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591 ESTUDO SOBRE A OBESIDADE INFANTIL: um estudo de caso Juliana Nicolau Saconato Orientadora: Profa. Dnda. Maria Cherubina de Lima Alves A presente pesquisa tem como objetivo estudar a obesidade infantil dentro da visão sistêmica. Considerando o aumento acentuado da obesidade infantil na população brasileira e sua gravidade em relação à saúde pública, é relevante investigar como conscientizar as famílias das crianças obesas de que as mudanças precisam vir dos hábitos cotidianos, inclusive com alterações na rotina de toda a família. E, além disto, como a convivência com o grupo de amigos na escola pode influenciar na obesidade infantil? Este trabalho visa levantar e descrever as inter- relações entre o sistema “criança obesa” e os sistemas familiares, escolares e de grupo de amigos. 1 Obesidade infantil: Conceituação, Classificação e Diagnóstico Segundo Caetano, Carvalho e Galindo (2005), a obesidade é considerada uma síndrome multifatorial na qual a genética, o metabolismo e o ambiente interagem, assumindo diferentes quadros clínicos, nas diversas realidades sócio- econômicas. Atualmente, é considerada uma condição de elevada prevalência, que precisa da atenção do clínico, do pesquisador, assim como dos que trabalham tanto na área social como na área sanitária (CAETANO; CARVALHO; GALINDO, 2005). Considerada atualmente um dos problemas mais graves da saúde pública, a taxa de obesos cresceu acentuadamente nas últimas décadas, inclusive nos países desenvolvidos, podendo até ser vista na condição de uma epidemia global (RODRIGUES, SILVA, 2008). A ABESO aponta para a questão de que esta fórmula geral de cálculo do IMC não é totalmente válida para se analisar a obesidade em crianças porque ela varia muito com a idade. Por isso, foi desenvolvida e elaborada uma tabela específica no ano 2000, a partir de pesquisas da Força Tarefa Internacional para o Estudo da Obesidade da Organização Mundial de Saúde, que indica a variação dos intervalos de IMC para cada idade e para cada sexo, para as faixas etárias de 2 a 17 anos

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ESTUDO SOBRE A OBESIDADE INFANTIL: um estudo de caso

Juliana Nicolau Saconato

Orientadora: Profa. Dnda. Maria Cherubina de Lima Alves

A presente pesquisa tem como objetivo estudar a obesidade infantil dentro da

visão sistêmica. Considerando o aumento acentuado da obesidade infantil na

população brasileira e sua gravidade em relação à saúde pública, é relevante

investigar como conscientizar as famílias das crianças obesas de que as mudanças

precisam vir dos hábitos cotidianos, inclusive com alterações na rotina de toda a

família. E, além disto, como a convivência com o grupo de amigos na escola pode

influenciar na obesidade infantil? Este trabalho visa levantar e descrever as inter-

relações entre o sistema “criança obesa” e os sistemas familiares, escolares e de

grupo de amigos.

1 Obesidade infantil: Conceituação, Classificação e Diagnóstico

Segundo Caetano, Carvalho e Galindo (2005), a obesidade é considerada

uma síndrome multifatorial na qual a genética, o metabolismo e o ambiente

interagem, assumindo diferentes quadros clínicos, nas diversas realidades sócio-

econômicas. Atualmente, é considerada uma condição de elevada prevalência, que

precisa da atenção do clínico, do pesquisador, assim como dos que trabalham tanto

na área social como na área sanitária (CAETANO; CARVALHO; GALINDO, 2005). Considerada atualmente um dos problemas mais graves da saúde pública, a

taxa de obesos cresceu acentuadamente nas últimas décadas, inclusive nos países

desenvolvidos, podendo até ser vista na condição de uma epidemia global

(RODRIGUES, SILVA, 2008).

A ABESO aponta para a questão de que esta fórmula geral de cálculo do IMC

não é totalmente válida para se analisar a obesidade em crianças porque ela varia

muito com a idade. Por isso, foi desenvolvida e elaborada uma tabela específica no

ano 2000, a partir de pesquisas da Força Tarefa Internacional para o Estudo da

Obesidade da Organização Mundial de Saúde, que indica a variação dos intervalos

de IMC para cada idade e para cada sexo, para as faixas etárias de 2 a 17 anos

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(Tabela 1). Já entre os adultos, é utilizada a mesma tabela de IMC para todas as

idades.

Já a classificação da obesidade, segundo Viuniski (apud CARVALHO, 2004),

diz respeito à intensidade, à distribuição da gordura e à causa.

Quanto à intensidade, a obesidade pode ser graduada em sobrepeso,

obesidade leve, obesidade moderada e obesidade grave.

Quanto à distribuição da gordura, são identificados dois tipos, sendo um

deles a obesidade periférica, inferior, ginecóide ou em formato de pêra, a qual se

caracteriza pela concentração da gordura na parede do abdômen, coxas, nádegas e

tecido subcutâneo

E quanto à causa divide-se também em dois tipos, a obesidade exógena,

simples ou primária, que representa o tipo mais frequente de obesidade em crianças

(mais de 95% dos casos); e a obesidade endógena, secundária ou sindrômica que

envolve crianças com problemas endocrinológicos, genéticos (síndromes

dismórficas) e doenças neurológicas.

