16
Os conteúdos deste periódico de acesso aberto estão licenciados sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-UsoNãoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported. Civitas Porto Alegre v. 14 n. 1 p. 27-42 jan.-abr. 2014 Dossiê: Diálogos do Sul Estudos pós-coloniais Desconstruindo genealogias eurocêntricas Post-colonial studies Deconstructing Eurocentric genealogies Inocência Mata* Resumo: O pós-colonial, termo que remonta aos anos 1970, só adquire, enquanto noção, substância conceptual a partir dos anos 1980, no mundo anglo-saxônico, particularmente com o hoje datado livro The empires writes back: theory and practice in post-colonial literatures (Ashcroft, 1989). Embora este seja um dos primeiros livros desta área de estudos (aliás, livro seminal que, pode dizer-se, está na origem da abertura a um campo de investigação, em retração hoje), e apesar de não existir uma teoria pós-colonial, o que parece aproximar as várias percepções deste campo de estudos é a construção de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodológicos na análise cultural, sendo porventura a mais importante mudança a assinalar no campo dos estudos culturais (e literários) a análise das relações de poder, nas diversas áreas da atividade social caracterizada pela diferença: étnica, de raça, de classe, de gênero, de orientação sexual… Apesar disso, muitos estudiosos, particularmente de ex-impérios, convergem para a consideração de que os atuais estudos culturais, nomeadamente no âmbito da crítica pós-colonial, se reorganizam em outros alicerces, diferentes dos tradicionais, de antagonismos lineares e duais, que intentam perpetuar a supremacia de uma estrutura ideológica e histórica espácio-temporal. O objetivo deste ensaio é intentar o desvelamento dos meandros hegemônicos dos estudos pós-coloniais. Palavras-chave: Pós-colonial. Construção epistemológica. Ideologia. Eurocentrismo. Hegemonia. * Doutora em Letras pela Universidade de Lisboa (Portugual), com pós-doutoramento em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial studies, identity, ethnicity, and globalization, Universidade de Califórnia, Berkeley, EUA), professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na área de Literaturas, Artes e Culturas e investigadora do Centro de Estudos Comparatistas, núcleo de excelência, segundo FCT-PT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Portugal). Este artigo retoma o tema da conferência proferida no ciclo Balanço literário da década no mundo lusófono, organizado por LiteraturaPnet e Centro Nacional de Cultura (Lisboa, 29 set. 2011) e no PPG em Sociologia da UFPE (Recife, 30 out. 2012), com o título O pós-colonial como ideologia: os estudos literários e a ordem eurocêntrica (Mata, 2012) <[email protected]>.

Estudos pós-coloniais

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Inocência Mata

Citation preview

  • Os contedos deste peridico de acesso aberto esto licenciados sob os termos da LicenaCreative Commons Atribuio-UsoNoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported.

    Civitas Porto Alegre v. 14 n. 1 p. 27-42 jan.-abr. 2014

    Dossi: Dilogos do Sul

    Estudos ps-coloniaisDesconstruindo genealogias eurocntricas

    Post-colonial studiesDeconstructing Eurocentric genealogies

    Inocncia Mata*

    Resumo: O ps-colonial, termo que remonta aos anos 1970, s adquire, enquanto noo, substncia conceptual a partir dos anos 1980, no mundo anglo-saxnico, particularmente com o hoje datado livro The empires writes back: theory and practice in post-colonial literatures (Ashcroft, 1989). Embora este seja um dos primeiros livros desta rea de estudos (alis, livro seminal que, pode dizer-se, est na origem da abertura a um campo de investigao, em retrao hoje), e apesar de no existir uma teoria ps-colonial, o que parece aproximar as vrias percepes deste campo de estudos a construo de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodolgicos na anlise cultural, sendo porventura a mais importante mudana a assinalar no campo dos estudos culturais (e literrios) a anlise das relaes de poder, nas diversas reas da atividade social caracterizada pela diferena: tnica, de raa, de classe, de gnero, de orientao sexual Apesar disso, muitos estudiosos, particularmente de ex-imprios, convergem para a considerao de que os atuais estudos culturais, nomeadamente no mbito da crtica ps-colonial, se reorganizam em outros alicerces, diferentes dos tradicionais, de antagonismos lineares e duais, que intentam perpetuar a supremacia de uma estrutura ideolgica e histrica espcio-temporal. O objetivo deste ensaio intentar o desvelamento dos meandros hegemnicos dos estudos ps-coloniais.Palavras-chave: Ps-colonial. Construo epistemolgica. Ideologia. Eurocentrismo. Hegemonia.

    * Doutora em Letras pela Universidade de Lisboa (Portugual), com ps-doutoramento em Estudos Ps-coloniais (Postcolonial studies, identity, ethnicity, and globalization, Universidade de Califrnia, Berkeley, EUA), professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na rea de Literaturas, Artes e Culturas e investigadora do Centro de Estudos Comparatistas, ncleo de excelncia, segundo FCT-PT (Fundao para a Cincia e a Tecnologia, Portugal). Este artigo retoma o tema da conferncia proferida no ciclo Balano literrio da dcada no mundo lusfono, organizado por LiteraturaPnet e Centro Nacional de Cultura (Lisboa, 29 set. 2011) e no PPG em Sociologia da UFPE (Recife, 30 out. 2012), com o ttulo O ps-colonial como ideologia: os estudos literrios e a ordem eurocntrica (Mata, 2012) .

