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Estatuto Da Cidade. Comentarios. Cities Alliance. MdasC. 2010
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O Estatuto da Cidade Comentado
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
E79 O Estatuto da Cidade : comentado = The City Statute of Brazil : a commentary
/ organizadores Celso Santos Carvalho, Anaclaudia Rossbach. So Paulo :
Ministrio das Cidades : Aliana das Cidades, 2010.
120 p. : il.
Textos paralelos em portugus e ingls.
1. Crescimento urbano - Brasil - Legislao. 2. Segregao urbana. 3. Excluso social.
4. Movimentos sociais. 5. Habitao. 6. Saneamento. 7. Mobilidade residencial. 8.
Sociologia urbana. I. Carvalho, Celso Santos. II. Rossbach, Anaclaudia.
CDU 711.4(81)
316.334.56(81)
CDD 711.40981
307.760981
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Apresentao
Com seu processo de urbanizao virtualmente concludo, muitas cidades latino-americanas
tm respondido cada vez mais ao desafio de superar o legado de dcadas de excluso social.
No Brasil, anos de presso dos movimentos sociais colocaram a questo do acesso terra urbana
e a igualdade social no topo da lista das agendas poltica e de desenvolvimento. Confrontado com
as diferenas sociais criadas por uma das sociedades mais desiguais do mundo, a resposta do
Brasil foi a de mudar a Constituio a fim de promover uma reforma fundamental de longo prazo
na dinmica urbana. Como consequncia, as estruturas fundamentais dessa nova ordem jurdico-
urbanstica foram abrigadas na Constituio Federal de 1988 e na Lei 10.257 de 2001, conhecida
como o Estatuto da Cidade.
Entre os desafios encarados pelo governo est o de trabalhar para reverter uma caracterstica
marcante das suas cidades e comum em outras tantas cidades do mundo: a segregao
socioespacial. Bairros abastados que dispem de reas de lazer, equipamentos urbanos modernos
coexistem com imensos bairros perifricos e favelas marcadas pela precariedade ou total ausncia
de infraestrutura, irregularidade fundiria, riscos de inundaes e escorregamentos de encostas,
vulnerabilidade das edificaes e degradao de reas de interesse ambiental.
Durante muitos anos, somente as partes das cidades brasileiras que atraam a ateno dos
planejadores foram beneficiadas pelos servios pblicos e tiveram uma participao desproporcional
dos oramentos locais.
O governo brasileiro sinalizou suas intenes de mudana deste quadro com a criao do
Ministrio das Cidades, em 2003. O novo Ministrio recebeu a incumbncia de apoiar estados e
municpios na consolidao de novo modelo de desenvolvimento urbano que engloba habitao,
saneamento e mobilidade urbana, por meio da Secretaria Nacional de Programas Urbanos, cuja
principal tarefa apoiar a implementao do Estatuto das Cidades.
Tambm foi em 2003 que o Ministrio das Cidades liderou o processo para que o Brasil se
tornasse o primeiro pas em desenvolvimento a se unir Aliana de Cidades. A presente publicao,
preparada em conjunto pelo Ministrio das Cidades e pela Aliana de Cidades, a primeira tentativa
de prestar contas das experincias e conceitos que orientam o esforo brasileiro para superao
da desigualdade urbana. A pea central desses esforos o Estatuto da Cidade, um instrumento
jurdico nico e inovador, concebido pelo amplo movimento de reforma urbana no pas.
Esperamos que esta publicao contribua de forma positiva ao debate, extremamente necessrio,
focado na construo de cidades equilibradas, justas e saudveis para todos.
Marcio FortesMinistro
Ministrio das Cidades
Billy Cobbett
DiretorAliana das Cidades
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ndice
O Estatuto da cidade perifrica Ermnia Maricato
5
Movimentos populares e o Estatuto da Cidade Evaniza Rodrigues
Benedito Roberto Barbosa
23
A cidade de Diadema e o Estatuto da Cidade Mrio Reali
Srgio Alli
35
O Estatuto da Cidade e a ordem jrdico-urbanstica Edesio Fernandes
55
Estatuto da Cidade: a construo de uma lei Jos Roberto Bassul
71
O Estatuto da Cidade comentado(Lei N 10. 257 de 10 de julho de 2001)
Ana Maria Furbino Bretas Barros
Celso Santos Carvalho
Daniel Todtmann Montandon
91
Autores 119
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O Estatuto da Cidade Perifrica Erminia Maricato
O Estatuto da Cidade (EC), lei federal brasileira n 10.257, aprovada em 2001, tem
mritos que justifi cam seu prestgio em boa parte dos pases do mundo. As virtudes do
EC no se esgotam na qualidade tcnica ou jurdica de seu texto. A lei uma conquista
social cujo desenrolar se estendeu durante dcadas. Sua histria , portanto, exemplo de
como setores de diversos extratos sociais (movimentos populares, entidades profi ssionais,
sindicais e acadmicas, pesquisadores, ONGs, parlamentares e prefeitos progressistas)
podem persistir muitos anos na defesa de uma ideia e alcan-la, mesmo num contexto
adverso. Ela trata de reunir, por meio de um enfoque holstico, em um mesmo texto,
diversos aspectos relativos ao governo democrtico da cidade, justia urbana e ao
equilbrio ambiental. Ela traz tona a questo urbana e a insere na agenda poltica nacional
num pas, at pouco tempo, marcado pela cultura rural.
No entanto, a presente publicao no se ater em tecer loas ao texto da lei ignorando os
limites e constrangimentos presentes no processo de sua aplicao. O EC no ser tratado
aqui, tampouco, como um exemplo universal aplicvel a qualquer realidade embora vamos
constatar que muitas cidades do mundo no desenvolvido apresentam semelhanas. Ao
contrrio, buscar-se- apresent-lo destacando a complexidade e as contradies que esto
presentes em sua aplicao, mesmo na realidade brasileira, que inspirou sua formulao.
Veremos, ainda, ao longo das prximas pginas que o texto legal, embora fundamental,
no sufi ciente para resolver problemas estruturais de uma sociedade historicamente
desigual na qual os direitos, como por exemplo o direito cidade ou moradia legal, no
so assegurados para a maioria da populao. Parte das grandes cidades brasileiras tem
a maioria de sua populao morando informalmente sem observao de qualquer lei ou
plano urbanstico, sem concurso de arquitetos e engenheiros para construo de seus
bairros ou casas, sem fi nanciamento para as obras que compem uma gigantesca produo
domstica de espao urbano que evidentemente resulta precrio. O Brasil no est sozinho
nessa condio como todos sabem e como revelam os relatrios da UN-HABITAT1. Talvez
a maior parte dos domiclios urbanos do mundo todo se faa dessa forma, compondo
amontoados de pessoas em lugares que so no cidades j que ali no esto ausentes
apenas a infraestrutura que caracteriza o espao urbano, mas tambm todos os servios
urbanos e equipamentos coletivos.
1. Ver a respeito as publicaes UN-HABITAT. Cities without slums. Global Report on Human Settlements, 2002;
UN-HABITAT Cities in a globalizing world. Global Report on Human Settlements, 2001. www.unhabitat.org5
ndice
O Estatuto da cidade perifrica Ermnia Maricato
5
Movimentos populares e o Estatuto da Cidade Evaniza Rodrigues
Benedito Roberto Barbosa
23
A cidade de Diadema e o Estatuto da Cidade Mrio Reali
Srgio Alli
35
O Estatuto da Cidade e a ordem jrdico-urbanstica Edesio Fernandes
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Estatuto da Cidade: a construo de uma lei Jos Roberto Bassul
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O Estatuto da Cidade comentado(Lei N 10. 257 de 10 de julho de 2001)
Ana Maria Furbino Bretas Barros
Celso Santos Carvalho
Daniel Todtmann Montandon
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Autores 119
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6Aplicar o Estatuto da Cidade em tal contexto, culturalmente excludente, tradicionalmente conservador, no
tarefa simples especialmente porque nessas sociedades chamadas de emergentes, no desenvolvidas,
em desenvolvimento ou perifricas, o poder poltico e social vem associado propriedade patrimonial.
O acesso a terra, seja ela urbana ou rural, sempre foi um dos temas mais importantes da histria
da humanidade. O acesso a terra nas sociedades pobres que se urbanizam mais crucial. E essa
a questo-chave tratada no Estatuto da Cidade. Vamos mostrar, portanto, a importncia que a lei, de
fato, tem para a construo de cidades mais justas e ambientalmente equilibradas e vamos observar os
conflitos que sua aplicao enfrenta no Brasil, sem sustentar a pretenso ingnua de que uma lei (ou um
plano) constitui, em si, solues para problemas que so histricos e estruturais.
O Estatuto da Cidade no trata apenas da terra urbana. Assumindo um enfoque holstico a lei inclui:
diretrizes e preceitos sobre planos e planejamento urbano, sobre gesto urbana e regulao estatal, fiscal
e jurdica (em especial sobre as propriedades fundirias e imobilirias), regularizao da propriedade
informal, participao social nos planos, oramentos, leis complementares e gesto urbana, parcerias
pblico-privadas, entre outros temas. A reunio de leis previamente existentes, de forma fragmentada,
com instrumentos e conceitos novos sob o rtulo de Estatuto da Cidade torna mais fcil o reconhecimento
da questo urbana. A lei deu unidade nacional ao trato das cidades. E se, mesmo aps oito anos de sua
promulgao, existem juzes que ainda a ignoram e tratam a propriedade privada como um direito absoluto
e no relativizado pela sua funo social, podemos dizer que essa prtica est cada vez mais difcil, j que
o formato de unidade abrangente da lei chamada de estatuto tornou mais fcil sua divulgao.
A Constituio brasileira de 1988, promulgada em um momento de ascenso das foras sociais que
lutavam pela democratizao do pas, assegura ao poder municipal a competncia para definir o uso e a
ocupao da terra urbana, e o Estatuto da Cidade refora essa orientao autnoma e descentralizadora.
