EXPRESSÕES EM FRANCÊS

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BEATRIZ FACINCANI CAMACHO

ESTUDO COMPARATIVO DE EXPRESSES IDIOMTICAS DO PORTUGUS DO BRASIL E DE PORTUGAL E DO FRANCS DA FRANA E DO CANAD

Dissertao apresentada ao Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas da Universidade Estadual Paulista, Cmpus de So Jos do Rio Preto, para obteno do ttulo de Mestre em Estudos Lingsticos (rea de Concentrao: Anlise Lingstica) Orientador: Profa. Dra. Claudia Maria Xatara

So Jos do Rio Preto 2008

Camacho, Beatriz Facincani. Estudo comparativo de expresses idiomticas do portugus do Brasil e de Portugal e do francs da Frana e do Canad / Beatriz Facincani Camacho. - So Jos do Rio Preto : [s.n], 2008 167 f. ; 30 cm. Orientador: Claudia Maria Xatara Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas 1. Expresses idiomticas. 2. Lngua portuguesa - Expresses idiomticas. 3. Lngua francesa - Expresses idiomticas. 4. Lexicografia. 5. Fraseologia. I. Xatara, Claudia Maria. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biocincias, Letras e Cincias Exatas. III. Ttulo. CDU - 81373.72Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE Campus de So Jos do Rio Preto - UNESP

COMISSO JULGADORA

Titulares Profa. Dra. Claudia Maria Xatara - Orientadora Prof. Dr. Maria Cristina Parreira da Silva Prof. Dr. Oto Arajo Vale

Suplentes Prof. Dr. Claudia Zavaglia

minha me Ivany. Aos meus avs, Augusta, Neyde, Eduardo e Pedro.

AgradecimentosGostaria de deixar meus sinceros agradecimentos a todos que de alguma forma contriburam com este trabalho: Aos meus pais, Ivany e Eduardo, pelo amor incondicional e apoio desde o incio. minha orientadora Profa. Dra. Claudia Xatara pela confiana no meu trabalho, pela pacincia, pelo carinho e, acima de tudo, pelo exemplo profissional e pessoal que me inspirou a seguir este caminho. As minhas irms, Mnica e Luisa, pelo companheirismo e amizade. Aos meus familiares pelo carinho. Em especial, minha v Neyde pelas velinhas acesas e minha tia Inalda pelas palavras de incentivo. Aos meus amigos Alexandre Sampaio, Aline Cavalcanti, Andria Rui, Anglica Cattini, Bruce Kasama, Bruna Rangel, Claire Martins, Diego Oliveira, Fernanda Lima, Jos Guiro, Marisa Correa e Ricardo Montagnoli pela amizade, cumplicidade, e pelos inmeros momentos felizes que nunca sero esquecidos. Dentre os amigos, um agradecimento especial Marina Caproni, pela amizade sincera e pela confiana, e ao Deni Kasama, amigo desde o primeiro trabalho da graduao, ao meu lado em todos os momentos. No h palavras que possam expressar minha gratido a vocs. Profa. Dra. Claudia Zavaglia pela valiosa contribuio, no somente no exame de qualificao, mas tambm para o meu crescimento profissional com suas aulas e conversas. Profa. Dra. Maria Cristina Parreira da Silva pelas observaes precisas feitas no exame de qualificao e na defesa. E, principalmente, pelo incentivo execuo deste trabalho desde as aulas da graduao. Ao Prof. Dr. Oto Arajo Vale pela participao na banca de defesa e pela avaliao criteriosa que contribuiu para a finalizao deste trabalho. Ao Prof. Dr. Nelson Luis Ramos por alimentar meu interesse pela cultura quebequense. Profa. Dra. Maria Celeste Augusto pela disponibilidade em ajudar sempre que necessrio e pelo interesse em nosso trabalho. Fapesp pela bolsa de estudo concedida para que esta pesquisa fosse realizada.

SUMRIO

Introduo........................................................................................................................... 09

Captulo I - Expresso Idiomtica e Fraseologia.................................................................. 12 1. 2. 3. A indecomponibilidade .............................................................................................. 18 A conotao ............................................................................................................... 19 A cristalizao............................................................................................................ 22

Captulo II - Expresso Idiomtica e Lexicografia............................................................... 24 1. 2. 3. Lexicografia e interdisciplinaridade............................................................................ 24 Os dicionrios na histria ........................................................................................... 25 Tipologia dos dicionrios ........................................................................................... 28 3.1. Dicionrios gerais de lngua............................................................................... 29 3.2. Dicionrios especiais ......................................................................................... 30 3.3. As EIs nos dicionrios ....................................................................................... 31

Captulo III Aspectos tradutolgicos e freqenciais na elaborao de um dicionrio multilnge de expresses idiomticas................................................................................. 35 1. 2. 3. 4. Traduo e Lexicografia Bilnge: a questo da equivalncia ..................................... 35 O reconhecimento e a traduo lexicogrfica de expresses idiomticas..................... 38 Os problemas de traduo nos dicionrios bilnges/multilnges............................... 42 Lnguas em contraste.................................................................................................. 44

