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ESTUDOS AFRICANA OU NOVOS ESTUDOS AFRICANOS: Um campo em
processo de consolidação desde a diáspora africana no Brasil
Bas´Ilele Malomalo
Doutor em Sociologia, Docente no curso de Bacharelado em Humanidades e no Programa de
Mestrado Interdisciplinar em Humanidades, Instituto de Humanidades e Letras/Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Bahia, Brasil;
líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento, Sociedade civil,
Desenvolvimento e Cidadania Global; pesquisador do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas
Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-Unesp), da Rede para o Constitucionalismo
Democrático Latino-Americano/Brasil, Member of United Nations - Harmony with Nature e
integrante e fundador do Instituto da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB). Contato:
RESUMO
O artigo faz parte dos trabalhos que vêm refletindo sobre as epistemologias que sustentam
o pensamento africano e afro-diaspórico. Objetiva destacar a diferença existentes entre os
Estudos Africanos e os Estudos Africana, revelando criticamente algumas falácias dos
primeiros. Apresenta os principais elementos que constituem o que o autor denomina de
Novos Estudos Africanos, ou seja, os Estudos Africana produzidos desde a diáspora
brasileira: o dispositivo da bioepistemologia na produção de conhecimentos
afrocentrados ntuístas (ubuntuista ou bisoista); os lugares dos sujeitos de investigação, as
relações estabelecidas entre o pesquisador e o colaborador da pesquisa e o campo de
investigação. Discute os princípios éticos e teórico-metodológicos que orientam os Novos
Estudos Africanos numa perspectiva da epistemologia do Ntu/Força-da-Vida. Trata-se de
uma pesquisa bibliográfica e que tem como ponto de partida as epistemologias negras do
Sul global subalterno e os estudos críticos da branquitude. O argumento defendido é que
os esforços dos agentes hegemônicos dos Estudos Africanos relativos à periodização dos
saberes africanos, concentrando-se no século XX; e a sua negação em incorporar a
diáspora africana, como parte indispensável de suas investigações sobre a África e
africanos, são jogos de poder para a manutenção dos privilégios da branquitude no campo
científico.
Palavra-chaves: Estudos Africana; Estudos Africanos; Epistemologia; Filosofia do Ntu;
Branquitude.
ABSTRACT
The article is part of the work that has been reflecting on the epistemologies that sustain
African and Afro-diasporic thinking. It aims to highlight the difference between African
Studies and Africana Studies, critically revealing some fallacies of the former. It presents
the main elements that constitute what the author calls New African Studies, that is, the
African Studies produced since the Brazilian diaspora: the device of bioepistemology in
the production of ntuístas (ubuntuista or bisoista) Afro-centric knowledge; the places of
the research subjects, the relations established between the researcher and the research
collaborator and the field of research. It discusses the ethical and theoretical-
methodological principles that guide the New African Studies from the perspective of the
Ntu / Life-Force epistemology. It is a bibliographical research whose starting point is the
black epistemologies of the subaltern global South and the critical studies of whiteness.
The argument is that the efforts of the hegemonic agents of the African Studies related to
the periodization of African knowledge, concentrating on the twentieth century; and their
refusal to incorporate the African Diaspora, as an indispensable part of their research on
Africa and Africans, are games of power for the maintenance of the privileges of
whiteness in the scientific field.
Key-words: Africana Studies; African Studies; Epistemology; Philosophy of Ntu;
whiteness.
Introdução
Introduzo meus leitores e minhas leitoras na minha escrita com essas belas
palavras de Marzui, Ajayi, Tshibangu e Bohen, extraídas do seu texto “Tendências da
Filosofia e da Ciência na África”, da História Geral da UNESCO.
A ciência tradicional
O reconhecimento e a apreciação do conjunto dos conhecimentos e das
capacidades, sobre o quais se apoiam as sociedades pré‑coloniais, em matéria
de agricultura, saúde, artesanato e indústria, encontram‑se ainda na esfera das
boas intenções. À época colonial, este corpo de saberes e capacidades não era
julgado digno do nome “ciência”; ele era rebaixado ao nível das superstições
pré-científicas. A educação ocidental e o cristianismo, eventualmente, as leis
coloniais e políticas deliberadas, inclusive, dedicaram‑se a solapar a estrutura
destes saberes tradicionais. Os estabelecimentos cuja educação obedecia ao
perfil ocidental ensinavam aos seus alunos a desconsiderarem e rejeitarem o
saber tradicional. Este saber transmitido em escala pessoal −“boca a boca”−
subsistiu, no entanto, segundo diversas modalidades, em meio a população.
Constata‑se hoje que, apesar do impacto da medicina, da agricultura, da ciência
e da tecnologia ocidentais, as reservas tradicionais de saberes e capacidades,
em respeito à agricultura, bem como no campo das práticas e crendices
terapêuticas, este legado de saber continua presente no cotidiano vivido pela
maioria do povo africano (MARZUI; AJAYI; TSHIBANGU; BOHEN, 2010,
p. 765-766).
O texto “Estudos Africana ou Novos Estudos Africanos: Um campo em processo
de consolidação desde a diáspora africana no Brasil” faz parte de meus trabalhos que têm
o propósito de colaborar na construção de uma epistemologia africana desde a diáspora
africana contemporânea no Brasil. Levaram, ou levam frequentemente, o nome de
epistemologia da macumba (MALOMALO, 2016c, 2017c); ou ainda há momentos que a
denomino de epistemologia de macumba-ubuntu-bisoidade (MALOMALO, 2017d) com
intuito de agrupar três categorias filosóficas dentro de uma única proposta científica.
Prefiro chamar o meu projeto epistemológico, que talvez viria mais tarde se constituir em
um paradigma, de epistemologia do Ntu1 (Força, Vida ou Força vital) (DIAGNE, 2013;
JAHN, 1970; TEMPELS, 2016) pela extensão que comporta essa categoria sobre
macumba, ubuntu e bisoidade.
Quando comecei a escrever este texto, pensava em apresentar somente alguns
elementos de minhas reflexões em torno do que chamava, desde 2013, de Novos Estudos
Africanos. Na busca de mais fundamentos teóricos, dei-me a conta que os Estudos
Africana (Estudos Negros; ou Estudos Afro-Americanos), produzidos nos Estados
Unidos, já realizavam um trabalho semelhante, o que me leva a afirmar que os Novos
Estudos Africanos são sinônimos de Estudos Africana. A única diferença é que talvez
seja o primeiro a utilizar, no Brasil, o termo Novos Estudos Africanos.
O uso que faço do termo Novos Estudos Africanos é bem distante da maioria dos
textos que trata de Estudos Africanos, pois nossas problematizações a respeito dessa área
de investigação tendem a ser bem diferentes. Isso ocorre porque a maioria dos/as
autores/as não enxerga problemas ou pensa que se livrou da colonialidade e do seu
racismo. Nossa hipótese é que muitas estruturas de Estudos Africanos, de gestão do
pessoal, de distribuição de recursos, de criação de aparatos teórico-metodológicos e
publicações sobre a cultura africana continuam assente na branquitude. Nossa posição é
uma crítica aos Estudos Africanos do ponto de vista dos Estudos das relações raciais e
dos Estudos críticos da branquitude (CARDOSO, 2014; LABORNE, 2017). Não
analisarei cada texto que eu li nem tampouco faço uma análise sobre os conteúdos de
textos escritos por estudiosos afrocentrados ou eurocentrados.
Todavia, deixo o registro de que o texto, como o de Schlickman (2016)2, mesmo
trazendo uma seção com o título “Novas perspectivas para os estudos africanos [no Brasil]
1 MALOMALO, Bas’Ilele. Epistemologia do Ntu: Meu (s) diálogo (s) com Dagoberto José Fonseca. In:
FOSENCA, Dagoberto José, MALOMALO, Bas’Ilele; FOSENCA, Simone Loiola Ferreira.
Intelectualidade coletiva negra: Memória, educação e emancipação. Porto Alegre: Editora Fi, 2018; em
prelo. 2 Alguns desses outros estudos percebem a necessidade de usar a crítica contra os Estudos Africanos, porém
não empregam a teoria social da branquitude em suas análises: EUSTÁQUI, Vitor. Desafios
epistemológicos em Estudos Africanos: Da colonialidade do poder às epistemologias descoloniais. Paper
submetido em março de 2011 e aprovado em junho de 2011 pela comissão científica do curso de
doutoramento em Estudos Africanos do ISCTE-IUL, Lisboa; FERREIRA, Roquinaldo. A
institucionalização dos Estudos Africanos nos Estados Unidos: advento, consolidação e transformações.
- 1980”, não critica a branquitude dessa “nova perspectiva”. Essa falha se estende a
muitos outros textos produzidos por historiadores/as que se dizem ‘donos/as’ de Estudos
Africanos, dentre outros motivos, por se recusarem assumir a raça como uma categoria
analítica na investigação dos fenômenos sócio-históricos africanos. Em sendo, em
princípio, os Estudos Africanos e Estudos Africana críticos à branquitude e negritude,
campos de investigação inter e transdisciplinares, este meu trabalho se dirige a
pesquisadores/as inter e/ou transdisciplinares, e não aos estudiosos disciplinares que se
perdem na torre de marfim da área de sua especialização. Este texto trata de epistemologia
africana, partindo das áreas de formação de seu autor, que são a filosofia africana e a
sociologia.
O meu primeiro objetivo, neste texto, é destacar a diferença entre o que se chama
de Estudos Africanos e os Estudos Africana/Novos Estudos Africanos, revelando
criticamente algumas falácias dos primeiros. O segundo objetivo visa apresentar os
elementos de Estudos Africana/Novos Estudos Africanos produzidos desde a diáspora
brasileira. Dessa forma, apresento alguns conceitos básico da epistemologia do Ntu;
destaco a importância da bioepistemologia na produção de conhecimentos afrocentrados
ntuístas (ubuntuistas ou bisoistas); problematizo as questões relativas aos sujeitos de
investigação: pesquisador/a e colaborador/a da pesquisa e ao campo de investigação. Faço
uma discussão sobre os princípios éticos e teórico-metodológicos dos Estudos
Africana/Novos Estudos Africanos numa perspectiva da epistemologia da macumba-
ubuntu-bisoidade.
