Ética e Utilitarismo

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    1/25

    RAP R io d e J a n e ir o 36(2) :293-317, Mar . /Abr . 2002

    A economia moral da utilidade*

    Hermano Roberto Thiry-Cherques**

    S UM R I O : 1. Introduo; 2. Origens: Jeremy Bentham; 3. Desenvolvi-

    mento: John Stuart Mill; 4. Temas utilitaristas; 5. O saldo.

    PAL AV RA S - C HAV E : tica; utilitarismo; economia; administrao; estratgia.

    KE Y W O R D S : ethics; utilitarianism; economics; management; strategy.

    Este artigo procura indicar os principais determinantes do utilitarismo tico.Examinam-se os conceitos, os temas e as contribuies do utilitarismo,desde a sua origem at a atualidade. Enfatizam-se as relaes entre essa cor-rente de pensamento e a atualidade das questes morais na economia e naadministrao.

    Moral economics of utility

    This paper makes an effort to enumerate the main determinants of ethicalutilitarianism. It examines the concepts, concerns and contributions of utili-tarianism, from its origins until today, and stresses the relationship betweenthis trend of thought and the current moral issues in economics and man-agement.

    1. Introduo

    Vivemos em um tempo de grandes contradies, de poucas idias e de falsasmodernidades. curioso, por exemplo, que a maior parte dos argumentosmorais tanto contrrios como favorveis a movimentos econmico-sociaiscontemporneos seja matria de um livrinho que Jeremy Bentham, um ju-

    * Artigo recebido em jan. e aceito em abr. 2002.** Professor titular da Ebape/FGV.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    2/25

    294 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    risconsulto educado em Oxford, fez publicar no longnquo ano de 1789(Bentham, 1974).

    No texto que se segue, procuramos contribuir para esclarecer as razesda vinculao entre essa escola de pensamento o utilitarismo tico e aargumentao que tem servido para atacar e defender o taylorismo, a com-petitividade e a globalizao.

    2. Origens: Jeremy Bentham

    Nascido em Londres em 1748, Bentham viveu em uma era de transformaes.Uma poca que viu os pensamentos de Hume e de Locke iluminarem o mundobritnico. Uma poca em que estavam vivos e atuantes Gibbon e Byron, Goet-he e Mozart, Voltaire e Rousseau. A mesma poca em que, mais perto de ns,em Portugal, se cumpriu a reforma do ensino, d. Maria I assumiu o trono e omarqus de Pombal caiu, Napoleo afugentou d. Joo para o Brasil e, aqui,d. Pedro optou por ficar e gritou a Independncia.

    Partcipe do seu tempo, Bentham simpatizou com a Revoluo Ameri-cana de 1776, mas preferiu discordar das propostas iluministas da RevoluoFrancesa. At a sua morte, em 1832, na mesma Londres que o viu nascer, insis-

    tiu sobre a impropriedade da declarao de direitos abstratos para sustentar aidia-fora da escola de pensamento que fundou a do utilitarismo , que dcomo propsito moral a arte de direcionar as aes humanas para a geraoda maior quantidade possvel de felicidade (Bentham, 1974, v. 19, p. 11).

    Essa noo da legitimidade moral da busca da felicidade para o maiornmero espalhou-se e ganhou o mundo. Influenciou e continua a influenciara discusso tica no mbito do pensamento social, do pensamento econmi-co-administrativo e, principalmente, do pensamento poltico.

    No que nos toca mais diretamente, o utilitarismo est presente desdeque Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), um pensador portugus de en-vergadura, que por aqui andava na poca da independncia, postulou idiasmorais que informaram a nossa estrutura legal e o sistema de representaopoltica do Imprio (Paim, 2001). Verstil, o utilitarismo sobrenadou os ideaisdos movimentos libertrios que se levantaram contra os nossos excessivosgovernos ditatoriais e chegou aos dias que correm, como crtica, mas tambmcomo justificativa da forma da ordenao poltico-econmica que a est.

    A utilidade

    Para entendermos o que vem a ser o utilitarismo, devemos comear com oconceito que intitula esta ordem de pensamento moral.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    3/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 295

    O termo utilidade vem do grande filsofo escocs (os ingleses dizembritnico British mas as pessoas nascidas em Edimburgo preferem serchamadas de escoceses) David Hume (1711-76). Para Hume (1952), o moti-vo que levou os seres humanos a abandonarmos o estado da natureza foi ode encontrar formas de tornar a vida pessoal e social mais suportvel, senomais aprazvel. Buscamos naturalmente, isto , seguindo nossa natureza, osmeios e as aes que sejam mais eficazes para esse fim. Pois o termo util-idade a denominao encontrada por Hume para a resultante deste proces-so de domesticao do ser humano, em que construmos virtudes artificiais

    capazes de tornar tolervel a vida social.Hume d duas acepes para a utilidade: uma prtica, quando trata doexerccio da poltica e afirma que a utilidade tudo o que conduz a um fimproposto, outra moral, quando trata da formulao da poltica, e define a util-idade como o que conduz felicidade. Para ele, a benevolncia, a amizade, ajustia e a conduta pessoal e social so medidas por sua utilidade. Dela deco-rrem os sistemas morais.1 este ltimo conceito que Bentham sustenta ser onico capaz de informar a moral racional. A utilidade, para Bentham, resumeo que eficaz para obter o mximo de felicidade.

    Bentham recebe outras influncias de Hume e, tambm, de Locke,atravs do pensamento de Godwin,2 seu contemporneo, que havia tomado

    do primeiro a noo de que o sentimento, e no a razo, o motor das aese do segundo a idia de que as distines morais so produto da razo.Godwin quem sintetiza a idia da moralidade como sistema de conduta de-terminado pela considerao do bem geral (Halvy, 1995). O bem geral oraciocnio que est por trs do princpio de eqidade, isto , de que todos de-vemos ser tratados de forma igual, a menos que se encontre um fundamentona razo para se demonstrar o contrrio. Este princpio, que hoje pode parec-er trivial, j que o acerto da igualdade em relao ao sexo, cor da pele, idade

    1A discusso da utilidade na questo moral em Hume difere, em essncia, do utilitarismo. Para

    Hume, a moral no pode derivar da razo porque a moral advm dos sentimentos, do moralsense. A razo no atua sobre as paixes, embora possa, e deva, julgar sobre a utilidade de umaao moral. Os sentimentos determinam a ao moral porque s eles podem explicar os finsltimos. Tambm so de Hume as idias de que as virtudes proporcionam prazer e o vcio a dore de que a utilidade moral diferenciada, abarcando as qualidades teis ao possuidor, como oconhecimento e a inteligncia, e as qualidades teis aos outros, como a eqidade e a benevoln-cia (Hume, 1967, 106, 112, 114, 141, 143).2William Godwin (1756-1836) foi um personagem interessante. um dos fundadores do anar-quismo moderno. Acreditava que todo governo corrupto e que os detentores do podermaquinam sistemas educacionais com o propsito de perpetuar-se nos governos. Propunha aredeno da sociedade humana mediante a supresso do clero, da aristocracia e da lei. Em seulugar postulava o autogoverno comunitrio, regido pela benevolncia. Sua obra principal, publi-cada em 1793, um volumosoEnquiry concerning political justice.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    4/25

    296 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    etc. se tornou familiar quase totalidade das correntes ticas, na poca esta-va longe de ser universalmente aceito (MacIntyre, 1994).

    So muitas as fontes em que o utilitarismo vai se inspirar. O prprioBentham d uma gnese que se perde nos tempos (Guisn, 1992). O fato queo seu pensamento enriquecido em muitos mananciais. Em Adam Smith, noque se refere mecnica do otimismo livre-cambista, em Helvcio, em Beccar-ia, em Hutcheson e at, se quisermos ir mais longe, em Aristipo (c.360), o paida escola cirenaica.3Como veremos, ele foi um arregimentador de conceitos,um persistente e, tambm, um excntrico.

    Utilitarismo e contratualismo

    Bentham formou-se em direito e por toda a vida trabalhou como jurista. Foiuma criana prodgio: aos quatro anos lia em grego e latim. Era um homem deinteligncia incomum e, certamente, um obstinado de suas prprias idias. Pro-pugnou contra o jusnaturalismo e, em geral, contra a fundamentao das leis eda ordenao da sociedade com base em idias totalitrias ou religiosas. Tinhaa convico dos nominalistas, de que a sociedade uma coleo de pessoas eno um conjunto abstrato de indivduos. Ele via com clareza que a norma mor-

    al e, por extenso, a lei devem fundar-se em fatos e na razo, isto , na feli-cidade individual e no clculo do bem coletivo de seres reais. De outra formatorna-se sujeita a interpretaes convenientes unicamente aos donos do podere aos detentores da faculdade de traduzir os desgnios do deus da ocasio.

