de primeiro mundo, reguladas

    por zoneamento detalhado, marcadas por uma arquitetura fashion, local de produo do mercado formal.

    Do outro lado est a cidade informal, construda predominantemente pelos seus prprios moradores

    com seus parcos recursos. A representao dessa cidade busca afirmar a hegemonia das ilhas de

    primeiro mundo tomando a parte pelo todo. Alm de invisveis, os bairros informais tambm so

    desconhecidos, em grande parte, nos cadastros, mapas, arquivos e registros urbanos.

    A cidade perifrica marcada pelo mimetismo cultural decorrente da hegemonia exercida pelos

    pases centrais por meio dos veculos de comunicao, universidades e principalmente pela expanso

    internacional do mercado. A realidade local dificilmente o nexo central para o desenvolvimento do

    conhecimento. Est presente, tambm, uma dificuldade de acmulo progressivo do saber a partir

    das diversas experincias cuja continuidade frequentemente rompida pelo conhecimento externo.

    Os instrumentos de gesto urbana copiados de fora no levam em conta a realidade dessas cidades,

    com grande parte da populao (e no poucas vezes, a maior parte) excluda do mercado privado e da

    condio legal de moradia, alm das condies mnimas aceitveis de urbanizao. Os planos diretores

    e especialmente as leis de zoneamento ignoram que, na cidade perifrica, o mercado residencial privado

    atende a uma pequena porcentagem da populao, e que temos a problemas que no se colocaram

    aos urbanistas e arquitetos das prestigiadas universidades americanas, apenas para dar um exemplo. A

    ausncia de um desenvolvimento endgeno e um planejamento idem, dirigidos para a realidade social

    existente, buscando fortalecer o mercado interno, um dos grandes problemas que se no podem

    ser superados localmente ou nacionalmente, j que a expanso dos mercados um fenmeno global

    podem ser minimizados. O que se prope aqui o desenvolvimento de propostas aderentes realidade

    da cidade perifrica e a superao da dominao cultural e tcnica. H muito de utopia nessa ideia; e os

    conflitos no desaparecero j que crescentemente impossvel desvincular a estrutura social endgena

    da exgena. Mas a adeso concretude social, econmica, poltica, cultural, urbana e ambiental

    sempre um avano que permite desvendar ideologias mascaradoras da realidade e acabam tendo um

    efeito pedaggico sobre a leitura emancipadora das especificidades de cada sociedade.

    11. Ideias fora do lugar a expresso usada pelo escritor brasileiro Roberto Schwarz para

    denominar as ideias geradas pelo modo de produo dos pases desenvolvidos que so transferidas

    sem mediaes para a realidade dos pases perifricos. Um bom exemplo dessa contradio foi a

    chegada do iderio liberal europeu no Brasil escravista no sculo XIX. A cultura, a poltica e a arte

    praticada pela elite se inspiravam no liberalismo, mas a base da economia era o escravismo.

    12

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  • 13

    Um exemplo que superou essa dificuldade a prtica de urbanizao de favelas. A urbanizao ou requalificao

    urbanstica e social de favelas pode ser uma boa proposta quando ela est bem localizada na cidade e seus moradores tm

    oferta de emprego, alm de servios e equipamentos coletivos nos arredores. Os mtodos e tcnicas de urbanizao de

    favelas tm tido um desenvolvimento satisfatrio e um crescente aperfeioamento nos pases perifricos. Ao contrrio

    do que muitos pensam, essa ao pode constituir uma importante interveno de recuperao ambiental alm de

    social j que as favelas esto, na maior parte das vezes, situadas em reas ambientalmente frgeis. Este um exemplo

    de programa urbanstico que seguiu um desenvolvimento endgeno apesar de recomendado tambm pelas agncias

    internacionais de desenvolvimento no ltimo quarto do sculo XX. A permanncia em reas bem localizadas nas

    cidades contra a remoo para reas distantes foi uma conquista social no Brasil, fruto de muita luta das comunidades

    de moradores de favelas e no simplesmente orientao externa. At o incio dos anos 1980, as favelas eram tratadas

    como caso de polcia ao invs do reconhecimento de que a maior parte dos seus moradores eram trabalhadores

    e, em muitos casos, como em So Paulo, trabalhadores da indstria fordista, produtora de automveis. Os baixos

    salrios pagos aos trabalhadores industriais brasileiros que explicam porque um trabalhador de uma indstria que

    era avanada at a dcada de 1980 morava em favelas. Tratava-se e trata-se ainda da industrializao com baixos

    salrios que gerou uma urbanizao com baixos salrios: excludos do mercado os trabalhadores constroem suas

    moradias e at mesmo seus bairros. A derrocada do welfare state, ainda que em verso perifrica, e o aumento do

    desemprego apenas radicalizaram essa situao nas dcadas de 1980 e 1990.

    A grande dificuldade, no atual estgio da poltica para favelas garantir a regularizao fundiria e sua integrao

    cidade oficial, garantindo assim a manuteno das reas de circulao, da coleta do lixo, da varrio das ruas, das reas

    pblicas, da iluminao pblica e do padro das edificaes para evitar o excessivo adensamento e a insalubridade12.

    Apesar de ser possvel constatar alguns avanos em relao poltica para favelas, preciso reconhecer que o nmero

    de aes de transferncia de favelas de reas urbanas valorizadas para fora das cidades, nos pases no desenvolvidos,

    ainda bem maior do que a consolidao desses ncleos em espaos urbanos centrais ou relativamente centrais.

    Predomina, a nosso ver (estamos nos baseando aqui em observao emprica e informaes interpessoais), uma ao

    de limpeza social que est relacionada valorizao imobiliria. Observando a realidade de alguns pases da Amrica

    Latina, alm da frica do Sul e da ndia, poderamos arriscar ainda uma hiptese: enquanto que os governos federais

    afirmam a poltica de urbanizao e de no remoo de favelas, os demais membros da federao agem francamente

    pr-mercado privado transferindo favelas de locais valorizados. Em alguns casos, essa transferncia apela para a violncia

    (como aconteceu em Durban) e em outros a terra (de onde a favela foi retirada) simplesmente cedida ao mercado

    privado (Nova Delhi)13. No faltam, tambm, os casos de governos que fazem a urbanizao de algumas favelas para

    efeito de marketing, mas aplicam como regra a remoo quando se trata de rea valorizada pelo mercado ( o exemplo

    de So Paulo). A disputa pela terra urbanizada, ou a disputa pela localizao na cidade, acirrada em toda parte.

    12. Evidentemente a consolidao dos moradores de favelas em determinado espao urbano deve levar em considerao tambm as condies

    geotcnicas e ambientais do terreno alm da vontade dos moradores. Um grande nmero de publicaes trata do assunto especialmente a

    partir da definio das Metas de Desenvolvimento do Milnio. Alm do GRHS UN HABITAT 2002 ver a respeito GARAU, P; SCLAR, E. D.; e

    CAROLINI, G. Y. A home in the city. London, Earthscan 2005. A bibliografia brasileira sobre o tema muito extensa.