Tabela 1 Controle de peso em crianças e adolescentes Excesso de peso Obesidade

Idade

Meninos Meninas Meninos Meninas

2 18,4 18,0 20,1 20,1

2,5 18,1 17,8 19,8 19,5

3 17,9 17,6 19,6 19,4

3,5 17,7 17,4 19,4 19,2

4 17,6 17,3 19,3 19,1

4,5 17,5 17,2 19,3 19,1

5 17,4 17,1 19,3 19,2

5,5 17,5 17,2 19,5 19,3

6 17,6 17,3 19,8 19,7

6,5 17,7 17,5 20,2 20,1

7 17,9 17,8 20,6 20,5

7,5 18,2 18,0 21,1 21,0

8 18,4 18,3 21,6 21,6

8,5 18,8 18,7 22,2 22,2

9 19,1 19,1 22,8 22,8

9,5 19,5 19,5 23,4 23,5

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10 19,8 19,9 24,0 24,1

10,5 20,2 20,3 24,6 24,8

11 20,6 20,7 25,1 25,4

11,5 20,9 21,2 25,6 26,1

12 21,2 21,7 26,0 26,7

12,5 21,6 22,1 26,4 27,2

13 21,9 22,6 26,8 27,8

13,5 22,3 23,0 27,2 28.2

14 22,6 23,3 27,6 28,6

14,5 23,0 27,2 28,0 28,9

15 23,3 23,9 28,3 29,1

15,5 23,6 24,2 28,6 29,3

16 23,9 24,4 28,9 29,4

16,5 24,2 24,4 28,9 29,4

17 24,5 24,7 29,4 29,7

17,5 24,7 24,8 29,7 29,8

18 25 25 30 30

Fonte: Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica - ABESO

(2000)

Segundo Rodrigues e Silva (2008), o excesso de gordura corporal é

determinado pela herança cultural e pela herança genética, sendo que 25% das

causas de obesidade são atribuídos a fatores genéticos, 30% a fatores culturais e

45% a outros fatores ambientais não transmissíveis. As causas genéticas podem

explicar todos os fatores orgânicos que podem contribuir para uma alimentação

excessiva ou uma tendência elevada de acúmulo de gordura.

Para Rodrigues e Silva (2008) as causas ambientais da obesidade são:

inatividade física, sedentarismo, a alimentação rica em gordura e o estresse crônico.

As autoras consideram que a obesidade ainda pode ser causada por transtornos

endócrinos, porém em menor porcentagem.

Segundo Woiski (1995) pode-se identificar fatores no desenvolvimento da

obesidade que condicionam sua instalação e progressão, são eles: fatores

genéticos, ambientais, psicológicos e metabólicos. Nos fatores genéticos e

ambientais os dois fatores interferem de maneira diferente em relação à obesidade.

Os fatores genéticos estão ligados aos genes, à hereditariedade e à variação dos

organismos. Já os fatores ambientais estão relacionados com o ambiente em que a

criança está envolvida, ou seja, são os fatores externos a ela.

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Em suma, a influência ambiental é importante, podendo evitar a obesidade

em indivíduos que apresentam constituição genética para a mesma. Já os fatores

psicogênicos são fatores que têm como origem uma causa emocional. Há alterações

metabólicas descritas em pacientes obesos que também devem ser levadas em

consideração, tais como: diminuição da tolerância à glicose, níveis de insulina mais

altos no jejum e a mobilização uma grande quantidade de ácidos graxos dos

depósitos durante o jejum, aumentando os níveis plasmáticos.

Para Woisk (1995), a obesidade é caracterizada por um aumento do tecido

adiposo de reserva, aumentando o peso corporal, sendo que para o diagnóstico da

obesidade é necessário que o aumento do tecido adiposo seja evidente. O peso

corporal é uma medida importante, mas dever ser analisado sempre juntamente com

a estatura, a idade, e peso. Ele divide a obesidade como obesidade primária que é

ocasionada por uma alimentação exagerada e errônea (excesso de ingestão de

alimentos ricos em carboidratos) e obesidade secundária gerada por uma patologia

específica, esta última, por sua vez, é divida em endócrina e não endócrina. Este

último tipo de obesidade é mais raro.

Vimos que todas estas divisões da obesidade em variáveis relativas à sua

intensidade, à distribuição da gordura, entre outras, são formas de facilitar a

compreensão e a diferenciação clínica dos quadros de obesidade, porém se utilizam

da fragmentação do fenômeno global. Para uma compreensão sistêmica da

obesidade e, melhor dizendo, das pessoas obesas, é necessário que todas as

partes sejam vistas conjuntamente, sejam elas ambientais, físicas, sociais ou

psicológicas.

O estudo da obesidade infantil ocupa um grau de importância, na medida em

que há a possibilidade da sua manutenção na fase adulta, época em que o risco é

maior, podendo levar até a mortalidade, quando associada com outras doenças:

hipertensão, alterações metabólicas, dentre outras. Aproximadamente, 30% das

crianças obesas podem se tornar adultos obesos e terão de lidar com regimes até o

resto de suas vidas (FISBERG apud CARVALHO, 2004).

É importante que se possa entender as relações sistêmicas que a criança

obesa faz parte: familiar, escolar, unidade básica de saúde, bairro, cidade; bem

como deve-se investigar a interferência de aspectos como: seus hábitos alimentares,

sua freqüência de atividades físicas, dentre outros. Segundo Aun, Vasconcellos e

Coelho (2006), o pensamento sistêmico é uma nova forma de abordagem que

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compreende o desenvolvimento humano sobre a perspectiva da complexidade, para

percebê-lo, a abordagem sistêmica lança seu olhar não somente para o indivíduo

isoladamente, mas considera também seu contexto e as relações aí estabelecidas,

levando em consideração os traços culturais, as tradições e os costumes, que estão

sempre interligados e afetam diretamente as pessoas envolvidas.