    Suas idias levaram-no a propor o sufrgio universal, a difuso general-izada do ensino e um novo sistema carcerrio opanopticom de grandeinteresse, cujas implicaes alimentaram idias fascinantes do pensador con-temporneo Michel Foucault (1977).

    Bentham foi contra as declaraes dos direitos do homem, o ideal con-tratualista objetivado na Revoluo Francesa. Essas declaraes afirmam umdireito natural sobre o qual se firma um pacto. Para a forma de pensar deBentham, essa afirmao absurda. No s inexiste um direito que seja natu-

    ral, como tambm qualquer pacto, seja que pacto for, ao fixar para sempre ocerto e o errado, priva a posteridade de viver a vida a seu talante e de fruir aliberdade em sua plenitude.

    3Entre os socrticos menores, os cirenaicos se destacaram por seu interesse na avaliao, querdizer, na separao do pior e do melhor, na descoberta dos objetos a fugir e dos objetos a dese-jar. Isso os levou idia do prazer como fim e da felicidade como o sistema dos prazeres partic-ulares. Tambm os levou convico da superioridade dos prazeres espirituais sobre os prazeresvulgares, argumento mais tarde retomado por Mill, contra o simplismo de Bentham (Mondolfo,1971).

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    5/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 297

    Contra o contratualismo, Bentham publicou, em 1795, um opsculo de-nominado Sofismas anrquicos ou exame das declaraes de direito publicadas du-rante a Revoluo Francesa(Halvy, 1995). Os sofismas apontados por ele so:

    t declara-se que os homens nascem iguais, o que, simplesmente, no ver-dade;

    t declara-se que os homenssoiguais, enquanto o certo seria dizer que oshomens deveriam seriguais;

    t

    declara-se o direito natural e legal liberdade, enquanto, paradoxal-mente, a lei restringe as liberdades como, por exemplo, a liberdade defazer o mal ao Estado;

    t declara-se o direito natural propriedade, mas nada se diz sobre a legitim-idade da forma como a propriedade foi adquirida; alm disso, o direito depropriedade contraditrio com a liberdade referida alienao de util-idades, como a do pagamento de impostos;

    t declara-se o direito natural segurana, mas no se explica como haver-emos de nos assegurar contra os abusos descuidados pelo Estado;

    t declara-se o direito resistncia opresso, mas a resistncia um meio,

    no um direito; alis, um meio que costuma ser utilizado indevidamentepelos autoproclamados intrpretes da vontade do povo.4

    Bentham pensava que os direitos humanos no poderiam ser decreta-dos, inventados ou fantasiados. Os direitos, dizia ele, so elaboraes hu-manas. Existem direitos reais, no direitos idealizados. Ele daria, obviamente,apoio a direitos referentes s liberdades negativas (no ser isso ou aquilo,como os direitos de no ser torturado, de no ser tolhido na expresso etc.).Mas nunca aos referentes s liberdades positivas (ser isso ou aquilo, como odireito ao emprego, alimentao, moradia etc.), que para ele no passa-vam de idealidades e, que, por isso mesmo, seriam incontrolveis e violados

    em toda parte.

    Os dois senhores

    Descrente dos pactos e contratos e convicto dos ideais de igualdade e do direito busca individual da felicidade, Bentham pergunta-se por que, afinal, os ho-

    4Por motivos semelhantes, Marx (1968) condenou os assim denominados direitos dos homens.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    6/25

    298 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    mens seriam obrigados a cumprir compromissos morais. No , em absoluto, aformalidade do que vai escrito solenemente em algum lugar que nos obriga, re-sponde ele. O que nos obriga a coerncia lgica. O que pode nos obrigar aagir moralmente somos ns mesmos, a nossa conscincia e, mais do que isso, anossa convenincia.

    A primeira frase do primeiro captulo dosPrincpiosdiz isso: A nature-za disps a humanidade sob o governo de dois senhores soberanos, o prazer ea dor. por eles, e s por eles, que podemos determinar o que devemos faz-er (Bentham, 1974).5Aceita a verdade dessa assertiva, decorre lgica e nec-

    essariamente que a obedincia s normas de conduta social devida namedida em que pode acarretar mais prazer do que a desobedincia. esta achave que o leva a constituir a teoria da utilidade. esta chave que conduzBentham a lutar por reformas que levassem da fico experincia, dasuposio aos fatos, do direito natural justia ativa. Dessa assertiva decorrea frmula mxima do utilitarismo: eticamente correto o que proporciona omaior bem para o maior nmero possvel de pessoas.6

    Em oposio ao idlio protocolar do contratualismo, a linha de susten-tao da proposta utilitarista no s racional, como direta. Assenta-se no ar-gumento egosta psicolgico, que pode ser formulado da seguinte maneira:eu trato dos meus interesses e no encontro razo para tratar dos seus. En-

    contre somente um motivo para que eu me dedique aos seus interesses, queeu o farei, desde, claro, que este motivo seja do meu interesse.

    O que Bentham sustenta que este motivo existe e que pode serdemonstrado racionalmente. A sua argumentao simples.

    Primeiro, Bentham pergunta: se existe um direito ou um dever que sejanatural, por que ningum capaz de dizer qual seja? Ou, em outros termos,se existem tais direitos e deveres por que motivo cada filsofo, cada pensa-dor, cada ser humano, intimado a fazer uma lista deles, far uma lista difer-ente? A resposta, insofismvel, que tais direitos e deveres no existemnaturalmente, no passam de nomes genricos, de convices particulares.

    5Como quase tudo em Bentham, a frase no dele, mas de Helvetius. O parisiense Claude-Adrian Helvetius (1715-71), um brilhante discpulo de Voltaire, deixou escrito que boa a aotil para quem a recebe e para a sociedade e que natural no homem a busca do prazer e arejeio da dor. Suas obras principais denominam-seDo esprito(1758) eDo homem(1773).6Outra idia tomada emprestada, desta vez a Cesare Beccaria (Milo, 1738-94), um discpulode Helvetius e inspirador dos enciclopedistas, que foi o primeiro a propor a priso como instru-mento de defesa social (Dos delitos e das penas, 1764) e o autor da frase a mxima felicidadepara o maior nmero de pessoas.Podemos tomar Bem e Utilidade como equivalentes. Em Espinosa consta que por bem seentende o que sabemos de maneira certa que nos til (Spinoza, 1982. VI, definio I).

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    7/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 299

    Em segundo lugar, ele pergunta: o que pode ser o interesse mximo decada um? Responde que todos os seres de sensibilidade ele inclua os ani-mais sofrem e tm prazer, e preferem o prazer ao sofrimento (a clebreprimeira frase dosPrincpios).

    A partir dessas constataes de que no existe nem pode existir umamoral natural e de que o prazer o eixo da vida sensvel , Bentham concluique a nica determinao racional do comportamento moral da hu-manidade, a chave do eticamente correto, o prazer, a satisfao dos desejosde todos ou, pelo menos, da maioria (Laval, 1994).

    A lgica, resumida, do raciocnio :

    t todo mundo deseja sua felicidade (hedonismo psicolgico);

    t desejvel que todo mundo busque sua prpria felicidade (hedonismo ti-co egosta);

    t desejvel que todo mundo busque a felicidade de todo o mundo, inclu-da a sua (hedonismo tico universal).

    Na passagem da segunda para a terceira proposio, a premissa egosta

    convertida em um postulado altrusta. Como isso possvel , como veremos, amaior dificuldade terica enfrentada pelo utilitarismo tico (pelo utilitarismoeconmico tambm, diga-se). A explicao que se infere de Bentham, e que de-pois ser aprimorada pelos utilitaristas contemporneos, que progredimos dohedonismo egosta ao universal, de um lado, porque a felicidade individual serimpossvel em um mundo de infelizes, e, de outro, porque o prazer que auferi-mos ao obedecer s normas de convvio social sempre maior do que o prazerque podemos auferir em desobedec-las. Ou, melhor dito, porque a dor que sof-remos como conseqncia de ferir as normas de convvio maior do que a dorda disciplina de obedec-las (MacIntyre, 1994).