Algumas noções básicas da epistemologia do Ntu
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 30, nº 59, p. 73-90 – 2010; SLENES, Robert W.. A Importância
da África para as Ciências Humana. Texto apresentado no seminário “Respostas ao racismo: produção
acadêmica e compromisso político em tempos de ações afirmativas” realizado em 3 de dezembro de 2009
no IFCH/UNICAMP; VALDEMIR, Zamparoni. Os Estudos Africanos no Brasil: Veredas. Ciência e
Cultura, vol. 59, no 2, São Paulo, Abr./Jun. 2007, p. 46-49.
Quero aqui deixar claro alguns termos que fazem parte dos Novos Estudos
Africanos e dos Estudos Africana, como os emprego em meus trabalhos. O primeiro deles
é o adjetivo “Africanos/as” ou “Africana”, que nos remete à noção de África. Esta deve
ser entendida como um espaço, no sentido físico e simbólico, onde os primeiros seres
humanos, que se convencionou a chamar de africanos, surgiram, e a partir do qual se
realizaram as primeiras migrações populacionais. Das migrações africanas, forçadas ou
voluntárias, desde a Antiguidade, povoaram-se outros territórios fora do continente
africano, formando o que chamamos de diásporas africanas – e que usualmente é usada
no singular: diáspora africana (MALOMALO, 2016a, 2017a; MANNING, 2012).
O uso que faço do termo “africano” está muito ligado aos Estudos Africana do
paradigma da Afrocentricidade de Asante (2009) com as anuências que lhe dão Karenga
(2009) e Rabaka (2009). Isso significa que “africano/a” refere-se às populações africanas
do continente e das diásporas. Na escrita desses últimos autores, toma-se cuidado sempre
de diferenciar “africanos do continente” dos “africanos da diáspora”. Dentro dos
africanos/as das diásporas é preciso igualmente levar em conta as particularidades de
experiências de vida dos africanos, cujas identidades foram forjadas pelo tráfico do
Atlântico e da escravidão, e dos/as africanos/as da diáspora africana contemporânea que
começaram a emigrar do continente no período colonial ou pós-colonial (HALL, 2003;
MALOMALO, 2014, 2016; MANNING, 201). Alguns/algumas autores/as chamam a
diáspora africana, que nasce da experiência da escravidão do século XVI nas Américas,
de “diáspora histórica” (VENEY, 2002).
Inicialmente era formada por africanos/as escravizados/as ou seus descendentes.
Prefiro chamar essa última diáspora de diáspora moderna, uma vez que todas as diásporas,
independentemente de seu período histórico, são históricas; ou ainda, acompanhar o
termo diáspora moderna de um adjetivo referente às populações descendentes de
africanos/as de um determinado território: diáspora afro-americana; diáspora afro-
brasileira, por exemplo. A diáspora africana contemporânea é nomeada por
alguns/algumas autores/as de nova diáspora africana (OKPEWHO; NZEGWU, 2009).
Interessa aos Estudos Africana estudar a diáspora africana em suas conexões com a
África, sendo ela inegavelmente parte da história mundial (DUFOIX, 2014; MANNING,
2012; CHRISTIAN, 2009).
Os ancestrais desses/dessas africanos/as inventaram a cultura africana ancestral,
que seus descendentes remanescentes e descendentes da diáspora moderna e/ou da
diáspora contemporânea reproduzem e reinventam no próprio continente e em suas
diásporas. Os Estudos Africana, que têm a cultura africana (FALOLA, 2008) – devem ser
sempre interpretados no plural e, levando-se em conta o desenvolvimento de suas
particularidades no continente e na diáspora – como campo de investigação, fazem parte
dela como uma de suas construções culturais. Em um dos meus textos, inspirando-me em
Silva (2005), chamei a cultura negra de africanidades africanas3 e brasileiras
(MALOMALO, 2016a, 2016b, 20017a). Afrocentricidade, epistemologia de macumba-
ubuntu-bisoidade, como parte dos Estudos Africana, são suas metalinguagens.
O ato de escrever tem muito a ver com a vida do autor. Este pode até negar essa
ligação, mas no fundo é assim que se passam as coisas. Há uma tradição ocidental que
quer nos iludir que se pode praticar a arte pela arte e a ciência pela ciência. Esse
individualismo ou anarquismo científico, salvo quando se trata de um gesto de liberdade,
não tem cabimento em outras culturas, como a africana, onde todo ato de produção
artística e científica compromete, geralmente, pessoal e coletivamente o seu autor.
A fim de compreender esses elementos na produção da ciência, venho trabalhando
com a noção da bioepistemologia, uma ideia que significa que, ao olhar pela cultura
africana, toda ciência é feita a partir, mediante e para o Ntu, a Vida em suas diversas
manifestações. Vida como resultado de forças energéticas (HAWKING, 2015) é o que os
povos africanos bantu chamam de Ntu: o Pré-Existente; o Ser-Primordial de que tudo
veio à existência (BILOLO, 1986); a Força vital (TEMPELS, 2012). A sua manifestação
é o Ub-Ntu; Ub, ser; e Ntu, Força-vida; é dessa forma que Ramose (1999) define Ubuntu
como Ser-sendo; ou seja a movimentação do Ser-Força-Vida (Ntu) que se manifesta em
seres particulares, que estão ontologicamente ligados: Ki-ntu (Coisa-Força-Vida), Ku-ntu
(Modalidade-Força-Vida), Ha-ntu (Tempo-Espaço-Força-Vida), Muntu (Pessoa-Força-
Vida).
Ontologicamente, o Ser é a manifestação da multiplicidade e da diversidade
dos entes. Essa é a pluriversalidade do ser, sempre presente. Para que essa
3 Cf. MAFEJE, Archie. The africanity: a combative ontology. In: DEVISCH, Rné; NYAMNJOH, Francis
B. The post-colonial turn: re-imagining the antropology and Africa. Bamenda/Leiden: Langaa/Center
African Studies, 2011, p. 31-44.
condição existencial dos entes faça sentido, eles são identificados e
determinados a partir de particularidades específicas. Assim, a particularidade
assume uma posição primária a partir da qual o ser é concebido. Essa assunção
da primazia da particularidade como modo de entender o ser é frequentemente
mal colocada como a condição ontológica originária do ser. O mal-entendido
se torna a substituição da pluriversalidade original ineliminável do Ser
(RAMOSE, 2011, p. 11).
Para Ntumba (2014), há uma complementaridade radical entre essas realidades
particulares que se dá no que se chama de Solidariedade Cósmica ou Biso Cósmico. Biso
(Nós, em Lingala) é uma a consciência coletiva de muitos povos africanos de que como
seres humanos (Bantu, plural do Muntu), pertencentes à Comunidade-dos-Bantu, suas
vidas só têm sentido porque participam na Comunidade-do-Divino-Ancestral e na
Comunidade-Natureza-Universo. Essas Comunidades-de-Ntu-Particulares, interagindo
reciprocamente forma a Realidade-Total processual, multiforme e global, ou seja, a
participação processual solidária da vida. Essa proposta de Ntumba (2014) é chamada de
filosofia de Bisoidade, pois parte do pressuposto do Nós/Coletivo sobre o eu/individual
das culturas africanas.
Um dos primeiros princípios da ética ubuntu é a libertação do dogmatismo. É
flexibilidade orientada para o equilíbrio e para a harmonia no relacionamento
entre seres humanos, e entre os últimos e o mais abrangente ser-sendo ou
natureza (RAMOSE, 2002, p. 4).
O meu contato com o poema de Solano Trindade, “Macumba”, foi um momento
decisivo para uma movimentação na construção de uma epistemologia da macumba-
ubuntu-bisoidade.
MACUMBA
Noite de Yemanjá
Negro come acaçá
Noite de Yemanjá
Filha de Nanan
Negro come acaçá
Veste seu branco abebé
Toca o águe
O caxixi
O agogô
O gã
O engona
O ilu
O lê
O ronco
O run
O rumpi
Negro pula
Negro dança
Negro bebe
Negro canta
Negro vadia
Noite e dia
Sem parar
Pro corpo de Yemanjá
Pros cabelos de Obá
Do Calunga
Do mar
Cambondo sua
Mas não cansa
Cambondo geme
Mas não chora
Cambondo toca
Até o dia amanhecer
Mulata cai no santo
Corpo fica belo
Mulata cai no santo
Seus peitos ficam bonitos
Eu fico com vontade de
amar...
(TRINDADE, 2007, p. 76-
77)
O meu trabalho, para elaborar um projeto epistemológico a partir da categoria
macumba, obrigou-me a ler a filosofia da força vital, a filosofia de Ubuntu e a filosofia
da Bisoidade. Afinal de contas, servindo-me da poesia de Solano Trindade, descobri que
a macumba, em seus textos, toma o sentido de encantamento do mundo do Outro: é um
processo de amortização que se faz numa perspectiva cósmica, isto é, do ponto de vista
da cultura africana apela à participação das três Comunidades que compõem a Realidade-
Total (MALOMALO, 2016b).
Críticas às falácias dos Estudos Africanos
Lancei, em 2013, o conceito de Novos Estudos Africanos por ter observado as
falácias que os ditos Estudos Africanos comportavam: o poder da branquitude que eles
carregam. Fiz tudo isso sem saber que Archie Mafeje (2011), no contexto africano, já
decretava alguns anos antes a morte dos mesmos. Tudo isso vinha sendo feito dentro de
um processo de participação em mesas de debates onde minhas ideias eram defendidas
na minha comunicação que tinha este título: “Reflexões sobre Novos Estudos Africanos:
Ciência e Emancipação”, no V Colóquio Internacional Saberes, Práticas e I Encontro
Internacional de Filosofia Africana, na Universidade Federal da Bahia, em 2013; no I
Colóquio do AFROUNEB: Estudos Africanos no Brasil: análise e projeções, na
Universidade Estadual da Bahia; e no I Seminário Internacional de Estudos Africanos, na
Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNIAB),
organizado pelo Centro Interdisciplinar de Estudos Africanos e da Diáspora
(CIÁFRICA), em 2017.