2 Aspectos psicológicos que envolvem a criança obesa

As características mais frequentes em indivíduos obesos, segundo Campos

(1995), são: sedentarismo, relacionamento intrafamiliar complicado, excesso de

ingestão alimentar, desmame precoce, introdução precoce de alimentos sólidos,

substituições de refeições saudáveis por alimentos de alto teor calórico e

dificuldades nas relações interpessoais. Segundo a autora, o ato de comer, para os

obesos, é como um tranqüilizador, ou seja, é uma forma de lidar com a ansiedade, a

angústia e com a frustração.

Além dessas características, há também alguns transtornos psicológicos tais

como a depressão, a ansiedade e dificuldade nas relações sociais (LUIZ et al., 2005) que podem ser observados em uma parcela significativa da população de obesos.

Entre os transtornos psicológicos estudados na infância e na adolescência, a

depressão é a que tem maior destaque. Mas, durante muito tempo, acreditou-se que

as crianças raramente apresentavam depressão. Atualmente, existem evidências

derivadas de estudos de que transtornos depressivos também surgem durante a

infância e não apenas na adolescência ou na vida adulta (KOVACS et al. apud LUIZ

et al., 2005). Segundo estes autores, sentimentos de tristeza, agressividade e

irritabilidade, dependendo da frequência ou intensidade que se manifestam, podem

ser indícios de um quadro depressivo em crianças. A depressão na infância

prejudica tanto o rendimento escolar, quanto seu relacionamento social e familiar, já

que crianças deprimidas têm autoestima baixa e falam de si mesmas de forma

negativa, se achando ruins, culpadas, fracassadas e muitas vezes sentindo que

ninguém se preocupa com elas. O diagnóstico de um transtorno psicológico precoce

pode mudar o futuro da criança, evitando prejuízos de desenvolvimento e

favorecendo a elaboração de vivências relacionadas aos transtornos afetivos.

Como a depressão pode ser também sintoma de patologias orgânicas, como

os distúrbios endocrinológicos e neurológicos, crianças obesas podem apresentar

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depressão gerada pelo excesso de peso. Além disso, quanto mais problemas de

comportamento a criança apresentar maior será a probabilidade de desenvolver um

quadro depressivo (ROSE apud LUIZ et al., 2005).

Outro fator emocional presente nos quadros de obesidade é a ansiedade.

[...] A ansiedade é um estado emocional com componentes psicológicos, que faz parte do desenvolvimento do ser humano, podendo tornar-se patológica quando acontece de forma exagerada e sem uma situação real ameaçadora que a desencadeia (ANDRADE, GORENSTEIN apud LUIZ et al., 2005, p.37).

Existem duas dimensões distintas para a ansiedade se apresentar. A primeira

é o estado de ansiedade, que pode ser chamado de estado emocional transitório,

ela é caracterizada por sentimentos desagradáveis de tensão e apreensão,

conscientemente percebidos. A segunda dimensão é o traço de ansiedade, que se

refere a diferenças individuais relativamente estáveis de acordo com a maneira do

indivíduo reagir em diferentes situações que lhe cause algum tipo de ameaça

(CAETANO, CARVALHO, GALINDO, 2005).

Vários estudos de obesidade em crianças mostram uma relação entre

obesidade e ansiedade, destacando a ansiedade como um sintoma frequente entre

as crianças obesas. A ansiedade é um dos quadros psiquiátricos mais comuns, tanto

em crianças como em adultos obesos (CAETANO, CARVALHO, GALINDO, 2005).

Além da depressão e da ansiedade, para as crianças obesas é freqüente a

vivência de dificuldades nas relações sociais. Problemas psicológicos, sociais e

comportamentais podem ocorrer em crianças obesas uma vez que é comum

constatar que elas sofrem discriminação e estigmatização social, prejudicando sua

autoestima. As crianças obesas são frequentemente importunadas pelos colegas e

menos aceitas do que as crianças com peso normal. Além disso, ao longo da vida, o

excesso de peso traz outras dificuldades, como menor índice de empregos, timidez

e problemas de relacionamento afetivo. Devido a tais dificuldades, muitas vezes os

indivíduos obesos sofrem ou impõem-se restrições diante de atividades rotineiras

como ir à escola, fazer determinados exercícios físicos, procurar emprego, comprar

roupas, namorar e divertir-se no geral (DAMIANI, CARVALHO, OLIVEIRA, 2002;

DAMIANI apud LUIZ et al., 2005).

Esses atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, com o

objetivo de intimidar ou agredir o outro são chamados de bullying. Essa prática é

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observada em várias culturas e acontece principalmente com crianças e

adolescentes durante o período escolar (LOPES NETO, FIGUEIRA, SAAVEDRA,

2002).

Geralmente, os autores do bullying são indivíduos que tem pouca empatia.

Eles pertencem a famílias desestruturadas, nas quais há pouco relacionamento

afetivo entre seus membros. Os pais não têm muito contato com eles, e talvez para

suprir essa distância com os filhos, toleram e oferecem como modelo para

solucionar conflitos e o comportamento agressivo. A probabilidade desses autores

do bullying se tornarem adultos com comportamentos anti-sociais e/ou violentos é

grande, podendo, inclusive, vir a ter atitudes delinquentes ou criminosas (LOPES

NETO, FIGUEIRA, SAAVEDRA, 2002).