    Apesar dessas dificuldades, s quais retornaremos mais adiante, temos

    hoje, graas a Bentham, uma idia articulada do utilitarismo tico como a de-nominao genrica da corrente de pensamento que sustenta, em primeirolugar, que as aes particulares so objetivamente erradas ou certas depen-dendo dos seus fins e circunstncias. Em segundo, que a eticidade consisteem buscar-se a mxima utilidade, o maior bem, para o maior nmero possv-el de pessoas. E, em terceiro, que as normas referidas a classes de ao soprovisrias (por exemplo, furtar errado, mas no para um faminto), isto ,que no existe nada que, a priori, possa informar com segurana sobre a cor-reo de uma ao.

    O utilitarismo de Bentham no o mesmo, claro, que temos hoje emdia. Mas suas caractersticas fundamentais a esto, e so estas:

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    8/25

    300 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    t nossas aes so valorizadas no por si mesmas, mas pelas conseqnciasque podem acarretar;

    t a medida das conseqncias de nossas aes sua utilidade, no sentido deutilidade como um bem em si mesmo;

    t o bem em si a felicidade, entendida como satisfao das necessidades einteresses humanos;

    t o elemento afetado por nossas aes pode ser um indivduo ou uma comu-nidade, entendida como o somatrio dos interesses dos indivduos que a

    compem;t o contedo da felicidade deixado a cada indivduo eleger;

    t o que vale a felicidade geral, isto , a felicidade de todos os afetados pelaao.

    Depois de ter desenvolvido esta base, que mesmo os inimigos do utilita-rismo no podem negar ser um trabalho intelectual de envergadura e degrande criatividade, Bentham segue um caminho curioso e, certamente,equivocado: o de computar previamente as conseqncias os prazeres e asdores de nossas aes. Isto hoje nos parece um clculo impossvel porque,graas psicologia e antropologia, sabemos da diversidade de prazeres e de

    dores que podem afetar nossa sensibilidade sabemos da multiplicidade dosafetos e da sua diferenciao individual e cultural. Mas ele pensava demodo diferente. Acreditava que a quantidade de prazer pudesse ser umagrandeza matemtica, uma unidade, mesmo porque de outra forma no hav-eria como calcular o prazer coletivo. A respeito, h uma frase sua que ficoufamosa: se a quantidade de prazer a mesma, um jogo de criana to bomcomo a poesia (Bentham, 1781). Em favor do cmputo dos prazeres, ele tra-balhou com tantos entendimentos do que o termo prazer pudesse vir a sig-nificar (58 sinnimos ao todo) que o argumento se esvaiu em generalidades.

    Seja como for, o esforo de engenharia moral de Bentham no foi emvo. O mtodo de classificao dos prazeres tem l o seu interesse: consideraa intensidade, a durao, a certeza ou preciso, a proximidade, a fecun-didade, isto , a capacidade de gerar novos prazeres e dores, a pureza e a ex-tenso, isto , a possibilidade de que os prazeres e as dores sejamtransmitidos aos outros. Essa classificao d base a consideraes ticasbastante significativas. fcil notar, por exemplo, que os prazeres intensos,violentos, tm pouca durao e, se so fecundos e extensveis o so negativa-mente, porque transmitem, em geral, mais dor do que prazer. Por outro lado,ao propor recompensas para os sentimentos preferveis e sanes para os pre-terveis, Bentham traz discusso os motivos conducentes justia e os con-ducentes injustia social (Bentham, 1781). Este tipo de clculo hednico oprecursor da idia moral que tornou possvel, muito mais tarde, a config-urao do corpo terico da economia do bem-estar.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    9/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 301

    Bentham morreu em 1832, famoso, embora no levado muito a srio.Foi uma personalidade extravagante, que gostava de enviar circulares comsuas idias para reis e presidentes, e que se achava o profeta de uma nova or-dem, comparando-se, literalmente, a Maom. Dono de um estilo bombsticoe de uma sintaxe tortuosa, ele foi objeto de ridculo permanente. Mas tinhaseguidores que, como veremos, levaram adiante suas idias. Seguidores quecuidaram at mesmo fisicamente de sua permanncia entre ns, de formaque, de acordo com os seus ltimos desejos, ainda podemos encontr-lo pes-soalmente, ou melhor, o seu cadver, vestido com suas roupas domingueiras,que placidamente nos olha em um recinto algo tenebroso do University Col-lege de Londres (Harris, 1998).

    3. Desenvolvimento: John Stuart Mill

    O utilitarismo progrediu muito depois de Bentham. A avaliao dos prazerese das dores foi deixada de lado em favor do cotejo situacional. Quer isso diz-er que os utilitaristas mais modernos tratam de comparar uma situao, pre-sente e futura, em sua totalidade perceptvel, com outra situao, tambmpresente e futura, e no de somar ou calcular o prazer ou a felicidade. Suste-ntam, por exemplo, que prefervel um mundo em que todos possam se ali-mentar e vestir decentemente do que um mundo em que s alguns possamalimentar-se fartamente e vestir-se luxuosamente como este em que vive-mos, alis (Smart & Williams, 1963). Creio que ningum discordar que po-demos atribuir a maior parte desse desenvolvimento a John Stuart Mill.

    Entre os benthamistas, os seguidores das idias do primeiro utilitaris-mo, encontrava-se James Mill (1773-1836), outro escocs, um filsofo-psicl-ogo associacionista, que favoreceu algumas idias interessantes no campo daeconomia, principalmente a de que os consumidores so todos movidos pordesejos egostas. O velho Mill foi quem estimulou Ricardo,7um ricao genial,a escrever e a publicar o que viria a ser a base dos estudos econmicos do fimdo sculo XIX, como os de Marx. Sua maior contribuio para a posteridade,no entanto, foi ter gerado um filho John Stuart Mill (1806-73) que iria,

    entre outras proezas, consolidar o pensamento utilitarista.Stuart Mill foi um homem extraordinrio. Induzido ou forado pelo pai,

    desde cedo se lanou conquista da cultura e da erudio. Prodgio, comoBentham, aprendeu grego aos trs anos de idade. Aos 17 conhecia filosofia eliteratura, especialmente a literatura clssica. Conhecia tambm qumica,botnica, psicologia e direito. Nessa idade comeou a trabalhar na Cia. das n-

    7 David Ricardo (1772-1823) se ocupou (Princpios de economia poltica e tributao) dasrelaes antagnicas determinadas pela distribuio da renda entre proprietrios, capitalistas etrabalhadores.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    10/25

    302 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    dias Orientais, onde ficou at se aposentar. Emigrou depois para Avignon,onde morou at sua morte, exceto pelo perodo de dois anos, na ocasio emque foi membro do Parlamento britnico.

    Mill se achava intelectual e emocionalmente incapaz. Mas, alm da imen-sa cultura, ele tinha uma aptido incomum para amar, ou, ao menos, uma pa-cincia formidvel. Em 1830, aos 24 anos, conheceu uma mulher casada, HarrietTaylor, que, j quela poca, tinha vrios filhos. O que quer que tenha aconteci-do ento fez com que Mill esperasse por exatos 21 anos, at que Harriet enviu-vasse e se dispusesse a casar com ele. Viveram juntos apenas sete anos, mas Millatribui a ela a fora da sua obra da maturidade. Sabe-se que foram felizes.

    O utilitarismo tem nessa figura vitoriana, nesse gentleman,a chave dasua continuidade. Como o pai, Mill acreditava que todo o conhecimento estbaseado na induo a generalizao a partir da experincia. Como Comte(1798-1857), que possvel uma cincia do social. Como Bentham, quequalquer socialismo um limitador da liberdade individual. Discordavaamavelmente de Kant. Logo no comeo da sua obra mxima, denominada, jus-tamente, O utilitarismo(Mill, 1994), sendo ele o inventor do termo, Mill argu-menta que em Kant a moral no mostra o caminho da felicidade. Que, aocontrrio, o que Kant prope a autonegao, a submisso ao racional que nosfar dignos da felicidade, mas que no nos conduzir necessariamente a ela.Para Kant, virtude e felicidade so coisas absolutamente distintas. Para Mill,

    como para Plato e para Epicuro, no.A contribuio de Mill para o utilitarismo est mais na forma do que no

    contedo. Mas isso no a torna menos importante. Mill era um associacionistade primeira linha. Um lgico profissional. Escreveu umsistema de lgica(Mill,1974) espesso e consistente. Seu estilo de exposio o das demonstraescientficas, como as de Newton. Era observante do indutivismo, do mtodo quese funda na generalizao a partir dos dados da experincia sensvel.8

    Para alm de Bentham

    Talvez ressentido pelo massacrante processo educacional a que foi submeti-do pelo pai, Mill comea o seu trabalho, em 1838, com uma crtica cida aBentham. Acusa-o de insensibilidade, de incompreenso e, at, de infantilis-

    8Para os indutivistas, a deduo silogstica no acrescenta nenhum conhecimento ao que j sesabe. Isso porque a premissa maior, do tipo todo homem mortal, no , nem nunca poderser, uma verdade. A maior , e ser sempre, a resultante da recordao de um acmulo finitode experincias de indues. Ou seja, da perspectiva do mtodo indutivo, no verdade quetodo homem seja mortal; o que verdade que, at onde sabemos, todos os homens at hojetm morrido (Mill, 1974).