    13. Sobre a violncia utilizada para a remoo de favelas em Durban, ver a denncia da ONG formada pelos moradores da Comunidade

    Kennedy Road, no Jornal do Brasil Online, 12/out./2009 A informao sobre Delhi foi dada autora por funcionrio do governo local. No caso

    de So Paulo, a Prefeitura divulga a urbanizao de favelas especialmente para visitantes internacionais. Mas aplica outras tticas, incluindo a

    agresso, quando se trata de remover conforme relato de diversas fontes: Defensoria Pblica do Estado de So Paulo, Frum Centro Vivo.

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  • A disputa pela terra urbana: um tema crucial para as cidadesA propriedade da terra continua a ser, e talvez mais do que nunca, um n marcado por

    conflitos sociais no campo ou na cidade. Nas sociedades patrimonialistas ou oligrquicas

    ela tende a adquirir maior importncia, pois, como j foi lembrado, nelas o poder social,

    poltico e econmico est relacionado deteno de patrimnio. Com a globalizao, a partir

    dos anos 1980, a questo da terra tende a se agravar no mundo todo. Produtos primrios

    como minrios, celulose, gros, carne, petrleo, etanol (commodities ) ganham importncia

    estratgica nos mercados globais promovendo a migrao de milhes de camponeses de

    suas terras14. Excludos do acesso terra urbanizada, essa populao migrante ou em alguns

    casos, imigrante, amontoa-se em favelas j que a terra urbanizada um bem precioso e

    escasso nas cidades perifricas.

    Determinados atributos que a terra pode ter estar servida de infraestrutura urbana,

    contar com equipamentos pblicos e privados nos seus arredores, estar situada de frente para

    o mar no so reproduzveis, ou pelo menos facilmente reproduzveis, o que nos reporta

    a uma condio de monoplio. Tanto esses atributos, como a legislao urbana que incide

    sobre determinada propriedade, influem em sua maior ou menor valorizao. A ampliao de

    investimentos pblicos ou privados nas proximidades de um imvel tendem a ampliar seu

    preo. A legislao que pode ser mais ou menos restritiva para a ocupao de determinado

    pedao de terra tambm influi no seu preo. A proximidade de favela tende a desvalorizar

    um imvel. So exemplos que mostram a condio que tem uma propriedade privada de

    gerar renda fundiria ou imobiliria para seu possuidor e essa condio d origem a uma

    disputa que crucial e ao mesmo tempo silenciosa pelo espao urbano. Alguns lutam pelo

    direito cidade e outros por ganhos extras advindos de atividades que so especulativas, na

    maior parte das vezes. E essa condio to dominadora das relaes sociais urbanas que

    frequentemente pobres que so proprietrios rejeitam a vizinhana de pobres moradores de

    favelas porque tm a conscincia do impacto negativo que estes tm sobre o preo de seus

    imveis. Ainda que pertenam mesma faixa de renda, os proprietrios se antagonizam com

    os no proprietrios.

    Essa disputa pelo valor de uso ou pelo valor de troca, ou ainda pela apropriao da valorizao

    fundiria ou imobiliria, mais acirrada na cidade perifrica onde esto presentes a escassez

    de terras urbanizadas e a escassez de moradia. Nas cidades dos pases centrais a regulao

    sobre a terra e imveis urbanos tornou-se historicamente mais efetiva. A democratizao do

    acesso moradia e cidade promovida especialmente durante o welfare state exigiu maior

    controle sobre a terra e sobre os ganhos rentistas em favor do aumento da produtividade da

    construo e da ampliao do acesso conquistado pelos movimentos sociais e sindicais.

    14. A busca de terras arveis para cultivo de alimentos tornou-se um rentvel negcio internacional

    que est ameaando a expulso de milhes de camponeses de suas terras, nos pases pobres.

    Segundo o Instituto Internacional de Pesquisas Alimentares (IFPRI), 15 a 20 milhes de hectares

    de terra esto sendo comprados por pases ou empresas constituindo transaes internacionais.

    Os pases que mais venderam so Etipia, Gana e Madagascar. Ver a respeito Relatrio Instituto

    Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (IIED), junho de 2009.

    14

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  • A confuso registrria ou cadastral de imveis e propriedades presente nas cidades perifricas

    no acontece por acaso. Ela funcional para o papel ambguo que exerce a terra sobre as relaes

    de poder. A escala local de poder est bastante imbricada com os grandes empresrios e

    proprietrios de terras e imveis.

    A reteno de terras ociosas urbanizadas e a consequente extenso horizontal das periferias

    formadas pelo mar de moradias pobres eleva o custo do processo de urbanizao e sua

    insustentabilidade como todos sabemos. A cidade dispersa tem sido objeto de crticas de

    urbanistas do mundo todo pela sua dependncia do automvel, um dos principais responsveis pelo

    efeito estufa, e pela impermeabilizao extensiva do solo, entre outros aspectos. Nas periferias da

    cidade perifrica encontram-se o modelo disperso dos bairros pobres e sem urbanizao com as

    gated communities, bairros murados que seguem modelos principalmente americanos, resultando

    numa urbanizao dispersa mista e desigual, terceiro mundo. Essa extenso horizontal,

    pontuada por terras vazias que aguardam valorizao, amplia os custos de urbanizao de cidades

    cujos oramentos so restritos para a dimenso das necessidades sociais.

    Em alguns casos, como acontece em cidades do Centro-Oeste do Brasil (Campo Grande,

    Goinia e Palmas), as terras vazias servidas de infraestrutura (gua, coleta de esgoto, pavimentao,

    iluminao pblica) poderiam acomodar mais do que o dobro da populao dessas cidades o

    que no impede de grande parte da populao de rendas mais baixas estarem praticamente fora

    do tecido urbano contnuo. Por outro lado, nas metrpoles, em especial no Rio de Janeiro e em

    So Paulo, ganha maior importncia o nmero de imveis edificados vazios. Esse nmero se

    aproxima do dficit habitacional de ambas as cidades. Esses imveis se concentram nas reas

    mais centrais e, portanto, atendidas por infraestrutura e oferta de servios urbanos. A tabela abaixo

    mostra o significativo nmero de imveis vazios em algumas das principais metrpoles brasileiras,

    concentrados, principalmente, em reas centrais mais antigas.

    Municpios brasileiros com maior nmero de domiclios ociosos (vagos + fechados)Municpios Total de municpios recenseados Total de vagos e fechados % sobre o estoque total

    So Paulo (SP) 3.554.820 515.030 14,5

    Rio de Janeiro (RJ) 2.129.131 266.074 12,5

    Salvador (BA) 768.010 98.326 12,8

    Belo Horizonte (MG) 735.280 91.983 12,5

    Fortaleza (CE) 617.881 81.930 13,3

    Brasilia (DF) 631.191 72.404 11,5

    Curitiba (PR) 542.310 58.880 10,9

    Manaus (AM) 386.511 51.988 13,5

    Porto Alegre (RS) 503.536 46.214 9,2

    Guarulhos (SP) 336.440 43.087 12,8

    Fonte: IBGE/Censo 2000 sinopse preliminar. 15

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  • Em sntese, a questo social da terra e dos imveis urbanos crucial para todos aqueles que querem

    cidades mais justas e ambientalmente menos predatrias. A funo social da propriedade se refere ao limite

    que deve ter seu possuidor de usufru-la diante das carncias sociais e tambm diante das irracionalidades

    causadoras da depredao ambiental.