O meu argumento é que os Estudos Africanos criaram a sua própria narrativa, que
se distanciam dos afrocentrismos eurocencistas (OBENGA, 2001), isto é, estudos brancos
racistas sobre os povos não europeus. Todavia, quando olhar as realidades de suas
estruturas (seus centros, departamentos, cursos, revistas, associações, gestão de pessoal,
etc.) que nasceram no século XX, de forma geral, a partir de 1960 (FERREIRA, 2010;
SCHLICKMANN, 2016), num esforço da descolonização de saberes, o que se percebe é
que há uma disputa racial no processo de produção de conhecimentos sobre a África
continental e diaspórica. Só que a branquitude não assume esse problema da hegemonia
branca publicamente (CARDOSO, 2014; BENTO, 2002).
Parto da ideia central de que o surgimento de Estudos Africana, no Brasil, cujas
ideologias, metodologias e teorias se expressam nos trabalhos realizados nos espaços não
acadêmicos negros, dentro das organizações sociais do Movimento Negro (por exemplo,
Teatro Experimental de Abdias Nascimento no passado e outras organizações negras da
atualidade) e nos espaços acadêmicos negros (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros -
NEABs), Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN), Universidade
de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB), como demostrarei
ao longo deste texto, tem a ver com a sua recusa em relação à supremacia branca que
sempre dominou os centros de africanismos eurocentistas (OBENGA, 2001, 2008;
CHRISTIAN, 2009) do período colonial e até os anos de 1950 (tomando aqui os Estudos
das relações raciais da UNESCO como marco histórico) (MALOMALO, 2017b) e a
maioria de centros dos Estudos Africanos que emergiram a partir dos anos de 1960.
As reflexões desenvolvidas por Guerreiro Ramos (1995), denunciando a brancura
que predominava nas instituições acadêmicas e os primeiros Congressos Afro-Brasileiros
dirigidos por Gilberto Freire e companhia; ou a crítica de Bento (2000) e Cardoso (2014)
em relação aos privilégios que gozam os intelectuais brancos que estudam a cultura
africana continental e diaspórica e o fenômeno de reprodução de comportamentos racistas
entre alguns deles, deve ser levada a sério para se compreender o que aparece
normalmente como simples divisão social de campos científicos dirigidos, de um lado
por intelectuais brancos/as, e de outro lado por intelectuais negros/as. Ramos, Bento e
Lourenço têm o mérito de nos chamar a atenção sobre o funcionamento da
brancura/branquitude nos espaços acadêmicos brasileiros, mesmo se tratando de espaços
dirigidos por intelectuais brancos/as de esquerda ou progressistas. Intelectuais negros não
letrados/as no paradigma dos Estudos Africana à brasileira e intercontinental e não
comprometidos com o seu povo podem cair nas mesmas armadilhas da branquitude
racista que caracterizam os Estudos Africanos (CHRISTIAN, 2009).
Ferreira (2010) argumenta que essa disputa racial, no contexto dos Estados
Unidos, fez com que os/as intelectuais negros/as passassem a liderar os centros de Black
Studies ou Afro-American Studies (Estudos Negros), e os/as brancos/as passaram a
coordenar os African Studies (Estudos Africanos). O que estava na base dessa divisão
social de produção de conhecimento era e continua sendo a disputa de recursos, de status
e de poder sobre a construção de narrativas de história de africanos/as e d seus
descendentes. Então, a primeira falácia da maioria dos Centros de Estudos Africanos é
que se dizem espaços democráticos, mas de fato não os são, pois se estabeleceram como
espaços de hegemonia branca (MAFEJE, 2011; OBENGA, 2001).
Na tentativa de explicar o surgimento da proposta da Afrocentricidade dentro dos
Estudos Africana, Frinch III e Nascimento (2009) trazem o contexto histórico dos campi
universitários norte-americanos, no final dos anos 1960 e início de 1970, que passaram a
ser agitados pelos movimentos estudantis acerca da Guerra do Vietnã e o Apartheid na
África do Sul. Da mesma forma, trazem o impacto de resistência negra através dos
Panteras Negras e dos movimentos de direitos civis sobre os intelectuais negros que
queriam descolonizar os Estudos Africanos dominados pelos/as intelectuais brancos/as.
Parte importante desse esforço se deu no campo da História, culminando no
conflito ocorrido entre historiadores e negros reunidos nas 11a e 12a
Convenções da Associação de Estudos Africanos (ASA), realizadas
respectivamente em Los Angeles (1968) e Montreal (1969). O conflito, de
acordo com o historiador afro-americano John Henrik Clark (1975, p. 5), um
dos seus destacados protagonistas, “e sobre quem vai interpretar a história
africana. Os estudiosos brancos, mais que os negros, sempre entenderam a
importância de controlar o pensamento histórico e social. A melhor maneira de
controlar um povo é controlar o que ele pensa sobre si mesmo”. Com efeito,
John Henrik Clarke foi um dos grandes expoentes da fundação da Associação
dos Estudos da Herança Africana (AHSA), organização de estudiosos da
história africana que romperam com ASA no intuito de criar um instrumento
para os intelectuais negros poderem protagonizar e definir suas abordagens e
pesquisas. A criação da AHSA, pare eles, significava exercer o poder de definir
os termos e abordagens desse campo – como protagonistas, e não como objeto
das respectivas pesquisas. A referência à “herança” é a chave diferencial que
caracterizou a AHSA, pois os Estudos Africanos até aquele momento focavam
a África como se ela passasse a existir em função da colonização europeia e
não possuísse uma milenar tradição de produção de uma cultura e
conhecimento em liberdade e soberania (FRINCH III; E. L. NASCIMENTO,
2009, p. 60-61).
A segunda falácia tem a ver com a narrativa em torno da genealogia dos Estudos
Africanos. A maioria dos textos situa a genealogia desses estudos no século XX. Nossa
crítica é que se trata de uma perspectiva ocidental, reducionista, de se contar a história da
produção dos saberes e conhecimentos sobre a África. Ao contrário, a forma decolonial
de contar essa história é considerar a genealogia dos saberes africanos, levando-se em
conta a concepção histórica africana pelos/as próprios/as africanos/as continentais e
diaspórico/as. O caso paradigmático é a perspectiva da História Geral da África da
UNESCO4 (BARBOSA, 2012a, 2012b). Essa obra interdisciplinar, que contou com a
maioria de intelectuais africanos continentais e da diáspora para a sua produção, traz,
desde o seu primeiro volume e o nono ainda em construção, elementos centrais para
(re)construção de uma narrativa não tendenciosa sobre a história de povos africanos do
continente e das diásporas.
O primeiro elemento que quero destacar aqui diz respeito aos ingredientes de
construção da história africana, ou seja, seus pressupostos epistemológicos. A
interdisciplinaridade é a regra de ouro. Revisitando a História Geral da África do ponto
de vista dos Estudos Africana deve-se dizer que qualquer campo científico africano
contemporâneo sai ganhando, uma vez que estabelece um diálogo sério com os modos
ancestrais de construir metodologias e conceitos para a interpretação do mundo, isto é, a
perspectiva holística ou bisoística.
Outro elemento importante da história africana tem a ver com a periodização dessa
própria história. Além do alerta sobre as particularidades regionais e de zonas culturais,
há um cuidado de processar os conteúdos dessa história numa perspectiva de
encruzilhadas, isto é, o estabelecimento de diálogos entre o local com o global, ou seja,
entre o local, regional, nacional, continental com o mundial. O tempo é abordado numa
perspectiva de longo alcance, e o espaço tratado a partir da multidimensionalidade. Dessa
4 Importante é ler essa obra como uma posição científica e política. Disponível em (versão franção inglesa;
francesa e árabe): http://www.unesco.org/new/fr/social-and-human-sciences/themes/general-history-of-
africa/volumes/; http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive-education/general-history-of-
africa/gha-ninth-volume-elaboration/#c1437359. Acessado em: 10 abril 2018; Disponível (versão
portuguesa): http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive-education/general-history-of-
africa/gha-ninth-volume-elaboration/#c1437359. Acessado em: 10 abril de 2018.
forma, é que o segundo volume da História Geral da África que trata da África Antiga,
começa a explorar a história deste continente a partir de 9 mil anos antes da nossa era.
O presente volume da História Geral da África refere-se ao longo período que se
estende do final do Neolítico – isto e, em torno do VIII milênio antes da Era
Crista – até o início do século VII da Era Crista.
Esse período da história africana, que abrange cerca de 9 mil anos, foi abordado,
depois de alguma hesitação, considerando-se quatro zonas geográficas
principais:
• o corredor do Nilo, Egito e Nubia (capítulos 1 a 12);
• a zona montanhosa da Etiópia (capítulos 13 a 16);
• a parte da África comumente denominada Magreb e seu interior saariano
(capítulos 17 a 20);
• o restante da África, inclusive as ilhas africanas do oceano Indico (capítulos
21 a 29).