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    11/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 303

    mo (Mill, 1972). A primeira falha no procedimento de induo apontada porMill a Bentham a de no se ter dado conta de que o ser humano pode per-feitamente passar do propsito egosta ao ideal altrusta sem que sofrasanes outras que no as da sua conscincia for hope of good or fear of evilfrom other source than his own inward consciousness. Para Mill, o ser humanono somente racional, , tambm, sensvel.

    Apesar de toda a crtica que faz a Bentham, o ponto de Mill o mesmode Glauco naRepblicade Plato e do utilitarismo em geral: toda a motivaohumana decorre do desejo de ter prazer e de evitar a dor. Mas enquanto a util-

    idade para Bentham confunde felicidade e prazer consistindo o utilitarismoem um hedonismo , para Mill preciso separar a felicidade do prazer. A util-idade a felicidade, consistindo o utilitarismo em um eudemonismo. Mais doque isso. O prazer necessrio para a felicidade, mas no suficiente.

    No captulo 2 do Utilitarismo(1994), Mill sustenta que o senso moralexiste. Que existem prazeres altos e prazeres baixos. E que a qualidade dosprazeres que conta, no a sua quantidade. Valem os prazeres que so exclusi-vos dos seres humanos, como queria Aristteles. O que importa a qualidadedos prazeres, entendidos como prazeres espirituais, virtuosos. melhor umScrates insatisfeito, diz ele, do que um tonto satisfeito. Com essa afirmaopassamos do utilitarismo hednico a um utilitarismo que poderamos chamarde ideal.

    O que Mill faz notar que a utilidade e o prazer no podem ser sinni-mos. De outra forma, o mandato busque a sua felicidade ser reduzido aomero conselho trata de alcanar o que tu desejas (MacIntyre, 1994). Quertomemos a definio bsica de til (tudo que pode servir para algo), quer adefinio emprestada de Hume (tudo o que pode satisfazer as necessidades eos desejos humanos), a identidade entre a utilidade e o prazer no se verifica.Por exemplo, uma operao cirrgica , ou pode ser, til, mas dela no tira-mos nenhum prazer. Afirmar que uma coisa til significa dizer que essa coisatem valor mesmo que o valor que encerre seja meramente econmico ,

    no que d prazer.Mill inverte a chave do utilitarismo. O utilitarismo deixa de ser o alge-

    brismo moral de Bentham, para elevar-se a uma apreciao dos valores, a umjulgamento no do prazer, mas dos tipos de prazeres sobre os quais lcito afir-mar que podem levar a felicidade. Trata-se de uma opo lgica. Em face daimpossibilidade de se determinar a priori o curso de acontecimentos result-antes de muitos dos nossos atos, Mill pondera que devemos nos concentrar nobem-estar pblico. Isto significa que devemos perguntar-nos sobre o resultadodas nossas aes em termos de acrscimo ou decrscimo das enfermidades, dacriminalidade, da fome e assim por diante (MacIntyre, 1994).

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    12/25

    304 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    O outro argumento apresentado por Mill, no captulo 4 do Utilitarismo,que tanto uma posio lgica quanto uma crtica ao algebrismo deBentham, se desdobra desta maneira:

    t se todos desejam a felicidade por si mesmos, isto , sem influncias exter-nas, ento a felicidade desejvel por si mesma;

    t no podemos encontrar nada separado ou diferente da felicidade comofim em si para os seres humanos;

    t

    se a felicidade a nica coisa desejvel em si mesma, ento a felicidadegeral o fim apropriado da conduta humana.9

    Podemos argumentar, como faz G. E. Moore (1974),10que uma coisadesejada diferente de uma coisa desejvel. Isto certo, se considerarmosdesejvel o que deve ser desejado. Mas Mill d outro sentido ao termo. Paraele, desejvel significa o que passvel de desejo como visvel significa o quepode ser visto.

    Os argumentos de Mill so sofisticados. Em termos lgicos, a posioque apresenta perfeitamente sustentvel. Mill um associacionista que en-tende que as leis e regularidades sociais no s podem como devem ser con-strudas a partir das leis individuais. Esta a posio ancestral do

    indutivismo, como vimos, da qual podemos discordar, mas que no podemostachar de irracional. Pois bem, se as leis de conduta individual so resultadode associaes, licito dizer que as normas de convvio s podem ter a mes-ma origem. Chegamos, assim, via induo associacionista, lei moral asso-ciamos certas condutas ao bem, outras ao mal , e no por deduo lgica,como pretendeu Kant.

    inegvel que Mill incorre aqui em uma falcia ad hominen.Para ele,os prazeres desejveis so aqueles desejados por pessoas ilustradas e sen-sveis. Mas isso no quer dizer que ele ignore que o ser humano capaz debaixezas. No que os seres humanos, por termos capacidades intelectuais,estejamos livres dos prazeres baixos. que, por termos conscincia da nossacapacidade, no nos satisfazemos com tais prazeres. O que no deixa de ser

    uma posio elitista intelectualista ou uma forma ingnua de livrar os idiotasda responsabilidade moral. Alguns utilitaristas contemporneos sustentamque a fragilidade do argumento de Mill pode ser superada se levarmos emconta que as categorias de qualidade e quantidade no so mutuamente ex-

    9 Este um tpico raciocnio indutivista. Caminha do particular ao geral e se expressa daseguinte forma: se a classe de objetos A, definida mediante a propriedadeP, goza tambm dapropriedade Q, ento qualquer objeto que goze dePgozar tambm de Q.10George Edward Moore (Londres, 1873-1958) considerado por vrios autores o utilitaristamais influente do nosso tempo. Da escola analtica de Cambridge, tratou, entre muitas outrascoisas, de analisar o conceito de bem como qualidade irredutvel.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    13/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 305

    clusivas, que so caros aos seres humanos tanto os prazeres intelectuais quan-to os prazeres ditos animais. Que o argumento utilitarista funciona melhorquanto mais abrangentemente o tomemos (Norman, 1992).

    4. Temas utilitaristas

    Os utilitaristas contemporneos so pluralistas. Podemos representar os cam-inhos do utilitarismo em um contnuo bidimensional, que vai, no eixo das ab-scissas, do hedonismo de Bentham ao idealismo mais romntico, e, no eixodas ordenadas, do utilitarismo puro do ato ao normativismo mais intransi-gente. Nos tpicos a seguir, apresentamos algumas das particularidades econtribuies do conjunto das posies utilitaristas.

    A utilidade contempornea

    Para G. E. Moore (1974), a utilidade ou o bem varia de pessoa a pessoa e possvel mesmo sem o prazer. Ele sustentou que alguns estados mentais, como ode adquirir conhecimento e o de compreender, tm um valor intrnseco, inde-pendentemente do prazer que gere. Tambm que a experincia esttica e senti-mentos como o da amizade tm valor intrnseco, enquanto a dor, o dio ao que bom e belo e o amor ao que ruim e feio tm valor negativo e devem ser ban-idos. Para Griffin (1986), a utilidade consiste em desejos informados: os dese-jos que as pessoas teriam se compreendessem a natureza dos possveis objetosde desejo (Guisn, 1992).

    Esses termos so dificlimos de precisar. Moore (1974:237), que diz queso indefinveis, compara, por exemplo, a utilidade ou o bem com o amarelo:todos sabemos o que a cor amarela, mas impossvel defini-la. Mas, de todasas formas, a utilidade contempornea continua referida ao bem comum. A util-idade, em filosofia, em administrao ou em economia, est referida ao quequeremos ou preferimos para sermos felizes, no a uma sensao de prazer ouao sentimento da felicidade (Smart & Williams, 1963).

    O utilitarismo e sua crtica foram prdigos em alimentar outras formas depensamento. Rawls,11o terico americano da justia, por exemplo, sugeriu quea nica maneira aceitvel de generalizar a felicidade ou seria uma forma

    11John Rawls autor de uma teoria da justia (1971), de grande influncia no pensamento norte-americano contemporneo. Nesse texto, Rawls prope a reformulao da idia do contrato sociale do individualismo utilitarista. Segundo a sua perspectiva, o ideal tico seria norteado pelaeleio coletiva do justo, de forma que os bens primrios (liberdade, renda etc.) fossem distribu-dos igualitariamente, a menos que uma distribuio desigual revertesse em benefcio dos menosfavorecidos (e no da maioria nem, tampouco, dos contratantes). Rawls fez uma tentativa engen-hosa de conciliar o pensamento utilitarista com o pensamento kantiano em Two concepts ofrules (1955:3-32).