    A limitao do direito de propriedade privada da terra e de imveis, visando construo de uma cidade

    mais justa e menos ambientalmente predatria, no uma proposta radical de esquerda e nem mesmo

    socialista. Podemos dizer, talvez, que uma proposta progressista, j que ela pretende eliminar as limitaes

    impostas ampliao da produo de moradias, seja pelo mercado privado, seja pelo Estado por meio das

    polticas pblicas. De fato, a reteno de terras ociosas dificulta a poltica habitacional de amplo alcance

    j que o prprio Estado tem dificuldade de acesso a terra para programas pblicos. E isso no se refere

    apenas moradia. O alto custo da terra resulta limitador para diversas iniciativas de polticas pblicas como

    a implantao de parques, ampliao do sistema virio, construo de equipamentos sociais como escolas,

    hospitais, creches, centros comunitrios, entre outros. Estudos efetuados nas cidades de So Paulo e do

    Mxico revelaram a dificuldade de pagamento de precatrios resultantes de terras desapropriadas para a

    execuo de polticas pblicas, dado o montante da dvida aps trnsito e deciso judicial sobre o assunto.

    As limitaes aos ganhos especulativos fundirios afetam mais os interesses oligrquicos e patrimonialistas

    do que os interesses capitalistas stricto sensu. Mas preciso reconhecer que o mercado residencial privado,

    de um modo geral, se combina ao patrimonialismo nas cidades perifricas15.

    A conquista do Estatuto da cidade: movimento de reforma urbanaA histria do Estatuto da Cidade no remete primeira metade do sculo XX como mostra o texto de Jos

    Roberto Bassul, nesta publicao. Foram, portanto, vrias dcadas de um processo acirrado de embates

    e de idas e vindas com a confrontao de interesses divergentes. Nesse processo merece destaque a

    construo do Movimento Nacional de Reforma Urbana, que reuniu movimentos sociais (moradia, transporte,

    saneamento), associaes de profissionais (arquitetos, advogados, sanitaristas, assistentes sociais,

    engenheiros), entidades sindicais, entidades acadmicas e de pesquisa, ONGs, integrantes da Igreja Catlica

    (egressos do movimento religioso denominado Teologia da Libertao), servidores pblicos, alm de prefeitos

    e parlamentares progressistas. Por ocasio do processo de conquista da nova Constituio Brasileira (1987),

    foi criado o Frum pela Reforma Urbana com a finalidade de unificar todas as iniciativas dos movimentos

    urbanos que faziam reivindicaes especficas e fragmentadas naquele momento. O Movimento Nacional de

    Reforma Urbana constituiu uma experincia rara de movimento social que reuniu diferentes setores em torno

    de alguns pontos prioritrios da poltica urbana que ganharam unanimidade. Esses pontos foram organizados

    em uma agenda que constituiu uma proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, subscrita por

    131 mil eleitores, que foi apresentada Assembleia Nacional Constituinte. Pela primeira vez na histria do

    Brasil, a Constituio Federal passou a contar com um captulo dedicado ao tema das cidades e incorporar a

    funo social da cidade e a funo social da propriedade16.

    15. Ver a respeito a pesquisa do Laboratrio de Habitao da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (LABHAB) da Universidade de So

    Paulo: Preo de desapropriaes de terras limites s polticas pblicas. 2001 www.fau.usp/labhab.

    16.A Iniciativa Popular de Reforma Urbana foi apresentada, em plenrio, por essa autora Assembleia Nacional Constituinte em 1987.

    16

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  • Os movimentos de luta por moradia, sempre maioria no Frum de Reforma Urbana,

    passaram a se preocupar com a localizao da moradia na cidade e a refletir sobre a

    necessidade de reivindicaes menos imediatas como a mudana dos parmetros que

    regiam a propriedade fundiria no Brasil. A conscincia histrica sobre a ilegitimidade da

    propriedade ociosa teve origem nos movimentos de camponeses que, durante toda a

    histria do Brasil, enfrentaram a oposio dos latifundirios, tambm conhecidos como

    coronis. Estes comandavam milcias privadas e tinham poder de vida e morte sobre

    escravos, que constituam a maior parte da fora de trabalho at o final do sculo XIX e a

    populao branca que, desterrada e deslocada no modo de produo escravista, dependia

    dos mencionados coronis para sua sobrevivncia.

    A primeira proposta de Reforma Urbana no Brasil, definida em um Congresso de

    Arquitetos, em 1963, incorporou o conceito da propriedade ociosa como ilegtima, a

    partir da cultura herdada da Reforma Agrria. Nessa proposta, uma das razes do Estatuto

    da Cidade, a questo da terra era vista como central para a transformao que o pas

    demandava. Nela estava presente, ainda, a criao de um organismo nacional que dirigisse

    a poltica urbana e habitacional. Nesse perodo, que antecedeu o golpe militar de 1964, a

    sociedade brasileira estava mobilizada em torno das Reformas de Base. Propostas com

    significativa base popular eram elaboradas por intelectuais, profissionais, acadmicos e

    lderes sociais e sindicais e tratavam de temas como educao, sade, administrao

    pblica, cultura, alm das Reformas Agrria e Urbana.

    A primeira etapa (1964) da represso ditatorial contra essa ofensiva de movimentos

    sociais e sindicais se abateu sobre os setores populares. A segunda (1969) alcanou os

    recalcitrantes opositores que tinham origem nas classes mdias: estudantes, jornalistas,

    intelectuais, professores, deputados e senadores, prefeitos, governadores, entre

    outros. Cassaes, tortura, censura, assassinatos promovidos pelo Regime Militar, que

    se instalou no poder em 1964, tiveram o efeito de varrer as propostas de reforma de

    todas as agendas e at das memrias durante muito tempo. A proposta dos arquitetos

    foi incorporada pelo Regime Militar que a aplicou pelo avesso, constituindo um aparato

    institucional tecnocrtico, fortemente centralizado, de poltica habitacional, de transporte

    e de saneamento, ignorando a questo fundiria. Considerando o vigoroso movimento

    de construo de moradias e sistemas de saneamento que caracterizou essa poltica,

    podemos dizer que foi bem-sucedido para seus propsitos (gerar empregos) embora

    tenha privilegiado a classe mdia em detrimento da maioria da populao.

    Em meados da dcada de 1970, a emergncia dos movimentos sociais urbanos

    reivindicando melhores condies de vida se d ainda quando a participao poltica

    na sociedade era bastante cerceada. Essas mobilizaes cresceram acompanhando

    a exigncia generalizada por liberdades polticas. nesse contexto que surgem as

    prefeituras de um novo tipo e uma nova escola de urbanismo.