Além desses fatores, há ainda o modelo de beleza constantemente divulgado

pela mídia, que é o indivíduo magro, ou seja, sinônimo de beleza na nossa

sociedade é sinônimo de um corpo escultural, sendo o obeso alvo de discriminações

por parte dos seus colegas, sendo frequente a presença de autoestima baixa.

Em um trabalho desenvolvido entre crianças pequenas, no qual eram

mostradas fotos de crianças obesas, demonstrou-se um conceito claro de

reprovação, sendo os pequenos obesos constantemente chamados de estúpidos,

glutões e preguiçosos (RESEGUE, JEAN, 2000).

Segundo Resegue e Jean (2000), em nossa cultura, alimentar ou

superalimentar é sinônimo de amar, por isso, é necessário analisar a história

alimentar em que a criança está inserida, bem como qual a importância social do ato

de comer para ela e para seus familiares, já que, para muitas famílias, o único elo de

interesse comum está no alimento, o qual é percebido como única fonte de prazer e

de demonstração de afeto.

Para que a família esteja presente e possa ajudar a criança obesa, é

necessário o apoio e mudança do estilo de vida de todos, sendo fundamental sua

participação durante todo o processo. O núcleo familiar é muito importante durante o

tratamento, pois se a família não estiver junto da criança, provavelmente ela não se

cuidará sozinha (RESEGUE, JEAN, 2000).

No tratamento dessas crianças, é necessário motivação, orientação dietética,

atividade física, apoio familiar e apoio psicossocial. São fundamentais orientações

que visem à mudança de comportamento da família e da criança em relação ao

alimento. A família pode incentivar no sentido de atentar a criança ao alimento

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ingerido, degustação lenta e prazerosa, preferência por alimentos com alto grau de

saciedade e baixo valor calórico, como saladas, legumes, servidos de forma

harmoniosa e não como castigo (RESEGUE, JEAN, 2000).

3 Pensamento sistêmico

Segundo Aun, Vasconcellos e Coelho (2006), o pensamento sistêmico é uma

nova forma de abordagem que compreende o desenvolvimento humano sobre a

perspectiva da complexidade. Para perceber este tipo de pensamento, a abordagem

sistêmica lança seu olhar não somente para o indivíduo isoladamente, mas

considera também seu contexto e as relações aí estabelecidas, levando em

consideração os traços culturais, as tradições e os costumes, que estão sempre

interligados e afetam diretamente as pessoas envolvidas.

Segundo Capra (1996), a ciência sistêmica mostra que os sistemas vivos não

podem ser compreendidos apenas por meio da análise, mas deve ser entendidos

dentro de todo o contexto em que se encontram. Sendo assim, o pensamento

sistêmico é um pensamento contextual, que explica as coisas considerando o seu

contexto, considerando o seu meio ambiente, podendo até mesmo dizer que todo

pensamento sistêmico é um pensamento ambientalista.

[...] Os critérios do pensamento sistêmico são todos inter-dependentes. A natureza é vista como uma teia interconexa de relações, na qual a identificação de padrões específicos como sendo “objetivos” depende do observador humano e do processo de conhecimento. Essa teia de relações é descrita por intermédio de uma rede correspondente de conceitos e de modelos, todos igualmente importantes (CAPRA, 1996, p 49).

Relacionando-se agora o sistema com as relações familiares, pode se afirmar

que um sistema que se constitui em torno do que está sendo trazido como um

problema pode ser constituído por todos aqueles que estão envolvidos com aquele

problema. A família envolve a todos, incluindo as mudanças e a dificuldades que

estas nos trazem (AUN, VASCONCELLOS, COELHO, 2006).

Segundo Aun, Vasconcellos e Coelho (2006), para ver as relações, não se

pode apenas olhar os elementos do sistema separadamente. Além de ver a família

como um conjunto, é necessário também colocar foco nas relações dessa família, no

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padrão de interações que se repete naquele sistema, e nas relações entre essas

relações.

No funcionamento da família de uma criança obesa, por exemplo, pode-se

perceber que um comportamento afeta e é afetado pelo outro, portanto o sintoma

que a criança apresenta é resultante do material patogênico da família, se esta não

funciona de forma saudável (AUN, VASCONCELLOS, COELHO, 2006).

Para analisar sistemicamente a obesidade, então, é necessário entendermos

o ambiente em que a criança vive, suas relações e reações. Pensar sistemicamente

é ampliar o foco da observação que nos levará a entender não a um sistema

predeterminado, mas um sistema que se constitui em torno do que está sendo

trazido como um problema, um sistema constituído por todos aqueles que estão

envolvidos com aquele problema, no caso, a obesidade (AUN, VASCONCELLOS,

COELHO, 2006).

Segundo Halpern (2001), é necessário levar em consideração também, se a

obesidade é ou não familiar, se os hábitos de vida dessa criança estão sedentários

demais, se a criança está comendo muito, e por qual motivo ou problema, como e o

que estão oferecendo para esta criança se alimentar. Todos estes fatores estão

interligados, além dos fatores intrapsíquicos e interpsíquicos que se relacionam

entre si.

Durante o tratamento da criança obesa, não basta apenas acompanhamentos

nutricionais ou endocrinológicos, é necessário também, um acompanhamento

psicológico que ajude psiquicamente a criança, analisando e entendendo todas as

suas relações e reações, só assim o psicólogo poderá então, ter dados suficientes e

começar a intervenção e o consequente resultado satisfatório. Para dar subsídios

para o trabalho psicológico de qualidade, são necessárias pesquisas como esta,

capazes de levantar informações estratégicas sobre o sistema criança obesa-

família-ambiente.