5. Freqncia de uso e corpora.................................................................................... 47

Captulo IV - Materiais e Mtodos ...................................................................................... 53 1. 2. Nomenclatura em portugus do Brasil e em francs da Frana.................................... 53 Levantamento de equivalentes em portugus de Portugal a partir de expresses idiomticas brasileiras ................................................................................................ 54 3. Levantamento de equivalentes em francs do Quebec a partir de expresses idiomticas francesas .................................................................................................................... 55 4. Localizao e verificao da freqncia dos equivalentes em portugus de Portugal e em francs do Quebec ...................................................................................................... 56 5. Organizao lexicogrfica do inventrio final............................................................. 59

Captulo V Inventrio final....... ........................................................................................ 61

Captulo VI - Anlise do inventrio final........................................................................... 132 1. 2. Diferenas e paralelismos culturais e lingsticos ..................................................... 132 Brasil x Portugal....................................................................................................... 135 2.1 Expresses semelhantes: traos quase universais.............................................. 135 2.2. Expresses semelhantes formalmente, mas com sentidos diferentes................. 138 2.3. Expresses diferentes: traos no universais .................................................... 139 2.4. Expresses diferentes: traos especficos ......................................................... 141 3. Frana x Canad....................................................................................................... 142 3.1 Expresses semelhantes: traos quase universais.............................................. 143 3.2. Expresses diferentes: traos no universais .................................................... 144 3.3. Expresses diferentes: traos especficos ......................................................... 147

4.

Francs x Portugus................................................................................................. 148 4.1. Expresses semelhantes: traos emprestados de outra cultura........................... 149 4.2. Expresses semelhantes: traos quase universais.............................................. 150 4.3. Expresses diferentes: traos no universais .................................................... 151 4.4. Expresses diferentes: esteretipos .................................................................. 152

Consideraes Finais......................................................................................................... 154

Referncias Bibliogrficas ................................................................................................ 157 Bibliografia....................................................................................................................... 163 Corpus para as EIs em portugus de Portugal .................................................................... 164 Corpus para as EIs em francs do Quebec ......................................................................... 166

RESUMO Esta pesquisa tem como objetivo principal fazer um levantamento de expresses idiomticas equivalentes em portugus de Portugal e em francs do Canad (Quebec) aos idiomatismos em portugus do Brasil e em francs da Frana que compem a nomenclatura do Dictionnaire lectronique dexpressions idiomatiques franais-portugais / portugais-franais (XATARA, 2007). Para tanto, considerou-se o conceito de expresso idiomtica segundo os estudos fraseolgicos e a freqncia de uso das equivalncias propostas.

Palavras-chave: expresso idiomtica, Lexicografia, Fraseologia.

RSUM Cette recherche fait lobjet dun inventaire dexpressions idiomatiques en portugais du Portugal et en franais du Canada (Qubec), quivalentes aux expressions en portugais du Brsil et en franais de France qui composent les entres du Dictionnaire lectronique dexpressions idiomatiques franais-portugais / portugais-franais (XATARA, 2007). Pour cela on a considr le concept dexpression idiomatique daprs les tudes phrasologiques et la frquence dusage des quivalences proposes. Mots-cl: expression idiomatique, Lexicographie, Phrasologie.

INTRODUO

Se uma lexia complexa for indecomponvel, no permitindo quase nenhuma operao de substituio, incluso ou excluso de elementos componentes; se o significado literal dessa lexia no puder ser compreendido ou causar algum estranhamento, ao passo que seu sentido global conotativo puder ser reconhecido pelos usurios; e se essa lexia tiver sido cristalizada por determinada comunidade lingstica, estaremos diante de uma expresso idiomtica (EI). Podemos observar que as EIs de uma lngua ocorrem, com freqncia, em variados tipos de texto: livros, quadrinhos, revistas, jornais, revistas de divulgao cientfica, propagandas, noticirios, filmes, etc. Portanto, fazem parte do nosso dia-a-dia, estando totalmente inseridas na linguagem comum de registro informal, tanto na modalidade oral quanto na escrita. Apesar disso, por muito tempo elas no contaram com o interesse de especialistas: fraselogos ou lexiclogos, lexicgrafos ou gramticos. Entretanto, confiveis estudos da lxico-gramtica, cujo axioma fundamental elege a frase como unidade mnima de significao, comprovaram empiricamente que as expresses idiomticas so tanto ou mais numerosas que as construes livres (GROSS, 1994). As pesquisas mais recentes a respeito so, sobretudo, as de Ranchhod (1990), Brdosi (1992), Melchuk, Clas & Polgure (1995), Gaston Gross (1996), Boogards (1997), Cowie (1998), Moon (1998), Xatara (1998), Vale (2001), ermk (2001), Tutin (2004), Odijk (2004). Atualmente, por conseguinte, no se questiona que os idiomatismos devam ser tratados com o devido relevo na pesquisa lingstica ou no ensino/aprendizagem da lngua materna e de uma lngua estrangeira.