    17

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  • As prefeituras democrticas e a nova escola de urbanismoParalelamente ao retorno dos movimentos sociais cena poltica, ainda sob contexto

    da ditadura, tm incio as experincias democrticas de administrao municipal

    (excluindo as capitais cujos prefeitos eram indicados por governadores que, por sua vez,

    eram indicados pelas autoridades da Ditadura) com a eleio de prefeitos progressistas.

    Comea um novo perodo no qual se colocavam em prtica propostas elaboradas

    nas mobilizaes e organizaes populares. Arquitetos, engenheiros, advogados,

    assistentes sociais, gegrafos dedicaram-se a formular, por meio de processos

    democrticos, novos programas e novas formas de gerir as cidades. Programas de

    urbanizao e regularizao fundiria de favelas com novas formas de posse segura de

    imveis, programas voltados para a sade das mulheres, programas de urbanizao de

    bairros perifricos, assistncia jurdica gratuita populao pobre, solues de moradias

    individuais ou coletivas com assistncia tcnica de arquitetos e engenheiros, preveno

    e recuperao de reas de risco geotcnico, esgoto condominial, componentes pr-

    fabricados de argamassa armada para infraestrutura ou equipamentos coletivos, novas

    tcnicas de urbanizao de crregos a cu aberto (condenando o tamponamento

    de crregos), entre outros, comearam a incorporar a participao da populao

    nas decises das administraes pblicas. Com o fim da proibio da eleio direta

    dos prefeitos das capitais (1985), essa dinmica ganha novo impulso com prefeitos

    progressistas administrando grandes cidades como Porto Alegre e So Paulo17. O

    oramento participativo realizado em Porto Alegre talvez tenha sido a experincia mais

    marcante de controle social sobre os recursos pblicos municipais nesse perodo.

    Recuperar a bandeira da Reforma Urbana aps 24 anos de muita represso

    reunindo movimentos populares que se reproduziam nas cidades de todo o Pas;

    debater agendas de polticas locais, de organizao e de demandas sociais por melhores

    condies de vida; realizar experincias nicas e inditas de participao social em

    vrios municpios brasileiros disputando a aplicao do fundo pblico; alargar o espao

    das liberdades democrticas desafiando o poder ditatorial com ocupaes de terras

    urbanas, todos esses acontecimentos promoveram um ambiente de euforia e confiana

    entre os militantes. Enquanto a globalizao neoliberal desmontava o welfare state nos

    pases centrais, no Brasil vivia-se um ambiente de muita agitao e esperana.

    Apesar da presso constante do Frum de Reforma Urbana, a regulamentao dos

    captulos 182 e 183 da Constituio Federal foi aprovada no Congresso Nacional apenas

    13 anos depois, sob a forma da lei federal n 10.257/2001, o Estatuto da Cidade.

    Este forneceu nova base jurdica para o tratamento da propriedade urbana. Do ponto

    de vista formal, a mudana no foi pequena; imps limitaes antes impensveis, no

    Brasil, ao direito de propriedade.

    17. Ver a respeito MARICATO, E. Fighting for Just cities in capitalism periphery. In

    MARCUSE, P. and others (org.) Searching for the just city. London/NY: Routledge, 2009.

    18

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  • Aps a eleio de Luiz Incio Lula da Silva, em 2003, e a criao do Ministrio das

    Cidades, que tambm era uma reivindicao da agenda dos movimentos sociais urbanos,

    tem incio uma nova etapa de avano das demandas sociais.

    Em 2004, o investimento em habitao e saneamento retomado aps praticamente 24

    anos de uma trajetria errtica marcada pela ausncia do investimento e pela destruio dos

    rgos pblicos que tinham competncia executiva sobre o assunto, com raras excees

    a Companhia de Saneamento do Estado de So Paulo (Sabesp) a principal exceo.

    Nesse mesmo ano (2004), foi criado o Conselho das Cidades, um organismo consultivo

    que reunia lideranas sociais, sindicais, empresariais, acadmicas, profissionais, entre

    outras. Foram aprovadas duas leis federais que compunham a agenda do movimento de

    reforma urbana: a Lei Federal que instituiu o marco regulatrio do Saneamento Ambiental

    (contrariando perspectiva de privatizao que estava em disputa h 13 anos) e a Lei Federal

    que criou o Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social. Essa lei condicionou os

    repasses de recursos federais existncia de Planos Habitacionais, Conselhos e Fundos

    estaduais e municipais.

    Aparentemente, essas e outras conquistas no deixavam dvidas de que o rumo

    tomado havia sido vitorioso. At mesmo a criao do Ministrio das Cidades, que era uma

    reivindicao do documento dos arquitetos de 1963 e que se realizou 40 anos depois,

    poderia ser considerada uma grande vitria e um resgate da antiga luta.

    19

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  • Uma poltica urbana para o Brasil: a sucesso de vitrias do movimentoUma significativa lista de vitrias do Movimento Nacional pela Reforma Urbana tem seguimento s

    primeiras experincias nas prefeituras democrticas no incio dos anos 1980, passando pela crescente

    expanso e organizao dos movimentos sociais urbanos.

    Vamos relacionar, abaixo, quais foram as principais conquistas sociais ocorridas nesse perodo.

    1987 Emenda Constitucional de Iniciativa Popular subscrita por seis entidades da

    sociedade civil. Criao do Frum Nacional de Reforma Urbana formado por

    entidades da sociedade civil.

    1988 Promulgao da Constituio Federal com dois captulos voltados para o tema

    urbano, pela primeira vez na histria do Pas.

    1991 Apresentao de Projeto de Lei do Fundo Nacional de Habitao Popular como iniciativa

    da sociedade civil, contendo assinatura de um milho de eleitores (aprovado na Cmara

    Federal como Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social em 2005).

    2001 Promulgao da Lei Federal Estatuto da Cidade, que regulamenta a Constituio

    Federal de 1988 em especial a Funo Social da Propriedade.

    2003 Criao do Ministrio das Cidades. Realizao da Conferncia Nacional das Cidades

    resultado de um processo participativo que envolveu 3.400 municpios, todos os

    Estados da Federao e contou com mais de 2.500 delegados eleitos para debater

    a Poltica Nacional de Desenvolvimento Urbano (outras conferncias aconteceram

    em 2005 e 2007).

    2004 Criao do Conselho Nacional das Cidades como rgo consultivo do Ministrio das

    Cidades. Criao do Programa Nacional de Regularizao Fundiria Urbana.

    2005 Aprovao da Lei Federal que institui o marco regulatrio do Saneamento Ambiental

    (contrariando perspectiva de privatizao que estava em disputa h 13 anos).