  • 28 Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014

    Abstract: The expression post-colonial, current in the 70s of the last century, was only recognized in the Anglo-Saxon world as a substantial concept during the 80s. This dates from the publication of the book, The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures (Ashcroft, 1989). Although this was one of the first books in this area of study (however, a seminal work which, we could say, gave rise to the opening of a field of research which is being retraced today), and although there cant be said to be one post-colonial theory, what seems to approximate the various perceptions of this field of studies is the construction of epistemologies that point to other methodological paradigms for cultural analysis. The most important change to point out in the field of cultural (and literary) is the analysis of power relations in the different areas of social activity, differentiated by such things as ethnicity, race, class, gender and sexual orientation. Despite this, many researchers, particularly from the former empires, merge in their considerations of recent cultural studies, notably in the area of post-colonial criticism, reorganized on other foundations, different from the traditional, from linear and dualistic antagonisms which attempt to perpetuate the supremacy of an ideological and historical space-time structure. The object of the present study is to endeavour to unveil these hegemonic meanderings of post-colonial studies.Keywords: Post-colonial. Epistemological construction. Ideology. Hegemony.

    Uma explcita razo tica

    Comeo este texto com uma histria, em jeito de exemplum, que pretendo que funcione como epgrafe desta reflexo sobre o ps-colonial.

    Um grupo de turistas ocidentais vai visitar uma reserva em frica, e a dada altura, um dos turistas ocidentais pergunta ao guia, um africano, depois de ver um animal que nunca tinha visto antes, que animal era aquele. Mas a pergunta vinha formulada assim: Como que se chama aquele animal branco com riscos pretos?. O guia africano respondeu: Chama-se zebra. Mas ateno, no um animal branco com riscos pretos. Pelo contrrio, um animal preto com riscos brancos. Entretanto a discusso prolonga-se, no houve entendimento, com as duas partes a revelarem verdadeira frustrao. O africano dizia: Mas isto foi sempre assim, o animal um animal preto com riscos brancos, no sei como que esse senhor vem agora, ainda por cima nem sabia que animal era, vem aqui e quer obrigar-me a pensar que o animal branco com riscos pretos!1

    Os meandros ideolgicos da ps-colonialidadeSe comecei este texto com uma narrativa com um cunho tendencialmente

    moral, foi para justificar o enquadramento epistemolgico que se impe 1 Texto parafraseado de uma interveno de Joo Milando (2007, p. 119).

  • I. Mata Estudos ps-coloniais 29

    quando se pretende traar uma genealogia dos estudos ps-colonias, sobretudo se esses estudos se referem frica (na verdade, apetece-me dizer, ao resto do mundo). Esse rastreio torna evidente a dimenso eurocntrica, melhor ocidentalocntrica, da natureza desses estudos atravs de categorias que nas cincias sociais e nas humanidades se confundem com constructos tericos. Funcionando como uma ideologia, como uma determinada lgica epistemolgica, a categoria ps-colonial tornou-se, nos estudos culturais, a mais subliminar porque a mais trpica.

    Assim, reconhecendo na breve narrativa acima apresentada, mais parablica do que apologal,2 uma razo tica explcita, a da concepo precetstica de frica, assinale-se ainda a genealogia do pensamento subjacente (atual) hegemonia etnocultural, que mergulha as suas razes num passado recente pouco discutido, porm disseminado nas prticas culturais de sujeitos provenientes quer de potncias colonizadoras e imperialistas, quer de espaos ex-imperiais. O propsito desta reflexo contribuir para o questionamento da lgica da construo de saberes ainda prevalecente na investigao acadmica, tomando como exemplo a ausncia de repertrios culturais e de corpora exemplares, em que se fundam teorias, constitudos por textos culturais africanos (da literatura e outros) nessa acumulao de conhecimento que formam as bibliotecas coloniais, de que fala Mudimbe, em que as experincias culturais dos subalternos dos povos colonizados , as suas construes culturais so relegadas a um secundrio lugar rotulado como saber local, que a tradio filosfica ocidental no considera relevante.

    por isso produtivo, nessa luta pela desestabilizao dos lugares cativos de epistemologias prevalecentes, chamar a ateno para a perversidade de determinados tropos to caros a uma certa cincia, como cnone e universal, cosmopolitismo ou globalizao, o que faz com que esta incurso analtica se faa atravs dos estudos literrios, embora a este campo no se confine. que o funcionamento desses tropos revela o que Samir Amin considera marcas do eurocentrismo que pode ser entendido como um universalismo, pois prope a todos a imitao do modelo ocidental como a nica sada aos desafios do nosso tempo (Amin, 1988, p. 8).

    2 Gnero narrativo prximo do aplogo, a parbola uma narrao utilizada para ilustrar lies de sabedoria e/ou tica por vias simblicas ou indiretas, a partir de um caso particular, tendo como personagens apenas seres humanos (diferentemente do aplogo, que personifica seres inanimados, transformando-os em personagens da histria), procurando tornar perceptvel uma significao geral e podendo evocar outras realidades, tanto fantsticas, quando reais. Possuindo uma razo moral, implcita ou explcita, porm, no tem necessariamente um fundo religioso.

  • 30 Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014

    Assim, antes de continuar esta reflexo, vale situar os dois pilares conceptuais que a suportam, a saber: ideologia e ps-colonial.