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No que concerne a uma abordagem propriamente lexicogrfica das EIs, destaca-se o paradoxo da necessria incluso macia de idiomatismos nos dicionrios gerais de lngua, o que levaria ao dobro de seu volume, e a seleo to restritiva dessas unidades como subentradas. Para deixar a questo ainda mais lacunar, segundo uma perspectiva contrastiva, quase no se encontra material lexicogrfico bilnge especial em nosso pas, isto , dicionrios que faam determinados recortes no lxico da lngua geral para se ocupar em detalhes das unidades lexicais pertencentes a esses diferentes recortes. Mesmo no cotejo com o ingls, no h uma produo muito significativa de obras de referncia em portugus brasileiro, e a elaborao de dicionrios portugus-francs-portugus bem menos representativa ainda. Por isso, acreditamos que nossa pesquisa possa representar uma contribuio importante para os estudos lexicogrficos e fraseolgicos. O principal objetivo deste trabalho foi fazer um levantamento de equivalentes em portugus europeu e em francs quebequenses aos idiomatismos brasileiros e franceses encontrados no Dictionnaire lectronique dexpressions idiomatiques franais-

portugais/portugais-franais [DEEI] (XATARA, 2007). Para tanto, antes do incio das buscas por esses equivalentes, determinamos alguns critrios para a seleo dos idiomatismos que comporiam o inventrio final. O primeiro critrio foi a escolha do conceito de fraseologismo a ser adotado, j que este ainda no uma unanimidade entre os lingistas. Dessa maneira, adotamos o conceito de EI proposto por Xatara (1998) de que para ser considerada uma EI o fraseologismo deve ser uma lexia complexa indecomponvel, conotativa e cristalizada por uma comunidade lingstica. O segundo critrio, a definio do limiar de freqncia, determinaria a incluso ou no de um idiomatismo em nosso inventrio. Para isso, baseamo-nos em diversas pesquisas sobre

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Lingstica de Corpus e sobre o uso da Internet como corpus para chegarmos ao nmero mnimo de 14 ocorrncias na web para que uma EI seja considerada freqente em Portugal e ao mnimo de 7 ocorrncias para que seja considerada freqente no Canad (Quebec). Aps a finalizao do levantamento de EIs, a partir dos resultados alcanados, realizamos algumas anlises contrastivas que nos trouxeram algumas informaes culturais e lingsticas sobre os 4 pases envolvidos na pesquisa. Estruturalmente falando, a presente dissertao discute a definio e as peculiaridades das EIs no captulo I. No captulo II, procura verificar o espao que ocupam na prxis lexicogrfica, seja referente aos dicionrios de lngua geral, seja aos especiais, mono ou bilnges. As implicaes com a busca por equivalentes em uma lngua estrangeira e a com a determinao de idiomatismos de fato usuais encontram-se no captulo III. Para a execuo do inventrio de EIs proposto, nas duas lnguas pr-estabelecidas e suas duas variantes, o captulo IV aponta as decises lexicogrficas adotadas em relao escolha da nomenclatura e do modelo microestrutural, alm de detalhar quais foram as fontes de consulta. Em seguida, no captulo V, apresentamos o inventrio final a que chegamos e, para o captulo VI, trazemos nossas reflexes sobre vrios aspectos (lingsticos, freqenciais, culturais) que esse inventrio indicou. Por fim, nas consideraes finais, abordamos justamente que o propsito de um dicionrio bilnge que trate exclusivamente das EIs um reflexo da importncia desse tipo de fraseologismo e, ao mesmo tempo, da necessidade de tentar diminuir o dficit deste material no mercado editorial, alm de chamar ateno para as particularidades culturais do universo idiomtico das lnguas em contraste.

CAPTULO I EXPRESSO IDIOMTICA E FRASEOLOGIA

O principal foco de nossa pesquisa so as EIs, unidades lexicais (ULs) especiais ou fraseolgicas que fazem parte do lxico geral. Este o campo de estudo da Lexicologia, que estuda o lxico das lnguas de forma completa e integrada. No entanto, o estudo do lxico no somente o estudo do vocabulrio de uma lngua, mas tambm o estudo de todos os aspectos que o envolvem, como seus significados, a relao entre as palavras, a relao entre o vocabulrio e outras reas de descrio, a fonologia, a morfologia e a sintaxe. A Lexicologia aborda as palavras como um instrumento de construo e deteco de uma viso de mundo, de uma ideologia, de um sistema de valores, como geradora e reflexo de sistemas culturais. Podemos comparar o lxico a uma interseco de caminhos, um ponto de encontro de diversas informaes que chegam de todos os lados. Elas vm dos sons (fontica e fonologia), dos significados (semntica), dos morfemas (morfologia), das combinaes sintagmticas (sintaxe) ou do uso da lngua em situaes comunicativas (pragmtica). Se h uma unidade lexical (UL), esses elementos estaro presentes, e a variao desses elementos faz com que as palavras se diferenciem (LORENTE, 2004). A partir dessas diferenas, comprovamos as diversas perspectivas no estudo do lxico, mas nem por isso essas diferenas implicam em contradies. Cada perspectiva refere-se a uma parte de um todo e essa diviso tem sido importante, no s na Lexicologia, mas em outras reas tambm, para que possamos nos aprofundar no estudo de uma parte especfica e depois relacion-la ao todo.