    2005 Aprovao da Lei Federal do Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social que

    implicou a criao de um fundo e conselho especfico com participao social, alm

    de condicionar o repasse de recursos federais existncia de Planos Habitacionais,

    Conselhos e Fundos estaduais e municipais. Nesse mesmo ano, foi lanada a

    Campanha Nacional do Plano Diretor Participativo prevendo a elaborao do Plano

    para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes

    .20

    PULICCOMPLETA FINALport.indd 20 3/11/10 12:47:37 PM

  • Em 2007, em sua segunda gesto, o governo Lula lana o Plano de Acelerao do Crescimento

    (PAC) retomando investimentos nas reas de habitao e saneamento, abandonados h

    praticamente 25 anos. O PAC constitui um plano keynesiano ou simplesmente um conjunto de

    obras que pretende recuperar parte da infraestrutura voltada produo (portos, ferrovias, rodovias,

    usinas geradoras de energia) e parte da infraestrutura social e de habitao. Pelo PAC esto

    previstos os investimentos de R$ 106 bilhes em habitao18 e R$ 40 bilhes em saneamento

    (gua e esgoto) entre 2007 e 2010. O programa de urbanizao de favelas prioritrio para o

    investimento dos recursos oramentrios federais no contexto do PAC.

    Em 2009, como resposta crise internacional iniciada em setembro de 2008, o Governo Federal

    lanou o Programa Minha Casa, Minha Vida que pretende financiar a construo de um milho de

    moradias tendo como protagonista o mercado privado. Mas, pela primeira vez na histria do Brasil,

    est presente um montante de subsdios R$ 16 bilhes para financiar a moradia social.

    Motivos para reflexo e novos desafios Apesar da euforia que acompanhou os movimentos sociais, apesar das gestes

    democrtico-populares, apesar da nova poltica urbana e das importantes conquistas

    legislativas as cidades pioraram, nesse perodo, de um modo geral, no Brasil. E no foi

    apenas no Brasil que as cidades apresentaram um aumento da pobreza, do desemprego,

    das favelas, dos moradores de rua, das crianas abandonadas e da violncia como j foi

    destacado aqui. Fez parte desse quadro um aumento explosivo da dvida pblica cujos juros

    drenaram grande parte dos recursos pblicos para o mercado financeiro19. A herana de 25

    anos de neoliberalismo no ser superada facilmente. Se retornamos ao tema na concluso

    desta apresentao para alertar para o rescaldo desses tempos que baniram os subsdios,

    os direitos universais, a solidariedade, a fraternidade, os projetos coletivos, comunitrios e

    sociais. Enfim, no reino absoluto da mercadoria, tudo deve ser pago e a preo de mercado.

    18. Os recursos financeiros do PAC Habitao so oriundos do mercado privado

    SBPE ou poupana privada (39%), de um fundo semipblico Fundo de

    Garantia por Tempo de Servio (FGTS), espcie de fundo desemprego formado

    por contribuio salarial (35%), contrapartida de Estados e Municpios (17%) e

    oramento da Unio (9%) Fonte: www.brasil.gov.br/pac.

    19. Entre numerosas obras ver TOUSSAINT, E. Bolsa ou a vida: a dvida externa

    do terceiro mundo. So Paulo, Fundao Perseu Abramo, 2002.

    21

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  • No apenas no Brasil que est em curso uma verdadeira febre participativa promovida por entidades

    governamentais, ONGs, partidos polticos, movimentos sociais etc. Do Banco Mundial Via Campesina

    a palavra de ordem participao. O governo Lula promoveu 40 Conferncias Nacionais organizadas a

    partir dos municpios, passando pelos governos estaduais e entidades sociais at alcanar o nvel federal.

    Os temas so abrangentes: Juventude, Igualdade Racial, Direito dos Idosos, Poltica Cultural, Direitos da

    Mulher, Direito dos Portadores de Deficincia, Direitos da Criana e do Adolescente, Sade, Meio Ambiente,

    Segurana Pblica, entre outras. Participaram dessas conferncias, a partir de 2003, dois milhes de

    pessoas. As trs Conferncias Nacionais das Cidades (2003, 2005, 2007) tiveram a participao de mais

    de 1.500 delegados eleitos em cada uma delas. No entanto, esse movimento participativo parece no ter

    logrado transformar de modo significativo a qualidade da democracia e o quadro de excluso urbana20.

    A implementao do Estatuto da Cidade tem deixado muito a desejar desde sua promulgao em 2001

    (ver o captulo escrito por Edsio Fernandes nessa publicao). O padro injusto e insustentvel de ocupao

    da terra urbana, que tem sido vigente durante sculos, ainda no mudou.

    As foras contrrias implementao da funo social da propriedade, seja na sociedade civil, seja no

    interior do poder judicirio, legislativo ou executivo tm usado diversos artifcios para protelar sua aplicao.

    A Constituio Federal de 1988 exigiu uma lei complementar o Estatuto da Cidade que foi aprovada

    apenas 13 anos depois. A Constituio e o prprio Estatuto exigiram ainda que a funo social da propriedade

    e outros preceitos se subordinassem ao Plano Diretor municipal. A maior parte dos PDs municipais, por

    sua vez, est remetendo os instrumentos que regulam a funo social da propriedade para lei municipal

    complementar. Muitos municpios brasileiros ainda no tm aprovadas essas leis complementares e muitos

    elaboraram PDs genricos, cheio de boas intenes, mas sem efetividade.

    Por outro lado, muitos governos municipais e vereadores progressistas se apoiam na lei para transformar

    a realidade em diversos pontos do pas. O Ministrio das Cidades mantm um programa de regularizao

    fundiria, indito na instncia federal, que comea a apresentar os primeiros resultados e vencer as

    resistncias conservadoras. Com toda a dificuldade de implementao o Estatuto da Cidade anuncia um

    novo futuro. Ns podemos dizer que uma parte do caminho j foi percorrida. De fato, aprovar a lei apenas

    uma parte do caminho. Resta continuar a tarefa de coloc-la em prtica. Essa tarefa no apenas do Estado,

    dos governos e dos tcnicos. Ela tambm, e principalmente, uma tarefa da sociedade.

    20. preciso reconhecer que h um esforo de distribuio de renda pelo governo federal desde 2003. O Bolsa- famlia, um

    programa que pretende assegurar uma renda mnima aos 40% mais pobres da populao, atinge mais de 11 milhes de famlias

    (2009). Ele se destina populao classificada como abaixo da linha de pobreza (com renda per capita entre R$60 e R$120) ou

    extrema pobreza (at R$60 per capita ). O Programa tem condicionalidades: a obrigatoriedade da famlia manter as crianas e jovens

    at 17 anos na escola, o calendrio de vacinas dia e o atendimento pr-natal a gestantes.

    Entre 2002 e 2007 cerca de 20 milhes de pessoas deixaram as classes E e D e passaram a ser classificadas na classe C (critrios

    IBGE). Saram da misria 9,7 milhes de brasileiros entre 2003 e 2007. O salrio-mnimo teve um aumento real de 32% nesse mesmo

    perodo. O Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf) recebeu R$8,4 bilhes no ano agrcola de 2006/2007 e uma poltica de

    crdito consignado abriu a perspectiva de setores de renda mdia baixa contrarem pequenos emprstimos (Governo Federal, 2008).