    Porque a noo de ideologia funcional consoante a perspectiva teleolgica em questo, pretendo, neste contexto, utilizar a proposta de Fredric Jameson que, na trilha de Louis Althusser, define ideologia como estrutura de representaes que permite ao sujeito individual conceber ou imaginar sua relao vivida com realidades transpessoais, tais como a estrutura social, ou a lgica coletiva da Histria (Jameson, 1992, p. 27). Esta categoria, que funciona como uma disposio obsidiante na tessitura da questo identitria, um sistema de valores morais, ticos, sociais, culturais e at espirituais, sistema que condiciona a relao de uma comunidade com o mundo e de que se serve o homem para justificar e interpretar a sua situao e a sua ao na Histria. Porm, para Claude Prvost, tal como para Jameson (que fala de um inconsciente poltico), uma ideologia mais do que isso: na verdade, para Prvost (1976, p. 171-172), uma ideologia no [...] somente um sistema de ideias mas tambm um conjunto estruturado de imagens, de representaes, de mitos, determinando certos tipos de comportamentos, de prticas, de hbitos e funcionando [...] como um verdadeiro inconsciente.

    Inconsciente , na verdade, como se pode caracterizar o gesto de naturalizao da subalternidade, da excluso e do estatuto perifrico, ou o gesto de prescrio do esttico-literrio, com uma forte carga darwinista, que decorre de muitos juzos sobre o esttico sobretudo pela crtica de autores com trnsito na comunicao social, cujo discurso mais judicativo do que interpretativo do objeto esttico em questo. Do mesmo modo, esse darwinismo manifesta-se, por exemplo, quando, em se tratando de culturas e sociedades africanas, h africanistas que ainda insistem em falar em evoluo cultural e de considerar matrias inerentes aos estudos africanos a cooperao com a Europa ou a ajuda ao desenvolvimento

    O segundo pilar conceptual desta reflexo ps-colonial. Noo relativamente antiga, que remonta aos anos 1970, ela s adquire substncia conceptual a partir dos anos 1980, no mundo anglo-saxnico, particularmente com o hoje datado livro The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures (1989) ttulo decorrente de uma frase de Salman Rushdie: I am a British writer. The empire writes back to the center. Sendo este um dos primeiros livros desta rea de estudos (alis, livro seminal que, pode dizer-se, est na origem da abertura a um campo de investigao, hoje em retrao pelo questionamento que se vem fazendo aos atalhos epistemolgicos a que pode conduzir), no se pode dizer que exista uma teoria ps-colonial. Em todo o caso, vale dizer que o que parece aproximar as vrias percepes,

  • I. Mata Estudos ps-coloniais 31

    perspectivas e insights deste campo de estudos a construo de epistemologias que apontam para outros paradigmas metodolgicos que potenciam outras formas de racionalidade, racionalidades alternativas, outras epistemologias, do Sul, por exemplo diferentes dos clssicos na anlise cultural e literria. Decorre desta reflexo a considerao de que porventura a mais importante mudana a assinalar a ateno anlise das relaes de poder, nas diversas reas da atividade social caracterizada pela diferena: tnica, de raa, de classe, de gnero, de orientao sexual

    Neste contexto, julgo que os destinadores das teorias ps-coloniais pretendem que elas funcionem, tambm, como instrumento de anlise de relaes de hegemonia e desvelamento da colonialidade do saber segundo uma estratgia de resistncia a sistemas de conformao da tendncia hierarquizante da diferena, como seja, por exemplo, o eurocentrismo. Da a generosidade com que estas epistemologias se disseminaram, o que torna relevante a considerao de Ella Shohat de que essa designao ps-colonial pastoral pois, apontando para o final de um perodo, bem visvel no sufixo ps, ratifica a ideia de um mundo de iguais e sem fronteiras, naturalizando as desiguais relaes de poder geradas pelos efeitos homogeneizantes da globalizao contempornea, cujos circuitos (econmicos, sociais, culturais, at cientficos) so orientados para o Ocidente (a Europa e a Amrica do Norte). este trabalho de desvelamento, que tambm de desmistificao, que permite direcionar o nosso olhar para os (outros e novos) interstcios do poder

    Hoje cada vez mais as crticas crtica ps-colonial, sobretudo aquelas que vm dos ex-imprios, convergem para a considerao de que, no obstante a conscincia da necessidade de dialogar com as epistemologias do sul na construo do saber, os atuais estudos culturais tm-se reorganizado em outros alicerces, diferentes dos tradicionais, de antagonismos lineares e duais, que continuam a perpetuar a supremacia de uma estrutura ideolgica e histrica espao-temporal. Esta estrutura, ratificada pelas atuais relaes de poder, pastoralmente designadas como sendo ps-coloniais (e no j neocoloniais e imperiais), tem reflexos na rea das cincias sociais e humanas, e at dos estudos literrios, no obstante os seus destinadores (o Ocidente) serem entidades imaginrias, apenas construes discursivas, enquanto objeto e sujeito de discurso: afinal, o Ocidente, assim como sua contrapartida oriental, uma construo fictcia baseada em mitos e fantasias (Shohat; Stam, 2006, p. 37). No entanto, essa natureza no histrica no impede que essas entidades se apresentem como modelares por via de artificiosas interpretaes da histria, de mistificaes da histria, sempre ideolgicas, que

  • 32 Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014

    a historiografia legitima como evidncia de fatos histricos. Um exemplo dessa mistificao manifesta-se nas celebraes tendenciosamente eugnicas da mestiagem como um sintoma de upgrade civilizacional de comunidades mestias, sem qualquer considerao das relaes coloniais de dominao das populaes colonizadas em que ocorrem esses fenmenos; outro exemplo pode ver-se quando a histria europeia registra como reconquista todo o perodo dos sculos 8 a 15, em que os soberanos cristos da Pennsula Ibrica conquistaram terras aos morros

    Assim, discutir esta questo assim formulada o ps-colonial como ideologia desvelar, afinal, trpicos do discurso epistemolgico cujos paradigmas so marcadamente eurocntricos, portanto, formular uma crtica que no omite as suas tenses e contradies e ajuda a esclarecer a espacialidade das relaes de poder e de dominao (Vesentini, s. d.), ou seja, percorrer os trilhos que levam a uma geocrtica do eurocen- trismo.