O fortalecimento da autonomia do poder local se deu como reao centralizao autoritria da poltica
urbana exercida pelo governo ditatorial no perodo anterior, entre 1964 e 1985. Com base nas diretrizes
federais sobre o desenvolvimento urbano e sobre a propriedade privada da terra e imveis, o planejamento
e a gesto urbanos, bem como a resoluo de grande parte dos conflitos fundirios, foi remetida para
a esfera municipal2. no municpio, por meio da lei do Plano Diretor ou legislao complementar, que
sero definidos os conceitos de propriedade no utilizada ou subutilizada e que sero gravadas, em base
cartogrfica, as propriedades a serem submetidas a sanes de instrumentos previstos no Estatuto da
Cidade. no municpio ainda que sero definidas as parcerias pblico-privadas, as operaes urbanas, a
aplicao de um grande nmero de instrumentos jurdicos e fiscais entre outras iniciativas. A autonomia
municipal no tratamento do tema , portanto, muito grande na legislao brasileira. Dependendo da
correlao de foras no municpio a lei poder ter aplicao efetiva ou no3.
2. A definio do modelo de gesto metropolitana foi remetida s Constituies Estaduais e tem sido um tema pouco
prestigiado no Brasil. Por outro lado, a questo ambiental ficou sob a competncia complementar e concorrencial dos
trs nveis da federao.
3. Aos crticos dessa significativa descentralizao queremos lembrar, que em pases de territrio extenso e diversidade
geogrfica como o Brasil e, as cidades tm caractersticas muito diferenciadas (stio, clima, sociedade, cultura) o que
recomenda muita ateno com as condies locais. As regras que regulam o direito de propriedade so estabelecidas em
nvel federal e sua aplicao mais ou menos progressista depender da correlao de foras local.
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7progressivo no tempo e desapropriao sano, que sero
apresentados em tpicos especficos nesse trabalho.
Em que pese a abordagem holstica composta por diferentes aspectos, o tema central do EC a funo
social da propriedade. Em sntese, a lei pretende definir como regular a propriedade urbana de modo
que os negcios que a envolvem no constituam obstculo ao direito moradia para a maior parte da
populao, visando, com isso, combater a segregao, a excluso territorial, a cidade desumana, desigual
e ambientalmente predatria. O EC trata, portanto de uma utopia universal: o controle da propriedade
fundiria urbana e a gesto democrtica das cidades para que todos tenham o direito moradia e cidade.
Se, no sculo XVIII, a Revoluo Francesa seguiu a utopia de libertar a terra das relaes de servido e
garantir seu acesso amplo por meio da propriedade privada individual, no sculo XXI a grande utopia
a restrio ao direito individual de propriedade tendo em vista o interesse coletivo4. Num mundo que se
urbaniza crescentemente e que a maior contribuio a esse processo de urbanizao mundial tem origem
nos pases pobres, o tratamento dado a terra no Estatuto da Cidade merece ser conhecido.
Para compreender assunto to complexo e controverso, vamos partir de algumas perguntas:
Qual o contedo do Estatuto da Cidade que relativiza e limita o direito de propriedade privada? Como
pretende o EC regular as propriedades urbanas? Quais as suas virtudes que permitiriam corrigir injustias
e desequilbrios ambientais? Como a lei assegura a participao social na gesto das cidades? Qual o
papel que o EC atribui aos diferentes nveis da estrutura federativa?
Como foi construda socialmente a ideia de limitar o direito de propriedade de forma a subordin-lo a
uma funo social?
Como foi possvel ao Congresso Nacional Brasileiro, historicamente conservador, num pas socialmente
desigual, aprovar o Estatuto da Cidade? Como foi possvel uma sociedade patrimonialista, onde o poder
poltico e social se confundem com a deteno de patrimnio (especialmente a propriedade de terras e
imveis), admitir a aprovao de uma lei to avanada?
Como se d sua aplicao? Quais so os obstculos e constrangimentos colocados sua aplicao?
Como se tem dado o impacto do EC nas cidades brasileiras?
4. A Constituio Francesa de 1791, precedida da Declarao dos Direitos do Homem, menciona
a propriedade como um dos direitos naturais e imprescritveis do homem alm de direito
inviolvel e sagrado. A Constituio Americana ,de 1787, considerou a propriedade privada
como um dos direitos essenciais e inalienveis.
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8As especificidades das cidades perifricas5
Parte dessas questes ser respondida neste primeiro captulo e parte nos captulos seguintes. Para
comear, faz-se necessrio abordar aspectos fticos e conceituais, especficos da realidade urbana
dos pases que pertencem quilo que podemos chamar de capitalismo perifrico6. Por que tratar
dessa especificidade? Porque h uma profunda diferena entre as cidades do mundo desenvolvido
(basicamente os pases do G7) e no desenvolvido que tem a ver com a regulao estatal sobre o
espao urbano e o alcance do mercado residencial privado. Por isso Londres, Paris, Nova Iorque,
Boston, Toronto, Tquio so cidades muito diferentes das cidades do Mxico, So Paulo, Rio de Janeiro,
Mombai e Joanesburgo, apenas para citar alguns poucos exemplos. Nas primeiras, o Estado exerce,
de fato, a regulao sobre a totalidade do solo urbano seguindo as leis existentes com excees no
significativas. Nas demais, frequente observar que a maioria da populao pode habitar espaos
informais que so tambm segregados em relao cidade oficial ou legal onde os planos e leis
urbansticas no so aplicados. As excees so mais regra do que excees7.
Nos pases centrais, o mercado privado atende necessidade de habitao da maior parte da populao
sendo que uma minoria, que varia de pas para pas, necessita de subsdio ou apoio estatal para a proviso
da moradia. No Canad, por exemplo, 30% da populao so classificados como non market housing.
Estas necessitam de auxlio pblico para resolver seu problema de moradia. J no Brasil, ou nos pases
perifricos de um modo geral, passa-se exatamente o contrrio: mais de 70% da populao (o que inclui
parte da classe mdia) est fora do mercado privado legal e necessitaria de subsdios8.
Uma das caractersticas dessas cidades perifricas um mercado formal ou legal limitado que
frequentemente oferece um produto de luxo para uma minoria da populao. Os lucros, decorrentes
de atividades especulativas com imveis, ocupam um lugar muito importante nesse mercado,
pressionando a disputa por terras e ampliando seu preo. A reteno de terras ociosas nas cidades
parte estrutural desse modelo que combina: mercado restrito e frequentemente luxuoso, lucro
especulativo, ausncia de polticas sociais em escala significativa (isto , uma escala que v alm das
festejadas best practices ), escassez de moradia, segregao e informalidade9.
5. Certamente a classificao das cidades do mundo todo exigiria um maior detalhamento tipolgico. Vamos utilizar uma abordagem dual cidades
perifricas e cidades desenvolvidas ou centrais como recurso simplificador adequado para o que se pretende nessa rpida apresentao.
6.Usaremos indiferentemente, sem rigor acadmico, os conceitos correntes aplicados por instituies internacionais na classificao dos diferentes
pases do mundo embora reconhecendo que essas denominaes no so neutras: pases desenvolvidos ou em desenvolvimento; pases centrais,
semiperifricos ou perifricos; pases emergentes ou pobres; pases do sul ou do norte.
7. Muitas das afirmaes feitas aqui esto baseadas em observao emprica, alm de bibliogrfica, que resultado de atividades de consultoria ou
de pesquisa da autora em cidades de vrios pases do mundo. Entretanto a maior parte das informaes provm do universo urbano brasileiro. As
generalizaes devem ser vistas com alguma cautela.
8. A retomada do investimento habitacional pelo Governo Federal, no Brasil, a partir de 2004, que estava relativamente paralisada desde os anos 1980,
tem apontado para uma mudana nesse padro. Foi lanado um novo programa que busca a construo de um milho de moradias Minha Casa, Minha
Vida reforando essa tendncia e buscando ao anticclica em relao crise que eclodiu em setembro de 2008. Tudo indica que o mercado privado
legal est em ampliao para atender o que poderamos chamar de classes mdia e mdia baixa. Na Amrica Latina, esse movimento de produo
massiva de moradias pde ser observado no Chile (anos 1990) e Mxico, mais recentemente.9. Estamos desenvolvendo a ideia de que a segregao e a informalidade no so resultados espontneos, mas produto de um processo histrico de
produo do espao que segue, espelha e reproduz as caractersticas da sociedade desigual. Cabe lembrar, entretanto, que frequentemente o Estado
atua diretamente produzindo a segregao ou a excluso urbanstica seja por regulao legal como aconteceu na frica do Sul com o apartheid, seja pela
transferncia de favelas que so retiradas do contexto urbanizado valorizado pelo mercado para reas distantes da cidade formal.
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Escassez de moradia, agresso ambiental, ilegalidade e violncia Outra das principais consequncias da falta de alternativas de moradias legais (ou
seja, moradias reguladas pela legislao urbanstica e inseridas na cidade oficial) est na
agresso ambiental. A ocupao de reas ambientalmente frgeis beira dos crregos,
encostas deslizantes, vrzeas inundveis, reas de proteo de mananciais, mangues
a alternativa que sobra para os excludos do mercado e dos programas pblicos pouco
abrangentes. No por falta de leis ou planos que essas reas so ocupadas, mas por falta
de alternativas habitacionais para a populao de baixa renda. Em algumas metrpoles
brasileiras, como So Paulo e Curitiba, as regies onde a ocupao por moradias ilegais
mais cresceu na dcada de 2000 foram as reas de Proteo dos Mananciais, ou seja,
reas produtoras de gua potvel, onde a ocupao proibida por lei, mas no o na prtica
da ocupao do territrio. So as reas vulnerveis, protegidas por legislao ambiental que
no interessam ao mercado imobilirio privado legal e sobram para as moradias pobres.
As principais formas de moradia precria so produtos de loteamentos piratas e
clandestinos ou de invases de terra que do incio formao de favelas. Os cortios,
moradias ou cmodos alugados em reas centrais ou no tm relevncia relativa
nas diferentes cidades. Em geral no tm a mesma importncia quantitativa das primeiras
formas citadas, embora sejam fundamentais para a requalificao de reas urbanas centrais
sem que se expulsem moradores pobres.
Se considerarmos o nmero de favelas e o nmero de seus moradores que invadem terra
para morar, podemos dizer que uma gigantesca invaso de terras urbanas consentida pelo
Estado, nos pases no desenvolvidos, mesmo contrariando as leis urbansticas ou de proteo
ambiental. Essas invases no so dirigidas por movimentos contestatrios, mas pela falta de
alternativas. J que todos precisam de um lugar para morar e ningum vive ou se reproduz
sem um abrigo, esse consentimento ocupao ilegal, no assumido oficialmente, funciona
como uma vlvula de escape para a flexibilizao das regras. Mas esse consentimento e
flexibilizao se do apenas em reas no valorizadas pelo mercado imobilirio. O mercado
mais do que a lei norma jurdica que define onde os pobres podem morar ou invadir
terras para morar. H uma lgica que relaciona mercado e aplicao da lei.