    22

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  • 23

    Movimentos populares e o Estatuto da CidadeEvaniza Rodrigues e Benedito Roberto Barbosa

    Com a retomada do processo democrtico, a partir da dcada de 1980, a presena dos

    movimentos de moradia no cenrio das lutas sociais no Brasil tornou-se um dos fatores

    fundamentais no enfrentamento da questo urbana, atuando no desenvolvimento de propostas e

    de reivindicaes junto ao poder pblico, em aes diretas de ocupao de imveis, na resistncia

    a despejos e reintegraes de posse, ou ainda como um dos agentes participantes nos novos

    programas habitacionais.

    Hoje, falar de programas ou polticas de habitao eficientes requer, necessariamente, apresentar

    propostas nas quais a populao seja sujeito e tenha papel decisivo na sua definio e implantao.

    Talvez seja esta a grande conquista desses movimentos, nascidos a partir da base e de necessidades

    concretas, no bojo do ressurgimento dos movimentos populares no perodo final da Ditadura.

    De fato, apesar da represso aos movimentos populares nos anos de chumbo da Ditadura, os

    movimentos de moradores de loteamentos irregulares e o Movimento de Defesa dos Favelados

    (este de carter nacional) j atuavam desde meados da dcada de 1970. Nessa poca, em que o

    Brasil viveu um processo de expanso das periferias acompanhado por srios problemas urbanos,

    apareceu uma infinidade de movimentos espontneos que, com apoio da Igreja Catlica, de

    profissionais e entidades comprometidas ou de outros movimentos populares, se articularam no

    bairro, na favela e em determinadas regies das cidades e lutaram por melhores condies de vida.

    Grandes e numerosas ocupaes de terra nas periferias das metrpoles impulsionaram as

    organizaes que, com o decorrer do tempo, estabeleceram uma articulao entre as reivindicaes

    pontuais e especficas e as agendas mais amplas ligadas ao direito Cidade. Em nvel nacional,

    a necessidade e o desejo de articular-se surgem medida que se aprofunda a crtica poltica

    habitacional oficial do governo federal, marcada na poca pela excluso das famlias mais

    pobres e pela dificuldade de acesso aos seus recursos.

    Nesse sentido, a iniciativa das Caravanas a Braslia, a partir de 1988, levou esses

    grupos a mostrar sua cara na capital do Pas e a reunir movimentos para aes conjuntas.

    Em 1990, com o I Seminrio Nacional de Moradia Popular, realizado pelo Conselho

    Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em So Paulo, que contou com participao

    de grupos de todas as regies, inicia-se uma articulao nacional e a mobilizao pelo

    projeto de lei de iniciativa popular do Fundo Nacional de Moradia Popular.

    PULICCOMPLETA FINALport.indd 23 3/11/10 12:47:39 PM

  • Tambm, a partir do final da dcada de 1980, houve a eleio de administraes municipais

    democrticas e populares em vrios pontos do Pas. Este fator, somado s mudanas no

    papel dos municpios que, depois da Nova Constituio de 1988, passaram a ter maior

    importncia na conduo das polticas sociais e em especial, da habitao, trouxe para os

    movimentos nova frente de luta: estes passaram a atuar em parceria com o poder local.

    Essa mudana, longe de superar os conflitos, d uma nova lgica s lutas sociais. Esses

    movimentos se somaram ao movimento da reforma urbana, que j havia se formado na

    elaborao, mobilizao e presso pela Emenda Popular da Reforma Urbana no processo

    constituinte. Alm disso, passaram a atuar nos programas de produo habitacional, ao

    mesmo tempo em que mantiveram e aprofundaram a presso sobre as prefeituras.

    De todo esse processo surgem, nos anos 1990, o Movimento Nacional de Luta por Moradia

    (MNLM) e a Unio Nacional por Moradia Popular (UNMP), fortalecendo a pauta especfica

    da moradia popular. Alm deles, a agenda do movimento comunitrio sistematizada

    pela Confederao Nacional de Associaes de Moradores (Conam), fundada em janeiro

    de 1982, que agregava, desde ento, grande heterogeneidade de entidades filiadas

    muturios, associao de moradores em bairros perifricos e movimentos de sem-teto. Em

    1993 fundada a Central dos Movimentos Populares (CMP) que buscava articular diferentes

    movimentos populares urbanos. A partir de ento, passam a existir quatro movimentos

    populares nacionais ligados luta por moradia: CMP, Conam, MNLM e UNMP.

    Os quatro movimentos participam do Frum Nacional da Reforma Urbana, articulando

    a luta pelo direito moradia e o direito cidade. Somam-se a estas entidades nacionais,

    inmeros outros movimentos de carter local ou regional que atuam cotidianamente nas

    lutas por moradia. As entidades nacionais possuem diversas bandeiras em comum, embora

    apresentem formas de organizao e propostas diferenciadas. Foram elas que, de forma

    conjunta, apresentaram o primeiro Projeto de Iniciativa Popular do Pas dispondo sobre

    a criao do Fundo e Conselho Nacional de Habitao de Interesse Social, com mais de

    um milho de assinaturas, aprovada em 2005 pelo Congresso Nacional e sancionada pelo

    presidente Lula em 2006. Tal proposta teve tanto impacto que, hoje, diversos pases da

    Amrica Latina possuem iniciativa de mesma natureza.

    A partir de 2001, estabeleceu-se uma articulao mais estvel entre essas entidades, o

    que tem garantido seu protagonismo nas principais agendas da reforma urbana no Pas. Essa

    articulao tambm se manifesta nas Conferncias Nacionais das Cidades, realizadas a cada

    dois anos a partir de 2003. Por meio da elaborao de uma estratgia e uma pauta conjunta,

    as entidades nacionais de luta por moradia tm conseguido eleger os conselheiros que

    representam o segmento dos movimentos populares no Conselho Nacional das Cidades.

    24

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  • A luta pelo Estatuto da CidadeSe existe uma questo que trava o avano da reforma urbana no Brasil, esta questo a enorme concentrao da terra

    urbana e a fora que a propriedade privada possui num modelo de cidade excludente e concentrador de riquezas e bens.

    O Captulo da Poltica Urbana foi uma tentativa de estabelecer na Constituio de 1988, por meio dos artigos 182 e

    183, alguns limites ao direito de propriedade.

    No nosso entendimento, os conflitos advindos entre o direito absoluto de propriedade e a necessidade que esta

    cumpra sua funo social nunca foram realmente resolvidos e esto em franco recrudescimento em nossas cidades.

    Prova disso que os artigos 182 e 183 da Constituio s foram regulamentados em 2001, com o Estatuto da

    Cidade, aps mais de 13 anos de lutas e mobilizaes do Frum Nacional da Reforma Urbana e mais um conjunto

    enorme de organizaes em todo o Brasil.

    A Luta pela implementao do EstatutoAps sua aprovao, intensificou-se o processo de apropriao e difuso do contedo do Estatuto

    da Cidade pelos diversos movimentos populares, assim como pelos demais segmentos sociais.

    Independente do nvel de conhecimento e tambm de compreenso da complexidade de seu contedo,

    imediatamente o Estatuto da Cidade passa a ser visto como uma vitria da luta do movimento pela

    reforma urbana, uma conquista resultado dos tantos anos de mobilizao e presso.