    Uma geocrtica do eurocentrismo pressupe a instituio de um desvio em direo a uma gramtica alternativa com categorias e perspectivas que neutralizem ou, pelo menos, faam desvanecer o peso das mediaes metropolitanas da crtica das produes culturais dos pases perifricos, de espaos periferizados, relegados a um lugar subalterno na produo contempornea de conhecimento, pois o eurocentrismo uma reconstruo mitolgica recente (da poca moderna) da histria da Europa e do mundo na sua dimenso cultural, entre outras (Amin, 1988, p. 9).

    esse desvio em direo a um outro sentido, que prope a incluso de outras racionalidades, que vm percorrido muitos estudiosos desses espaos, com especial nfase para os das literaturas e culturas latino-americanas,3 quando consideram, nas entrelinhas do seu diverso e variado corpo de reflexes sobre produes dessas geografias culturais, que o estudo do lugar de cada produo esttica passa, tambm, por uma reflexo sobre o percurso cultural de uma gerao ou uma nao. No caso do estudo da literatura, preciso no esquecer, antes de qualquer rtulo (local, regional), que o escritor um sujeito do seu tempo e que a literatura produo social, parte integrante de uma realidade e de uma histria nunca neutras (Polar, 2000, p. 20).

    A esta reivindicao da dimenso social e histrica da obra literria junta-se outra a que Polar no se esquiva: a reivindicao de autonomia terica, corolrio da ideia de dependncia cultural com reflexos na cincia 3 Note-se, no entanto, que muitos destes crticos so, como bem lembra Stuart Hall, professores

    em universidades do centro, particularmente nos Estados Unidos e no Canad.

  • I. Mata Estudos ps-coloniais 33

    (sobretudo aquela que trata das identidades, sob vrios prismas disciplinares), pensamento to transversal crtica da dominao epistemolgica como se pode ver na posio de Jacqui Alexander, segundo a qual, nos seus estudos de Womens studies and gender studies, afirma que lugar e espao so locais importantes nos processos de produo de conhecimento (2005, p. 91). Por isso, ao falar do projeto de reivindicao de autonomia terica, o peruano Cornejo Polar afirma que se no o desenvolvermos ns mesmos, ser a crtica mais conservadora que manipular algumas categorias, como a da pluralidade, para reforar as interpretaes histricas, sociais e culturais que precisamente nos interessa recusar (Polar, 2000, p. 51). que no nos podemos esquecer que as prticas de dominao so tecidas e manifestam-se tanto nos interstcios das instituies do saber e outras e dos articulados tericos quanto na vida quotidiana e social. Ou, como formula Samir Amin,

    Ses manifestations [celles de leurocentrisme], comme celles dautres phnomnes sociaux dominants, sexpriment dans les domaines les plus divers les rapports quotidienes entre individus, linformation et lopinion politiques, les opinions generals concernant la socit et la culture, la science sociale (Amin, 1988, p. 72).4

    A inconscincia dessa colonizao invisvel (e consentida porque inconscincia) bloqueia qualquer resistncia, por exemplo nos estudos de literaturas perifricas, como so, por exemplo, as literaturas dos pases africanos, ou outras de regies perifricas nacionais dominadas pelo cnone metropolitano interno (literatura de autoria afro descendente, literatura amazonense, literatura mato-grossense, literatura nordestina): refiro-me manipulao de categorias caras s atuais perspectivas crticas, reforando os lugares de hegemonia j cativos, radicados no imaginrio e no aparato terico, seja eminentemente literrio, seja amplamente cultural, que se constri a partir de matrizes culturais e teorizaes do Ocidente. A adoo de determinadas formulaes e categorias como crioulidade, hibridismo, hibridez, mestiagem, identidades sem fronteira (quando no desindentidades), universal/universalidade, global/local, cosmopolitismo, ps-colonial/ps-moderno, modernidade (em regra a opor-se a tradio) para enquadramento terico e compreenso das culturas e produes de pases ex-colonizados ou de espaos periferizados, por estudiosos do Terceiro Mundo em instituies do

    4 Traduo livre: As manifestaes de eurocentrismo, como as de outros fenmenos sociais dominantes, exprimem-se nos domnios mais diversos das relaes cotidianas entre indivduos, informao e opinies polticas, opinies gerais sobre a sociedade e a cultura, a cincia social.