Alm disso, nas grandes e mdias cidades, os rios, riachos, lagos, mangues e praias
tornaram-se canais ou destino dos esgotos domsticos. No Brasil, 34,5 milhes de pessoas
no so atendidos pelas redes de esgotos nas cidades. Somando-se a estes os domiclios
que contam com apenas fossa sptica, teremos 50% do total da populao brasileira.
Alm do mais, 80% do esgoto coletado no so tratados, sendo despejado nos cursos de
gua. Mais do que efluentes industriais atualmente, o esgoto domstico o poluidor, por
excelncia, dos recursos hdricos10.
10. Esses dados so do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) para 2009, com base nas fontes
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), ambos organismos do Governo Federal.9
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A ausncia da lei urbanstica parece fornecer um espao profcuo para a ausncia
generalizada de leis, cortes, tribunais e advogados para a resoluo de conflitos
e para a garantia de direitos sociais, civis e humanos. A falta da gesto pblica, e
a inexistncia de qualquer contrato social, remetem os bairros homogeneamente
pobres para a situao de terra de ningum onde a lei a do mais forte.
compreensvel o aumento do nmero de homicdios e do crime organizado nas
grandes cidades do mundo no desenvolvido nos ltimos 30 anos. Em alguns bairros
dominados por um poder que, apenas aparentemente paralelo, vamos encontrar
a concentrao de mazelas que demonstram que a excluso um todo. Alm
da ilegalidade urbanstica, dos altos ndices de violncia, esto presentes, nesses
bairros mais vulnerveis (socialmente e ambientalmente) a desproporcional taxa de
mulheres chefes de famlias, maior taxa de desemprego, maior proporo de negros,
taxa de escolaridade abaixo da mdia urbana, renda mdia abaixo da renda mdia
urbana, taxa mais alta de mortalidade infantil, ocorrncia frequente de doenas por
epidemia etc. Podemos denominar esses bairros de bombas socioecolgicas. As
autoridades pblicas e at mesmo a polcia tm dificuldade de circular livremente
por essas reas que esto liberadas do contrato social.
Razes da sociedade perifrica engano frequente considerar que as cidades perifricas esto num estgio mais
atrasado em relao ao percurso seguido pelas cidades do mundo desenvolvido e
que um esforo de gesto e condies favorveis de governabilidade suficiente
para superar o gap entre elas. No faltam receitas que so oferecidas por agncias
internacionais e consultores que tm origem nos pases do norte para superar
essa distncia. evidente que determinados governos urbanos, em determinadas
condies polticas e econmicas, podem minorar as mazelas das cidades mais
pobres e isso no pouco importante. Mas o que se quer destacar aqui que jamais
ser possvel equipar-las com as cidades desenvolvidas mantendo a relao de
dependncia subordinada e utilizando receitas do primeiro mundo. Isto porque elas
so estruturalmente diferentes e no esto em diferentes etapas de um mesmo
percurso histrico rumo ao desenvolvimento. Nas cidades perifricas constatamos a
convivncia da falta de esgoto e frequentemente at de alimento com o consumo de
bugigangas eletrnicas, tnis de marca ou TV a cabo como acontece nas favelas do
Rio de Janeiro ou de So Paulo. Num mesmo momento histrico, esto presentes
o modo de vida pr-moderno (a produo domstica da moradia, a proximidade dos
dejetos, por exemplo) convivendo com o modo de vida ps-moderno baseado na
comunicao revolucionada. No Brasil, em 2005, 163 milhes de pessoas tinham
acesso a TV em cores enquanto 123 milhes 32% a menos tinham acesso ao
esgoto por meio de uma rede coletora ou fossa sptica (IBGE/PNAD 2005).10
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11
Os imperativos de um modelo de consumo, que universal nos pases do ncleo
hegemnico, penetram as mentes e coraes da maior parte da humanidade, que se
mantm na pobreza, e dificultam a possibilidade de uma construo endgena.
Essa simultaneidade de diferentes padres tecnolgicos a marca da sociedade
urbana perifrica e consequentemente das cidades. O processo de modernizao
incompleta inclui avanos modernizantes sem abandonar as marcas do atraso. Trata-
se de um capitalismo que, mesmo durante o perodo da industrializao tardia, foi
caracterizado pelo assalariamento precrio ou pela informalidade predominante nas
relaes de trabalho. No estava e no est garantido o que poderamos considerar um
padro mnimo conquistado pela modernidade: previdncia social, moradia, educao
universalizada, saneamento bsico etc., mas sobre essa base precria est presente
a presso exercida pelo mercado na direo do consumo de produtos de ponta que
poderiam ser classificados como suprfluos ou no prioritrios. O poder da logomarca,
a penetrao da publicidade so avassaladores e criam novas necessidades. Os
valores do consumo conspcuo penetram todos os poros vazios da existncia dos
adolescentes pobres. A tica do trabalho no se sustenta at porque a oferta de
emprego ou de trabalho, ainda que informal, dificilmente acompanha, especialmente
nas ltimas dcadas do sculo XX e incio do sculo XXI, o crescimento da chamada
populao economicamente ativa. Exatamente nesse perodo, as mazelas trazidas
pela globalizao neoliberal aprofundaram a pobreza e a desigualdades urbanas nas
cidades perifricas. Por globalizao entendemos a ampliao internacional dos
mercados revolucionada por grandes mudanas tecnolgicas (movimento estrutural)
combinada ao iderio neoliberal: primazia do mercado, enfraquecimento dos Estados-
Nao, recuo das polticas sociais, privatizaes e mercantilizao dos servios
coletivos, e consequente aumento do desemprego e da violncia.
A busca das razes dessa condio nos remete, num primeiro momento, relao
colonial e depois imperialista: associao do capital internacional com uma elite
local visando interesses complementares. Interesses esses que resultaram, durante
sculos, na exportao da riqueza excedente a produzida, na utilizao da mo de obra
barata ou mesmo escrava (que assegura uma cultura de desprestgio do trabalho e do
trabalhador), na importncia crucial do latifndio e no travamento do mercado interno.
Seja por meio da exportao de produtos primrios, seja por meio de um processo
tardio de industrializao ou de um engate passivo na globalizao financeirizada, a
histria nos mostra a persistente falta de autonomia poltica e a fragilidade do mercado
interno que pode conduzir ao desenvolvimento social e econmico mais includente.
Esse tema no ser desenvolvido aqui. Ele pretende mostrar apenas que alguns
pases do mundo apresentam caractersticas comuns que lhes permitem um dilogo
proveitoso ainda que as especificidades das cidades e das experincias sociais locais
sejam nicas e exijam todo respeito e ateno.
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Motivos para esperana: propostas aderentes realidadeNo se pretende, com essa constatao crtica, levar o leitor ao desnimo a partir de um pensamento
eivado de fatalidade. Ao contrrio, pretende-se mostrar que apenas o conhecimento cientfico dessa
realidade pode nos conduzir a propostas adequadas e especficas. O conhecimento da situao concreta
de cada cidade, ou seja, o combate ao analfabetismo urbanstico pode constituir uma vacina contra
ideias inadequadas realidade local11. A influncia do pensamento urbanstico dos pases do norte e a
importao de modelos de planejamento e gesto urbanos s fizeram aprofundar a cidade partida entre
includos e excludos onde se verifica a existncia de verdadeiras ilhas de primeiro mundo, reguladas
por zoneamento detalhado, marcadas por uma arquitetura fashion, local de produo do mercado formal.
Do outro lado est a cidade informal, construda predominantemente pelos seus prprios moradores
com seus parcos recursos. A representao dessa cidade busca afirmar a hegemonia das ilhas de
primeiro mundo tomando a parte pelo todo. Alm de invisveis, os bairros informais tambm so
desconhecidos, em grande parte, nos cadastros, mapas, arquivos e registros urbanos.
A cidade perifrica marcada pelo mimetismo cultural decorrente da hegemonia exercida pelos
pases centrais por meio dos veculos de comunicao, universidades e principalmente pela expanso
internacional do mercado. A realidade local dificilmente o nexo central para o desenvolvimento do
conhecimento. Est presente, tambm, uma dificuldade de acmulo progressivo do saber a partir
das diversas experincias cuja continuidade frequentemente rompida pelo conhecimento externo.
Os instrumentos de gesto urbana copiados de fora no levam em conta a realidade dessas cidades,
com grande parte da populao (e no poucas vezes, a maior parte) excluda do mercado privado e da
condio legal de moradia, alm das condies mnimas aceitveis de urbanizao. Os planos diretores
e especialmente as leis de zoneamento ignoram que, na cidade perifrica, o mercado residencial privado
atende a uma pequena porcentagem da populao, e que temos a problemas que no se colocaram
aos urbanistas e arquitetos das prestigiadas universidades americanas, apenas para dar um exemplo. A
ausncia de um desenvolvimento endgeno e um planejamento idem, dirigidos para a realidade social
existente, buscando fortalecer o mercado interno, um dos grandes problemas que se no podem
ser superados localmente ou nacionalmente, j que a expanso dos mercados um fenmeno global
podem ser minimizados. O que se prope aqui o desenvolvimento de propostas aderentes realidade
da cidade perifrica e a superao da dominao cultural e tcnica. H muito de utopia nessa ideia; e os
conflitos no desaparecero j que crescentemente impossvel desvincular a estrutura social endgena
da exgena. Mas a adeso concretude social, econmica, poltica, cultural, urbana e ambiental
sempre um avano que permite desvendar ideologias mascaradoras da realidade e acabam tendo um
efeito pedaggico sobre a leitura emancipadora das especificidades de cada sociedade.
11. Ideias fora do lugar a expresso usada pelo escritor brasileiro Roberto Schwarz para
denominar as ideias geradas pelo modo de produo dos pases desenvolvidos que so transferidas
sem mediaes para a realidade dos pases perifricos. Um bom exemplo dessa contradio foi a
chegada do iderio liberal europeu no Brasil escravista no sculo XIX. A cultura, a poltica e a arte
praticada pela elite se inspiravam no liberalismo, mas a base da economia era o escravismo.