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    14/25

    306 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    equnime. Uma forma injusta de generalizar a felicidade levaria a que os en-volvidos fossem menos felizes do que poderiam ser. Mas aqui j estamos nos afa-stando do utilitarismo. O importante a reter que, em qualquer de suascorrentes e derivaes, o utilitarismo um critrio de escolha racional que pre-tende nos ajudar a superar a dicotomia egosmo/altrusmo, referindo-se, sem-pre, ao maior nmero ideal, a uma totalidade. Qualquer que seja a sua vertente,o lema do utilitarismo o mesmo: o moralmente correto o que proporciona omaior bem (a maior felicidade, o maior prazer) para o maior nmero possvel depessoas. O corolrio que uma ao ser tanto mais eticamente incorreta se assuas conseqncias gerarem mais a dor (infelicidade, sofrimento) do que o bem.

    Sympatheia e liberdade

    Na metatica, que o campo da discusso dos conceitos ticos, temos umlegado utilitarista ou melhor, a recuperao de um legado muito inter-essante, que o do conceito de sympatheia. A etimologia do termo (sym, omesmo, como em sinnimo;pathos, paixo, comoo, emoo, dor) indica-tiva desse sentimento ou atitude.

    Asympatheia(devemos utilizar o termo desta forma, para no confundi-lo com o entendimento vulgar de simpatia no portugus atual) outra idia

    presente em Hume.12Significa a identificao, isto , a dor, a vergonha, a ale-gria que sentimos pelos outros, no lugar dos outros. algo presente na nature-za humana. Em termos morais, asympatheia a superao do egosmo presenteem todo individualismo. No egosmo tico o que vale sou eu, no altrusmo, oque vale so os outros, nasympatheia, o que vale todo mundo, eu includo.

    A sympatheiainforma a noo, essencial ao utilitarismo, de que cadainteresse vale independentemente de sua qualidade moral ou esttica e inde-pendentemente de quem seja o seu depositrio o sentimento que une econfunde o interesse de cada um com o interesse de qualquer um e, por con-seqncia, com o interesse de todos. Ao contrrio do que se pensa, o utilita-rismo no propugna pelo altrusmo, mas pela benevolncia,13 inclusive

    conosco mesmos (Smart & Williams, 1963).

    12Para Hume, a simpatia pela sorte dos outros um sentimento natural na humanidade. A vir-tude nos agrada para alm de todo sentimento egosta porque refletimo-nos nos outros (hojediramos que nos identificamos) como seres que padecem e se alegram como ns. Somos natu-ralmente solidrios em relao a espcie (Hume, 1967, 121-129).13A benevolncia, segundo a definio clssica de Aristteles (tica a Nicmaco, IX, 5), a des-ignao da atitude orientada busca do bem de todos. Confunde-se com a amizade e com a

    sympatheia, na medida em que se coloca entre o egocentrismo e o heterocentrismo. Para o utili-tarismo, a benevolncia a fonte do bem-estar que faz coincidir o interesse particular com ointeresse universal.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    15/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 307

    J para Bentham asympatheia a fonte das virtudes. A virtude o sac-rifcio de um interesse menor a um interesse maior. Para ele, as virtudes pri-mordiais so a prudncia (a mxima utilidade individual) e a benevolncia (amxima utilidade social). No utilitarismo, a par do individualismo, h umaatitude de solidariedade, muito prxima, s vezes, do discurso operrio dosanos 1960-70 (Farrel, 1989), que se confunde com o exclusivismo do socialno sentido, por exemplo, em que Bentham argumenta contra a subveno dasartes, que sobrecarrega materialmente as massas relativamente indigentes,para a diverso da minoria relativamente opulenta (Bentham, 1983).

    Outro ideal presente no utilitarismo o da liberdade. Em Mill a feli-cidade est intimamente ligada liberdade sobre a qual, alis, escreveuum belssimo ensaio: On liberty (Mill, 1972). que sem liberdade no po-demos ser felizes e a falta de liberdade dos outros, a infelicidade alheia, nostolhe da possibilidade da nossa prpria felicidade. Para Mill, e para o utilita-rismo posterior a ele, tanto a liberdade quanto a felicidade devem ser con-strudas. Este o propsito da educao, da cultura: permitir o mximo defelicidade (qualificada) mediante a libertao do esprito.

    Atos, normas e pessoas

    Um dos problemas que o utilitarismo teve de superar foi o da impossibilidadeda deliberao recorrente sobre as aes particulares. Parece bvio que, seno for possvel acumular o conhecimento sobre o certo e o errado, se a cadamomento tivermos de medir as conseqncias dos nossos atos, no faremosoutra coisa na vida.

    Os diversos partidrios do utilitarismo procuraram solues diferentespara o problema. Como vimos, Bentham pesquisou, anotou e divulgoulistagens sobre as conseqncias possveis de cada ato (Bentham, 1983). difcil de acreditar que no se tenha dado conta de que este um processosem fim; que isto no resolve a questo de termos de decidir sobre o certo e o

    errado a cada momento. Seja como for, ele, ao no resolver essa dificuldade,deu incio a uma ciso interna que resiste at hoje.De um lado, temos os partidrios do utilitarismo puro que julga cada

    ato por si. De outro temos os que acreditam que para garantir a felicidade geral preciso que haja normas que no possam ser transgredidas. O utilitarismo doato tira as concluses sobre o certo e o errado para cada ao determinada. Outilitarismo da norma procura determinar as conseqncias da aplicao ha-bitual de uma regra. No utilitarismo da norma o bem deve ser julgado segundoa bondade ou a maldade das conseqncias no de um ato, mas da regra queinforma a deciso, isto , de acordo com a norma segundo a qual todo mundodeveria executar uma ao em circunstncias anlogas.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    16/25

    308 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    Esta seria uma distino simples se os utilitaristas da norma no se di-vidissem, eles tambm, em duas faces. Uma, a faco mais modesta, argu-menta que se em muitas ocasies verificamos que tomar ou deixar de tomaruma determinada ao produz maior felicidade, ento podemos indicar estaao como recomendvel sob a forma de uma regra geral. Por exemplo, ten-do observado que a propaganda enganosa ruim tanto para os consumidoresquanto para a imagem das empresas, estabelecemos uma regra geral proibin-do ou tentando limitar a mentira na publicidade.

    A outra faco do utilitarismo da norma prope regras gerais, no retira-

    das da experincia, isto , no derivadas do utilitarismo do ato, para regular aconduta humana. um clculo genrico sacado em abstrato. Por exemplo, esti-mamos que as conseqncias de desrespeitar as leis, mesmo quando as leis soinjustas e absurdas, pode causar mais infelicidade do que felicidade. Conside-ramos, isto , nos representamos sem experiment-las, as sanes possveis, aemulao para que outros tomem a lei em mos, a perda do nosso direito deprotestar quando outros desrespeitarem a lei, o enfraquecimento do Estado dedireito quando menosprezamos a lei etc., e, ento, estabelecemos a norma,genrica, de que no devemos desrespeitar as leis.

    No primeiro caso temos normas logicamente posteriores s aes, paraas quais fcil encontrar justificativas no utilitarismo do ato para ex-

    cees. No exemplo tradicional de uma pessoa inocente que condenada, anorma a lei acima de tudo pode, e deve, ser desrespeitada. No segundo caso,temos normas anteriores s aes, para as quais logicamente impossvel en-contrar excees: no exemplo do condenado, a pessoa condenada injusta-mente deve sofrer em benefcio do sistema judicial como um todo (MacIntyre,1994).

    Enfim, a diviso entre o utilitarismo do ato e o da norma, bem comotoda a controvrsia sobre como estabelecer a norma, constitui um problematerico bem complicado, mas no insolvel. Cada utilitarista trata de equa-cion-lo de forma diferente. Para Mill, o utilitarismo do ato deve ser excepcio-nal, o da norma o usual (Mill, 1974). Para Moore (1974), s o utilitarismo da

    norma faz sentido. No por acaso a sua obra principal denomina-sePrincipiaetica. J Hare (1994) tenta uma conciliao mais prtica.14Nos julgamentosgerais devemos seguir, e seguimos, porque no h outro jeito, a nossa intu-io. E intuitivamente seguimos o utilitarismo da norma, o conhecimentomoral acumulado por nossa cultura, os princpios prima facie. Mas critica-mente o que deve prevalecer o utilitarismo do ato, a reflexo centrada noato particular que est em julgamento.