  • 34 Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014

    centro ou em dilogo com ele, revela uma dependncia terica consentida dos acadmicos desses pases, e de africanistas, prodigamente armados de diplomas que procedem a desorientaes desse tipo. Por exemplo, como j afirmei em outro lugar, considerar que temas como cooperao e desenvolvimento so especficos da rea de Estudos Africanos, revelar uma desorientao ideolgica que a mentalidade imperial explicaria; do mesmo modo, proceder a uma celebrao de sincretismo e hibridez de per si, se no articulada em conjuno com questes de hegemonia e relaes de poder neocoloniais, corre o risco de parecer santificar o fait accompli da violncia colonial, como lembra Ella Shohat cujas reservas quanto mais-valia de tropos das teorias ps-colonial partilho (Shohat, 1996, p. 320). Por isso tambm Aijaz Ahmad fala da j referida expresso mediaes metropolitanas (2000, p. 54), isto , o juzo do exterior a erigir-se a instncia absoluta de legitimao e de construo do conhecimento, porque o discurso eurocntrico tem um substrato ideolgico comum ao discurso colonialista, imperialista e racista.

    Assim, hoje a questo do eurocentrismo pe-se nos estudos ps-coloniais porque ela pressupe a necessidade de descolonizao terica; pe-se tambm quando se estudam objetos estticos de espaos periferizados as literaturas ou as artes plsticas, por exemplo: a ideia que parece prevalecer a de que a boa obra literria aquela que no se detm no local, a literatura sem cho, como uma vez afirmei (Mata, 2007). Pe-se ainda, e de forma mais premente, porque no apenas a montante (escrever para ser lido e ser legvel no Ocidente) como ainda a jusante (ler com os olhos do imprio, na expresso de Mary Louise Pratt): como considera Dipesh Chakrabarty (2008, p. 29), o domnio da Europa, entidade erigida a sujeito de todas as histrias, uma parte de uma muito profunda condio terica sob a qual o conhecimento histrico produzido em pases do Terceiro Mundo. Por isso, como professora de literatura, estou convencida de que o ensino de outras literaturas e a sua inscrio no mapa das literaturas consumidas uma das estratgias para reverter a dimenso eurocntrica da instituio cannica, enfim, pode constituir um antdoto eurocentricidade e miopia cultural das Humanidades (Ahmad, 2002, p. 84), tal como hoje se vive nos estudos literrios, quer no Ocidente, quer, mais grave ainda, nos prprios espaos assumidamente perifricos que naturalizaram a hegemonia ao considerarem que a autoria estrangeira da palavra concede ao enunciado uma legitimidade crtica e terica exemplar. Mais grave porque se trata de uma inexorvel situao de hierar- quizao consentida que advm da interiorizao da subalternidade. Com efeito,

  • I. Mata Estudos ps-coloniais 35

    [...] leurocentrisme est, comme tous les phnomnes sociaux dominants, facile saisir dans la multiplicit des manifestations quotidiennes mais plus malaises dfinir prcisment. [] Elles sont tantt violents allant jusquau racisme assum tantt tnues. Elles experiment dans les languages de lopinion commune, populaire, comme dans les langues savants des spcialistes de la politique, du tiers monde, de lconomie, de lhistoire, de la thologie et de toutes les formulations de la science et de la pense sociales (Amin, 1988, p. 72).5

    As razes histricas da ordem eurocntrica

    A acumulao dos conhecimentos faz-se na Europa.(Joseph Ki-Zerbo)

    Em Para quando frica?, o historiador burkinab Joseph Ki-Zerbo (2006), considerado, juntamente com o senegals Cheikh Anta Diop, o pai da historiografia africana, faz o rastreio das razes que considera terem levado a frica atual marginalizao. Para alm de fatores de ordem endgena e dos efeitos decorrentes do trfico dos negros [que] foi o ponto de partida de uma desacelerao, de uma paragem da histria africana (2006, p. 24-25), Ki-Zerbo fala da atual estrutura mundial, consequncia da situao colonial e imperial, geradora de uma situao de desigual desenvolvimento cientfico, tcnico e tecnolgico ditando a histrica e crnica dependncia de frica em relao ao Ocidente. Dir-se-ia que o poeta angolano Jos Lus Mendona sintetiza as ideias de Ki-Zerbo no seu poema Subpoesia, de 2007:

    Subpoesia

    Subsarianos somos sujeitos subentendidossubespcies do submundosubalimentados somossurtos de subepidemiassumariamente submortosdo subdlar somossubdesenvolvidos assuntosde um sul subserviente.(Jos Lus Mendona, Quero acordar a alva, 1997)

    5 Traduo livre: [] O eurocentrismo , como todos os fenmenos sociais dominantes, fcil de entender em vrios manifestaes dirias, mas mais difcil de definir com preciso. [...] Essas manifestaes so, por vezes, violentas at ao racismo assumido s vezes tnues. Elas colonizam tanto a linguagem do senso comum, a linguagem popular, como a linguagem cientfica de especialistas da poltica, do terceiro mundo, da economia, da histria, da teologia e todas as formulaes da cincia e do pensamento sociais.

  • 36 Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014

    Qual a relao entre o pensamento do intelectual burkinab, este poema e os seus desdobramentos reflexivos no que o caso me interessa, a crtica das literaturas periferizadas, africanas e regionais, por exemplo?

    que este poema do poeta angolano Jos Lus Mendona evidencia as verdadeiras relaes de poder que se estabelecem hoje e afirma que se a condio subalterna se internalizou com a globalizao, ela se exponenciou com as desigualdades entre um norte hegemnico e um sul subserviente. Neste contexto, este poema diz mais do que muito ensaio sobre as tenses entre (ex-)dominados e (ex-)dominadores.