12
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13
Um exemplo que superou essa dificuldade a prtica de urbanizao de favelas. A urbanizao ou requalificao
urbanstica e social de favelas pode ser uma boa proposta quando ela est bem localizada na cidade e seus moradores tm
oferta de emprego, alm de servios e equipamentos coletivos nos arredores. Os mtodos e tcnicas de urbanizao de
favelas tm tido um desenvolvimento satisfatrio e um crescente aperfeioamento nos pases perifricos. Ao contrrio
do que muitos pensam, essa ao pode constituir uma importante interveno de recuperao ambiental alm de
social j que as favelas esto, na maior parte das vezes, situadas em reas ambientalmente frgeis. Este um exemplo
de programa urbanstico que seguiu um desenvolvimento endgeno apesar de recomendado tambm pelas agncias
internacionais de desenvolvimento no ltimo quarto do sculo XX. A permanncia em reas bem localizadas nas
cidades contra a remoo para reas distantes foi uma conquista social no Brasil, fruto de muita luta das comunidades
de moradores de favelas e no simplesmente orientao externa. At o incio dos anos 1980, as favelas eram tratadas
como caso de polcia ao invs do reconhecimento de que a maior parte dos seus moradores eram trabalhadores
e, em muitos casos, como em So Paulo, trabalhadores da indstria fordista, produtora de automveis. Os baixos
salrios pagos aos trabalhadores industriais brasileiros que explicam porque um trabalhador de uma indstria que
era avanada at a dcada de 1980 morava em favelas. Tratava-se e trata-se ainda da industrializao com baixos
salrios que gerou uma urbanizao com baixos salrios: excludos do mercado os trabalhadores constroem suas
moradias e at mesmo seus bairros. A derrocada do welfare state, ainda que em verso perifrica, e o aumento do
desemprego apenas radicalizaram essa situao nas dcadas de 1980 e 1990.
A grande dificuldade, no atual estgio da poltica para favelas garantir a regularizao fundiria e sua integrao
cidade oficial, garantindo assim a manuteno das reas de circulao, da coleta do lixo, da varrio das ruas, das reas
pblicas, da iluminao pblica e do padro das edificaes para evitar o excessivo adensamento e a insalubridade12.
Apesar de ser possvel constatar alguns avanos em relao poltica para favelas, preciso reconhecer que o nmero
de aes de transferncia de favelas de reas urbanas valorizadas para fora das cidades, nos pases no desenvolvidos,
ainda bem maior do que a consolidao desses ncleos em espaos urbanos centrais ou relativamente centrais.
Predomina, a nosso ver (estamos nos baseando aqui em observao emprica e informaes interpessoais), uma ao
de limpeza social que est relacionada valorizao imobiliria. Observando a realidade de alguns pases da Amrica
Latina, alm da frica do Sul e da ndia, poderamos arriscar ainda uma hiptese: enquanto que os governos federais
afirmam a poltica de urbanizao e de no remoo de favelas, os demais membros da federao agem francamente
pr-mercado privado transferindo favelas de locais valorizados. Em alguns casos, essa transferncia apela para a violncia
(como aconteceu em Durban) e em outros a terra (de onde a favela foi retirada) simplesmente cedida ao mercado
privado (Nova Delhi)13. No faltam, tambm, os casos de governos que fazem a urbanizao de algumas favelas para
efeito de marketing, mas aplicam como regra a remoo quando se trata de rea valorizada pelo mercado ( o exemplo
de So Paulo). A disputa pela terra urbanizada, ou a disputa pela localizao na cidade, acirrada em toda parte.
12. Evidentemente a consolidao dos moradores de favelas em determinado espao urbano deve levar em considerao tambm as condies
geotcnicas e ambientais do terreno alm da vontade dos moradores. Um grande nmero de publicaes trata do assunto especialmente a
partir da definio das Metas de Desenvolvimento do Milnio. Alm do GRHS UN HABITAT 2002 ver a respeito GARAU, P; SCLAR, E. D.; e
CAROLINI, G. Y. A home in the city. London, Earthscan 2005. A bibliografia brasileira sobre o tema muito extensa.
13. Sobre a violncia utilizada para a remoo de favelas em Durban, ver a denncia da ONG formada pelos moradores da Comunidade
Kennedy Road, no Jornal do Brasil Online, 12/out./2009 A informao sobre Delhi foi dada autora por funcionrio do governo local. No caso
de So Paulo, a Prefeitura divulga a urbanizao de favelas especialmente para visitantes internacionais. Mas aplica outras tticas, incluindo a
agresso, quando se trata de remover conforme relato de diversas fontes: Defensoria Pblica do Estado de So Paulo, Frum Centro Vivo.
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A disputa pela terra urbana: um tema crucial para as cidadesA propriedade da terra continua a ser, e talvez mais do que nunca, um n marcado por
conflitos sociais no campo ou na cidade. Nas sociedades patrimonialistas ou oligrquicas
ela tende a adquirir maior importncia, pois, como j foi lembrado, nelas o poder social,
poltico e econmico est relacionado deteno de patrimnio. Com a globalizao, a partir
dos anos 1980, a questo da terra tende a se agravar no mundo todo. Produtos primrios
como minrios, celulose, gros, carne, petrleo, etanol (commodities ) ganham importncia
estratgica nos mercados globais promovendo a migrao de milhes de camponeses de
suas terras14. Excludos do acesso terra urbanizada, essa populao migrante ou em alguns
casos, imigrante, amontoa-se em favelas j que a terra urbanizada um bem precioso e
escasso nas cidades perifricas.
Determinados atributos que a terra pode ter estar servida de infraestrutura urbana,
contar com equipamentos pblicos e privados nos seus arredores, estar situada de frente para
o mar no so reproduzveis, ou pelo menos facilmente reproduzveis, o que nos reporta
a uma condio de monoplio. Tanto esses atributos, como a legislao urbana que incide
sobre determinada propriedade, influem em sua maior ou menor valorizao. A ampliao de
investimentos pblicos ou privados nas proximidades de um imvel tendem a ampliar seu
preo. A legislao que pode ser mais ou menos restritiva para a ocupao de determinado
pedao de terra tambm influi no seu preo. A proximidade de favela tende a desvalorizar
um imvel. So exemplos que mostram a condio que tem uma propriedade privada de
gerar renda fundiria ou imobiliria para seu possuidor e essa condio d origem a uma
disputa que crucial e ao mesmo tempo silenciosa pelo espao urbano. Alguns lutam pelo
direito cidade e outros por ganhos extras advindos de atividades que so especulativas, na
maior parte das vezes. E essa condio to dominadora das relaes sociais urbanas que
frequentemente pobres que so proprietrios rejeitam a vizinhana de pobres moradores de
favelas porque tm a conscincia do impacto negativo que estes tm sobre o preo de seus
imveis. Ainda que pertenam mesma faixa de renda, os proprietrios se antagonizam com
os no proprietrios.
Essa disputa pelo valor de uso ou pelo valor de troca, ou ainda pela apropriao da valorizao
fundiria ou imobiliria, mais acirrada na cidade perifrica onde esto presentes a escassez
de terras urbanizadas e a escassez de moradia. Nas cidades dos pases centrais a regulao
sobre a terra e imveis urbanos tornou-se historicamente mais efetiva. A democratizao do
acesso moradia e cidade promovida especialmente durante o welfare state exigiu maior
controle sobre a terra e sobre os ganhos rentistas em favor do aumento da produtividade da
construo e da ampliao do acesso conquistado pelos movimentos sociais e sindicais.
14. A busca de terras arveis para cultivo de alimentos tornou-se um rentvel negcio internacional
que est ameaando a expulso de milhes de camponeses de suas terras, nos pases pobres.
Segundo o Instituto Internacional de Pesquisas Alimentares (IFPRI), 15 a 20 milhes de hectares
de terra esto sendo comprados por pases ou empresas constituindo transaes internacionais.
Os pases que mais venderam so Etipia, Gana e Madagascar. Ver a respeito Relatrio Instituto
Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (IIED), junho de 2009.
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A confuso registrria ou cadastral de imveis e propriedades presente nas cidades perifricas
no acontece por acaso. Ela funcional para o papel ambguo que exerce a terra sobre as relaes
de poder. A escala local de poder est bastante imbricada com os grandes empresrios e
proprietrios de terras e imveis.
A reteno de terras ociosas urbanizadas e a consequente extenso horizontal das periferias
formadas pelo mar de moradias pobres eleva o custo do processo de urbanizao e sua
insustentabilidade como todos sabemos. A cidade dispersa tem sido objeto de crticas de
urbanistas do mundo todo pela sua dependncia do automvel, um dos principais responsveis pelo
efeito estufa, e pela impermeabilizao extensiva do solo, entre outros aspectos. Nas periferias da
cidade perifrica encontram-se o modelo disperso dos bairros pobres e sem urbanizao com as
gated communities, bairros murados que seguem modelos principalmente americanos, resultando
numa urbanizao dispersa mista e desigual, terceiro mundo. Essa extenso horizontal,
pontuada por terras vazias que aguardam valorizao, amplia os custos de urbanizao de cidades
cujos oramentos so restritos para a dimenso das necessidades sociais.
Em alguns casos, como acontece em cidades do Centro-Oeste do Brasil (Campo Grande,
Goinia e Palmas), as terras vazias servidas de infraestrutura (gua, coleta de esgoto, pavimentao,
iluminao pblica) poderiam acomodar mais do que o dobro da populao dessas cidades o
que no impede de grande parte da populao de rendas mais baixas estarem praticamente fora
do tecido urbano contnuo. Por outro lado, nas metrpoles, em especial no Rio de Janeiro e em
So Paulo, ganha maior importncia o nmero de imveis edificados vazios. Esse nmero se
aproxima do dficit habitacional de ambas as cidades. Esses imveis se concentram nas reas
mais centrais e, portanto, atendidas por infraestrutura e oferta de servios urbanos. A tabela abaixo
mostra o significativo nmero de imveis vazios em algumas das principais metrpoles brasileiras,
concentrados, principalmente, em reas centrais mais antigas.