Essa divisão e determinada pela compartimentação que atualmente caracteriza a
pesquisa em história da África. Poderia parecer mais lógico organizar o volume
de acordo com as principais zonas ecológicas do continente, oferecendo cada
uma delas condições de vida semelhantes a todos os agrupamentos humanos que
as habitam, sem que haja barreiras naturais a impedir o intercâmbio (cultural ou
de outro tipo) no interior de uma mesma região. (MAKHATAR;
VERCOUTTER, 2010, p. XXXIII)
Todo discurso científico é um posicionamento político. Interessa-nos a
perspectiva pan-africana presente na História Geral da África, mesmo não sendo ela a
única (BARBOSA, 2012b), e em outras agências africanas de produção de conhecimentos
e políticas públicas, por exemplo, a do Conselho para o Desenvolvimento de Ciências
Sociais na África (CODESRIA), do Centro de Estudos das Religiões Africanas (CRA) da
Universidade Católica no Congo, do International Journal of African Renaissance
Studies: Muli-, Inter- and Transdisciplinarity. University of South Africa. É essa
perspectiva que inspira os Estudos Africana e a nossa proposta teórica, uma vez as
questões metodológicas e de periodização são reabilitadas do ponto de vista dos próprios
povos africanos.
Resta mencionar o terceiro elemento que tem a ver com os conteúdos a serem
narrados. Nesse sentido, é preciso lembrar que um outro princípio fundamental que
permeia essa obra e que acompanha a escrita dos intelectuais africanos pan-africanistas é
tratar a África sempre em sua unidade e diversidade. Essa proposta está presente, por
exemplo, nas obras de Diop (1981, 1982) e Ki-Zerbo (2006)5. Os/as intelectuais
eurocêntricos/as, que se escondem no manto de Estudos Africanos, não conseguem
aceitar essa concepção africana e, para tanto, o que lhes interessa é desqualificar qualquer
abordagem pan-africana que alguns deles rotulam de afrocentrismo ou de pensamento
essencialista.
Outra armadilha dos Estudos Africanos é dissociar os africanos da diáspora dos
africanos do continente. Essa divisão aparentemente científica esconde as intenções de
uma dominação política do campo científico e da sociedade pela branquitude. A História
Geral da África reconheceu as histórias das diásporas africanas como parte da história
dos povos africanos. E essa última história como parte importante da história mundial.
Esses reconhecimentos têm a ver com o movimento da libertação e liberdade intelectual,
cultural, econômica e políticas liderados pelos africanos do continente e da diáspora. O
pan-africanismo é o maior movimento social mundial para os africanos e seus
descendentes (LE MOUVEMENT PANAFRICANISTE AU XXe SIÈCLE, 2004).
Reconhecendo que toda a escrita científica está sujeita a imperfeições, o comitê
científico da História Geral de África da UNESCO vem realizando, dentro das tensões,
revisões e correções dos oito volumes. Elaborou, em 2010, igualmente, algumas
recomendações para a utilização dos conteúdos pedagógicos desses manuais nas escolas
africanas.
Talvez não agrade aos/ás críticos/as da escola da egiptologia africana diopiana o
fato de que muitas descobertas feitas por Diop e a escola de egiptologia africana
desenvolvida por ele foram recomendadas para o ensino pelo Comitê da UNESCO.
Em conexão com os diferentes capítulos:
Com base no Capítulo 1, História das formações políticas criadas pelos negros
começa com o antigo reino do Egito (ainda ensinamos nas escolas Africanos
que Gana era o mais antigo estado negro conhecido) formados no final do
quarto milênio a.C. Com base nos argumentos desenvolvidos por C. A. Diop
pode-se afirmar, segundo Babacar Sall, que os autores das civilizações
africanas e do reino do Egito eram negros.
O Capítulo II deveria incluir uma análise do processo que levou ao advento do
Reino do Egito.
5 O texto de Issiaka-P. Latoundji Lalèlê, na parte que aborda a unidade e pluralidade das religiões da África
tradicional, é interessante para aprofundar essa discussão. (LALÈLÊ, Issiaka-P. Latoundji. Les religions de
l´Afrique traditionnelles: interrogations majeures et pistes des recherches actuelles. In: ___ (Dir.). Culture
et religion em Afrique u seuil du XXe siécle: Cosncience d´une Renaissance?. Dakar: CODERSIA, 2015,
p.243-257).
O papel da violência é descrito nos documentos proto-históricos deve ser
colocado neste processo6.
Diga-se de passagem, essas recomendações foram feitas levando-se em conta
sempre o processo de uma educação africana crítica. A violência, como também parte da
história africana, deve ser abordada, mesmo quando cometida pelos próprios povos
africanos. Como é sabido, os comitês da UNESCO da escrita da História Geral de África
são heterogêneos do ponto de vista racial e metodológico. Doulaye Konaté é uma das
figuras da historiografia pan-africana presente na comissão de revisão da HGA da
UNESCO. A diferença entre as críticas feitas por intelectuais africanos/as pan-
africanistas e não pan-africanistas, especificamente eurocentristas, não se limitam
somente à arrogância inerente à razão indolente (SANTOS, 2003a; SANTOS;
MENESES, 2010) que conduz os trabalhos destes últimos, mas igualmente na
branquitude acrítica7 que condiciona sua tomada de posição política e teórica.
Tomo como exemplo as críticas de Amadiume (2001) e desses autores
eurocêntricos: Elikia M’Bokolo, Appiah e Farias8. M’Bokolo9 é aquele tipo de teórico
negro que, perante a questão da negritude dos faraós das primeiras dinastias, não quer
tornar explícita a sua posição em nome do que ele entende como algo polêmico. A crítica
de Christian (2009) dirigida a Gilroy10 vale igualmente para Appiah11. Esses autores
6 Conférence régionale sur l’utilisation pédagogique de l’Histoire générale de l’Afrique dans les écoles
africaines Tripoli, Libye, 10 – 17 juin 2010 REVUE DES CONTENUS DE L’HISTOIRE GENERALE DE
L’AFRIQUE (Recommendations) Coordinateur scientifique: Professeur Doulaye KONATE. Disponível
em:
http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/CLT/pdf/General_History_of_Africa/G
HA_Content%20review%20recommandations%20FR.pdf. Acessado em 1000 abril de 2018. 7 Para Cardoso (2014), branquitude acrítica é a identidade branca que assume publicamente o seu racismo;
já a branquitude crítica é aquela que repudia, em tese, publicamente o racismo. Todavia, alerta o autor que
nos espaços privados de brancos, onde se conta os segredos de brancos para brancos, a branquitude crítica
tende a reproduzir comportamentos racistas. O conceito de pacto narcísico de Bento (2002) pode auxiliar a
compreender esse tipo de comportamento no meio de brancos de esquerda, ou que se auto-proclamam
praticantes da decolonialidade. 8 Nossa posição teórica não visa desmerecer a enorme contribuição desses autores. 9 M’BOKOLO, Elikia. África negra: história e civilizações. Tome 1 (até o século XVIII). Salvador:
EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfricas, 2009, p. 327-391; ler: “O embrólio do Egito faraônico” (p. 45);
“A racialização da questão egípcia” (p. 57).
10 GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Editora 34: 2001. 11 APPIAH, Kwame Antony. Na casa de meu pai: A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.
negros pós-modernistas fazem uma leitura seletiva do uso da categoria de raça nas obras
de pioneiros do pan-africanismo, tal o caso de Du Bois, que eles acusam de essencialista.
Paulo Farias12 alinha-se aos estudos africanos eurocêntricos, escreve com raiva
contra estudiosos negros e escapa-lhe apreender o essencial de suas escritas. Falha ao
confundir o afrocentrismo ou a afrocentricidade, presentes nos textos de Diop, Obenga,
Asante e Mafeje, com o dogmatismo. Nesses autores, esses conceitos servem para o uso
de um paradigma africano que se quer ser mais uma perspectiva ou localização de
interpretação do que dogmas. São “centros”, lugares que servem como ponto de partida
para a produção de saberes africanos (ASANTE, 2009; FRINCH III, 2009; KARENGA,
2009). Ademais, a recusa desses autores eurocêntricos em encarar a raça como categoria
analítica revela o pacto narcísico da branquitude nas suas produções que são suas tomadas
de posições teóricas e políticas. Todos/as teóricos/as dos estudos críticos da branquitude
concordam que a superação do racismo começa pelo reconhecimento dos privilégios que
a branquitude concede aos sujeitos brancos. Em outras palavras, trata-se de assumir a raça
como categoria analítica e se dispor a combater o racismo em todas suas manifestações
estruturais, institucionais e subjetivas (MBEMBE, 2014; CARDOSO, 2014;
MALOMALO, 2017c; LOPES, 2016).
Nossa posição sobre o uso da raça como categoria analítica equivale à posição
teórica e política de Guimarães quando desvenda as falácias de Appiah.
Devo observar, entretanto, que Appiah parece acreditar que essa “essência
racial” tem características absolutas que, para ele, coincidem com a definição
norte-americana de “raça”. Para mim, ao contrário, essa “essência” é definida
pela cultura, utilizando diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal,
a depender do contexto histórico, demográfico e social (GUIMARÃES, 2004,
p. 28).
Diferentes dos/as africanistas eurocêntricos/as, Amadiume, antropóloga e
feminista nigeriana pan-africanista, reconhece a importância teórico-metodológica de
Diop no estudo da história e sociedades africanas; mas, ao mesmo tempo, critica o autor
por não evidenciar as violências de gênero existentes. A ciência, para essa autora, não é
o instrumento de desumanização do outro. Reconhece que Diop13 é o estudioso africano
12 FARIAS, P. F. Moraes. Afrocentrismo: entre uma contranarrativa histórica universalista e o relativismo
cultural. Afro-Ásia, 29/30 (2003), p. 317-343.
13 DIOP, Cheikh Anta. Civilisation ou barbarie. Anthropoliie sans complessance. Paris : Presse Africaine,
que interpretou melhor a partir de uma perspectiva africana os fenômenos sociais
africanos: estruturas de famílias, estruturas políticas. Critica, com respeito e sem
arrogância que caracteriza a burguesia eurocentrista, Valentin Mudimbe14 e o considera
como um africano que critica o eurocentrismo sem sair do mesmo. Ou seja, denuncia as
armadilhas de suas proposições teóricas. Dito em outros termos, negros/as e brancos/as
eurocêntricos situam-se no paradigma branco da interpretação da África. É uma questão
de perspectiva teórica e que comporta suas consequências políticas subjetivas e
estruturais.