    Um incmodo que qualquer estudioso de literaturas africanas de lngua portuguesa sente (ou j sentiu e que eu j senti tanto como estudante quanto como profissional) no seu ofcio a desvalorizao do seu objeto de estudo, considerado, implcita ou explicitamente, como literaturas menores. Tal atestado de menoridade decorre de uma resistncia eurocntrica (a que no est ausente o desconhecimento) em relao s outras literaturas ditas universais, mesmo na academia (no Brasil e em Portugal), onde se esperaria um esprito mais condizente com a qualidade do que universal para que o termo universidade remete. Referindo-se Carlos Reis (1995, p. 77) a esse preconceito, num livro de 1995, O conhecimento da literatura, poder-se-ia pensar tratar-se de uma atitude do passado. Pura iluso. Vrios episdios ilustram essa minha convico. Deles ressalto um ocorrido num evento com professores de literatura, em que um colega, refutando uma crtica decorrente das suas perspectivas de inslito, afirmou: se as literaturas africanas quiserem ser respeitadas, tm de se submeter s teorias existentes.6 Ngugi wa Thingo responderia a esse elogio da dependncia com a seguinte considerao:

    Western civilization itself becomes a prisoner, its jailors being its Eurocentric interpreters. But Eurocentrism is most dangerous to the self-confidence of Third World peoples when it becomes internalized in their intellectual conception of the universe (ThiongO, 1993, p. xvii).7

    Por isso, pareceu-me, na altura, completamente despropositada a invectivao, em algumas longitudes, de que as ideias de Harold Bloom 6 Afirmao de Flvio Garcia (Uerj), no 23. Congresso Internacional de Abraplip (So Lus,

    MA, 11-16 set. 2011), na sesso da mesa 34 sobre Literaturas da frica de lngua Portuguesa: questes de identidade cultural, dia 15/09, 16-18 horas.

    7 Traduo livre: A prpria civilizao ocidental se torna prisioneira, sendo os intrpretes eurocntricos os seus carcereiros. Mas o eurocentrismo mais perigoso para a autoconfiana dos povos do Terceiro Mundo quando este internalizado na suas concepes intelectuais do universo.

  • I. Mata Estudos ps-coloniais 37

    foram alvo por causa daquilo que considera como sendo a matriz do cnone ocidental (esquecendo-se, por outro lado, ser o prprio Bloom a referir tambm, na ltima parte do seu estudo, a balcanizao dos estudos literrios). Com efeito, esse grito de autossubmisso nitidamente o exemplo daquilo que se poderia designar como imperial eyes (Mary-Louise Pratt) na histria das representaes dos objetos literrios africanos no Brasil ou em qualquer espao que reproduza as convenes do Ocidente, ou seja, que funcione como sua rplica ideolgica. Isto , olhar a periferia a partir do centro, e julg-la, com base em percepes polticas e ideolgicas condicionadas pelo imaginrio esttico-literrio e manipuladas pelos meios de comunicao social.

    por isso que Ngugi wa Thiongo prope uma mudana do centro: Moving the centre in two senses between nations and within nations (ThiongO, 1993, p. xvii). Mas no pode ser um acrtico movimento, como a que decorre a dinmica da periferia para o centro em que se gera algumas particularidades que caracterizam o fenmeno literrio nos pases africanos (falo particularmente dos cinco pases africanos de lngua oficial portuguesa). Um deles um movimento em que os escritores olham para fora normalmente para a antiga metrpole e da para o mundo para serem reconhecidos (Mata, 2011). Muitas so as modalidades dessa validao esttica sendo a que se segue a mais superficial, embora muito eficaz nos danos que provoca: se foi publicado em Portugal ou no Brasil porque a obra tem qualidade, se no o foi porque no tem, afinal o critrio editorial a qualidade e quaisquer outras consideraes revelam fantasmogorias e complexos. Nesse processo, o Ocidente e seus avatares (lugares, locais e sujeitos) continuam a ser o modelo, no se tendo em conta que se o cnone literrio o reflexo e o instrumento de um determinado paradigma, tambm pode ser lugar onde se enceta a desconstruo desse mesmo paradigma, atravs da descolonizao da mente (Ngugi wa Thiongo).

    Nessa linha de validao esttica encontram-se outros corolrios que so seus duplos no processo de menorizao: a generalizao e a estereotipia. Com efeito, a convencional designao globalizante de literaturas africanas em portugus encerra o germe da sua condio perifrica, no obstante a generosa inteno subjacente, que a sua visibilizao (j no falando na completa omisso que uma tal designao encerra em relao aos corpora literrios que se inscrevem em outras lnguas desses pases, como o caso do significativo corpus em crioulo da literatura cabo-verdiana e os corpora dos textos de tradio oral). Embora em muitas academias se pugne por mover o centro (wa Thiongo), as periferias continuam bem demarcadas e naturalizadas. Disso so exemplos os blocos transnacionais conhecidos como

  • 38 Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014

    anglofonia, francofonia, hispanofonia e lusofonia, o que revela que os espaos ex-colonizados continuam a ser nomeados segundo signos e sinais do ex-colonizador, ainda que se possa reconhecer a economia lingustica dessas designaes e a pertinncia e a eficcia dessas alianas, conforme, curiosamente, j em 1953, alertava Gilberto Freyre:

    Naes sozinhas, isoladas e estreitamente nacionalistas em suas pretenses auto-suficincia so hoje arcasmos [] Felizes daquelas com possibilidades de formar, umas com as outras, conjuntos transnacionais de cultura como o caso das naes e quase naes de lngua portuguesa (Freyre, s. d. [1953], p. 103-104).