Municpios brasileiros com maior nmero de domiclios ociosos (vagos + fechados)Municpios Total de municpios recenseados Total de vagos e fechados % sobre o estoque total
So Paulo (SP) 3.554.820 515.030 14,5
Rio de Janeiro (RJ) 2.129.131 266.074 12,5
Salvador (BA) 768.010 98.326 12,8
Belo Horizonte (MG) 735.280 91.983 12,5
Fortaleza (CE) 617.881 81.930 13,3
Brasilia (DF) 631.191 72.404 11,5
Curitiba (PR) 542.310 58.880 10,9
Manaus (AM) 386.511 51.988 13,5
Porto Alegre (RS) 503.536 46.214 9,2
Guarulhos (SP) 336.440 43.087 12,8
Fonte: IBGE/Censo 2000 sinopse preliminar. 15
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Em sntese, a questo social da terra e dos imveis urbanos crucial para todos aqueles que querem
cidades mais justas e ambientalmente menos predatrias. A funo social da propriedade se refere ao limite
que deve ter seu possuidor de usufru-la diante das carncias sociais e tambm diante das irracionalidades
causadoras da depredao ambiental.
A limitao do direito de propriedade privada da terra e de imveis, visando construo de uma cidade
mais justa e menos ambientalmente predatria, no uma proposta radical de esquerda e nem mesmo
socialista. Podemos dizer, talvez, que uma proposta progressista, j que ela pretende eliminar as limitaes
impostas ampliao da produo de moradias, seja pelo mercado privado, seja pelo Estado por meio das
polticas pblicas. De fato, a reteno de terras ociosas dificulta a poltica habitacional de amplo alcance
j que o prprio Estado tem dificuldade de acesso a terra para programas pblicos. E isso no se refere
apenas moradia. O alto custo da terra resulta limitador para diversas iniciativas de polticas pblicas como
a implantao de parques, ampliao do sistema virio, construo de equipamentos sociais como escolas,
hospitais, creches, centros comunitrios, entre outros. Estudos efetuados nas cidades de So Paulo e do
Mxico revelaram a dificuldade de pagamento de precatrios resultantes de terras desapropriadas para a
execuo de polticas pblicas, dado o montante da dvida aps trnsito e deciso judicial sobre o assunto.
As limitaes aos ganhos especulativos fundirios afetam mais os interesses oligrquicos e patrimonialistas
do que os interesses capitalistas stricto sensu. Mas preciso reconhecer que o mercado residencial privado,
de um modo geral, se combina ao patrimonialismo nas cidades perifricas15.
A conquista do Estatuto da cidade: movimento de reforma urbanaA histria do Estatuto da Cidade no remete primeira metade do sculo XX como mostra o texto de Jos
Roberto Bassul, nesta publicao. Foram, portanto, vrias dcadas de um processo acirrado de embates
e de idas e vindas com a confrontao de interesses divergentes. Nesse processo merece destaque a
construo do Movimento Nacional de Reforma Urbana, que reuniu movimentos sociais (moradia, transporte,
saneamento), associaes de profissionais (arquitetos, advogados, sanitaristas, assistentes sociais,
engenheiros), entidades sindicais, entidades acadmicas e de pesquisa, ONGs, integrantes da Igreja Catlica
(egressos do movimento religioso denominado Teologia da Libertao), servidores pblicos, alm de prefeitos
e parlamentares progressistas. Por ocasio do processo de conquista da nova Constituio Brasileira (1987),
foi criado o Frum pela Reforma Urbana com a finalidade de unificar todas as iniciativas dos movimentos
urbanos que faziam reivindicaes especficas e fragmentadas naquele momento. O Movimento Nacional de
Reforma Urbana constituiu uma experincia rara de movimento social que reuniu diferentes setores em torno
de alguns pontos prioritrios da poltica urbana que ganharam unanimidade. Esses pontos foram organizados
em uma agenda que constituiu uma proposta de Emenda Constitucional de Iniciativa Popular, subscrita por
131 mil eleitores, que foi apresentada Assembleia Nacional Constituinte. Pela primeira vez na histria do
Brasil, a Constituio Federal passou a contar com um captulo dedicado ao tema das cidades e incorporar a
funo social da cidade e a funo social da propriedade16.
15. Ver a respeito a pesquisa do Laboratrio de Habitao da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (LABHAB) da Universidade de So
Paulo: Preo de desapropriaes de terras limites s polticas pblicas. 2001 www.fau.usp/labhab.
16.A Iniciativa Popular de Reforma Urbana foi apresentada, em plenrio, por essa autora Assembleia Nacional Constituinte em 1987.
16
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Os movimentos de luta por moradia, sempre maioria no Frum de Reforma Urbana,
passaram a se preocupar com a localizao da moradia na cidade e a refletir sobre a
necessidade de reivindicaes menos imediatas como a mudana dos parmetros que
regiam a propriedade fundiria no Brasil. A conscincia histrica sobre a ilegitimidade da
propriedade ociosa teve origem nos movimentos de camponeses que, durante toda a
histria do Brasil, enfrentaram a oposio dos latifundirios, tambm conhecidos como
coronis. Estes comandavam milcias privadas e tinham poder de vida e morte sobre
escravos, que constituam a maior parte da fora de trabalho at o final do sculo XIX e a
populao branca que, desterrada e deslocada no modo de produo escravista, dependia
dos mencionados coronis para sua sobrevivncia.
A primeira proposta de Reforma Urbana no Brasil, definida em um Congresso de
Arquitetos, em 1963, incorporou o conceito da propriedade ociosa como ilegtima, a
partir da cultura herdada da Reforma Agrria. Nessa proposta, uma das razes do Estatuto
da Cidade, a questo da terra era vista como central para a transformao que o pas
demandava. Nela estava presente, ainda, a criao de um organismo nacional que dirigisse
a poltica urbana e habitacional. Nesse perodo, que antecedeu o golpe militar de 1964, a
sociedade brasileira estava mobilizada em torno das Reformas de Base. Propostas com
significativa base popular eram elaboradas por intelectuais, profissionais, acadmicos e
lderes sociais e sindicais e tratavam de temas como educao, sade, administrao
pblica, cultura, alm das Reformas Agrria e Urbana.
A primeira etapa (1964) da represso ditatorial contra essa ofensiva de movimentos
sociais e sindicais se abateu sobre os setores populares. A segunda (1969) alcanou os
recalcitrantes opositores que tinham origem nas classes mdias: estudantes, jornalistas,
intelectuais, professores, deputados e senadores, prefeitos, governadores, entre
outros. Cassaes, tortura, censura, assassinatos promovidos pelo Regime Militar, que
se instalou no poder em 1964, tiveram o efeito de varrer as propostas de reforma de
todas as agendas e at das memrias durante muito tempo. A proposta dos arquitetos
foi incorporada pelo Regime Militar que a aplicou pelo avesso, constituindo um aparato
institucional tecnocrtico, fortemente centralizado, de poltica habitacional, de transporte
e de saneamento, ignorando a questo fundiria. Considerando o vigoroso movimento
de construo de moradias e sistemas de saneamento que caracterizou essa poltica,
podemos dizer que foi bem-sucedido para seus propsitos (gerar empregos) embora
tenha privilegiado a classe mdia em detrimento da maioria da populao.
Em meados da dcada de 1970, a emergncia dos movimentos sociais urbanos
reivindicando melhores condies de vida se d ainda quando a participao poltica
na sociedade era bastante cerceada. Essas mobilizaes cresceram acompanhando
a exigncia generalizada por liberdades polticas. nesse contexto que surgem as
prefeituras de um novo tipo e uma nova escola de urbanismo.
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As prefeituras democrticas e a nova escola de urbanismoParalelamente ao retorno dos movimentos sociais cena poltica, ainda sob contexto
da ditadura, tm incio as experincias democrticas de administrao municipal
(excluindo as capitais cujos prefeitos eram indicados por governadores que, por sua vez,
eram indicados pelas autoridades da Ditadura) com a eleio de prefeitos progressistas.
Comea um novo perodo no qual se colocavam em prtica propostas elaboradas
nas mobilizaes e organizaes populares. Arquitetos, engenheiros, advogados,
assistentes sociais, gegrafos dedicaram-se a formular, por meio de processos
democrticos, novos programas e novas formas de gerir as cidades. Programas de
urbanizao e regularizao fundiria de favelas com novas formas de posse segura de
imveis, programas voltados para a sade das mulheres, programas de urbanizao de
bairros perifricos, assistncia jurdica gratuita populao pobre, solues de moradias
individuais ou coletivas com assistncia tcnica de arquitetos e engenheiros, preveno
e recuperao de reas de risco geotcnico, esgoto condominial, componentes pr-
fabricados de argamassa armada para infraestrutura ou equipamentos coletivos, novas
tcnicas de urbanizao de crregos a cu aberto (condenando o tamponamento
de crregos), entre outros, comearam a incorporar a participao da populao
nas decises das administraes pblicas. Com o fim da proibio da eleio direta
dos prefeitos das capitais (1985), essa dinmica ganha novo impulso com prefeitos
progressistas administrando grandes cidades como Porto Alegre e So Paulo17. O
oramento participativo realizado em Porto Alegre talvez tenha sido a experincia mais
marcante de controle social sobre os recursos pblicos municipais nesse perodo.
Recuperar a bandeira da Reforma Urbana aps 24 anos de muita represso
reunindo movimentos populares que se reproduziam nas cidades de todo o Pas;
debater agendas de polticas locais, de organizao e de demandas sociais por melhores
condies de vida; realizar experincias nicas e inditas de participao social em
vrios municpios brasileiros disputando a aplicao do fundo pblico; alargar o espao
das liberdades democrticas desafiando o poder ditatorial com ocupaes de terras
urbanas, todos esses acontecimentos promoveram um ambiente de euforia e confiana
entre os militantes. Enquanto a globalizao neoliberal desmontava o welfare state nos
pases centrais, no Brasil vivia-se um ambiente de muita agitao e esperana.
Apesar da presso constante do Frum de Reforma Urbana, a regulamentao dos
captulos 182 e 183 da Constituio Federal foi aprovada no Congresso Nacional apenas
13 anos depois, sob a forma da lei federal n 10.257/2001, o Estatuto da Cidade.
Este forneceu nova base jurdica para o tratamento da propriedade urbana. Do ponto
de vista formal, a mudana no foi pequena; imps limitaes antes impensveis, no
Brasil, ao direito de propriedade.