4 Metodologia A pesquisa foi baseada em um estudo de caso, utilizando-se da pesquisa

qualitativa. Segundo Martins e Bicudo (2005), os métodos qualitativos se

assemelham a procedimentos de interpretação dos fenômenos, mais indicados em

trabalhos que envolvam qualquer tipo de estudo de caso.

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4.1 Sujeito

O sujeito desta pesquisa é uma menina de seis anos que está na primeira

série do ensino fundamental, que procurou a Clínica de Psicologia do Uni-FACEF ao

saber da presente pesquisa, interessando-se em participar. Como foi obtido o

consentimento da mãe, ela foi incluída na pesquisa. Ela mora com o pai, a mãe e os

dois irmãos mais novos, uma de quatro anos de idade e outro de dois anos, e

deverá ser citada no trabalho como “M”, para preservação da sua identidade.

O sujeito apresenta um nível sócioeconômico de classe média alta e já foi

diagnosticado por especialistas (nutricionista e fisioterapeuta) do hospital Regional

de Franca, como tendo obesidade moderada, no ano de 2008. A mãe de M.

informou que a filha, no momento em que iniciou a pesquisa, pesava 43 quilos e

media 1,30 metros. Assim, pode-se calcular o IMC de M., chegando-se ao valor de

25,44 IMC, que indica que M. está acima do índice indicativo de obesidade para

crianças e adolescentes. Também foram entrevistados sua mãe, sua professora de

sala de aula e seu professor de educação física.

4.2 Instrumentos

Foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas com a mãe do sujeito, a

professora de sala de aula e o professor de educação física. Essas perguntas

foram formuladas no sentido de investigar a predisposição genética da família para

obesidade, os hábitos da família em realizar exercícios físicos, a alimentação da

família e da criança, as atividades de lazer da criança, o relacionamento da criança

com os amigos/professores/funcionários da escola, aspectos emocionais da

criança, o desempenho acadêmico da criança, o comportamento da criança na

escola, a alimentação da criança na escola, o desempenho da criança nas aulas

de educação física, a freqüência das aulas de educação física e as atividades ficas

que a criança gosta e as que ela não gosta de fazer.

Com a criança foi aplicada a técnica de investigação clínica da personalidade

de Walter Trinca (1997), sendo esta composta pelo procedimento dos desenhos-

estórias e pelo procedimento de desenhos de família com estórias. O primeiro

procedimento (desenhos-estórias ou D-E) foi realizado na Clínica e teve uma hora e

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quinze minutos de duração. O segundo procedimento (desenhos de família ou DF-

E), também aplicado na Clínica, ocorreu com um intervalo de uma semana depois

do primeiro procedimento, e com a duração de uma hora. Este instrumento viabiliza

a observação de aspectos projetivos da personalidade, obtidos na seqüência de

cinco desenhos livres (D-E) e quatro desenhos livres sobre a família (DF-E), com a

estimulação atemática de estórias contadas depois de cada um destes desenhos

(TRINCA, 1997).

Ainda foram feitas observações sistemáticas na casa do sujeito, a fim de

observar o tempo total utilizado para a refeição, incluindo o antes e o depois. (em

torno de 10 minutos), tendo sido observado itens da vida da criança tais como: o que

come, onde come, quem serve o prato, diferenças e semelhanças da prática

alimentar da criança e da família, emoções presentes no momento da refeição.

4.3 Procedimento de coleta

Foi realizado o contato por telefone com os pais da criança que procurou a

Clínica de Psicologia do Uni-FACEF para participar da pesquisa, explicando os

objetivos e os procedimentos da pesquisa e solicitado a autorização para

participação da pesquisa. Com a autorização, foi marcada a primeira entrevista com

a mãe da criança nas dependências da Clínica de Psicologia, com a assinatura do

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado pelo Comitê de Ética

em Pesquisa. A entrevista teve duração de uma hora e meia, foi gravada com fica

cassete e posteriormente transcrita.

Em seguida, foi realizado o primeiro contato com o sujeito para a aplicação da

Técnica de Investigação da Personalidade de Trinca (1997), quando também foi

colhida a assinatura de M. no TCLE. Além deste, teve outro encontro na clínica para

finalizar a aplicação de todo teste, além das duas observações na casa da criança,

sendo uma durante o almoço da criança e outra durante o jantar.

Por fim, foi realizado o contato por telefone com a diretora da escola,

solicitada a autorização da entrevista com os professores, que foram autorizadas e

marcadas por ela, tendo sido realizadas nas dependências da escola tendo duração

de quarenta minutos, sendo vinte minutos com cada professor.

4.4 Análise de dados

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Inicialmente foi realizada a análise dos procedimentos do D-E e do DF-E

conforme as especificações de Trinca (1997), sendo que, em seguida foram feitos

levantamentos das principais temáticas tratadas nas entrevistas com a mãe e com

os professores, bem como nas observações realizadas. Depois foram feitas as inter-

relações entre as informações de cada instrumento, identificando características

relativas aos aspectos intrapsíquicos, interpsíquicos, sociais e ambientais.

5 Apresentação e discussão dos resultados

Este capítulo foi elaborado com base nas categorias temáticas encontradas

na coleta de dados. Estas categorias foram subdividas de acordo com a

necessidade de a pesquisadora ressaltar o que mais se destacou com o sujeito da

pesquisa. Elas se dividem em: dimensão familiar, dimensão escolar, relação com a

comida, autoestima e fantasia.