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No caso desta pesquisa, para a descrio e anlise dos idiomatismos, com suas caractersticas e peculiaridades, encontramos na Lexicologia uma subrea que trata especificamente desse tipo de lxico especial, a Fraseologia. De acordo com Alvarez (2000), os russos foram os primeiros a definirem Fraseologia, com base nos estudos das combinaes estveis, cujas pesquisas serviram de fundamentao para todas aquelas que vieram posteriormente. E, j na dcada de 40, a inseriram como disciplina lingstica. Antes disso, na dcada de 30, Polivnov definiu a Fraseologia como uma disciplina especial da rea da linguagem que se serviria da expresso dos conceitos individuais (significaes lexicais). O termo idiomtica era usado pelo autor como um sinnimo de fraseologia. Saussure (1969), em seu famoso Curso de Lingstica Geral, tambm escreveu sobre os fraseologismos ao mencionar as chamadas frases feitas, destacando o fato de essas combinaes no poderem ser improvisadas nem alteradas, mas representarem frutos de uma tradio. O lingista suo ainda acrescentou que essas locues no eram fatos da fala, que dependem do exerccio livre dos indivduos, mas sim, fatos da lngua, j que so combinaes sintagmticas impostas pelo uso coletivo, compostas por duas ou mais unidades consecutivas, que estabelecem um encadeamento de carter linear. Entretanto, admitiu que difcil definir limites ente o fato de fala e a marca de uso coletivo, confirmando assim a complexidade de delimitao dessas unidades. Apesar do pioneirismo russo, Charles Bally que considerado o fundador da Fraseologia, uma vez que se aprofundou na delimitao dos objetos de estudos abarcados por esse domnio. Foi ele quem atentou para a existncia de expresses fixas e de combinao estvel e instituiu a Fraseologia como um dos domnios da Lexicologia.

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Segundo Bally (1951), a Fraseologia seria uma submacrorea da Lexicologia e se dividiria em Fraseologia popular, que estuda os idiomatismos, os provrbios, as grias, os ditados, e em Fraseologia tcnico-cientfica, que estuda as expresses terminolgicas. Ainda de acordo com ele, as combinaes lexicais apresentariam diferentes graus de coeso, sendo os mais extremos a saber: (i) combinaes livres, ou seja, aquelas que se decompem imediatamente aps terem sido criadas, cujas palavras presentes servem para novas combinatrias e (ii) combinaes estveis, isto , aquelas cujas palavras perdem totalmente sua independncia, vinculando-se entre si e adquirindo sentido somente nessa estruturao. Este ltimo caso tornou-se o objeto de estudo por excelncia da Fraseologia. Partindo, ento, das combinaes estveis, Bally (1951) props caractersticas para reconhecermos as locues fraseolgicas: 6. unidade formada por vrias palavras (termo utilizado pelo autor)1; 7. as palavras devem estar dispostas numa ordem invarivel e no podem ser separadas por outras; 8. nenhuma palavra pode ser substituda por outra; 9. a equivalncia da unidade a uma nica palavra denominada de termo de identificao; 10. esquecimento do sentido desses elementos o falante no pensa em palavras isoladas; 11. presena de arcasmos e elipses; 12. a recorrncia freqncia com a qual que utilizada.

1 Esclarecemos que em nosso trabalho optamos por utilizar o termo lexia, em detrimento palavra, pois este termo ainda causa controvrsias no campo da Lexicologia. De acordo com Greimas e Courts (1979) lexias so: unidades de contedo (...) que poderiam ser definidas, paradigmaticamente, por sua possibilidade de substituio interior de uma classe de lexemas dados (...) e sintagmaticamente, por sua espcie de recursividade lxica, podendo as unidades de nvel hierarquicamente superior ser reproduzidas no nvel lexemtico (p. 254).

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Muitos outros estudiosos tentaram formular uma teoria fraseolgica, porm observamos em todos eles uma grande heterogeneidade de critrios. Pottier (1974), na sua classificao, considerou as lexias como unidades lexicais memorizadas e as dividiu em quatro grupos: lexia simples, lexia composta, lexia complexa (onde esto classificadas as EIs) e lexia textual. Lyons considerava os fraseologismos um todo indecomponvel e os denominava enunciados estereotipados. Fillmore considerava-os convencionais e memorizados. Danlos referia-se a eles como expresses cristalizadas, partindo do significado global de seus componentes. E Fiala baseou-se nas idias desses autores e props uma definio de fraseologismo que representa um avano em sua anlise: formas complexas, figuradas ou no, recorrentes e com diferentes graus de fixao/estabilidade. Ainda acrescentou que os fraseologismos no constituem expresses lexicais isoladas, podendo, portanto, compor um paradigma (RIOS, 2003). Para Dobrovols'kij a Idiomtica era apenas uma parte da Fraseologia, cujos componentes, de uma maneira muito particular, sofreriam um afastamento de seus significados iniciais. A Idiomtica estaria ligada aos textos sobre folclore e, por isso, est relacionada a imagens do mundo, da cultura, da vida e das fantasias de uma determinada comunidade (ALVAREZ, 2000). Como vemos, sempre houve dificuldades em definir consensualmente e classificar os fraseologismos e em estabelecer caractersticas comuns a tudo o que considerado uma unidade fraseolgica, ora sem qualquer sentido figurado (como as colocaes, por exemplo: recusar categoricamente, terminantemente proibido), ora com o significado todo (como as EIs e tambm os provrbios, as grias, etc). No entanto, para Alvarez (2000), dentre esses vrios critrios diferentes, pode-se encontrar alguns pontos em comum, a partir das quais resumimos as principais caractersticas