    Mas a lei precisa ser efetivamente implementada e para isso, o Frum Nacional pela Reforma Urbana,

    muitas universidades, ONGs e movimentos realizaram inmeros cursos de capacitao sobre o contedo

    do Estatuto da Cidade. Nestes cursos, a lei no era divulgada de forma neutra, mas sim apresentada a

    partir de uma viso especfica: a da reforma urbana, do direito cidade e da democratizao da terra e

    da propriedade urbana. Esses cursos respondiam necessidade de capacitar e tornar os instrumentos

    do Estatuto da Cidade comum populao, como elemento no de uma poltica dissociada da realidade

    concreta, mas do dia a dia das comunidades, sobretudo como instrumento para a transformao social

    que atua sobre o cotidiano.

    Mais do que seus instrumentos, foram os trs princpios do Estatuto da Cidade cumprimento

    da funo social da cidade e da propriedade; justa distribuio dos nus e benefcios do processo de

    urbanizao; e a gesto democrtica da cidade que levaram a mensagem que mobiliza os movimentos

    na defesa e na presso sobre o poder pblico municipal para sua implementao.

    Outro ponto a se destacar que, a partir da aprovao, a implementao do Estatuto da Cidade passa

    a ser uma bandeira constante nas mobilizaes dos movimentos nacionais e de suas bases locais. Seja

    de forma mais ampla, seja utilizando-a na justificativa das reivindicaes pontuais, o Estatuto da Cidade

    reivindicado e cobrado das autoridades pblicas em todos os nveis de governos.

    A Carta pela implementao do Estatuto da Cidade, aprovada no Encontro Nacional pelo Direito

    Cidade no Rio de Janeiro, em julho de 2002, com a participao de diversos movimentos populares e dos

    demais segmentos sociais, constitui-se num documento de orientao dos diferentes atores sobre a Lei e,

    ao mesmo tempo, num manifesto poltico que contm os princpios do movimento pela reforma urbana.25

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  • Elaborao e implementao dos Planos DiretoresA exigncia pelo Estatuto da Cidade de elaborao dos planos diretores municipais, bem como a

    definio de um prazo para isso, deu incio a um grande processo de mobilizao tambm junto aos

    movimentos populares. O conceito de plano diretor participativo passou a qualificar discusses e

    presses sobre os Executivos municipais.

    A primeira batalha a ser travada foi, na maioria das cidades, exatamente a questo da participao

    da sociedade. Argumentos autoritrios ou tecnocrticos questionavam a capacidade de a populao

    participar da elaborao dos planos. A tradio de planos diretores feitos por especialistas, em geral

    por consultorias contratadas e sem nenhum dilogo com a cidade, ainda hoje, permeia as prticas de

    planejamento. Tampouco havia um consenso ou uma norma para avaliar o que se podia ou no qualificar

    de participativo. A edio da Resoluo 25 do Conselho das Cidades1, em maro de 2005, deu melhor

    definio sobre o processo participativo, com orientaes para a sua efetivao.

    No entanto, foram inmeros os casos de conflitos nos municpios sobre o tema da participao. Por

    meio de presses, manifestos e tambm demandas ao Ministrio Pblico e ao Judicirio, os movimentos,

    articulados com outros segmentos, exigiram participar no s das audincias pblicas, mas de todo o

    processo de elaborao. Foram batalhas que levaram meses e algumas delas conseguiram interromper

    ou alterar o processo, garantindo alguma reverso em favor da sociedade. Em diversas cidades, aes

    civis e representaes no Ministrio Pblico, Defensorias Pblicas e mobilizaes do povo nas Cmaras

    Municipais e Prefeituras questionaram a forma de elaborao de planos diretores e tambm o seu

    contedo depois de aprovado.

    Foi o caso de Salvador/BA, onde todo o processo foi conturbado e questionado pela sociedade, durante

    e depois de sua aprovao. O Ministrio Pblico chegou a suspender a tramitao do plano, que depois

    foi retomada. Outras capitais como Fortaleza/CE, Rio de Janeiro/RJ, Curitiba/PR, So Lus/MA, alm da

    reviso do Plano Diretor Estratgico de So Paulo/SP tiveram seus planos questionados judicialmente

    por no cumprirem com a exigncia de participao popular. Em So Paulo, uma Frente em Defesa do

    Plano Diretor Estratgico tenta, de todas as formas, barrar a iniciativa do prefeito Gilberto Kassab (DEM)

    e da Cmara Municipal de revisar o Plano em benefcio do capital imobilirio da cidade.

    Conquistado algum canal de participao, tratava-se de ocup-lo, apresentando propostas de interesse

    para os movimentos populares. Muitas vezes, a luta por conquistar espaos participativos foi mais difcil

    do que a prpria luta pela aprovao de propostas concretas.

    Outra disputa que se deu em muitos municpios foi relacionada linguagem utilizada nas discusses

    dos Planos Diretores. Um processo de participao requer a utilizao de linguagem e mecanismos

    que a favoream. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que lutavam para traduzir os planos para uma

    linguagem mais acessvel, enfatizando os aspectos centrais, as lideranas populares esforavam-se para

    se apropriar de conceitos mais tcnicos, sem, no entanto perder, a sua perspectiva poltica.

    1. A Resoluo 25, de 18 de maro de 2005, emite orientaes e recomendaes

    aos municpios sobre a coordenao compartilhada com a sociedade, a

    realizao de audincias pblicas e de um calendrio de discusso.26

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  • Certamente um dos temas que mais mobilizou os movimentos na elaborao dos planos

    diretores foi a conceituao e demarcao de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS).

    Assistimos a esforos coletivos de listar, demarcar as reas. No caso das ZEIS j ocupadas por

    favelas e outros tipos de assentamentos precrios, a preocupao era no deixar ningum

    de fora, pois a demarcao da rea como ZEIS eleva a noo de segurana da posse, embora

    no a garanta explicitamente. No caso da definio e demarcao das ZEIS em reas vazias,

    a fim de destin-las para habitao popular, houve muito mais dificuldade. A primeira delas

    na prpria definio de seus parmetros como faixa de renda a ser atendida, usos possveis,

    tamanho do lote ou da moradia, entre outros. Depois, em relao demarcao dos lotes em

    plantas. Muitas vezes o plano previu o instrumento, mas no demarcou reas para aplic-lo,

    tornando-o incuo. Em outras situaes, o poder pblico subdimensionou a quantidade de

    ZEIS necessrias e no demarcou aquelas de maiores conflitos com interesses econmicos.

    Um bom exemplo que contraria essa regra foi no municpio de Taboo da Serra, no estado de

    So Paulo, onde a quantidade de metros quadrados demarcados como ZEIS foi proporcional

    magnitude do dficit habitacional da cidade, visando a atend-lo completamente.

    Contrariando a lgica da expulso da populao mais pobre para as periferias das cidades,

    alguns municpios demarcaram ZEIS em reas centrais, experincia esta conjugada luta dos

    movimentos por moradia nos centros e a inmeros processos de ocupao de imveis vazios

    ou abandonados, pblicos e particulares.