    14Richard Mervin Hare o principal terico do prescretivismo. Para ele, o discurso tico pre-scritivo, isto , proporciona razes universalizveis.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    17/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 309

    Outro tema de interesse suscitado pelos utilitaristas o do individualis-mo. O principal trao de individualismo refere-se ao prprio conceito de util-idade. De alguma forma as pessoas esperam um retorno, uma recompensapela conduta correta. A isso responde a perspectiva mais elevada do utilitaris-mo que a utilidade no um meio para um fim, mas o prprio fim. O til oque promove a eqidade e a justia. Mill refere-se expressamente aos bensmais preciosos e cobiados: a virtude, o auto-respeito, a dignidade, o autode-senvolvimento. Segue uma idia muito antiga, que vem de Epicuro (Duvernoy,1993). O bem o que unicamente humano, o bem o que no-animal noshumanos. O que exclui tudo o que no esteja referido s capacidades pr-prias do intelecto, a aret, a harmonia dos sentimentos, a amizade, a cooper-ao. Na prtica observvel, os dois nveis convivem: h uma elevao depropsitos, mas tambm um sentimento do no-reconhecimento como in-justia. Ningum parece crer verdadeiramente que ser honesto e trabalhador uma obrigao, no um ato meritrio.

    As organizaes e os negcios

    No que se refere ao julgamento moral dos atos nas organizaes, o utilitaris-mo determina que cada diretriz econmica ou administrativa oriente aesque resultem em benevolncia nos estgios socioeconmicos subseqentes.D como razo para o autocontrole tico na escolha de um curso de ao aidia de que, em ltima instncia, procedendo livremente de acordo com aminha vontade, eu acabo por me prejudicar. Ou, em outros termos, o utilita-rismo sustenta que do interesse dos negcios promover a felicidade de out-ros tanto quanto da minha organizao.

    Somos parte de uma sociedade complexa, formada por milhes de indi-vduos e por inmeras organizaes, que nos proporciona uma srie de con-fortos e facilidades. Vivemos uma vida civilizada que depende da ordenaosocial que do interesse de cada um e do interesse das organizaes manter.Isto , obedecemos s regras do convvio porque queremos nos beneficiar dos

    frutos da cooperao. A postura e a ao altrusta das organizaes nada maisso do que a garantia realista de sua sobrevivncia. Assim, para analisar amoralidade de uma deciso gerencial, primeiro devemos avaliar os vrios cur-sos de ao disponveis. Em seguida, quem ser afetado por essa ao e quan-to de bem ou de mal ela pode causar. E, finalmente, escolher o curso de aoque ir produzir o maior bem para o maior nmero possvel de pessoas den-tro e fora da organizao.

    No campo mais especfico da gerncia, podemos nos orientar pela mxi-ma do sistema carcerrio dopanopticon de Bentham (1976). Opanopticontemcomo princpio a dependncia recproca do trabalho e da superviso e do seucontrole via transparncia. Bentham, ao escrever sobre o trabalho como forma

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    18/25

    310 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    de redeno dos pobres (Outline of a work to be called pauper management ,apud Halvy, 1995), procurou demonstrar que do interesse dos gerentes edos trabalhadores pobres, isto , que gera maior utilidade para o maior nme-ro possvel de pessoas, que cada um busque a conservao da vida e do bem-estar mtuo (life warranty principle). Sustentou, ainda, que um sistema dessanatureza pode ser garantido pela transparncia das condutas dos atores nasfunes que lhes cabem (transparent management principle). Adicione-se a issoo princpio da especializao e no estaremos muito longe da base moral dotaylorismo. Alis, Taylor,15bem como os fundadores da administrao cientfi-ca, da escola de relaes humanas e do que se segue, defendeu suas opesticas a partir de premissas utilitaristas (Williams, 1992). No sentido de que onico juiz e dono dos seus interesses o prprio indivduo que os possui,muitos dos estrategistas empresariais e homens pblicos contemporneos seg-uem o mesmo velho preceito do utilitarismo benthamista.

    A economia

    No que diz respeito economia e ao nvel mais estratgico das organizaes,j mencionamos que Bentham era um entusiasta do mecanismo livre-cambis-

    ta imaginado por Adam Smith, o pai da economia liberal, havendo mesmopublicado um livro A defesa da usura (Bentham, 1980), que segue basica-mente as suas idias. Lembremos que para Adam Smith a riqueza medidapela possibilidade de pagar pelo trabalho dos outros ou pelo seu produto, oque d no mesmo. Bentham sustenta que o princpio da utilidade substitui anoo da propriedade natural (via herana) pelo direito subsistncia. Com apropriedade sendo um direito adquirido, o trabalho (a produo) deixa de seruma obrigao e passa a ser a base da subsistncia e da acumulao.

    Malthus,16amigo pessoal de Bentham, foi um utilitarista. A idia deque preciso equilibrar o crescimento das populaes ao nvel do crescimen-

    15 Toda a fundamentao moral dos Princpios de administrao cientfica (Taylor, 1947) estcentrada nos princpios utilitaristas, que so insistentemente repetidos no testemunho de Tay-lor ante a comisso do Congresso norte-americano. (Hearings before the Special Committee of the

    House of Representatives to investigate the Taylor and other systems of shop management underauthority of H. Res. 90, 1947). A respeito do utilitarismo na administrao cientfica, ver Thiry-Cherques (1996).16Thomas Robert Malthus (1776-1834), emAn essay on the principle of population(1798), sus-tenta que a populao tende a crescer em um ritmo mais rpido do que os meios de subsistn-cia. Como resultado, tende a haver uma luta pela subsistncia na qual sucumbe, pela escassezde recursos, uma parte da populao. O processo se estende at que um novo ciclo de pros-peridade tenha lugar. Malthus prope a educao e o controle da natalidade como alternativaaos ciclos perversos de misria-destruio/prosperidade-expanso.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    19/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 311

    to da produo (dos bens ou utilidades) 100% utilitarista. Ele e James Millinformam parte das teorias de Ricardo. Como vimos, James Mill foi o grandeestimulador de David Ricardo, quem lanou a idia do trabalho como valor,noo que ser o alicerce sobre o qual Karl Marx far no s a crtica do capi-tal como a proposio do que deve ser a justa economia da distribuio eqi-tativa plena e controlada das utilidades.

    A proposio conhecida como Estado do bem-estar, muito em voga naEuropa h alguns anos, tem razes utilitaristas.17A orientao geral dessateoria, ou melhor, dessa aspirao, pode ser resumida na afirmao de Hare

    (1994), de que o que leva ao bem-estar a valorao das utilidades com baseem informaes (passadas) e expectativas (futuras) a respeito das utilidades.O prprio Mill simpatizou com o socialismo porque via na cooperao o ni-co caminho para a superao da opresso da liberdade total do economicis-mo liberal em direo ao que interessa realmente liberdade individual, que a liberdade do esprito.

    O liberalismo radical, por seu turno, como o da teoria social de Hayek,18

    est, em grande parte, baseado no utilitarismo de Mill (felicidade) e na idia deque a sociedade uma ordem espontnea, quer dizer, muito complexa parater sido resultado de um planejamento. As regularidades nas aes e nas inter-aes humanas resultariam de uma evoluo natural dos interesses indivi-

    duais. Da que o interesse pblico consistiria em possibilitar a consecuo dosinteresses individuais. Nessa tica, o moralmente correto ser tudo o que mel-hora as chances de o indivduo alcanar suas metas, tudo o que possibilita amelhor eleio das suas metas. Como a informao, a liberdade de escolha, alivre concorrncia, a livre iniciativa etc.