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das unidades fraseolgicas: sintagmas indivisveis semanticamente, compostos por duas ou mais ULs, normalmente muito recorrentes e cristalizados pelo uso, podendo apresentar conotao ou no e aceitando apenas eventualmente a insero de um elemento quando o sentido da unidade no for afetado. A Fraseologia, portanto, no possui limites claros, pois as ULs que ela abrange apresentam certas caractersticas manifestadas em maior ou menor grau, mas dificilmente contm todas as caractersticas definidoras (RUIZ, 1998; COWIE, 1998). Isso explicaria as prprias controvrsias que o termo Fraseologia ainda causa entre os lingistas. Para alguns, as unidades fraseolgicas so apenas as EIs como burro como uma porta ou entortar o caneco. J para a maioria deles, os provrbios como Deus ajuda quem cedo madruga ou Quem com ferro fere, com ferro ser ferido, as grias como man, alm das locues como desde ento ou a ponto que tambm podem ser considerados tipos de fraseologismos. Neste trabalho entenderemos o conceito de Fraseologia como uma cincia que estuda um conjunto de ULs especiais, sejam lexias simples ou complexas, com particularidades expressivas. Entretanto, somente as EIs, um tipo de construo fraseolgica, sero analisadas e comearemos por identificar alguns critrios para sua definio. Em primeiro lugar, devemos observar, se trata-se de uma lexia complexa indecomponvel (duas ou mais ULs), pois uma nica UL jamais ser suficiente para caracterizar um idiomatismo. Assim, selecionaremos somente combinatrias fechadas, nas quais a substituio ou o acrscimo de qualquer UL poder causar um prejuzo para a interpretao semntica. A questo da conotao outra caracterstica essencial das EIs, pois h vrios outros tipos de fraseologismos que tambm podem ser lexias complexas indecomponveis e cristalizadas, mas so denotativos e, por isso, distinguem-se das EIs. Para ilustrar, citamos

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alguns ditados: Quanto mais se tem mais se quer, A pressa inimiga da perfeio e algumas unidades lexicais terminolgicas como sistema solar, balo de oxignio, meio ambiente, que por no prescindirem de nenhum nvel de abstrao para a compreenso do seu significado global, no podem ser classificados como idiomatismos. Outra caracterstica importante das EIs a sua cristalizao, ou seja, a sua aceitao por parte de uma comunidade lingstica, tornando-a freqente e seu sentido estvel. Em alguns casos, as EIs so cristalizadas de forma que no podem sofrer modificaes. De fato, a EI pr o dedo na ferida, por exemplo, no pode transformar-se em pr a unha na ferida. Nem podemos acrescentar elementos, como em pr o dedo [indicador] na ferida. J em alguns casos, as modificaes so feitas de maneira inusitada para se chamar ateno e criar um efeito de linguagem. Analisaremos mais detalhadamente essa questo adiante. Dessa forma, adotamos a seguinte definio de EI: lexia complexa indecomponvel, conotativa e cristalizada em um idioma pela tradio cultural (XATARA, 1998a). As EIs so indispensveis para a comunicao entre as pessoas, pois apesar de a lngua dispor de meios para se expressar objetivamente sobre qualquer assunto, essas expresses saciam a necessidade do falante de comunicar suas experincias de maneira mais expressiva, lanando mo de combinatrias inusitadas. O falante procura recursos para tornar sua fala mais persuasiva, como em: No feche os olhos para os problemas ambientais. Ou para ficar mais prximo de seu interlocutor: Ns, eleitores brasileiros, estamos todos no mesmo barco. Tambm so utilizadas para despertar sentimentos como emoo: Aps conquistar a medalha, estava feliz como uma criana; comoo: A situao de sua me era de cortar o corao; ironia: Era alto como um pintor de rodap; irritao: Durante a reunio saiu cuspindo fogo e amor: Como nos contos de fada, foi amor primeira vista, etc. Klare (1989) afirma que a expressividade dos idiomatismos resulta das figuras de linguagem neles contidas. Alvarez (2000) acredita que realmente existam fundamentos

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sociais, subjacentes a cada EI de uma lngua, que determinam a maneira com que o sujeito se relaciona com o extra-lingstico ao seu redor e que o conjunto de EIs possui os elementos fundamentais das metforas que regem o cotidiano de um grupo lingstico. A fora da tradio seria revelada pelas metforas repetidas por esse grupo. Ao escolher uma EI o indivduo revelaria, ento, sua identidade e se mostraria solidrio com sua comunidade lingstica, provando aceitar as imagens que lhe foram passadas, por meio das EIs. Dessa maneira, o repertrio de EIs empregado por uma pessoa revela muito mais do que apenas o modo de falar ou de uma escolha lexical; antes, revela seu modo de pensar e o modo de ver o mundo. Abaixo, detalhamos os trs principais elementos caracterizadores das EIs.

1. A indecomponibilidade

As EIs constituem lexias complexas indecomponveis porque representam uma combinatria fechada em que qualquer dissociao de suas partes pode acarretar prejuzo para sua interpretao semntica. Isso significa que os idiomatismos ou no aceitam nenhuma insero ou omisso de qualquer elemento (EIs de distribuio nica, por exemplo, menino [homem] de rua, cutucar ona [leoa] com vara curta [longa]) ou apresentam raras possibilidades de substituio por associao paradigmtica (EIs de distribuio restrita) (XATARA, 1998a). A aceitao de variaes das EIs depender do grau de cristalizao. Assim, as variaes podem ocorrer em diversos nveis, tais como nos modos e tempos verbais, nos advrbios, nas pessoas do verbo, etc. Em algumas EIs, essas variaes so necessrias para atender as necessidades sintticas, ou seja, adequaes textuais e tambm para fins estilsticos.