5.1 Dimensão familiar

Os desenhos mostraram claramente a ausência do pai, já que em nenhum

desenho ou estória de M. ele apareceu. Parece haver uma relação conflituosa entre

o pai e o restante da família que se confirma nos desenhos e na ausência do pai

durante as visitas feitas pela observadora à casa de M.

Quando aparecia alguma figura masculina nos desenhos, essa figura tinha

um significado negativo para M., como o Mago (Figura 1) que queria roubar a rosa

mágica pra tornar-se poderoso e fazer maldades, o gavião como animal agressivo

que comia as borboletas ou ainda homens malvados que roubavam, punham fogo e

poluíam a natureza. A ausência do pai parece indicar que M. tem a tendência de

generalizar a atribuição do significado negativo a todas as figuras masculinas, pois

elas são sempre vistas nos desenhos como ameaçadoras ou inexistentes.

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Figura 1 - Um mundo mágico e o bruxo

No Desenho-Estória com Família, M. desenha uma festa em sua casa onde

estão presentes apenas uma mãe, uma criança, uma cachorra e um balão em forma

de cachorro (Figura 2). Quando é questionada sobre pai do desenho, M. afirma ter

“ficado com preguiça de desenhá-lo”. Mas vale ressaltar que nesse mesmo desenho,

M. foi muito minuciosa em suas figuras, sendo assim, parece que não houve

preguiça de desenhar o pai, mas ela simplesmente não quis que ele estivesse

presente no desenho. Podemos entender que M. não tem vontade de ter o pai perto,

bem como não se encontra disponível para aproximar-se dele.

Figura 2 - O aniversário da cachorra

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Através dos desenhos e das entrevistas, foi possível afirmar que há um foco

excessivo de M. na mãe. A presença da figura materna é vista na maioria desses

desenhos, e eles sempre aparecem de forma positiva. Sendo assim, fica claro a

formação de um vínculo afetivo resumido apenas à mãe, já que nem seu pai e

nenhum de seus irmãos são citados ou desenhados.

Além disso, a mãe parece ser a única da família, além de M., que exige e se

preocupa com uma boa alimentação da filha. Ela afirma estar sempre de vigília,

controlando tudo que M. come ou quer comer. Porém, durante as entrevistas na

escola, a professora relatou que M. sempre leva lanches gordurosos, como por

exemplo, pão com hambúrguer ou bolo. Fica clara, então, uma divergência entre os

relatos da mãe e da professora, pois a primeira se diz preocupada e controladora,

mas libera alimentos com alto teor calórico todos os dias no lanche de M.

O pai de M. é obeso, a mãe afirma estar entrando num nível de obesidade,

mas os irmãos dela são magros, e vêm ganhando cerca de um quilo ao ano, o que é

considerado saudável pelo pediatra da família. M. convive e come as mesmas

coisas que seus dois irmãos mais novos, porém apenas ela está acima do peso.

5.2 Dimensão escolar (socialização)

Nas entrevistas com os professores, foi possível identificar M. como uma

criança muito competitiva e dominadora.

Segundo os professores, ela gosta muito de ter controle da situação e de

seus colegas, sobressaindo e ficando sempre em evidência nos grupos. Além disso,

eles afirmaram que ela é uma excelente aluna, é dócil e maleável, mas que quando

contrariada pede muito pela mãe, não sabendo lidar sozinha com sua frustração.

Quando é perguntado para a professora de sala de aula em que tipos de situações

M. se frustra, ela responde: “em todos os momentos, assim do mais banal até o mais

grave. Por exemplo, nós fizemos uma atividade de leitura lá no pátio, e depois

fizemos umas brincadeira com a bola, ela não deitou do lado da melhor amiga dela,

aí ela já queria que ligasse pra mãe, queria ir embora”.

A relação dela com os amigos é relativamente boa, principalmente quando as

coisas saem do seu jeito. Os professores relataram que ela é uma aluna muito

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participativa em todas as atividades propostas, tanto em sala de aula quanto nas

aulas de Educação Física.

Durante as aulas de Educação Física, o professor de M. relata que tudo tem

que ser do jeito dela e no momento que ela quiser, pois quando as coisas fogem de

seu controle e é contrariada, M. se frustra e/ou deixa de realizar as tarefas propostas

e fica em um canto “emburrada” ou chora pedindo novamente à mãe.

Então ela evita os exercícios que a envolvam em competições, pois parece

acreditar que nestes casos ela terá de se deparar com o fracasso e a consequente

frustração. Pôde-se supor então que, dependendo da atividade física, M.

desenvolve-se muito bem, mas que suas questões sócio-emocionais não são tão

desenvolvidas assim em função da sua dificuldade de aceitar limites.

Ela participa de várias atividades extras propostas pela escola, como teatro,

xadrez, coral e dança, o que indica que ela é uma criança bem ativa e interessada

em se envolver em várias atividades distintas, sendo elas corporais e intelectuais.

Foi relatado pela professora de sala de aula que, durante o recreio, M. come

seu lanche e fica pedindo o lanche das outras crianças, essas por sua vez, dão o

lanche a ela. Além disso, seu lanche é sempre um pão, bolo ou pão de hambúrguer,

e nunca uma fruta, apesar de M. relatar que gosta de fruta.