    Uma vez que a generalidade dos primeiros pensadores modernos daeconomia e da administrao foi de utilitaristas ticos, conhecemos bem essaforma de pensar. Para ns so familiares idias como a maximizao da util-idade coletiva (utilidade mdia esperada) e, principalmente, a da justia re-distributiva: a utilidade marginal decrescente, ou seja, a idia de mais

    17O critrio tradicional da economia do bem-estar era o de estimar o xito pela soma total dautilidade criada, sem considerar, portanto, as diferenas individuais. A soluo encontrada paraessa falha foi levar utilidade o timo de Pareto, na forma de que um estado social se descrevecomo timo se e somente se no for possvel aumentar a utilidade de uma pessoa sem diminuira de outra. Isto resultou em uma posio antiutilitarista, uma vez que perfeitamente possvelobter-se o timo de Pareto sem redistribuir os bens (ou a felicidade). Em outros termos: pode-seconseguir o equilbrio das utilidades enquanto os ricos e privilegiados continuam ricos e privile-giados e os pobres e preteridos continuam pobres e preteridos (Sen, 1997:48-50).18Friedrich August von Hayek, austraco, ganhou o prmio Nobel de 1974 por sua teoria da alo-cao tima de recursos que dispensa toda e qualquer regulao que limite a liberdade individ-ual.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    20/25

    312 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    impostos para os mais ricos. Estas noes esto todas profundamente imbri-cadas; tanto no tempo Ricardo j escrevia sobre vantagens competitivas quanto nas ideologias. Podemos ver claramente o utilitarismo na mo invisv-el do mercado admico e na belssima e irrealizvel mxima comunista quereza: de cada um de acordo com a sua possibilidade, a cada um de acordocom a sua necessidade.

    Dificuldades

    Como qualquer corrente tica, o utilitarismo problematizvel. Perguntamo-nos sobre quem determina o que bom para mim, para cada um de ns, paratodos ns. Ser a maioria? Ser a mo invisvel do mercado corrigida pelamo visvel do Estado (do legislador)? Sero os improvveis indicadores de-senvolvidos por Bentham? Perguntamo-nos, tambm, sobre o que vale mais:o maior bem ou o maior nmero? Gostaramos, alm disso, de saber comoconhecer os desejos de cada um e de todos. Finalmente, perguntamo-noscomo seria possvel prever o bem; estimar o que nos traria a felicidade, oprazer no hoje, mas no futuro.

    Como vimos, as respostas a estas questes variam imensamente. Umasso mais satisfatrias do que outras. Examinemos agora as dificuldades apon-tadas com maior freqncia pelos crticos do utilitarismo.

    A primeira, claro est, a da transposio do egosmo para asympathe-ia. Por mais que argumentem os utilitaristas, a verdade que a passagem dacoerncia egosta ao ideal altrusta no se resolve inteiramente em termos delgica. Trata-se de uma falcia clssica de composio, que se expressa daseguinte forma: do fato de a,b,c, ... ndesejarem ser felizes no decorre, pelomenos no decorre logicamente, que aqueira a felicidade de b,c, ... n, de quebqueira a felicidade de a, c, ... n, e assim por diante.

    O argumento, que vem de Hume e reforado por Mill, de que o serhumano , de natureza, benevolente no se sustenta ante a simples obser-vao. Ao contrrio, parece que a maldade e a opresso so fonte de prazerpara muitos seres humanos. No s os prazeres intelectuais so exclusivos daespcie. A crueldade a maldade pela maldade , por exemplo, no existeentre os animais. A vontade de poderio, o poder poltico, o poder burocrti-co, o poder gerencial, o poder sobre o mais fraco mulheres e crianas prin-cipalmente , sempre foi e continua sendo um manancial inesgotvel dedeleite abjeto, ainda que muitas vezes isso passe despercebido, acostumadosque estamos com as baixezas da nossa espcie.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    21/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 313

    O segundo grupo de dificuldades reside em que, a par dasympatheia, soevidentes no cotidiano da economia e dos negcios tambm os elementos paraos quais as respostas do utilitarismo so precrias ou, pelo menos, discutveis: adespersonalizao do indivduo, quando todo mundo torna-se qualquer um,o sacrifcio das minorias (os que no tm preparo tcnico, por exemplo), o indi-vidualismo egocntrico, onde cada um conta somente com si mesmo, a aceit-ao, como princpio, da impossibilidade da distribuio eqitativa dafelicidade e a idia paternalista de que, se no tomarmos cuidado, a massa ig-norante pode ser vtima de si mesma.

    Em terceiro lugar temos as dificuldades ligadas poltica e justa dis-tribuio do poder. A verdade sobre o mandato da maioria que a maioriapode ser bastante estpida. Toda unanimidade burra, disse Nelson Rod-rigues. Isto vale para o processo poltico da democracia, como o da democra-cia alem, que, queiramos ou no, elegeu um governo que teve entre suasmetas o extermnio do povo judeu; poltica perfeitamente aceitvel do pontode vista do utilitarismo do ato, j que a maioria dos alemes concordava queo sacrifcio dessa minoria era necessrio ao progresso e ao bem-viver geral.

    Uma quarta dificuldade reside no estorvo de explicar como se atraves-sa da satisfao ao ideal. obvio que o fato de estarmos satisfeitos com a nos-sa sorte no significa necessariamente que ela seja o que deveria ser. Uma

    pessoa ignorante no tem como se ressentir da ausncia da arte, da msica,da poesia em sua vida. Claro que os utilitaristas tratam de socorrer os pobrese favorecer a educao. Vimos que a carreira no-acadmica de Bentham foipraticamente dedicada a isso. Mas o que fazer com os que passam a vidatentando chegar mais alto, tentando acumular o trabalho dos outros? Genteque vive em um mundo limitado, gente que pensa ser possvel medir a qual-idade da produo e dos produtos e a qualidade da sua prpria vida, quandoqualquer criana sabe que a qualidade no se mede? Que tudo que se mede quantidade. Gente que sorri idiotamente ante tudo que no prtico, en-tendendo-se por prtico aquilo que os outros acham importante? Gente queconfunde realizao com locomoo, informao com cultura e, ainda, util-

    idade com prazer?As dificuldades do utilitarismo tambm aparecem como dificuldades deordem econmica e administrativa. Os utilitaristas tm respondido insatisfa-toriamente a questes como a de saber o que vale mais: a liberdade ou a feli-cidade. O socialismo de raiz utilitarista, por um lado, prega o sacrifcio daliberdade em prol da felicidade geral. Os liberais, por outro, pregam o sacrif-cio em prol da prosperidade futura. Nenhum dos dois responde se e por quedevemos nos sacrificar em benefcio da sociedade do futuro ou tomar empres-tado das geraes futuras os meios para o nosso bem-estar. Nos primrdios, oEstado do bem-estar era tido como aquele em que se conseguiria a satisfaodas aspiraes de cada um. O problema que as pessoas desejam coisas difer-

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    22/25

    314 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    entes, alm de contentar-se com nveis diferentes de acesso aos bens.19Tam-bm parece no haver uma resposta satisfatria para a questo de se saberquem vale mais economicamente, isto , quem deve ser considerado a maioriaou quem ser maioria quando a populao do mundo comear a decrescer.

    Outra dificuldade com reflexos imediatos sobre a administrao e aeconomia a da passagem do prazer desejado asseverao do que possa vira ser desejvel. Por que motivo algum um dia sups que escolheremos deforma correta a famigerada escolha racional escapa totalmente com-preenso. A escolha racional um artifcio de clculo, algo que utilizamos na

    economia e na gesto quando nos falta o conhecimento adequado sobre aconduta humana isto , sempre. Alm disso, o que fazer com as excees?Mesmo quando consideramos os prazeres vulgares, haver gente, como os as-cetas, os puritanos, que no os tem, que alimentam outros tipos de desejos.Haver intelectuais com outras ambies. No, como queria Mill, ambiesmais elevadas, mas ambies informadas (Guisn, 1992).

    Esta confuso entre o desejado e o desejvel recai facilmente em umafalcia naturalista, j apontada por Moore em 1903. Diz Moore que o fato deuma coisa ser desejada no a torna desejvel. Como vimos, os utilitaristas re-spondem que o termo desejvel pode ter outras interpretaes. A passagemimediata do que objeto de desejo para o que deve ser objeto de desejo real-

    mente no cabe. E, de fato, no o que Mill prope. O que ele prope queseparemos, entre o que desejamos, o que digno de ser objeto de desejo. Elepostula no s uma dignificao dos desejos, condio para a dignificao dosprazeres e da felicidade, como a maior satisfao desses desejos qualificados,em contraposio satisfao da maior quantidade dos desejos em geral.