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Citamos, como exemplo, os casos de EIs com variaes pronominais e variaes de expressividade, como, por exemplo, em armar o [maior] barraco, arriscar a [prpria, sua, minha] pele, bater [logo] as botas, atirar-se [me, te] aos ps de. Acrescentamos que muito comum haver uma ruptura da idiomaticidade com fins estilsticos. As variaes so bem vindas quando permitem que o interlocutor entenda, alm do primeiro significado conotativo da EI, as alteraes propositais que o remetem a uma outra significao, que tambm passvel de compreenso pelos falantes da lngua. Essas alteraes so muito utilizadas pela imprensa, tanto falada quanto escrita, e pela publicidade, para dar um ar humorstico ou dramtico, dependendo da situao, sempre com o intuito de chamar a ateno do pblico, conseguindo dessa forma persuadi-lo. Um exemplo de como essas alteraes so utilizadas pela mdia para causar um impacto a EI acabar em tapioca, uma variao da EI acabar em pizza, que significa no resultar em nada. Essa modificao, produzida recentemente, remete a mais uma investigao que no chegou a nenhuma concluso; desta vez, sobre a compra de tapioca feita por um ministro com um carto corporativo do governo federal.

2. A conotao

Biderman (2001) define as EIs como combinatrias de lexemas que o uso consagrou numa determinada seqncia e cujo significado no se d na simples somatria das suas partes, ou seja, desconsiderando suas partes como unidades semnticas. Em alguns casos, o sentido literal at pode ajudar no entendimento conotativo da expresso, porm, muitas vezes, a soma das palavras componentes de uma EI nos leva a uma interpretao totalmente

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equivocada. Como no caso da EI pagar o pato, que significa sofrer as conseqncias dos atos de outras pessoas e no comprar um pato e pagar por ele. Alis, sempre que uma EI tambm puder ser entendida em um sentido denotativo, por exemplo, quando dizemos lavar a roupa suja diante uma pilha de roupa suja, ela deixar de ser a classificada como EI, marca fraseolgica restrita a contextos em que significa discutir assuntos desagradveis apenas com os que esto envolvidos. Segundo Roncolatto (2001), a conotao uma das caractersticas principais das EIs, pois elas so frutos de um processo metafrico de criao. Ento, se considerarmos o plano da expresso da linguagem conotativa como um sistema de significao, a conotao pode ser considerada um segundo nvel de significao, que se situa alm do primeiro significado de uma lexia. Quanto diferena entre a conotao idiomtica da linguagem cotidiana e da linguagem literria, percebemos que a primeira j faz parte do sistema lingstico, no sendo original na criao, mas sim no uso. J em relao segunda, essa normalmente consciente e refletida (XATARA; OLIVEIRA, 2002). Quando uma combinao de ULs de sentido metafrico lexicalizada, cada um de seus componentes perde sua funo nominativa, ou sua relao com o objeto que representa em favor do significado global prprio da EI. Esse fenmeno conhecido como dessemantizao. Na EI acender uma vela a Deus e outra ao diabo, todas as ULs componentes acender, vela, Deus, diabo dessemantizam-se, perdem o seu significado habitual e passam a significar apenas em conjunto, no sentido de atender dois grupos de interesses contrrios. Uma EI , portanto, uma representao figurada da realidade e caracteriza de forma pitoresca o que pretende expressar. Segundo Alvarez (2000), a conotao no ocasional, pois quando uma EI lexicalizada, a metfora nela contida passa a ter lugar no prprio lxico

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(como quando uma expresso idiomtica dicionarizada). Quando o uso metafrico de uma frase repetido vrias vezes, por vrias pessoas, por exemplo, pode-se chegar lexicalizao, tornando a expresso parte do lxico de uma lngua. Quanto aos graus de conotao de um idiomatismo, Xatara (1998a) props uma subdiviso entre as fortemente e as fracamente conotativas: a) fortemente conotativas: todos os componentes esto semanticamente ausentes, havendo uma dificuldade em se recuperar a motivao metafrica. O sentido literal fica bloqueado pela realidade extra-lingstica. Percebemos nessas EIs opacas (ALVAREZ, 2000), um alto grau de metaforizao, pois impossvel recuperar ou at mesmo criar as imagens s quais elas se referem. No caso da EI pagar um mico, o sentido de cada UL analisada separadamente no nos leva de modo algum a compreender a expresso como passar vergonha na frente de outras pessoas. b) fracamente conotativas: componentes semanticamente presentes, de valor denotativo, esto associados a componentes semanticamente ausentes, de valor conotativo. Nesse caso de expresses mais transparentes (ALVAREZ, 2000), a conotao construda pela soma dos elementos de significao denotativa e dos de significao conotativa, como em aceitar o jogo, enfrentar a parada, escolher a dedo, etc, em que temos elementos de sentido literal (aceitar, enfrentar e escolher) acompanhados de ULs de sentido figurado (jogo, parada, a dedo). Nesse tipo de expresses, a denotao de alguns elementos no anula o sentido conotativo da EI como um todo.