17. Ver a respeito MARICATO, E. Fighting for Just cities in capitalism periphery. In
MARCUSE, P. and others (org.) Searching for the just city. London/NY: Routledge, 2009.
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Aps a eleio de Luiz Incio Lula da Silva, em 2003, e a criao do Ministrio das
Cidades, que tambm era uma reivindicao da agenda dos movimentos sociais urbanos,
tem incio uma nova etapa de avano das demandas sociais.
Em 2004, o investimento em habitao e saneamento retomado aps praticamente 24
anos de uma trajetria errtica marcada pela ausncia do investimento e pela destruio dos
rgos pblicos que tinham competncia executiva sobre o assunto, com raras excees
a Companhia de Saneamento do Estado de So Paulo (Sabesp) a principal exceo.
Nesse mesmo ano (2004), foi criado o Conselho das Cidades, um organismo consultivo
que reunia lideranas sociais, sindicais, empresariais, acadmicas, profissionais, entre
outras. Foram aprovadas duas leis federais que compunham a agenda do movimento de
reforma urbana: a Lei Federal que instituiu o marco regulatrio do Saneamento Ambiental
(contrariando perspectiva de privatizao que estava em disputa h 13 anos) e a Lei Federal
que criou o Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social. Essa lei condicionou os
repasses de recursos federais existncia de Planos Habitacionais, Conselhos e Fundos
estaduais e municipais.
Aparentemente, essas e outras conquistas no deixavam dvidas de que o rumo
tomado havia sido vitorioso. At mesmo a criao do Ministrio das Cidades, que era uma
reivindicao do documento dos arquitetos de 1963 e que se realizou 40 anos depois,
poderia ser considerada uma grande vitria e um resgate da antiga luta.
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Uma poltica urbana para o Brasil: a sucesso de vitrias do movimentoUma significativa lista de vitrias do Movimento Nacional pela Reforma Urbana tem seguimento s
primeiras experincias nas prefeituras democrticas no incio dos anos 1980, passando pela crescente
expanso e organizao dos movimentos sociais urbanos.
Vamos relacionar, abaixo, quais foram as principais conquistas sociais ocorridas nesse perodo.
1987 Emenda Constitucional de Iniciativa Popular subscrita por seis entidades da
sociedade civil. Criao do Frum Nacional de Reforma Urbana formado por
entidades da sociedade civil.
1988 Promulgao da Constituio Federal com dois captulos voltados para o tema
urbano, pela primeira vez na histria do Pas.
1991 Apresentao de Projeto de Lei do Fundo Nacional de Habitao Popular como iniciativa
da sociedade civil, contendo assinatura de um milho de eleitores (aprovado na Cmara
Federal como Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social em 2005).
2001 Promulgao da Lei Federal Estatuto da Cidade, que regulamenta a Constituio
Federal de 1988 em especial a Funo Social da Propriedade.
2003 Criao do Ministrio das Cidades. Realizao da Conferncia Nacional das Cidades
resultado de um processo participativo que envolveu 3.400 municpios, todos os
Estados da Federao e contou com mais de 2.500 delegados eleitos para debater
a Poltica Nacional de Desenvolvimento Urbano (outras conferncias aconteceram
em 2005 e 2007).
2004 Criao do Conselho Nacional das Cidades como rgo consultivo do Ministrio das
Cidades. Criao do Programa Nacional de Regularizao Fundiria Urbana.
2005 Aprovao da Lei Federal que institui o marco regulatrio do Saneamento Ambiental
(contrariando perspectiva de privatizao que estava em disputa h 13 anos).
2005 Aprovao da Lei Federal do Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social que
implicou a criao de um fundo e conselho especfico com participao social, alm
de condicionar o repasse de recursos federais existncia de Planos Habitacionais,
Conselhos e Fundos estaduais e municipais. Nesse mesmo ano, foi lanada a
Campanha Nacional do Plano Diretor Participativo prevendo a elaborao do Plano
para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes
.20
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Em 2007, em sua segunda gesto, o governo Lula lana o Plano de Acelerao do Crescimento
(PAC) retomando investimentos nas reas de habitao e saneamento, abandonados h
praticamente 25 anos. O PAC constitui um plano keynesiano ou simplesmente um conjunto de
obras que pretende recuperar parte da infraestrutura voltada produo (portos, ferrovias, rodovias,
usinas geradoras de energia) e parte da infraestrutura social e de habitao. Pelo PAC esto
previstos os investimentos de R$ 106 bilhes em habitao18 e R$ 40 bilhes em saneamento
(gua e esgoto) entre 2007 e 2010. O programa de urbanizao de favelas prioritrio para o
investimento dos recursos oramentrios federais no contexto do PAC.
Em 2009, como resposta crise internacional iniciada em setembro de 2008, o Governo Federal
lanou o Programa Minha Casa, Minha Vida que pretende financiar a construo de um milho de
moradias tendo como protagonista o mercado privado. Mas, pela primeira vez na histria do Brasil,
est presente um montante de subsdios R$ 16 bilhes para financiar a moradia social.
Motivos para reflexo e novos desafios Apesar da euforia que acompanhou os movimentos sociais, apesar das gestes
democrtico-populares, apesar da nova poltica urbana e das importantes conquistas
legislativas as cidades pioraram, nesse perodo, de um modo geral, no Brasil. E no foi
apenas no Brasil que as cidades apresentaram um aumento da pobreza, do desemprego,
das favelas, dos moradores de rua, das crianas abandonadas e da violncia como j foi
destacado aqui. Fez parte desse quadro um aumento explosivo da dvida pblica cujos juros
drenaram grande parte dos recursos pblicos para o mercado financeiro19. A herana de 25
anos de neoliberalismo no ser superada facilmente. Se retornamos ao tema na concluso
desta apresentao para alertar para o rescaldo desses tempos que baniram os subsdios,
os direitos universais, a solidariedade, a fraternidade, os projetos coletivos, comunitrios e
sociais. Enfim, no reino absoluto da mercadoria, tudo deve ser pago e a preo de mercado.
18. Os recursos financeiros do PAC Habitao so oriundos do mercado privado
SBPE ou poupana privada (39%), de um fundo semipblico Fundo de
Garantia por Tempo de Servio (FGTS), espcie de fundo desemprego formado
por contribuio salarial (35%), contrapartida de Estados e Municpios (17%) e
oramento da Unio (9%) Fonte: www.brasil.gov.br/pac.
19. Entre numerosas obras ver TOUSSAINT, E. Bolsa ou a vida: a dvida externa
do terceiro mundo. So Paulo, Fundao Perseu Abramo, 2002.
21
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No apenas no Brasil que est em curso uma verdadeira febre participativa promovida por entidades
governamentais, ONGs, partidos polticos, movimentos sociais etc. Do Banco Mundial Via Campesina
a palavra de ordem participao. O governo Lula promoveu 40 Conferncias Nacionais organizadas a
partir dos municpios, passando pelos governos estaduais e entidades sociais at alcanar o nvel federal.
Os temas so abrangentes: Juventude, Igualdade Racial, Direito dos Idosos, Poltica Cultural, Direitos da
Mulher, Direito dos Portadores de Deficincia, Direitos da Criana e do Adolescente, Sade, Meio Ambiente,
Segurana Pblica, entre outras. Participaram dessas conferncias, a partir de 2003, dois milhes de
pessoas. As trs Conferncias Nacionais das Cidades (2003, 2005, 2007) tiveram a participao de mais
de 1.500 delegados eleitos em cada uma delas. No entanto, esse movimento participativo parece no ter
logrado transformar de modo significativo a qualidade da democracia e o quadro de excluso urbana20.
A implementao do Estatuto da Cidade tem deixado muito a desejar desde sua promulgao em 2001
(ver o captulo escrito por Edsio Fernandes nessa publicao). O padro injusto e insustentvel de ocupao
da terra urbana, que tem sido vigente durante sculos, ainda no mudou.
As foras contrrias implementao da funo social da propriedade, seja na sociedade civil, seja no
interior do poder judicirio, legislativo ou executivo tm usado diversos artifcios para protelar sua aplicao.
A Constituio Federal de 1988 exigiu uma lei complementar o Estatuto da Cidade que foi aprovada
apenas 13 anos depois. A Constituio e o prprio Estatuto exigiram ainda que a funo social da propriedade
e outros preceitos se subordinassem ao Plano Diretor municipal. A maior parte dos PDs municipais, por
sua vez, est remetendo os instrumentos que regulam a funo social da propriedade para lei municipal
complementar. Muitos municpios brasileiros ainda no tm aprovadas essas leis complementares e muitos
elaboraram PDs genricos, cheio de boas intenes, mas sem efetividade.
Por outro lado, muitos governos municipais e vereadores progressistas se apoiam na lei para transformar
a realidade em diversos pontos do pas. O Ministrio das Cidades mantm um programa de regularizao
fundiria, indito na instncia federal, que comea a apresentar os primeiros resultados e vencer as
resistncias conservadoras. Com toda a dificuldade de implementao o Estatuto da Cidade anuncia um
novo futuro. Ns podemos dizer que uma parte do caminho j foi percorrida. De fato, aprovar a lei apenas
uma parte do caminho. Resta continuar a tarefa de coloc-la em prtica. Essa tarefa no apenas do Estado,
dos governos e dos tcnicos. Ela tambm, e principalmente, uma tarefa da sociedade.
20. preciso reconhecer que h um esforo de distribuio de renda pelo governo federal desde 2003. O Bolsa- famlia, um
programa que pretende assegurar uma renda mnima aos 40% mais pobres da populao, atinge mais de 11 milhes de famlias
(2009). Ele se destina populao classificada como abaixo da linha de pobreza (com renda per capita entre R$60 e R$120) ou
extrema pobreza (at R$60 per capita ). O Programa tem condicionalidades: a obrigatoriedade da famlia manter as crianas e jovens
at 17 anos na escola, o calendrio de vacinas dia e o atendimento pr-natal a gestantes.
Entre 2002 e 2007 cerca de 20 milhes de pessoas deixaram as classes E e D e passaram a ser classificadas na classe C (critrios
IBGE). Saram da misria 9,7 milhes de brasileiros entre 2003 e 2007. O salrio-mnimo teve um aumento real de 32% nesse mesmo
perodo. O Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf) recebeu R$8,4 bilhes no ano agrcola de 2006/2007 e uma poltica de
crdito consignado abriu a perspectiva de setores de renda mdia baixa contrarem pequenos emprstimos (Governo Federal, 2008).