    5. O saldo

    s crticas ao utilitarismo, os que se filiam a esta corrente de pensamento re-spondem que, ainda que possam restar pontos de discusso, o utilitarismo da

    19A eqidade utilitarista suscita um problema lgico de alguma complexidade. Uso o exemplocriado pelo prmio Nobel de economia, Amartya Sen (1993). Imaginemos que a eqidade con-sista em dividir um bolo entre todas as pessoas. Quanto maior a fatia, maior a utilidade. O obje-tivo do utilitarismo o de maximizar o total das utilidades, independentemente da repartio.Isso implica encontrar a igualdade da utilidade marginal (o ganho em utilidades) de todos osenvolvidos. Para que haja uma distribuio equnime, o ganho de utilidade marginal dos ganha-dores deve ser igual perda dos perdedores, isto , deve-se atribuir um peso igual aos inter-esses de todas as partes (Hare, 1994). A par da dificuldade terica de se determinar taldistribuio, h aqui uma suposio inverossmil: a de que diferentes pessoas considerem homo-geneamente todas as utilidades, de que as utilidades no difiram de pessoa a pessoa.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    23/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 315

    norma garante, em ltima instncia, que os atos que possam gerar vantagens il-citas terminem por ser invalidados j que, lgica e empiricamente, geram util-idades negativas. Mesmo o to freqentemente lembrado sacrifcio de poucosem benefcio de muitos gera utilidades negativas, porque esta utilidade bus-cada no sacrifcio de outrem e, portanto, fere o princpio da sympatheia, e osmuitos beneficiados sentem-se inseguros: despertam para a realidade de quetodos, de uma forma ou de outra, somos parte de alguma minoria. Lembremosque Bentham (1974), no primeiro captulo da sua obra introdutria, j diziaque o que vale a happiness of the community.

    Em que pese s crticas e aos passos em falso do utilitarismo tico, o sal-do que o utilitarismo deixa que tem deixado, porque est bem vivo pos-itivo. No h dvida de que Bentham e seus seguidores contriburam para aquantificao e a conseqente proteo do anonimato no sistema de represen-tao poltica. Tambm procuraram sempre demonstrar que a utilidade priva-da e a utilidade pblica podem coincidir.

    Mill e todos os utilitaristas depois dele julgaram a liberdade individual-ista uma fraude. O insulamento individualista trai o esprito de quem se privado convvio e quebra a passagem ao hedonismo universal, sem o qual o hedo-nismo pessoal iluso que no se firma. A liberdade fsica e do esprito so aessncia do ideal utilitarista. Por isso, os partidrios dos totalitarismoseconmicos, seja o comunismo de caserna, seja o liberalismo incondicional,apesar das origens que ambos tm nas idias de Bentham, Adam Smith, Mill eRicardo, repudiam o utilitarismo de estrita observncia.

    No plano poltico, a lgica operacional do utilitarismo levada a efeitono s no mundo anglo-saxo demonstrou serem imprescindveis a livre dis-cusso e a participao na formulao de diretrizes, sejam elas polticas,econmicas ou gerenciais. Bentham e James Mill se ocuparam de sugerir aquem quisesse ouvi-los a constituio de governos baseados na lei da util-idade, isto , na prevalncia do interesse geral sobre o particular. Tiveramno poucos seguidores. Prximo de ns tiveram na Argentina, com Rivada-via,20um simpatizante utilitarista de primeira ordem.

    O utilitarismo encerra no s uma teoria do valor seja ele o prazer, a

    felicidade ou o indefinido bem , como tambm uma teoria da distribuiodo valor. Desde Bentham, e variando os utilitaristas, a dor que sano doutilitarismo considerada em dimenses que incluem no s a dor fsica

    20Bernardino Rivadavia (1780-1845) foi presidente da Argentina. Props uma srie de refor-mas modernizantes, a maioria das quais foi adotada s depois de sua morte. Na Colmbia, foiutilitarista Francisco de Paula Santander; na Venezuela, Francisco de Miranda. H uma carta deSimon Bolvar para Bentham, em que expressa sua venerao e gratido. Mas isto no sig-nifica que seus preceitos tenham sido seguidos. Bentham nas Amricas foi uma espcie de conedo pensamento liberal moderno, e no muito mais do que isso (Harris, 1998).

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    24/25

    316 Hermano Rober to Th iry -Cherques

    ou natural, mas a culpa ou a dor psicolgica e espiritual, a pena ou a dorpoltica e legal, o remorso ou a dor moral e coletiva, a contrio ou a dor reli-giosa e transcendental. Por fim, resta a esperana utilitarista, e, na verdade,no se trata mais do que uma esperana: a de que a humanidade, havendo aolongo de toda a sua existncia experimentado a felicidade da estima e a dordo antagonismo, venha um dia a perceber que a cooperao gera maiores emais duradouras utilidades do que o conflito.

    Referncias bibliogrficas

    Benthan, Jeremy. Principles of morals and legislation. [1781] http://ww.la.utexas.edu/labyrinth/ipml.

    . Uma introduo aos princpios da moral e da legislao. So Paulo, Abril Cultural,1974.

    .Panopticonor the inspection house. USA, Research, 1976.

    .Benthamiana or select extracts from the works of Jeremy Bentham. USA, Research,1980.

    . Constitutional code. In: Collected works. Oxford, Oxford University Press, 1983.

    . Sofismas anrquicos ou exame das declaraes de direito publicadas durante a Rev-oluo Francesa.s.l., s.ed., s.d.

    Brink, David O.Moral realism and the foundations of ethics. Cambridge, Mass., CambridgeUniversity Press, 1989.

    Duvernoy, Jean-Franois. O epicurismo e sua tradio antiga. Rio de Janeiro, Zahar, 1993.

    Farrell, Martn Diego.Anlisis critico de la teora marxista de la justicia. Madrid, Centro deEstudios Constitucionales, 1989.

    Foucault, Michel. Vigiar e punir. Petrpolis, Vozes, 1977.

    Griffin, James. Well-being: its meaning, measurement and moral importance. Oxford, Clar-endon Press, 1986.

    Guisn, Esperanza. Utilitarismo. In: Camps et alii (orgs.). Concepciones de la tica. Madrid,Editorial Trotta, 1992.

    Halvy, Elie.Lvolution de la doctrine utilitaire de 1789 a 1815. Paris, PUF, 1995.

    Hare, Richard Mervin. Ethical theory and utilitarianism. In: Sen, Amartya & Williams, Ber-nard (orgs.). Utilitarianism and beyond. Cambridge, Mass., Cambridge University Press,1994.

    Harris, Jonathan. Bernardino Rivadvia and benthanamite discipleship.Latin AmericanResearch Review, 3(1), 1998.

  • 7/25/2019 tica e Utilitarismo

    25/25

    Economia Mora l da Ut i l i dade 317

    Hearings before the Special Committee of the House of Representatives to investigate the Tay-lor and other systems of shop management under authority of H. Res. 90. New York, Hap-per & Brothers, 1947. v. 3, p. 1.377-508.

    Hume, David.An enquiry concerning human understanding, Chicago, Enciclopdia Britan-nica, 1952.

    .Lhomme et lexprience, textes choisis. Paris, PUF, 1967.

    Laval, Christian.Bentham, Jeremy: le pouvoir des fictions. Paris, PUF, 1994.

    MacIntyre, Alasdair.Historia de la tica. Barcelona, Paids, 1994.

    Marx, Karl. Selected essays. Freeport, Books for Libraries Press, 1968.

    Mill, John Stuart. Bentham. In:Dissertations and discussions. 1972. v. 1.

    . Sistema de lgica dedutiva e indutiva. So Paulo, Abril Cultural, 1974.

    .El utilitarismo, un sistema de la lgica. Madrid, Alianza, 1994.

    Mondolfo, Rodolfo. O pensamento antigo. So Paulo, Mestre Jou, 1971.

    Moore, George Edward.Princpios ticos. So Paulo, Abril Cultural, 1974.

    Norman, Richard. The moral philosophers: an introduction to ethics. Oxford, ClarendonPress, 1992.

    Paim, Antnio. A meditao tica portuguesa: perodo moderno. Rio de Janeiro, TempoBrasileiro, 2001.

    Rawls, John. Two concepts of rules.Philosophical Review, 64(1):3-32, 1955.

    .A theory of justice. Cambridge, Mass., Belknap Press of Harvard University Press,1971.

    Sen, Amartya.thique et conomie et autres essais. Paris, PUF, 1993.

    . Sobre tica y economa. Madrid, Alianza Universidad, 1997.

    Smart, J. J. C. & Williams, Bernard. Utilitarianism, for and against. London, University of

    Cambridge Press, 1963.Smith, Adam.Inquiry on the nature and causes of the wealth of nations. London, Encyclop-

    dia Britannica, 1952.

    Spinoza, Benedictus.tica. Madrid, Aguilar, 1982.

    Taylor, Frederick Winslow. The principles of scientific management. Nova York, Happer &Brothers, 1947.

    Thiry-Cherques, Hermano. Dois dilogos imperfeitos sobre a tica nas relaes de trabalho.Revista de Administrao Pblica. Rio de Janeiro, FGV, 30(6):37-47, nov./dez. 1996.

    Williams, Gerald J.Ethics in modern management. New York, Quorum Books, 1992.