O nono volume da História Geral da África é igualmente uma crítica contra a
branquitude acrítica que marca os Estudos Africanos brancocentricos ou eurocênticos. A
comissão continua sendo intercultural e interdisciplinar (KI-ZERBO, 2010). Haverá uma
ênfase especial na história da África contemporânea, a partir de 1990 e o início do século
XXI, marcada pela libertação de Mandela, a criação da União Africana e a confirmação
do pan-africanismo como ideologia política dessa organização e de muitas instituições
continentais com foco no tema de renascimento africana.
Nesse sentido é que o nono volume tem esses principais objetivos:
Atualizar o conteúdo dos volumes da HGA à luz dos recentes
desenvolvimentos nas diversas áreas da investigação científica, nas mudanças
políticas, socioeconômicas e ambientais e nos desenvolvimentos culturais do
continente desde o último volume da HGA;
Analisar as diferentes Diásporas africanas e suas diversas contribuições
para a construção das sociedades modernas, bem como a emancipação e o
desenvolvimento da África;
Identificar e analisar os novos desafios que a África confronta,
incluindo questões da UA, o Pan-africanismo e a integração regional, a
educação e a cultura, a juventude, as questões de igualdade de gênero, os
cuidados com a saúde, a diversidade cultural, a criatividade, as artes, a cultura
e o desenvolvimento, o diálogo intercultural entre os países da África, as
questões da paz e do meio ambiente, as alterações climáticas, a urbanização;
A pesquisa científica e a inovação, o desenvolvimento sustentável, a
boa governança, a cooperação Sul-Sul, as relações com a diáspora etc. as
diásporas africanas e as mulheres africanas da diáspora e do continente15.
1981 ;_____. L’unité culturelle de l’Afrique noire. Paris: Présente Africaine, 1982.
14 The Invention of Africa: Gnose, Philosophy, and the Order of Knowlwdge. Bloomington/Indianopolis :
Indian University Press/James Currey, 1988. 15 Reunião do Comitê Científico do Volume IX da HGA - Nota de apresentação. UNESCO/Salvador, 21 a
24 de novembro de 2013. Disponível em:
http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/FIELD/Brasilia/pdf/brz_ed_IX_vol_GHA_present
ation_note_Brazil_pt_2013.pdf. Acessado em 10 abril de 2018; Reunião do Comitê Científico internacional
do volume IX da História geral da África (HGA). Disponível em:
Dois temas importantes já começaram a ser tratados pelos/as africanos/as do
continente e da diáspora, o da diáspora e da igualdade de gênero. A UNESCO, para
responder a essas demandas, estabeleceu a Década Internacional de Afrodescendentes
(2015-2024)16 e vem construindo conteúdos didáticos voltados às mulheres africanas da
diáspora e do continente para suprir as falhas da História Geral da África17. Esse olhar
política e cientificamente pan-africanistas é que alimenta a nossa abordagem dos Estudos
Africana. Ser adepto do paradigma pan-africanista não significa descompromisso com a
crítica, autocrítica e a objetividade. Pelo contrário, são ingredientes essenciais para o
avanço do pensamento africano (RABAKA, 2009).
O desafio da crítica sobre a narrativa única do Ocidente sobre a história da África
é que qualquer crítica contra essa posição pode levar a ser acusado/a de anacrônico/a,
essencialista e/ou inimigo/a de brancos/as. Para tanto, é preciso afirmar que o que
diferencia os Estudos Africanos dos Africanismos eurocêntricos (OBENGA, 2001, 2008)
é que os primeiros nascem no contexto pós-colonial antirracista, e os segundos são
estudos racistas. Porém, a branquitude institucional dos primeiros fazem com que, muitas
vezes, guardem ainda seus traços da branquitude acrítica, isto é, com a sua produção os
brancos continuam a fazer a manutenção de seus privilégios com roupagens acadêmicas.
E mesmo quando se assumem publicamente como pessoas guiadas pela branquitude
crítica, isto é, antirracista, nos espaços privados de brancos acabam reproduzindo o
racismo (CARDOSO, 2014).
A manutenção da branquitude acrítica nos Estudos Africanos se apresentam,
então, na forma de estabelecer a genealogia desses estudos e de concentrar o seu campo
de estudo somente sobre a África dissociada de suas diásporas. A falácia da construção
da genealogia dos saberes africanos pelos Estudos Africanos funciona como dispositivo
de compreender esses saberes somente a partir do surgimento dos seus centros no
Ocidente. Para quebrar esse estratagema, os intelectuais negros têm trabalhado no sentido
de se reconhecer a genealogia dos saberes negro-africanos desde a Antiguidade até a
http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/FIELD/Brasilia/pdf/brz_ed_IX_vol_GHA_experts
_meeting_agenda_Brasil_pt_2013.pdf. Acessado em: 10 abril 2018. 16 Disponível em: http://decada-afro-onu.org/. Acessado em: 22 dez. 2017. 17 WOMAN IN AFRICAN HISTORY. Disponível em: https://en.unesco.org/womeninafrica/. Acessado
em: 10 abril de 2018.
contemporaneidade africanas. Essa maneira de interpretar a história da África está
presente, por exemplo, na História Geral da África (MAZRUI, et. al., 2010; BARBOSA,
2012b); e na maioria dos centros de Estudos Africana.
Além disso, para confrontar a estratagema divisionista de africanos e seus
descendentes da diáspora, recorremos às proposições teóricas africanas presentes em
Diop (1981, 1982) e no pensamento pan-africanista: tratar sempre a África na sua unidade
e diversidade; e quando se fala de africanos/as como sujeitos produtores desses saberes e
conhecimentos, compreende-se, com isso, que são os/as africanos/as do continente e da
diáspora. A África, como território de investigação, é vista igualmente em sua dimensão
mais ampla: inclui o continente e suas diásporas. A Afrocentricidade é um dos paradigmas
de Estudos Africana que radicalizou e trabalha nessa perspectiva (ASANTE, 2009). Essa
visão se firmou ainda no continente africano com a retomada do debate sobre o
“renascimento africano”, que anda de par com a consideração, pela União Africana, da
diáspora africana como a sexta região. Não se trata somente de um debate político dos/as
políticos/as, mas igualmente dos/as intelectuais (MAFEJE, 2011; MALOMALO, 2018,
no prelo; SALL, 2008; GUTTO, 2006; GTENF, 2017).
O pan-africanismo foi um dos primeiros campos teórico e político dos
movimentos negros a sugerir essa dimensão plural dos sujeitos produtores dos saberes e
conhecimentos africanos e seus/suas beneficiadores/as (LE MOUVEMENT
PANAFRICANISTE AU XXe SIÈCLE, 2004). Os Estudos Africana e Novos Estudos
Africanos trabalham com o mesmo entendimento. De fato, o que se quer afirmar é que as
práticas de produção de conhecimentos africanos antecederam historicamente os
chamados centros ou institutos de Estudos Africanos. Além disso, há conexões históricas
entre os saberes endógenos pré-coloniais e contemporâneos, apesar de a África ter
passado por processo de dominação árabo-islâmica ou ocidental. Afirmar isso não
significa ignorar as mudanças decorrentes nesse continente desde os tempos remotos.
África é um lugar de trocas e mudanças.
A História Geral da África é um exemplo vivo que traduz os princípios de saberes
africanos que os Estudos Africana destacam. O capítulo de Mazrui, Ajayi, Tshibangu e
Bohen (2010) sobre as tendências da filosofia e ciência no continente africano retrata isso.
Muitos centros de investigação no continente africano que trabalham nessa lógica nem
sempre levaram os nomes de Estudos Africanos (HOUNTONDJI, 2008; MAFEJE, 2011);
e não precisam disso. Eles o são de fato, embora sejam poucos os que faziam a ligação
com as diásporas negras, sem necessariamente ignorar esses territórios.
O GTENF – Grupo de Pesquisa em Educação Não Formal, de ideologia pan-
africanista, publicou, em 2015, um dossiê chamando a atenção sobre a necessidade de
incorporar os saberes endógenos no ensino, e isso seria um caminho para a promoção de
um desenvolvimento sustentável. Essa posição tem a ver com o entendimento que os
estudiosos africanos têm das conexões complexas que existem entre a tradição e
modernidade (KONATÉ, 2008), o seu passado, presente e futuro na produção de
conhecimentos na África contemporânea (HOUNTONDJI, 2012; MAFEJE, 2011).
Os Estudos Africana, especialmente da Afrocentricidade, a partir de 1980,
sistematizaram, tendo como ponto de partida a diáspora afro-americana, um novo
paradigma que trabalha dialeticamente a África e suas diásporas (NASCIMENTO,
2009a). Quando comecei a me interessar sobre os Estudos das Relações Raciais e Estudos
Africanos no Brasil sempre reivindiquei que era preciso realizar estudos que tratassem da
população negra, tendo um olhar, de forma recíproca, na África e em suas diásporas.
Oportunamente, a minha leitura de Estudos Africana, especialmente da Afrocentricidade,
convenceu-me de que era viável tal projeto epistemológico. Nesse sentido, considero os
Novos Estudos Africanos como uma versão de Estudos Africana produzidos desde o
Brasil. No meu caso, minhas raízes teóricas e metodológicas passam pela Filosofia
Africana de Ntumba (2014) e hoje faço uso das bibliotecas africanas e afro-diásporicas
brasileiras para viabilizar uma nova epistemologia da macumba-ubuntu-bisoidade.
Os Novos Estudos Africanos ou Estudos Africana que pratico desde o Brasil são
uma crítica ferrenha aos Estudos Africanos brancocentristas e eurocêntricos no mundo e
no Brasil, que trabalham, silenciosamente, pela manutenção do poder branco dentro desse
campo. O reconhecimento dessas falácias seria um caminho de sua descolonização,
portanto, de sua própria emancipação.