    Porm, preciso que se tenha a conscincia que esta designao generalizante no exclusiva destas literaturas, que so sempre pensadas a partir dos olhos do imprio (Mary-Louise Pratt), no apenas rasurando a individualidade dessas literaturas como subalternizando-se as relaes com as outras literaturas africanas, sobretudo de aqueles pases cujas sociedades se aproximam, por razes de vria ordem, nos seus elementos de dinmica histrica, com reflexos nas contnuas atualizaes que se vo operando nas representaes identitrias: vale interrogar se as relaes entre a literatura moambicana com a zimbabueana no sero mais intensas do que com a cabo-verdiana; ou se o dilogo da literatura brasileira com a portuguesa no ser mais contnuo do que a literatura chilena, por exemplo. Com efeito, como lembra Mia Couto, o que pode ser perigoso criar identidades- refgio, identidades que nascem da negao de identidades dos outros (2005, p. 89).

    Eis porque se torna fundamental discutir algumas ideias tidas como adquiridas entre os estudiosos das literaturas periferizadas, como as africanas em portugus, ou menorizadas, como a de brasileira afro descendente, e seus agentes e atores (autores, crticos, leitores e a prpria comunidade interpretativa, expresso que tem o cunho de Stanley Fish) tendo em conta a tendncia para a classificao judicativa que decorre do processo de hierarquizao com base em critrios tidos como universalistas que propem a rarefao identitria decorrente, segundo os seus arautos, da dinmica da globalizao. Como lembra Edward W. Said, em pensamento sentencioso, os cruzamentos entre cultura e imperialismo so irresistveis (2011, p. 37). E pior: naturalizam a condio subalterna e perifrica das entidades e seus autores, remetem as desigualdades decorrentes das relaes hegemnicas para a questo do mrito, sem ter em conta, como lembra Aijaz Ahmad, o papel contraditrio do imperialismo que simultaneamente unifica o mundo, sob a

  • I. Mata Estudos ps-coloniais 39

    forma de canais globais de circulao, e o distribui em estruturas de coero e dominao global (2002, p. 55).

    Portanto, a questo tambm a das fronteiras da subalternidade. Porm, se existe uma atitude epistemolgica de consenso e de implementao harmoniosa quando se estudam literaturas dos pases emergentes, recm descolonizados (apesar de algumas sutis perversidades que Tzvetan Todorov desvela no seu artigo Penser la pluralit des cultures (1995), em outros espaos no possvel ignorar a hierarquia de certos cdigos culturais em virtude no apenas da sua relevncia histrica e porventura quantitativa, porm ainda em razo da hegemonia dos cdigos, normas e regras universalistas. A desconsiderao desse tipo de nuances processuais tanto pode conduzir ao exacerbamento nacionalista, tpicos de ideologias apologticas da homogeneidade cultural e defensoras de reificadas razes culturais histricas, como a um discurso de constante sobranceria meritocrtica que procura constantemente desqualificar o que publicado em espaos periferizados, como se o crtico-juiz (normalmente com uma cauo meditica) fosse o detentor da verdade literria! Para estudar a literatura dos outros (Todorov), enquanto trabalho de busca e compreenso da diversidade que muitas vezes apenas outridade, importante estud-la dentro de um contexto histrico das relaes entre o mundo do leitor e o mundo para o qual remete a literatura em estudo. Por isso Martine Burgos, crtica cujo trabalho se situa no mbito da sociologia da leitura, fala da necessidade de um trabalho de contextualizao reforada que imponha a anlise de textos inscritos numa histria, uma cultura outra, reenviando aos meandros polticos, ideolgicos (1995, p. 173).

    Esta abordagem, pensada segundo um duplo critrio de interao intercultural e orientao funcional, que d conta de particularidades estticas atravs de obras representativas de opes estticas individuais, ou contextuais e circunstanciais, permite que se captem os espaos e os cdigos comuns, a fim de que o leitor-crtico possa interagir em termos de prazer esttico.8 preciso no esquecer que a construo da identidade, mesmo a literria, o resultado da dialtica da tenso entre o mesmo e o outro. Eis porque cada vez mais a literatura comparada se apresenta como o estudo mais adequado para responder s solicitaes da ideologia multicultural, que muito tem a ver com 8 Vale lembrar que prazer esttico no pode ser confundido com gozo (legtimo) que proporciona

    um qualquer passatempo, mas recorrendo a Salvato Telles de Menezes, no seu didtico livro O que Literatura (1993. p. 21) como cultivo do esprito, algo que implica um esforo que o simples divertimento no contempla. O apreciador inteligente, aquele que desenvolve a sua sensibilidade artstica, no se limita a matar o tempo, vive momentos de cio moda antiga, esses momentos afirmativos da existncia, enquanto o negcio, isto , a privao do cio (que em grego queria dizer escola), preenchia os negativos.

  • 40 Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014

    a esttica do diverso, de que falava Victor Segalen (1978, p. 25) e que coincide, nas dinmicas negociais propostas, com a potica do diverso de douard Glissant que, no entanto, faz uma abordagem mais localizada e mais teleologicamente reivindicativa dessa diversidade.