A professora afirma também que M. é uma criança muito madura para idade

dela, e que ela escolhe bem com quem ela quer se relacionar. Ela tem facilidade em

se inserir em diversos grupos e de ser aceita entre eles, o que quer dizer que M. tem

habilidades sociais. Todos possuem essas habilidades, em uns elas são mais

afloradas e em outros menos, porém em M. essas habilidades foram bem citadas

através das entrevistas, o que mostrou que em M. elas são bem mais desenvolvidas,

diferenciando-a das outras crianças de sua idade.

5.3 Relação com a comida

Durante as entrevistas e observações na casa de M. foi possível constatar

que o único momento em que a família está toda reunida é nos finais de semana,

em que eles saem para almoçar ou jantar fora. A mãe de M. relata que todo final de

semana eles saem pra almoçar no shopping ou jantar em restaurantes de rodízio de

carne. Essa programação envolve toda a família inclusive as avós (materna e

paterna).

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São apenas nessas ocasiões que o pai está presente, junto aos filhos.

Durante a entrevista, a mãe relatou que nem sempre o pai estava presente no

almoço, e que no jantar era ocasional: às vezes ele jantava em casa, às vezes ele

jantava na casa da mãe dele (vizinha da casa deles). Durante as observações na

casa de M., o pai não estava nem durante o almoço nem durante o jantar. Podemos

inferir, então, que o único momento em que estão todos juntos, mesmo que só nos

finais de semana, é na hora da alimentação, que é quando M. pode sentar-se à

mesa e conversar com o pai.

5.4 Autoestima

M. gosta muito de estar bonita, gosta de maquiagens, de se enfeitar, gosta de

tirar fotos e sempre chama atenção da mãe ou da professora dizendo: “Olha como

eu sou linda”. Ela tem uma preocupação muito grande com a imagem que os outros irão

fazer dela, tem a necessidade de sentir-se bonita igual a uma princesa, ou seja, ela

tem necessidade de ser aceita, que fica claro através de seus desenhos que, em

quase todos, aparecem coisas minuciosamente delicadas, como: rosas, princesas,

vestidos, laços de cabelo, borboletas. Na Figura 3, M. desenha um castelo e uma

princesa no desenho que deveria registrar “Uma família que gostaria de ter”. Quando

questionada, diz que este castelo tem várias empregadas e uma rainha, mas não

tem nenhum rei ou príncipes. Assim, M. parece idealizar que o status de ser

princesa e morar em um castelo com uma rainha, supriria sua necessidade de ser

valorizada, atendendo os requisitos necessários para isto. Ou seja, ter dinheiro e

beleza parece ser suficiente para M. ser feliz.

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Figura 3 - O castelo encantado

Dentre os desenhos de M., está o desenho que ela chamou de “Mundo da

reciclagem”. Reciclagem significa transformar o lixo em alguma coisa boa, alguma

coisa útil. A Figura 4 ilustra um rio poluído com lixo, representados pelos seguintes

elementos: uma maçã comida, uma garrafa, um papel, um pneu e um saquinho. Chevalier e Gheerbrant (1998) apontam que a água representa o inconsciente,

incontrolável e que tudo absorve, assim, M. pode estar indicando que “retém”, em

seu mundo interior, muito “lixo”, muitas questões mal-resolvidas e que parecem

agredi-la e consumir muito de seu “espaço interno”. Porém, como M. nomeia o

desenho de “O mundo da reciclagem”, pode-se supor que ela tem vontade de rever

estes conteúdos, resignificando-os e assumindo-os como parte dela, e, assim,

podendo “limpar” seu “mundo interior”

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Figura 4 - O mundo da reciclagem

5.5 Fantasia

Através dos desenhos, foi possível observar que M. vive num mundo de

fantasia, desejando “viver no mundo da magia”. Na maioria de seus desenhos

apareceram borboletas (Figura 5), rosas, princesas e rainhas, magos e castelos, o

que é muito comum, segundo Mira Y Lopez (1945), entre crianças de 6 a 10 anos.

Nesta idade é natural que a criança utilize muito da fantasia imaginativa e de

crenças mágicas, tanto em seus relatos (histórias), quanto em seus desenhos.

Segundo o autor, nesta idade é comum aparecer na maioria das histórias, aventuras

“surpreendentes” e “misteriosas”, e neste “mundo mágico” em que elas vivem, tudo é

possível e factível.

Figura 5 - O canto das borboletas

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E por fim, os castelos, rainhas e princesas, que também se destacaram muito

em seus desenhos, mostraram como M. gostaria de viver num conto de fadas. O

castelo, que segundo Chevalier e Gheerbrant (1998) simboliza a soma e satisfação

dos desejos positivos, aparece em seus desenhos apontando para o fato de que M.

tem desejos positivos de querer viver num castelo onde tudo é belo e perfeito,

inclusive a família perfeita que mora dentro dele. Essa é a família que M. queria ter.

É válido ressaltar que, quando é pedido à M. que desenhasse “A sua família” (Figura

6), ela desenha apenas ela, seus dois cachorros, seu gato e sua calopsita, além do

vaso com duas rosas, uma fechada e outra aberta. Quando é perguntado por que no

desenho estão apenas ela e seus bichinhos, ela responde: “Porque os meus

bichinhos não brigam”.

Figura 6 - Os bichos

É válido ressaltar que essas categorias só foram apresentadas de formas

separadas a fim de explicar detalhadamente aspectos que mais chamaram a

atenção da pesquisadora, e não para fragmentar o indivíduo, lembrando que a

pesquisa foi elaborada com base no pensamento sistêmico.