    Mais um ponto de conflito se verificou quando da definio de grandes projetos urbanos,

    ampliao de vias, operaes urbanas, projetos de revitalizao em reas onde se encontram

    assentamentos populares ou prximos a eles. A lgica da excluso se demonstra a mais

    perversa, onde o poder pblico permitiu a ocupao, com sua omisso ou conivncia,

    enquanto no havia interesses do capital imobilirio e a rea era considerada degradada. Ao

    melhorar o local, essa populao expulsa, de forma violenta, pelas aes de reintegrao

    de posse, com medidas administrativas, ou de forma tcita, com o encarecimento dos

    aluguis e do custo de vida. Em poucos, mas exemplares casos, conquistou-se a permanncia

    da populao no local. Nesses casos, a mobilizao e a organizao da comunidade foram

    fundamentais para que os instrumentos jurdicos fossem efetivamente aplicados.

    Podemos constatar, ainda, a participao dos movimentos em temas que, primeira vista,

    no interferem diretamente na luta especfica por moradia, mas cidade como um todo ou a

    alguma parte da cidade em especial. o caso da luta contra a verticalizao da orla de

    cidades litorneas, ponto de conflito entre a especulao imobiliria consorciada s grandes

    construtoras e os movimentos sociais urbanos. Esses interesses voltam a se enfrentar em

    toda a definio de zoneamento, potencial construtivo, gabarito, onde muitas vezes, os

    movimentos populares tambm assumem como pauta a democratizao da cidade.

    27

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  • Nesses e em inmeros outros casos, tem ocorrido a articulao dos movimentos populares com

    entidades profissionais, ONGs de carter urbano, entidades ambientalistas, igrejas e entidades de

    setores sociais de classe mdia para atuar conjuntamente nas discusses do plano diretor, formulando

    propostas e conquistando o papel de interlocutores junto s prefeituras no processo de elaborao e

    aprovao dos planos diretores.

    J a relao com o legislativo municipal tem sido mais conflituosa. Permeados por interesses pontuais,

    quase sempre o plano diretor que foi discutido e consensualizado com o Poder Executivo, acaba por

    receber emendas que, se no alteram os conceitos bsicos do plano, introduzem alteraes localizadas

    que descaracterizam sua implementao e geram inmeros conflitos no processo de aprovao.

    Cabe destacar, ainda nesse tema, a criao, em setembro de 2004, pelo Ministrio das Cidades e

    pelo Conselho Nacional das Cidades, por meio da Resoluo n 15, de uma Campanha Nacional de

    Sensibilizao e Mobilizao visando elaborao e implementao dos planos diretores participativos,

    com o objetivo de construir cidades includentes, democrticas e sustentveis, com os seguintes eixos:

    Incluso territorial assegurar aos pobres o acesso terra urbanizada e bem localizada, garantindo, tambm, a posse segura e inequvoca da moradia das reas ocupadas por populao de baixa renda;

    Gesto democrtica oferecer instrumentos que assegurem a participao efetiva de quem vive e constri a cidade nas decises e na implementao do Plano; e

    Justia social distribuio mais justa dos custos e benefcios do desenvolvimento urbano.

    A campanha, lanada em 2005, foi coordenada por instituies integrantes do Conselho das Cidades

    e de ncleos estaduais. Os ncleos estaduais, tambm compostos pelos segmentos integrantes do

    Conselho das Cidades, fizeram o trabalho de mobilizao, capacitao, acompanhamento, formao de

    multiplicadores e divulgao. Uma das grandes preocupaes da Campanha foi estender a discusso do

    Estatuto da Cidade aos municpios fora dos circuitos tradicionais de discusso das regies metropolitanas.

    As entidades dos movimentos populares participaram intensamente da Campanha, na coordenao

    nacional e nos ncleos estaduais, tendo sido protagonistas em diversos deles. Para os movimentos, o objetivo

    tambm era o de romper a cultura que via os planos como algo tcnico e descolado das lutas cotidianas, alm

    de reforar, junto aos executivos e legislativos municipais, a obrigatoriedade dos processos participativos.

    Mais complexa, no entanto, tem sido a implementao desses mesmos planos. Longe de cumprir

    com a meta de que o plano diretor seja um orientador do crescimento e dos investimentos na cidade,

    muitos deles foram abandonados logo aps sua implementao. Em muitos casos, o plano exige a

    regulamentao, por meio de lei especfica, dos instrumentos aprovados, o que demanda nova batalha no

    legislativo. Em outros casos, mesmo com os instrumentos aprovados e prontos para ser implementados,

    o Executivo municipal simplesmente no os utiliza. Mudanas de gesto tambm tm interferido na sua

    aplicao, devido aos diferentes interesses que se alternam, assim como as presses por mudanas

    pontuais, como ampliao da zona urbana, que muitas vezes desvirtuam os objetivos aprovados.

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  • A dificuldade de implementao dos planos acaba, muitas vezes, frustrando aqueles

    movimentos que participaram da luta e pressionaram pela aprovao de propostas,

    mas no conseguiram ver os resultados concretos dos instrumentos, levando a um

    questionamento da sua eficcia e desanimando algumas lideranas.

    Isso mostra que bastante importante a construo de mecanismos de

    participao e acompanhamento da execuo dos planos. Os movimentos tm

    lutado pela criao de conselhos municipais da cidade, mas enfrentam no s

    resistncia na criao destes, como tambm a fragmentao e falta de marco jurdico

    especfico. Alguns municpios criaram conselhos de habitao (exigncia da lei

    11.124 de 20052), conselhos de poltica urbana, conselhos de transporte, conselhos

    de meio ambiente etc., mas, em geral, estas instncias no se articulam entre si,

    refletindo a ausncia de um olhar mais integral sobre a cidade. A fragmentao

    das instncias de participao reflete a fragmentao das polticas e tambm dos

    interesses envolvidos na construo das cidades.

    Regularizao fundiriaOlhar um retrato de um bairro na periferia de uma das nossas

    grandes cidades sem que haja a legenda com a indicao do local

    pode nos remeter para qualquer outra cidade brasileira. A face amarga

    da segregao de nossas periferias literalmente a mesma em

    todas as metrpoles, e em todas as cidades, onde as casas com

    tijolos sem reboco ou de madeira do um aspecto avermelhado, num

    verdadeiro mosaico de casas e barracos que se apertam em beiras de

    rios e encostas de morros ou se espraiam em enormes territrios.

    Para esse povo restam as sobras das cidades. So territrios

    abandonados pelo poder pblico, ou marcados por forte clientelismo,

    em que os servios s chegam com muita presso social. No h

    escolas, creches, transporte de qualidade, espaos de lazer etc.

    Agep, cantor popular no Brasil, retratou esta dura realidade em sua

    msica que diz: Moro onde no mora ningum, onde no passa

    ningum, onde no vive ningum...

    O Estatuto das Cidades com seus instrumentos de regularizao

    fundiria e a Medida Provisria 2.220/2001, so marcos positivos na

    luta contra esta dura realidade. Tais instrumentos por si