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Movimentos populares e o Estatuto da CidadeEvaniza Rodrigues e Benedito Roberto Barbosa
Com a retomada do processo democrtico, a partir da dcada de 1980, a presena dos
movimentos de moradia no cenrio das lutas sociais no Brasil tornou-se um dos fatores
fundamentais no enfrentamento da questo urbana, atuando no desenvolvimento de propostas e
de reivindicaes junto ao poder pblico, em aes diretas de ocupao de imveis, na resistncia
a despejos e reintegraes de posse, ou ainda como um dos agentes participantes nos novos
programas habitacionais.
Hoje, falar de programas ou polticas de habitao eficientes requer, necessariamente, apresentar
propostas nas quais a populao seja sujeito e tenha papel decisivo na sua definio e implantao.
Talvez seja esta a grande conquista desses movimentos, nascidos a partir da base e de necessidades
concretas, no bojo do ressurgimento dos movimentos populares no perodo final da Ditadura.
De fato, apesar da represso aos movimentos populares nos anos de chumbo da Ditadura, os
movimentos de moradores de loteamentos irregulares e o Movimento de Defesa dos Favelados
(este de carter nacional) j atuavam desde meados da dcada de 1970. Nessa poca, em que o
Brasil viveu um processo de expanso das periferias acompanhado por srios problemas urbanos,
apareceu uma infinidade de movimentos espontneos que, com apoio da Igreja Catlica, de
profissionais e entidades comprometidas ou de outros movimentos populares, se articularam no
bairro, na favela e em determinadas regies das cidades e lutaram por melhores condies de vida.
Grandes e numerosas ocupaes de terra nas periferias das metrpoles impulsionaram as
organizaes que, com o decorrer do tempo, estabeleceram uma articulao entre as reivindicaes
pontuais e especficas e as agendas mais amplas ligadas ao direito Cidade. Em nvel nacional,
a necessidade e o desejo de articular-se surgem medida que se aprofunda a crtica poltica
habitacional oficial do governo federal, marcada na poca pela excluso das famlias mais
pobres e pela dificuldade de acesso aos seus recursos.
Nesse sentido, a iniciativa das Caravanas a Braslia, a partir de 1988, levou esses
grupos a mostrar sua cara na capital do Pas e a reunir movimentos para aes conjuntas.
Em 1990, com o I Seminrio Nacional de Moradia Popular, realizado pelo Conselho
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em So Paulo, que contou com participao
de grupos de todas as regies, inicia-se uma articulao nacional e a mobilizao pelo
projeto de lei de iniciativa popular do Fundo Nacional de Moradia Popular.
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Tambm, a partir do final da dcada de 1980, houve a eleio de administraes municipais
democrticas e populares em vrios pontos do Pas. Este fator, somado s mudanas no
papel dos municpios que, depois da Nova Constituio de 1988, passaram a ter maior
importncia na conduo das polticas sociais e em especial, da habitao, trouxe para os
movimentos nova frente de luta: estes passaram a atuar em parceria com o poder local.
Essa mudana, longe de superar os conflitos, d uma nova lgica s lutas sociais. Esses
movimentos se somaram ao movimento da reforma urbana, que j havia se formado na
elaborao, mobilizao e presso pela Emenda Popular da Reforma Urbana no processo
constituinte. Alm disso, passaram a atuar nos programas de produo habitacional, ao
mesmo tempo em que mantiveram e aprofundaram a presso sobre as prefeituras.
De todo esse processo surgem, nos anos 1990, o Movimento Nacional de Luta por Moradia
(MNLM) e a Unio Nacional por Moradia Popular (UNMP), fortalecendo a pauta especfica
da moradia popular. Alm deles, a agenda do movimento comunitrio sistematizada
pela Confederao Nacional de Associaes de Moradores (Conam), fundada em janeiro
de 1982, que agregava, desde ento, grande heterogeneidade de entidades filiadas
muturios, associao de moradores em bairros perifricos e movimentos de sem-teto. Em
1993 fundada a Central dos Movimentos Populares (CMP) que buscava articular diferentes
movimentos populares urbanos. A partir de ento, passam a existir quatro movimentos
populares nacionais ligados luta por moradia: CMP, Conam, MNLM e UNMP.
Os quatro movimentos participam do Frum Nacional da Reforma Urbana, articulando
a luta pelo direito moradia e o direito cidade. Somam-se a estas entidades nacionais,
inmeros outros movimentos de carter local ou regional que atuam cotidianamente nas
lutas por moradia. As entidades nacionais possuem diversas bandeiras em comum, embora
apresentem formas de organizao e propostas diferenciadas. Foram elas que, de forma
conjunta, apresentaram o primeiro Projeto de Iniciativa Popular do Pas dispondo sobre
a criao do Fundo e Conselho Nacional de Habitao de Interesse Social, com mais de
um milho de assinaturas, aprovada em 2005 pelo Congresso Nacional e sancionada pelo
presidente Lula em 2006. Tal proposta teve tanto impacto que, hoje, diversos pases da
Amrica Latina possuem iniciativa de mesma natureza.
A partir de 2001, estabeleceu-se uma articulao mais estvel entre essas entidades, o
que tem garantido seu protagonismo nas principais agendas da reforma urbana no Pas. Essa
articulao tambm se manifesta nas Conferncias Nacionais das Cidades, realizadas a cada
dois anos a partir de 2003. Por meio da elaborao de uma estratgia e uma pauta conjunta,
as entidades nacionais de luta por moradia tm conseguido eleger os conselheiros que
representam o segmento dos movimentos populares no Conselho Nacional das Cidades.
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A luta pelo Estatuto da CidadeSe existe uma questo que trava o avano da reforma urbana no Brasil, esta questo a enorme concentrao da terra
urbana e a fora que a propriedade privada possui num modelo de cidade excludente e concentrador de riquezas e bens.
O Captulo da Poltica Urbana foi uma tentativa de estabelecer na Constituio de 1988, por meio dos artigos 182 e
183, alguns limites ao direito de propriedade.
No nosso entendimento, os conflitos advindos entre o direito absoluto de propriedade e a necessidade que esta
cumpra sua funo social nunca foram realmente resolvidos e esto em franco recrudescimento em nossas cidades.
Prova disso que os artigos 182 e 183 da Constituio s foram regulamentados em 2001, com o Estatuto da
Cidade, aps mais de 13 anos de lutas e mobilizaes do Frum Nacional da Reforma Urbana e mais um conjunto
enorme de organizaes em todo o Brasil.
A Luta pela implementao do EstatutoAps sua aprovao, intensificou-se o processo de apropriao e difuso do contedo do Estatuto
da Cidade pelos diversos movimentos populares, assim como pelos demais segmentos sociais.
Independente do nvel de conhecimento e tambm de compreenso da complexidade de seu contedo,
imediatamente o Estatuto da Cidade passa a ser visto como uma vitria da luta do movimento pela
reforma urbana, uma conquista resultado dos tantos anos de mobilizao e presso.
Mas a lei precisa ser efetivamente implementada e para isso, o Frum Nacional pela Reforma Urbana,
muitas universidades, ONGs e movimentos realizaram inmeros cursos de capacitao sobre o contedo
do Estatuto da Cidade. Nestes cursos, a lei no era divulgada de forma neutra, mas sim apresentada a
partir de uma viso especfica: a da reforma urbana, do direito cidade e da democratizao da terra e
da propriedade urbana. Esses cursos respondiam necessidade de capacitar e tornar os instrumentos
do Estatuto da Cidade comum populao, como elemento no de uma poltica dissociada da realidade
concreta, mas do dia a dia das comunidades, sobretudo como instrumento para a transformao social
que atua sobre o cotidiano.
Mais do que seus instrumentos, foram os trs princpios do Estatuto da Cidade cumprimento
da funo social da cidade e da propriedade; justa distribuio dos nus e benefcios do processo de
urbanizao; e a gesto democrtica da cidade que levaram a mensagem que mobiliza os movimentos
na defesa e na presso sobre o poder pblico municipal para sua implementao.
Outro ponto a se destacar que, a partir da aprovao, a implementao do Estatuto da Cidade passa
a ser uma bandeira constante nas mobilizaes dos movimentos nacionais e de suas bases locais. Seja
de forma mais ampla, seja utilizando-a na justificativa das reivindicaes pontuais, o Estatuto da Cidade
reivindicado e cobrado das autoridades pblicas em todos os nveis de governos.
A Carta pela implementao do Estatuto da Cidade, aprovada no Encontro Nacional pelo Direito
Cidade no Rio de Janeiro, em julho de 2002, com a participao de diversos movimentos populares e dos
demais segmentos sociais, constitui-se num documento de orientao dos diferentes atores sobre a Lei e,
ao mesmo tempo, num manifesto poltico que contm os princpios do movimento pela reforma urbana.25
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Elaborao e implementao dos Planos DiretoresA exigncia pelo Estatuto da Cidade de elaborao dos planos diretores municipais, bem como a
definio de um prazo para isso, deu incio a um grande processo de mobilizao tambm junto aos
movimentos populares. O conceito de plano diretor participativo passou a qualificar discusses e
presses sobre os Executivos municipais.
A primeira batalha a ser travada foi, na maioria das cidades, exatamente a questo da participao
da sociedade. Argumentos autoritrios ou tecnocrticos questionavam a capacidade de a populao
participar da elaborao dos planos. A tradio de planos diretores feitos por especialistas, em geral
por consultorias contratadas e sem nenhum dilogo com a cidade, ainda hoje, permeia as prticas de
planejamento. Tampouco havia um consenso ou uma norma para avaliar o que se podia ou no qualificar
de participativo. A edio da Resoluo 25 do Conselho das Cidades1, em maro de 2005, deu melhor
definio sobre o processo participativo, com orientaes para a sua efetivao.
No entanto, foram inmeros os casos de conflitos nos municpios sobre o tema da participao. Por
meio de presses, manifestos e tambm demandas ao Ministrio Pblico e ao Judicirio, os movimentos,
articulados com outros segmentos, exigiram participar no s das audincias pblicas, mas de todo o
processo de elaborao. Foram batalhas que levaram meses e algumas delas conseguiram interromper
ou alterar o processo, garantindo alguma reverso em favor da sociedade. Em diversas cidades, aes
civis e representaes no Ministrio Pblico, Defensorias Pblicas e mobilizaes do povo nas Cmaras
Municipais e Prefeituras questionaram a forma de elaborao de planos diretores e tambm o seu
contedo depois de aprovado.