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3. A cristalizao

Para que uma expresso seja considerada idiomtica, imprescindvel que ela seja consagrada pela tradio cultural de uma comunidade lingstica. A freqncia do uso das EIs pelos falantes das comunidades tambm o fator responsvel pelo seu processo de lexicalizao, que as tornam estveis em suas significaes. Deve-se ter em mente, porm, que essa estabilidade relativa, pois a lngua est em constante evoluo. As EIs, desse modo, refletem o lado dinmico da lngua e podem se adaptar s necessidades comunicacionais do momento, algumas podendo at desaparecer certo tempo aps o seu surgimento, o que lhes configura certo carter efmero (ALVAREZ, 2000). A grande maioria das EIs, entretanto, permanece no lxico e incorporada de vez pela lngua, apresentando um significado estvel em uma perspectiva sincrnica por ser resultado de uma conveno social e no uma proposio individual, idiossincrtica. Apenas na diacronia da lngua, os significados dos componentes de uma EI podem no ter estabilidade, ou seja, as EIs podem mudar de significado, perdendo ou acrescentando significaes, na evoluo semntica da lngua (RIVA, 2004). A expresso abrir as portas um exemplo de acrscimo de significao. Ela pode significar tanto iniciar uma atividade comercial em um estabelecimento quanto dar uma oportunidade, aceitar a participao de algum. Por outro lado, mesmo diacronicamente, pode ocorrer uma cristalizao no apenas da forma do idiomatismo, mas tambm de seu significado. o caso de EIs que permaneceram na lngua sempre com o mesmo sentido. Segundo Xatara (1998a, p. 22): a lexicalizao das EIs motivada pela lacuna lexical de uma lngua para expressar, provocando um efeito de sentido (...), certas nuanas de

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pensamento dos falantes, que retm tais combinaes em sua memria coletiva. Por esse motivo, as EIs se perpetuam, indo sempre do individual para o coletivo, como modo de dizer tradicional cristalizado, mesmo que no representem verdades universais, papel que cabe aos provrbios. A cristalizao de uma EI pela tradio cultural de uma comunidade lingstica garante seu automatismo, mas no garante ao receptor sua interpretao correta. O que permite a compreenso de um idiomatismo a adequao contextual do uso da EI pelo usurio da lngua. Ou seja, para interpretarmos corretamente uma EI devemos levar em conta o contexto em que utilizada, como no caso da expresso mudar de time, que podemos empregar tanto para dizer que algum mudou radicalmente de posio (virou a casaca) ou para dizer que algum virou homossexual (saiu do armrio). Por fim, ressaltamos ainda que uma EI possui a verdade do discurso idiomtico assegurada pelo seu saber implcito. ele que faz de uma expresso qualquer uma EI e no o contexto ou a situao (ALVAREZ, 2000).

CAPTULO II EXPRESSO IDIOMTICA E LEXICOGRAFIA

Durante muito tempo, as EIs no contaram com a ateno de especialistas, sendo relegadas a subentradas e misturados a outros tipos de fraseologismos. Porm, h cerca de 15 anos atrs, essa realidade comeou a mudar. Estudos como os de Xatara (1994; 1998), Gross (1996), Boogards (1997), Moon (1998), entre outros, colaboraram com o avano da Lexicografia e da Fraseologia e, ento, as EIs passaram a receber um tratamento mais adequado e, aos poucos, foram ocupando um lugar de relevo nos estudos lingsticos e, hoje, j contam com dicionrios especiais dedicados exclusivamente a elas.

13. Lexicografia e interdisciplinaridade

A Lexicografia definida grosso modo como uma tcnica de elaborao de dicionrios. De fato, a tcnica lexicogrfica surgiu da necessidade prtica de se fazer dicionrios de uma maneira emprica. Porm, com os avanos dessa rea da Lingstica nas ltimas dcadas, essa definio tornou-se muito restritiva, uma vez que a Lexicografia dispe de todos os pressupostos tericos, objeto e metodologia especficos requeridos por uma cincia, o que contribuiu para melhoras significativas nos produtos lexicogrficos contemporneos. Assim como qualquer outra rea do conhecimento, a Lexicografia tambm depende de outras reas para avanar. A Lexicologia uma delas, pois percebemos uma relao intrnseca e evidente entre essas duas reas: o lexiclogo o responsvel pelo fornecimento dos

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instrumentos de anlise do lxico, principal fonte para a constituio de um dicionrio. Para o lexicgrafo selecionar o que pretende descrever, ele necessita de uma concepo terica do conjunto lexical sobre o qual trabalha (RIVA, 2004). Alm da Lexicologia, para produzirmos um dicionrio, utilizamos conceitos da Fontica (descrio fontica das palavras), da Etimologia (descrio da origem e da evoluo das palavras), da Morfologia (descrio da classe das palavras), da Semntica (descrio dos significados) e da Pragmtica (descrio do uso). Esta ltima uma das responsveis pelas novas edies de um dicionrio, que sempre leva em conta os usos e desusos mais recentes dos falantes. Inclumos nestes casos os neologismos, os arcasmos e os estrangeirismos, que exemplificam a entrada e sada de palavras em dado momento da lngua. So modificaes que ocorrem tanto na macro quanto na microestrutura de um dicionrio e, portanto, so bem significativas (XATARA, 2006). Por fim, para provar a incontestvel interdisciplinaridade da Lexicografia, basta repararmos na imensa quantidade de colaboradores, das mais diversas reas, que participam na elaborao de um grande dicionrio. Apesar do auxlio de outras reas e dos avanos j alcanados, existe ainda uma carncia em relao aos estudos lexicogrficos no Brasil. E um dos nossos objetivos nesta pesquisa justamente colaborar para a evoluo da Lexicografia, particularmente a Lexicografia fraseolgica.