Estudos Africana/Novos Estudos Africanos desde a diáspora brasileira
O livro Afrocentricidade: Uma abordagem epistemológica inovadora, organizado
por Elisa Larkin Nascimento (2009) tem muitos méritos. Gostaria de mencionar somente
dois relativos aos objetivos desse trabalho: o primeiro é que ele faz uma síntese das
principais ideias do paradigma da Africentricidade dentro dos Estudos Africana; o
segundo revela de que forma a prática de afrocentricidade está presente nas agências
negras brasileiras, como Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs)
(NASCIMENTO, 2009a), nos textos “Quilombismo: Um conceito emergente do processo
histórico-cultural da população afro-brasileira”, de Abdias Nascimento (2009b), e “A
identidade contraditória da mulher negra brasileira: bases históricas”, de Vânia Maria da
Silva Bonfim (2009).
A leitura minuciosa dos textos que compõem o livro de Larkin Nascimento,
convenceu-me igualmente de que a minha tentativa em nomear o projeto epistemológico
Novos Estudos Africanos, que tento construir para superar as falhas dos Estudos
Africanos, é válido. E há esforços similares desde 1980. Esse campo de investigação, nos
Estados Unidos, é chamado Estudos Africana, e a Afrocentricidade é um dos seus
paradigmas. O meu caso é parecido aos da maioria de intelectuais críticos/as que
produziram obras dentro do campo de estudos sobre a África e suas diásporas sem,
necessariamente, nomear-se afrocentrados/as.
Bioepistemologia no fazer da epistemologia do Ntu
Para se compreender a identidade da corrente afrocentrada do meu projeto
epistemológico, da atualidade, que denominei de epistemologia da macumba ou de
macumba-ubuntu-bisoidade, é preciso fazer a sociogênese de minha trajetória intelectual
(MALOMALO, 2017, 2014), isso que chamo de bioepistemologia. Fui introduzido nos
saberes populares africanos, desde que nasci, em 1973, na etnia ndengese, na R.D. do
Congo. Essa fase pode ser considerada como a da educação africana não escolar. O meu
processo de alfabetização (1980-1986), educação no ensino médio (1987-1992) e a minha
primeira graduação em Filosofia africana (1993-1995) dão-se dentro do processo de
reafricanização dos currículos nacionais. Dessa forma, estudei as obras literárias e
filosóficas africanas, pan-africanistas e da negritude desde o ensino médio. Na graduação
em Filosofia li os principais pensadores africanos, francófonos e anglófonos, entre outros,
como Diop, Ki-Zerbo, Krumah, Nyerere, etc.; e tornei-me especialista na filosofia da
bisoidade de Ntumba.
A minha afrocentricidade era construída a partir do debate filosófico africano. A
cultura africana ancestral e contemporânea têm me servido, desde então, como os lugares
de construção do meu ativismo social e de meus trabalhos acadêmicos. Era um
afrocentrado bisoita. Conhecia mais a África, a sua cultura e intelectuais, e tinha pouco
conhecimento da diáspora africana.
Cheguei em 1998 ao Brasil para realizar meus estudos de Teologia (1998-2002);
depois prossegui com mestrado (2003-2005) e doutorado (2006-2010); e desde que iniciei
a minha carreira de docente universitário e pesquisador (a partir de 2009), o racismo à
brasileira me levou a tomar posição como ativista e intelectual. A minha consciência
sobre a necessidade de se tomar posição para defender os interesses do povo negro vinha
desde a R. D. do Congo. Minhas vivências nas organizações religiosas, sociais e
acadêmicas negras e africanas (Pastoral Afro-Brasileira da Igreja Católica, Instituto do
Negro Padre Batista, Grupo Atabaque Teologia Negra e Cultura, Nupe, Família Amani,
IDDAB) contribuíram para a ampliação de minha atuação como intelectual e ativista da
e na cultura africana. Meus trabalhos desde então começaram a se construir dentro, a
partir e com a cultura africana continental e diaspórica afro-brasileira (MALOMALO,
2014, 2017b). A minha entrada na Universidade de Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira radicalizou e ampliou o meu olhar sobre a cultura africana.
Dito em outras palavras, desde 1998, a diáspora africana contemporânea no Brasil
é o lugar de construção social do meu ativismo e epistemologia dos Estudos Africana.
Não produzo, a partir dos Estados Unidos, como faz Asante e outros colegas. Minhas
bibliotecas continuam sendo as culturas negras ancestrais, populares e acadêmicas, e não
importa o território de sua localização. Nesse sentido, para mim, a investigação é um
trabalhado de descobertas de conhecimentos, de instrumentos políticos para a libertação
pessoal e coletiva.
Entre os pontos comuns existentes entre a Afrocentricidade e a epistemologia da
macumba-ubuntu-bisoidade, que venho propondo, destaco esses elementos: princípios de
investigação; sujeitos produtores e beneficiadores de pesquisa cientifica; a metodologia;
campo de investigação.
Sujeitos e campo de investigação
Uma das críticas que os Estudos Africana trouxeram contra as ciências
dominantes tem a ver com a definição do lugar de sujeitos que realizam a investigação,
os/as pesquisadores/as e os sujeitos investigados/as. Asante (2009), na teoria de
Afrocentricidade, interpreta isso como o controle de agências negras pelos agentes
negros. Em outras palavras, significa, para mim, que a luta de pessoas negras é que sejam
vistas como seres humanos, portadores de direitos. Dessa forma é que se deve
compreender a luta de pessoas negras pelo seu reconhecimento nos espaços acadêmicos,
como parte de luta pela sua liberdade pelos pares não negros que os discriminam e
desqualificam permanentemente. Dessa forma é que cientistas africanos/as querem ser
tratados como cientistas a pé de igualdade, e não como meros auxiliares de pesquisadores
brancos e ocidentais (ADESINA, 2012; MAFEJE, 2011).
A mesma luta pelo reconhecimento de sua humanidade e competência no mundo
da ciência, feita pelos intelectuais negros, estende-se às pessoas negras investigadas pelos
cientistas. Aqui os Estudos Africana não exigem somente uma nova linguagem no tratado
com elas, mas uma nova postura ética da prática da ciência: os considerados “selvagens”,
“primitivos”, “objetos” da ciência racista ocidental, devem ser tratados como sujeitos
colaboradores no processo da produção acadêmica, pois muitos deles são mestres dos
conhecimentos e saberes de suas áreas que comportam lógicas diferentes do mundo
acadêmico.
A discussão sobre o campo da investigação tem igualmente a ver com o assunto
que levantei anteriormente: o lugar do pesquisador e colaborador da pesquisa; porém,
pretendo introduzir um novo elemento insistindo no que a ciência tradicional denomina
de “objeto”. De fato, trata-se de recorte que o cientista faz sobre o campo de investigação
através da delimitação de seus objetivos e a metodologia adotados. Nesse espaço, ele/ela
deixa explícito se vai investigar ou coletar seus dados com e a partir de pessoas
investigadas, ou se fará isso a partir de recursos não humanos: um arquivo, biblioteca, um
território, etc.
Os Estudos Africana definiram a África como seu campo de investigação e
africanos como sujeitos colaboradores em suas investigações.
O termo Estudos Africana usa a forma plural em latim para indicar dois
aspectos de sua polivalência: a múltipla abrangência do campo, que se estuda
os povos africanos e afrodescendentes em todo mundo, e com essa orientação
plural, a disciplina explora a história, as instituições, os movimentos políticos
e culturais, as economias, as culturas, a criatividade e as identidades dos
africanos e da diáspora em suas expressões históricas, econômicas, políticas,
artísticas, literárias, teóricas e epistemológicas. A pluralidade do conceito se
reflete também na acepção da palavra “africano”. No âmbito dos estudos
Africana e da afrocentricidade, o termo “africano” se refere aos
afrodescendentes e ao seu legado cultural no continente e na diáspora em
qualquer parte do mundo (NASCIMENTO, 2009, p. 29).
Essa concepção do campo é diferente da proposta pelo Hountondji (2008)18, no
seu texto “Estudos Africanos e africanos”. Isso dá-se não pelo fato desse autor não se
servir da teoria crítica da branquitude para criticar as armadilhas dos Estudos Africanos,
mas especialmente na definição que ele elabora sobre a filosofia africana e a crítica dele
sobre a vertente culturalista da Filosofia africana, que ele nomeia de “etnofilosofia”. A
sua concepção de filosofia africana é eurocêntrica e elitista. Ademais, entende que a
Filosofia africana é composta pelos textos produzidos somente pelos filósofos africanos
do continente. Esse olhar é problemático, tendo-se em conta a nossa compreensão da
diáspora africana como parte do continente africano. A crítica que Amadiume (1995)
lança contra Mudimbe vale igualmente contra Hountondji: criticam o paradigma
eurocentrista sem sair dele. Essas falhas estão presentes em muitas produções de Estudos
Africanos. Por isso, Obenga (2009) denomina a maioria deles de Africanismos
eurocentristas.
O campo de investigação, na perspectiva da epistemologia de macumba-ubuntu-
bisoidade, é composto de cientistas e não cientistas. O cientista macumbista tem as
africanidades, isto é, as culturas negras do continente e da diáspora como suas bibliotecas,
lugares ou centros para a construção de voo afro-filosóficos, entendido no sentido mais
amplo de elaboração de reflexões teóricas. Chamei isso de bibliotecas africanas e afro-
diásporicas. Claro, as bibliotecas de outros povos lhes são úteis igualmente para a
construção de conhecimentos multiculturais, mas não devem ser apropriados de forma
acrítica (MALOMALO, 2016).
Os saberes endógenos e populares, aos quais pertencem às culturas africanas, são
lugares de aprendizagem contínua do cientista macumbista. Aqui, ele aprende a construir
seus arcabouços teóricos, pedagógicos, estéticos, políticos e metodológicos com sintonia
com as lutas históricas de seu povo. Por pertencer a um ofício que exige a crítica
18 Cf. Igualmente: HOUNTONDJI, Paulin. Sur la philosophie africaine: Critique de l´ethnophilosophie.
Makon, Bamenda: Langaa Research, Publishing CIG, 2013.
permanente, como parte de um critério essencial para o avanço do seu ofício, portanto, de
sua comunidade e humanidade, ele deve zelar por ela.