Foi o caso de Salvador/BA, onde todo o processo foi conturbado e questionado pela sociedade, durante
e depois de sua aprovao. O Ministrio Pblico chegou a suspender a tramitao do plano, que depois
foi retomada. Outras capitais como Fortaleza/CE, Rio de Janeiro/RJ, Curitiba/PR, So Lus/MA, alm da
reviso do Plano Diretor Estratgico de So Paulo/SP tiveram seus planos questionados judicialmente
por no cumprirem com a exigncia de participao popular. Em So Paulo, uma Frente em Defesa do
Plano Diretor Estratgico tenta, de todas as formas, barrar a iniciativa do prefeito Gilberto Kassab (DEM)
e da Cmara Municipal de revisar o Plano em benefcio do capital imobilirio da cidade.
Conquistado algum canal de participao, tratava-se de ocup-lo, apresentando propostas de interesse
para os movimentos populares. Muitas vezes, a luta por conquistar espaos participativos foi mais difcil
do que a prpria luta pela aprovao de propostas concretas.
Outra disputa que se deu em muitos municpios foi relacionada linguagem utilizada nas discusses
dos Planos Diretores. Um processo de participao requer a utilizao de linguagem e mecanismos
que a favoream. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que lutavam para traduzir os planos para uma
linguagem mais acessvel, enfatizando os aspectos centrais, as lideranas populares esforavam-se para
se apropriar de conceitos mais tcnicos, sem, no entanto perder, a sua perspectiva poltica.
1. A Resoluo 25, de 18 de maro de 2005, emite orientaes e recomendaes
aos municpios sobre a coordenao compartilhada com a sociedade, a
realizao de audincias pblicas e de um calendrio de discusso.26
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Certamente um dos temas que mais mobilizou os movimentos na elaborao dos planos
diretores foi a conceituao e demarcao de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS).
Assistimos a esforos coletivos de listar, demarcar as reas. No caso das ZEIS j ocupadas por
favelas e outros tipos de assentamentos precrios, a preocupao era no deixar ningum
de fora, pois a demarcao da rea como ZEIS eleva a noo de segurana da posse, embora
no a garanta explicitamente. No caso da definio e demarcao das ZEIS em reas vazias,
a fim de destin-las para habitao popular, houve muito mais dificuldade. A primeira delas
na prpria definio de seus parmetros como faixa de renda a ser atendida, usos possveis,
tamanho do lote ou da moradia, entre outros. Depois, em relao demarcao dos lotes em
plantas. Muitas vezes o plano previu o instrumento, mas no demarcou reas para aplic-lo,
tornando-o incuo. Em outras situaes, o poder pblico subdimensionou a quantidade de
ZEIS necessrias e no demarcou aquelas de maiores conflitos com interesses econmicos.
Um bom exemplo que contraria essa regra foi no municpio de Taboo da Serra, no estado de
So Paulo, onde a quantidade de metros quadrados demarcados como ZEIS foi proporcional
magnitude do dficit habitacional da cidade, visando a atend-lo completamente.
Contrariando a lgica da expulso da populao mais pobre para as periferias das cidades,
alguns municpios demarcaram ZEIS em reas centrais, experincia esta conjugada luta dos
movimentos por moradia nos centros e a inmeros processos de ocupao de imveis vazios
ou abandonados, pblicos e particulares.
Mais um ponto de conflito se verificou quando da definio de grandes projetos urbanos,
ampliao de vias, operaes urbanas, projetos de revitalizao em reas onde se encontram
assentamentos populares ou prximos a eles. A lgica da excluso se demonstra a mais
perversa, onde o poder pblico permitiu a ocupao, com sua omisso ou conivncia,
enquanto no havia interesses do capital imobilirio e a rea era considerada degradada. Ao
melhorar o local, essa populao expulsa, de forma violenta, pelas aes de reintegrao
de posse, com medidas administrativas, ou de forma tcita, com o encarecimento dos
aluguis e do custo de vida. Em poucos, mas exemplares casos, conquistou-se a permanncia
da populao no local. Nesses casos, a mobilizao e a organizao da comunidade foram
fundamentais para que os instrumentos jurdicos fossem efetivamente aplicados.
Podemos constatar, ainda, a participao dos movimentos em temas que, primeira vista,
no interferem diretamente na luta especfica por moradia, mas cidade como um todo ou a
alguma parte da cidade em especial. o caso da luta contra a verticalizao da orla de
cidades litorneas, ponto de conflito entre a especulao imobiliria consorciada s grandes
construtoras e os movimentos sociais urbanos. Esses interesses voltam a se enfrentar em
toda a definio de zoneamento, potencial construtivo, gabarito, onde muitas vezes, os
movimentos populares tambm assumem como pauta a democratizao da cidade.
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Nesses e em inmeros outros casos, tem ocorrido a articulao dos movimentos populares com
entidades profissionais, ONGs de carter urbano, entidades ambientalistas, igrejas e entidades de
setores sociais de classe mdia para atuar conjuntamente nas discusses do plano diretor, formulando
propostas e conquistando o papel de interlocutores junto s prefeituras no processo de elaborao e
aprovao dos planos diretores.
J a relao com o legislativo municipal tem sido mais conflituosa. Permeados por interesses pontuais,
quase sempre o plano diretor que foi discutido e consensualizado com o Poder Executivo, acaba por
receber emendas que, se no alteram os conceitos bsicos do plano, introduzem alteraes localizadas
que descaracterizam sua implementao e geram inmeros conflitos no processo de aprovao.
Cabe destacar, ainda nesse tema, a criao, em setembro de 2004, pelo Ministrio das Cidades e
pelo Conselho Nacional das Cidades, por meio da Resoluo n 15, de uma Campanha Nacional de
Sensibilizao e Mobilizao visando elaborao e implementao dos planos diretores participativos,
com o objetivo de construir cidades includentes, democrticas e sustentveis, com os seguintes eixos:
Incluso territorial assegurar aos pobres o acesso terra urbanizada e bem localizada, garantindo, tambm, a posse segura e inequvoca da moradia das reas ocupadas por populao de baixa renda;
Gesto democrtica oferecer instrumentos que assegurem a participao efetiva de quem vive e constri a cidade nas decises e na implementao do Plano; e
Justia social distribuio mais justa dos custos e benefcios do desenvolvimento urbano.
A campanha, lanada em 2005, foi coordenada por instituies integrantes do Conselho das Cidades
e de ncleos estaduais. Os ncleos estaduais, tambm compostos pelos segmentos integrantes do
Conselho das Cidades, fizeram o trabalho de mobilizao, capacitao, acompanhamento, formao de
multiplicadores e divulgao. Uma das grandes preocupaes da Campanha foi estender a discusso do
Estatuto da Cidade aos municpios fora dos circuitos tradicionais de discusso das regies metropolitanas.
As entidades dos movimentos populares participaram intensamente da Campanha, na coordenao
nacional e nos ncleos estaduais, tendo sido protagonistas em diversos deles. Para os movimentos, o objetivo
tambm era o de romper a cultura que via os planos como algo tcnico e descolado das lutas cotidianas, alm
de reforar, junto aos executivos e legislativos municipais, a obrigatoriedade dos processos participativos.
Mais complexa, no entanto, tem sido a implementao desses mesmos planos. Longe de cumprir
com a meta de que o plano diretor seja um orientador do crescimento e dos investimentos na cidade,
muitos deles foram abandonados logo aps sua implementao. Em muitos casos, o plano exige a
regulamentao, por meio de lei especfica, dos instrumentos aprovados, o que demanda nova batalha no
legislativo. Em outros casos, mesmo com os instrumentos aprovados e prontos para ser implementados,
o Executivo municipal simplesmente no os utiliza. Mudanas de gesto tambm tm interferido na sua
aplicao, devido aos diferentes interesses que se alternam, assim como as presses por mudanas
pontuais, como ampliao da zona urbana, que muitas vezes desvirtuam os objetivos aprovados.
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A dificuldade de implementao dos planos acaba, muitas vezes, frustrando aqueles
movimentos que participaram da luta e pressionaram pela aprovao de propostas,
mas no conseguiram ver os resultados concretos dos instrumentos, levando a um
questionamento da sua eficcia e desanimando algumas lideranas.
Isso mostra que bastante importante a construo de mecanismos de
participao e acompanhamento da execuo dos planos. Os movimentos tm
lutado pela criao de conselhos municipais da cidade, mas enfrentam no s
resistncia na criao destes, como tambm a fragmentao e falta de marco jurdico
especfico. Alguns municpios criaram conselhos de habitao (exigncia da lei
11.124 de 20052), conselhos de poltica urbana, conselhos de transporte, conselhos
de meio ambiente etc., mas, em geral, estas instncias no se articulam entre si,
refletindo a ausncia de um olhar mais integral sobre a cidade. A fragmentao
das instncias de participao reflete a fragmentao das polticas e tambm dos
interesses envolvidos na construo das cidades.
Regularizao fundiriaOlhar um retrato de um bairro na periferia de uma das nossas
grandes cidades sem que haja a legenda com a indicao do local
pode nos remeter para qualquer outra cidade brasileira. A face amarga
da segregao de nossas periferias literalmente a mesma em
todas as metrpoles, e em todas as cidades, onde as casas com
tijolos sem reboco ou de madeira do um aspecto avermelhado, num
verdadeiro mosaico de casas e barracos que se apertam em beiras de
rios e encostas de morros ou se espraiam em enormes territrios.
Para esse povo restam as sobras das cidades. So territrios
abandonados pelo poder pblico, ou marcados por forte clientelismo,
em que os servios s chegam com muita presso social. No h
escolas, creches, transporte de qualidade, espaos de lazer etc.
Agep, cantor popular no Brasil, retratou esta dura realidade em sua
msica que diz: Moro onde no mora ningum, onde no passa
ningum, onde no vive ningum...
O Estatuto das Cidades com seus instrumentos de regularizao
fundiria e a Medida Provisria 2.220/2001, so marcos positivos na
luta contra esta dura realidade. Tais instrumentos por si