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo realizar um estudo de caso investigando e

relacionando aspectos intrapsíquicos, interpsíquicos, sociais e ambientais que

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envolvem a criança obesa, entendendo as relações sistêmicas em que a criança

obesa está envolvida. Desta forma, pode-se estudar como os diferentes sistemas

em que a criança está inserida interferem em sua organização psíquica e em suas

formas de comportamento, analisando as consequências da obesidade da criança

que são advindas do meio em que ela vive das relações que estabelece com este

meio, de seus hábitos e de sua predisposição genética.

A pesquisa foi baseada em um estudo de caso, utilizando-se da pesquisa

qualitativa, segundo Martins e Bicudo (2005), pois os métodos qualitativos se

assemelham a procedimentos de interpretação dos fenômenos, mais indicados em

trabalhos de estudo de caso.

O sujeito (M.) desta pesquisa foi uma menina de seis anos que está na

primeira série do ensino fundamental, encaminhada à clínica de Psicologia do Uni-

FACEF. Por meio da coleta de dados pôde-se considerar que M. tem um vínculo

muito forte com a mãe, porém o pai está pouco presente na vida dela.

Percebeu-se que M. é uma criança bastante ativa e de fácil socialização. Ela

destaca-se sempre em suas atividades tanto da escola quanto em casa, porém é

uma criança que se frustra sempre quando contrariada, não sabendo lidar bem com

situações que fogem do seu limite.

Pelos desenhos foi possível observar que M. vive num mundo de fantasias,

desejando assim, “viver no mundo da magia”, o que é muito comum, segundo Mira Y

Lopez (1945), entre crianças de 6 a 10 anos. Nesta idade é natural que a criança

utilize muito da fantasia imaginativa e de crenças mágicas, tanto em seus relatos

(histórias), quanto em seus desenhos.

Foi possível afirmar também que há um foco excessivo de M. na mãe. A

presença da figura materna é vista na maioria desses desenhos, e eles sempre

aparecem de forma positiva, o que evidencia um vínculo afetivo resumido apenas à

mãe, já que nem seu pai e nenhum de seus irmãos são citados ou desenhados.

Verificou-se que o pai de M. é obeso e a mãe afirma estar entrando num nível

de obesidade (não avaliado), mas os irmãos dela são magros, e vêm ganhando

cerca de um quilo ao ano o que é considerado saudável pelo pediatra da família. M.

se alimenta tal como seus dois irmãos, porém apenas ela está acima do peso.

Já nas entrevistas com os professores, foi possível identificar M. como uma

criança muito competitiva e dominadora, que gosta de ter controle da situação e de

seus colegas, ficando sempre em evidência nos grupos. Além disso, eles afirmaram

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que ela é uma excelente aluna, é dócil e maleável, mas que quando contrariada

pede muito pela mãe, não sabendo lidar sozinha com sua frustração.

Em relação à comida, foi possível constatar pelas observações e entrevistas

que o único momento em que a família está toda reunida é nos finais de semana,

quando saem pra almoçar ou jantar fora. A mãe de M. relata que todo final de

semana eles saem pra almoçar no shopping ou jantar em restaurantes de rodízio de

carne, sendo que essa programação envolve toda a família, inclusive as avós

(materna e paterna), sendo a única programação em que o pai está presente.

E no quesito autoestima, M. tem uma preocupação muito grande com a

imagem que os outros irão fazer dela, ou seja, ela tem necessidade de ser aceita.

Percebe-se que a configuração intrapsíquica de M, composta por características tais

como sua necessidade de reconhecimento e sua insegurança, são sustentados pela

dinâmica familiar, podendo destacar o distanciamento do pai e dos irmãos, a falta de

referências paternais e a proteção ambígua oferecida pela mãe, bem como pelas

relações que M. mantém com o ambiente e a sociedade (sua competitividade, seu

reconhecimento quando ensina aos outros, algo que sabe fazer muito bem, entre

outros). A forma que M. encontrou de responder a esta configuração e

funcionamento dos sistemas em que está inserida é reforçando sua atitude de

mergulhar no mundo da fantasia, encontrando nele a sua satisfação e motivação

para seguir a vida, ignorando de certa forma a realidade em que vive. Apesar de ser

uma forma de enfrentamento comum para a idade de M., podemos considerar que

se ela não receber suporte (psicológico, familiar, social e ambiental) para alterar as

alternativas de conduta, poderá ter muita dificuldade de se adaptar à realidade, já

que utilizar-se dessa fantasia, de certa forma, pode ser o único momento em que ela

realmente pode desejar aquilo que sempre quis.

Neste sentido, talvez a obesidade também possa ser vista como uma forma

de “se proteger”, com uma camada adiposa, do sofrimento que a confrontação com

a realidade impõe.

Com o presente estudo de caso foi possível analisar e afirmar a forma como

todos os aspectos investigados sobre a vida de M. estão relacionados entre si, e

como isso faz surtir resultados e respostas no individuo que está inserido no meio.

Por meio deste estudo de caso, foi possível entender as relações sistêmicas em que

M. está envolvida (no lar, na escola, sua relação consigo mesma, o mundo psíquico

em que ela vive).

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Sendo assim, pode-se afirmar que foi atingido o principal objetivo da

pesquisadora de realmente realizar um estudo sistêmico, utilizando-se do estudo de

caso de M., investigando e relacionando seus aspectos intrapsíquicos,

interpsíquicos, sociais e ambientais.

REFERÊNCIAS

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