Dito em outras palavras, os Estudos Africana lutaram para o reconhecimento dos
saberes ancestrais, endógenos, como saberes válidos na resolução dos problemas da
África, de suas diásporas e da humanidade. Os esforços de cruzamento desses saberes
ancestrais e acadêmicos africanos apontam para a renovação e consolidação recíprocas
desses saberes.
Princípios éticos e teórico-metodológicos dos Estudos Africana na perspectiva da
epistemologia do Ntu
Os princípios e regras do campo científico são criações humanas culturalmente
localizadas para assegurar a sobrevivência da ciência e, para os praticantes da ciência
emancipatória, para preservar a reprodução da ciência e do planeta. Aparecem, em termos
éticos, deontológicos e/ou estritamente em termos técnicos e/ou metodológicos, por
exemplo, um princípio que recomenda que se trata os pares do campo científicos com
igualdade, e os sujeitos colaboradores da investigação como colaboradores/as na
investigação e não como objetos. Esse mesmo princípio se estende aos campos de
investigação não humanos: territórios, sítios sagrados e não sagrados, rios, aldeias, que
devem ser tratados com respeito, com a ética do cuidado.
Dois traços da ciência tradicional são notáveis. Primeiramente, o papel dos
pensadores e inventores individuais estava subordinado aquele desempenhado
pela sociedade, como um todo, em respeito à elaboração do saber e das
capacidades no seio da cultura. A perda de autonomia e soberania própria ao
período colonial não podia, por conseguinte, senão desencadear profundas
repercussões, no transcurso do desenvolvimento e da maturação deste saber.
Em segundo lugar, as sociedades tradicionais não distinguiam os saberes ao
considerá-los como produtos da razão, da experimentação, da imaginação ou
da fé. Não havia dicotomia entre a ciência e a religião, a ciência e a filosofia,
ou a ciência e a arte. O conhecimento cientifico não se reduzia a abordagem
quantitativa e mecanista. A ciência ocidental não pode, contudo, apreciar o
método ou o valor da ciência tradicional na África, antes de atingir o estádio
da relatividade, durante o qual ela tomou como objeto (sic) principal de estudo,
não mais entidades discretas, mas as complexidades da natureza e do universo,
e iniciou, por esta mesma ocasião, o requestionamento dos paradigmas
ocidentais do progresso e do desenvolvimento (MAZRUI et al., 2010, p. 766).
Trata-se de uma crítica contra a ciência racista, patriarcal, machista, que trata o
outro (seres humanos e não humanos) como objetos. Todavia, Mazrui, Ajayi, Tshibangu
e Bohen (2010), por terem escrito o seu texto em um período em que a linguagem da
ciência positivista ocidental era forte, fazem o uso do termo “objeto”.
Para além da crítica feita, depreende-se os elementos como o esforço pela
humanização da ciência que tanto se fala; em nossa perspectiva, falamos da
“macumbização” “bisoisização” ou “ubuituisização” da ciência, posto que os/as cientistas
modernos/as devem se apropriar criticamente da consciência africana ancestral, no que
tenha de útil, para praticar a ciência numa perspectiva cósmica ou holística: todos os seres
humanos e não humanos, nessa direção, merecem respeito. Ou seja, a ciência é uma
criação cultural, portanto, humana, que deve levar a humanidade para o encanto do outro,
isto é, a Comunidade-Sagrado-Divino, Comunidade-de-Bantu e a Comunidade-Universo-
Natureza. No mesmo trecho percebe-se o respeito que se deve aos cientistas
tradicionalistas ou populares.
Desse princípio maior deriva o segundo, que é o acordo entre os praticantes dos
Estudos Africana de que estes são um campo de investigação multidisciplinar,
interdisciplinar ou transdisciplinar. Não podem ser disciplinares. Além disso, são
multiculturais. Diop (1981) continuará sendo uma das figuras de cientistas dos Estudos
Africana, como individuo, que praticou a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade nas
suas últimas consequências, pois sua produção soube estabelecer um diálogo entre as
ciências humanas e ciências da natureza para se estudar a África. Vejo a mesma tendência
nos grupos da egiptologia africana deixado por Diop e liderado atualmente por Théophile
Obenga (OBENGA, 2005; MACEDO, 2016; FINCH III, 2009). Diop continua inspirando
outros centros pan-africanistas, no continente africano, motivados pela inter e
transdisciplinaridade (GUTTO, 2006).
Tratando das tendências mais importantes no âmbito dos Estudos Africana, nos
Estados Unidos, Marenga (2009, p. 334) destaca essas suas áreas de investigação: 1) as
organizações profissionais da disciplina; 2) a metodologia da afrocentricidade; 3) os
estudos das mulheres negras; 4) os estudos multiculturais; 5) os estudos da África
clássica.
No Brasil, a minha universidade, a UNILAB, nasceu com a missão de praticar
interdisciplinaridade e comporta um potencial da prática da transdisciplinaridade. Porém,
a disputa do poder pelo poder não a permite cumprir com a sua missão como deveria.
Essa universidade, em suas Diretrizes (2008), idealizou organizar a produção de saberes
sobre a África, os países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), maioria
países africanos, a partir desses Institutos:
- ICEN – Instituto de Ciências Exatas e da Natureza: cursos de Licenciaturas em
Biologia, Química, Física e Matemáticas; Mestrado Profissional em Matemáticas;
- ICSA – Instituto de Ciências Sociais Aplicadas: curso de bacharelado em
Administração pública;
- ICS – Instituto de Ciências da Saúde: curso de bacharelado em Enfermagem;
Curso de Mestrado em Enfermagem;
- IDR – Instituto do Desenvolvimento Rural: Curso de bacharelado em
Agronomia;
- IED – Instituto de Engenharia e Desenvolvimento Sustentável: curso de
bacharelado em Engenharia de Energia; Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade e
Tecnologias Sustentáveis (Masts);
- IHL – Instituto de Humanidades e Letras: bacharelado em Humanidades,
Relações Internacionais, Licenciaturas em Letras, Antropologia, Sociologia, História,
Pedagogia; Mestrado Interdisciplinar em Humanidades e Mestrado em Antropologia.
O que acontece é que esse projeto ímpar, no mundo, vem encontrando dificuldade
para a sua efetivação. Uma das razões é o peso da hegemonia do eurocentrismo que
predomina entre seus docentes. Há uma pouca produção sobre a África em seus institutos
e ela aparece de forma desproporcional. O IHL continua sendo o instituto com mais
produções sobre a África e a diáspora afro-brasileira (MALOMALO, 2017d; OSMARIA;
SILVA, 2017).
Trago igualmente um outro espaço de produção de conhecimentos sobre a África
e suas diásporas que tem alimentado as construções teóricas e metodológicas do projeto
da macumba-ubuntu-bisoidade: Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as
(ABPN). Essa, que inicialmente concentrava seus esforços nas humanidades afro-
brasileiras (MALOMALO, 2017b), vem se abrindo para incorporar as produções
africanas e afro-diaspóricas das ciências da natureza. Essas mudanças, em minha
interpretação, têm a ver com as prioridades históricas e a maturidade dos Estudos Afro-
Brasileiros e Estudos das Relações Raciais no país.
A ABPN nasceu do acúmulo dos trabalhos de intelectuais negros e negras, desde
2000, ao organizar o I Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as (COPENE)19.
Esses sempre reconheceram a sua filiação a produção contra-hegemônica do
conhecimento feita pelos/as intelectuais negros/as no Brasil e no mundo. Atuavam a
contracorrente de Estudos Africanos existentes no país pela sua lógica branco
eurocêntrica. Sustentaram-se, aos longos de anos, através os Núcleos de Estudos Afro-
Brasileiros (NEABs), sediados nas instituições públicas e privadas. A partir de 2003, com
a promulgação da lei no 1063920, que obriga o ensino da história e cultura africana e afro-
brasileira, e o lançamento dos oito volumes da HGA da UNESCO21, uma boa parte de
NEABs começou a incorporar as temáticas de África numa perspectiva de conexões com
a sua diáspora afro-brasileira ou mundial.
A seguir, apresento o quadro das áreas que compõem a ABPN na atualidade. O
que se percebe é que cobre todas as áreas de produção: as ciências humanas e as ciências
da natureza.
Quadro 1. Áreas científicas da ABPN
Áreas científicas da ABPN
Arquitetura e Urbanismo africano
Branquidade e Branquitude
Brasil e países da África
19 História dos COPENE. Disponível em: https://www.abpn.org.br/anais-copenes. Acessado em 15 de
abril 2018. 20 BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC/SEPPIR,
2004a;______. Lei No 10.639/2003. In: Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC/SEPPIR,
2004b;______. MEC; SEPPIR. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais
da Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Brasília, 2009. Disponível em: hht://portal.MEC.gov.br/. Acessado em 10 fev. 2010.
21 DEFOURNY, Vinvent; HADDAD, Fernando. Apresentação. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História
Geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2 ed. Revisada. Brasília: UNESCO, 2010, pp.
VII-VIII.