    E mesmo concordando com Harold Bloom de que um leitor no l por prazer ou para expirar culpas sociais, mas para dilatar uma existncia solitria (1997, p. 465), no posso deixar de convocar o conceito proposto por Pierre Bordieu de capital cultural, que avalia a obra de arte num quadro mais lato do que o esttico (alis, uma proposta que vinha dos estruturalistas de Praga, herdeiros do formalismo russo). Isso porque estou convencida de que a histria da literatura deve ser [estudada] nessa plurivocidade discursiva, com relatos entrecortados, conflituosos, como matria voltada para o antes que pode vir a ser o depois (Abdala Jnior, 2003, p. 36).

    Talvez a crtica literria deva tambm preocupar-se com essa relao entre o antes e o depois Ou talvez eu seja um desses ressentidos do valor esttico de que fala Harold Bloom que esto para ficar e que vo gerar outros ressentidos institucionais sua imagem e semelhana (Bloom, 1997, p. 465)

    RefernciasABDALA JNIOR, Benjamin. De vos e ilhas: literatura e comunitarismo. So Paulo: Ateli Editorial, 2003.AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente. So Paulo: Boitempo Editorial, 2002.AMIN, Samir. Leurocentrisme: critique dune idologie. Paris: Anthropos-Economica, 1988.ALEXANDER, M. Jacqui. Pedagogies of crossings: meditations on feminism, sexual politics, memory, and the sacred. Durham: Duke Universtiy Press, 2005.ASHCROFT, Bill et al. The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures. Londres: Routledge, 1989.BLOOM, Harold. O cnone ocidental. Lisboa: Crculo de Leitores, 1997.BURGOS, Martine. La sociologie de la lecture: mdiation, contextualisation et modes de lecture. In: Bernard Veck e Jean Verrier (Orgs.). La littrature des autres: place des littratures trangres dans lenseignement des littratures nationales. Paris: Institut National de Recherche Pdagogique, 1995. p. 172-177.CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2008.COUTO, Mia. Pensatempos: textos de opinio. Maputo: Editorial Ndjira, 2005.FREYRE, Gilberto. Um brasileiro em terras portuguesas. Lisboa: Edies Livros do Brasil, s. d. [1953].

  • I. Mata Estudos ps-coloniais 41

    JAMESON, Fredric. O inconsciente poltico: a narrativa como acto socialmente simblico. So Paulo: tica, 1992.KI-ZERBO, Joseph. Para quando frica? Porto: Campo das Letras, 2006.MATA, Inocncia. A literatura africana e a crtica ps-colonial: reconverses. Luanda: Editorial Nzila, 2007.MATA, Inocncia. On the periphery of the universal and the splendour of eurocentrism. In: Manuela Ribeiro Sanches (Org.). Black and white. Bristol: Intellect Books, 2011. p. 87-100.MATA, Inocncia. O ps-colonial como ideologia: os estudos literrios e a ordem eurocntrica. In: Fernanda Gil Costa; Inocncia Mata. Colonial/post-colonial: writing as memory in literature. Lisboa: Edies Colibri, 2012. p. 43-56.MENDONA, Jos Lus. Quero acordar a alva. Luanda: Inald, 1997.MENEZES, Salvato Telles de. O que literatura? Lisboa: Difuso Cultural, 1993.MILANDO. Joo. frica/Europa: a cooperao para o desenvolvimento. In: Grupo dos Embaixadores Africanos, frica-Europa: um novo dilogo perante os desafios o futuro. Prefcio de Inocncia Mata e Isabel Castro Henriques. Lisboa: Novo Imbondeiro, 2007. p. 108-112. MUDIMBE, Valentin Y. The invention of Africa: gnosis, philosophy, and the order of knowledge. Bloomington: Indiana University Press, 1988.POLAR, Antonio Cornejo. O condor coa: literatura e cultura na Amrica Latina. Organizao de Mario Valds. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1995.SAID, Edward W. Territrios sobrepostos, histrias entrelaadas. In: Edward W. Said. Cultura e imperialismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 34-116.SEGALEN, Victor. Essai sur lexotisme: une esthtique du divers. Montpellier: Ed. Fata Morgana, 1978. SHOHAT, Ella. Notes on the post-colonial. In: Padmini Mongia (Org.). Contemporary postcolonial theory: a reader. London: Arnold, 1996. p. 321-334.SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crtica da imagem eurocntrica: multiculturalismo e representao. So Paulo: Cosac Naify, 2006.THIONGO, Ngugi Wa. Writers in politics: a re-engagement with issues of literature & society (a revised & enlarged edition). Oxford: James Currey; Nairobi: Heinemann, 1997.THIONGO, Ngugi Wa. Moving the centre: the struggle for cultural freedom. Oxford: James Currey; Nairobi: EAEP; Portsmouth NH: Heinemann, 1993.

    THIONGO, Ngugi Wa. Decolonising the mind: the politics of language in African literatures. London: James Currey; Nairobi: Heinemann Kenya, 1987.

    TODOROV, Tzvetan. Penser la pluralit des cultures. In: Bernard Veck e Jean Verrier (Orgs.). La littrature des autres: place des littratures trangres dans lenseignement des littratures nationales. Paris: Institut National de Recherche Pdagogique, 1995. p. 13-16.

  • 42 Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr. 2014

    TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro, 2009.VESENTINI, Jos William. O que geografia crtica? Geocrtica geopoltica: ensino da geografia (29 out. 2012).

    Data de recebimento: 28 jul. 2013Data de aprovao: 25 nov. 2013

    Autora correspondente:Inocncia MataFaculdade de Letras da Universidade de LisboaAlameda da Universidade1600-214 Lisboa, Portugal