Ciências Sociais
Ciências e Tecnologias
Comunicação e Mídia
Educação
Filosofia Africana e Afrodiaspórica
Experiências Tradicionais e Religiosas
Feminismos Negros
Intercâmbios
Literatura
Memória e Patrimônio
Fonte: reelaborado pelo autor22
Quero destacar aqui as ideias que permeiam a área das Ciências e Tecnologia de
pela sua novidade. As suas duas coordenadoras, a doutora Anna M. Canavarro Benite e
Nicéa Quintino Amaro, trazem esses detalhes:
Ainda não ocorreu uma ampla divulgação da participação de homens e
mulheres negras na gestação e produção de muitas das inovações e conquistas
científicas e tecnológicas da humanidade, ocultamento este ligado à cultura do
racismo. É na contramão desta invisibilidade que a área de Ciências Exatas e
Tecnologias da ABPN (CET/ABPN) aturará buscando divulgar pessoas como
André Rebouças, George W. Carver, Eliza Ann Grier e Patricia Bath. Esta
relação de nomes, de forma simbólica, nos serve como um indicativo do quanto
a área de CET/ABPN pode contribuir para o avanço da educação para as
relações étnico-raciais, pois abre-se a possibilidade de apresentarmos ao
público em geral, cientistas negros/as, ou seja, um grupo de pessoas com um
perfil bem diferenciado daquele divulgado por uma mídia que insiste em
reproduzir uma visão eurocêntrica e discriminatória23.
Em seguida, situam a produção de seus trabalhos numa perspectiva dos Estudos
Africana que reconhecem a importância de africanos/as e seus descendentes na produção
da tecnologia no seu continente e na diáspora brasileira.
A tecnologia teve como berço o continente africano e esta aqui [no Brasil]
aportou também trazida por diferentes grupos, tais como libolos, congos
(cambindas), vilis, tios, ambundos, moçambiques, ijexás, egbás que
22 Disponível em: https://www.abpn.org.br/. Acessado em 23 jan. 2018.
23 ABPN – CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Disponível em: https://www.abpn.org.br/ciencias-e-
tecnologias. Acessado em 10 abril 2018.
contribuíram com bem mais do que sua força de trabalho para o
desenvolvimento dos diferentes territórios nos quais aportaram. Os povos
iorubanos, por exemplo, trouxeram em suas mentes o mito de Ogum, o
sintetizador de milhares de ferreiros os quais dominavam técnicas de trabalho
com metais tais como o ferro, o ouro e cobre.
Dessa forma, a sua missão, no âmbito da ABPN e demais associações
científicas e acadêmicas
[é] desenvolver e apoiar os esforços para aumentar as oportunidades para
negros/as nas carreiras científicas e tecnológicas. Para tal, a área de Ciências
Exatas e Tecnologias será uma nucleadora de atividades, projetos e programas
para destacar os benefícios das contribuições científicas dos/as educadores/as,
intelectuais, pesquisadores/as e cientistas negros/as no contexto brasileiro.
Suas coordenadoras compreendem que o campo das Ciências Exatas e suas
Tecnologias agregam diferentes áreas do conhecimento, por exemplo, a medicina,
biologia, matemática, física, química e as engenharias, e nelas encontram-se mentes e
mãos de homens e de mulheres negras que colaboraram, por meio de seus estudos,
pesquisas, inventos para avanços científicos/econômicos em diferentes partes do mundo.
O que importa é tensionar essas disciplinas para o desenvolvimento de um debate em
torno da educação para as relações etnicorraciais.
O desenho de seus objetivos corresponde aos de muitas associações de intelectuais
negros/as ligadas aos Estudos Africana. De forma particular, suas coordenadoras
destacam esses:
- Aumentar o número e visibilidade do trabalho técnico-científico de
pesquisadores/as, professores/as e especialistas negros/as;
- Ampliar o conhecimento, para o público geral, por meio de instrumentos de
divulgação científica, da produção e o impacto das pesquisas desenvolvidas por cientistas
negros/as;
- Reivindicar a ampliação de recursos públicos para a área de Ciências Exatas e
Tecnologias, bem como uma política, formação e financiamento de atividades de
pesquisa de nossos/as cientistas negros/as.
Além da dimensão particular de reconhecer o paradigma ancestral africano na
produção de conhecimento na área da ciência e tecnologia, as organizadoras dessa área
trabalham pelo destaque do protagonismo das mulheres negras.
Desta forma, afirmamos nossa posição como protagonistas históricos na
produção do conhecimento humano, aqui cientifico e tecnológico, nas
incontáveis contribuições contemporâneas e na nossa incessante permanência
nos espaços “duros” de fazer científico que preterem nossa presença e para
finalizarmos informamos que temos Ogum como patrono mítico e a Enedina
Alves (1913 - 1981), a primeira mulher negra a graduar-se em Engenharia no
Brasil, como nossa madrinha.
A escolha de Ogum como Patrono e Enedina Alves como madrinha revela uma
opção teórica e política do feminismo que não exclui a inclusão de homens na luta pela
igualdade de gênero, além disso, sinaliza a força de mulheres negras na democratização
da ABPN. Mulheres negras passaram a ocupar lugares de comando nessa associação. A
sua Diretoria de 2016-2018 é marcadamente feminina: Profª. Drª. Anna M. Canavarro
Benite (Presidente); Profª. Drª. Nicéa Quintino Amauro (Secretária Executiva); Profª. Drª.
Fernanda Souza Bairros (Diretora de Relações Institucionais); Profª. Drª. Ana Beatriz
Sousa Gomes (Diretora de Relações Internacionais) e Profª. Drª. Raquel Amorim dos
Santos (Diretora de Áreas Acadêmicas).
Na apresentação do dossiê temática da Revista ABPN “Por uma produção de
ciência negra: experiências nos currículos de Química, Física, Matemática, Biologia e
Tecnologias”, Nicéa Quintino Amauro, Luciana de Oliveira Dias e Paulo Vinicius
Baptista da Silva (2017, p. 1-2), suas e seu organizadoras/r escrevem:
Prezadas/os Leitoras/es,
Apresentamos o novo número da Revista da ABPN, Associação Brasileira de
Pesquisadores/as Negros/as, que pauta suas produções pela qualidade das
publicações que têm como foco a promoção dos Direitos Humanos da
população negra na América Latina e Caribe. Os textos aqui apresentados
nesta vigésima segunda edição contemplam as áreas de história, educação,
literatura, química e artes em suas diferentes abordagens e múltiplas inter-
relações. E tem uma contribuição mais ampliada para as áreas de ensino e
de educação superior, visto que é composta pelo Dossiê Temático “Por
uma produção de ciência negra: experiências nos currículos de Química,
Física, Matemática, Biologia e Tecnologias”.
Este número é lançado em um momento no qual se acentuam os desafios para
a agenda da igualdade racial e luta antirracista, especialmente pelas políticas
sociais restritivas impostas pelo Governo Federal, que já apresentam impactos,
por exemplo, no aumento da pobreza e desemprego, que, em função do
racismo estrutural, penalizam especialmente a população negra. Neste
contexto, se fazem necessárias novas posturas para a pesquisa e para o ativismo
negro acadêmico que são impactados pelos retrocessos Sociais.
Com isso, podemos trazer três outros princípios que caracterizam a epistemologia
de macumba-ubuntu-bisoidade que encontramos na atuação da APBN: produzir o
conhecimento “a partir”, “mediante” e “para a vida”. O último compromisso é o
compromisso coletivo com a ética do cuidado com a vida de pessoas negras, africanos/as
do continente e africanos/as e seus descendentes das diásporas e com a vida do universo.
Considerações finais
O que procurei mostrar ao longo deste texto é que os Estudos Africana ou Novos
Estudos Africanos, no Brasil, constituem um campo de produção de conhecimento sobre
a África e suas diásporas em processo de consolidação. Para tanto, tomei como
parâmetros a construção do meu projeto epistemológico chamado “Epistemologia do
Ntu”, ou se preferir, a “Epistemologia da macumba-ubuntu-bisoidade”, a Associação
Brasileira de Pesquisadores/as Negros e Negras, da qual sou filiado, e a UNILAB,
instituição onde trabalho.
Na UNILAB tinha começado a desenvolver minhas reflexões em torno do que
chamei, desde 2013, de Novos Estudos Africanos. Meu contato com a literatura de
Estudos Africana e a leitura minuciosa feita sobre alguns de seus textos, de forma
particular, a partir do seu paradigma da Afrocentricidade, revelaram-me que estava a
praticar os Estudos Africana do que os Estudos Africanos. Esse meu texto foi, então, a
minha primeira resposta direta de recusa aos Estudos Africanos assente na branquitude
racista. Defendi a minha posição trazendo à tona o que considero como falhas desses
estudos: a manutenção da branquitude racista, ou o que Mazza (2009) identifica, no
contexto norte-americano, como supremacia branca com seus desdobramentos negativos
na estruturação desse campo acadêmico como espaço de produção de conhecimento e
libertação da humanidade e do planeta.
Defendi igualmente que os Novos Estudos Africanos são sinônimos de Estudos
Africana. Em meus próximos estudos espero continuar a usar somente o último conceito,
não somente pela sua consolidação como campo científico, mas igualmente pela
solidariedade com o meu povo africano, e por acreditar que este último termo é uma
superação conceitual e política do que o primeiro, que corre o risco de cair nas armadilhas
dos Estudos Africanos brancocentristas.
Ao longo do texto, ao procurar demostrar os elementos que compõem o campo
dos Estudos Africana construídos, desde a diáspora africana no Brasil, pautei-me mais no
paradigma científico que venho construindo: a Epistemologia do Ntu. Argumentei que o
campo de investigação dos Estudos Africana é a cultura africana, que chamamos às vezes
de africanidades africanas e africanidades brasileiras. As pessoas africanas e seus
descendentes devem se considerar e serem consideradas como sujeitos de investigação
e/ou colaboradoras, e não como objetos. A interdisciplinaridade e/ou a
transdisciplinaridade é a abordagem desses estudos. Os conceitos, categorias, desse
campo de estudo, devem ser buscadas nas bibliotecas africanas e afrodiaspóricas;
reavaliadas e reinventadas, criticamente.
Há muitas áreas em emergência, no Brasil, que interessam aos Estudos Africana.
Porém, além da preocupação em investir suas energias na educação, os/as
pesquisadores/as negros/as brasileiros/as, estão começando a se ocupar da área de Ciência
e Tecnologia. A ciência tem por missão, nesses estudos, a emancipação humana e
cósmica.
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