2. Os dicionrios na histria

De acordo com Rios (2003), atribui-se aos sumerianos a criao da primeira obra lexicogrfica, em 3.300 a.C. To velhas quanto a prpria escrita, essas listas lexicais eram

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gravadas com tijolos e separadas pela sua temtica, que variava de animais, vegetais e objetos at economia e profisses. Essas primeiras listas desenvolvidas pelos sumerianos eram monolnges, mas depois de algum tempo eles passaram a desenvolver listas bilnges, com uma traduo para cada palavra. Os egpcios tambm produziram listas monolnges e bilnges. Na cultura rabe, encontraram-se mais trabalhos bilnges, porm, feitos por outros povos que mantinham contato com os rabes. Alm desses, tambm foram encontrados trabalhos lexicogrficos na ndia, na Etipia, na Grcia e no Imprio Romano. Uma das principais responsveis pela produo e pelo avano das obras lexicogrficas foi a religio. Isso ocorreu entre os sculos IX e XI, primeiramente quando os mulumanos comearam a dominar o Ocidente, desafiando a civilizao bizantina e, em seguida, com a expanso do cristianismo e do latim como a lngua oficial da Igreja Crist. Com o Iluminismo, no sculo XVIII, as enciclopdias e os grandes dicionrios monolnges tradicionais proliferaram-se. Chegando ao sculo XX, encontramos uma Lexicografia bastante desenvolvida, com a publicao de diversas obras, nas mais variadas lnguas. Com a ampliao do alcance da educao, a Lexicografia adaptou-se s diferentes necessidades, fazendo surgir dicionrios de vrios tipos, tornando-os mais democrticos e consumveis (de fcil acesso). Atualmente, os dicionrios contam com a ajuda da tecnologia para serem desenvolvidos. Os dicionrios on line e em cd room ocupam um espao cada vez maior na preferncia dos consumidores, pois so mais prticos, mais abrangentes (no tem a preocupao de espao do impresso) e podem ser acessados de qualquer computador, no caso dos on line.

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Portanto, conclumos que o desenvolvimento cientfico, somado ao crescente intercmbio entre os povos, fez aumentar a necessidade de dicionrios e, conseqentemente, promoveu a evoluo da Lexicografia. Nos dias de hoje, vimos os dicionrios de lngua geral como produtos culturais. De acordo com Biderman (1992), o lxico um tesouro de signos lingsticos que registram o conhecimento de uma comunidade lingstica sobre o mundo, sendo as unidades lexicais presentes no dicionrio um testemunho real de uma dada cultura. Desse modo, o dicionrio, encarado como produto cultural destinado ao consumo, deve ter uma funo social e ser obrigatrio nas escolas, pois alm de ampliar o vocabulrio do indivduo, amplia-lhe os recursos para a utilizao adequada do vocabulrio aprendido. Xatara (2006) afirma que o lxico de uma lngua um patrimnio sociocultural e que o prestgio de uma nao, de uma sociedade, pode ser medido por meio da qualidade e da quantidade de dicionrios produzidos por essa sociedade. Ou seja, quanto mais estudos lexicogrficos se desenvolverem em um pas, maior a produo de dicionrios e maior o prestgio internacional de uma lngua. Infelizmente, existe ainda certo preconceito do usurio em relao ao dicionrio, que visto como um ditador de regras lingsticas e criticado por sua incompletude. Porm, o que encontramos no dicionrio elaborado segundo critrios descritivos nada mais do que o registro do lxico parcial de uma lngua. Essa uma caracterstica naturalmente intrnseca a qualquer obra de referncia. Pois, jamais, um dicionrio conseguir abarcar o lxico de uma lngua na sua totalidade, registrando todos os conceitos lingsticos e no-lingsticos, de todos os referentes do mundo fsico e do universo cultural, criado por todas as sociedades humanas atuais e do passado.

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3. Tipologia dos Dicionrios

Segundo Biderman (1998), os dicionrios constituem uma organizao sistemtica do lxico, representando na verdade uma tentativa de descrever o lxico de uma lngua. papel do dicionrio registrar a norma lingstica e lexical vigente na sociedade para o qual elaborado, documentando a prxis lingstica dessa sociedade. Por isso, a Lexicografia contempornea considera o dicionrio sob uma tica distinta daquela que se tinha no passado, em que o dicionrio ditava o que deveria ser usado. E, como o dicionrio tambm um produto comercial por ser normalmente destinado ao consumo do grande pblico, so as necessidades dos consumidores as determinantes na hora de se estabelecer os objetivos da obra, ou seja, o tipo de dicionrio que ser produzido. A escolha de um dicionrio apropriado pode aumentar as chances de se encontrar aquilo que se procura, de se obter uma consulta mais satisfatria. Os diversos tipos de dicionrios, glossrios, vocabulrios esto nossa disposio justamente para otimizar as buscas. Os dicionrios podem ser divididos em dicionrios de lngua e dicionrios especializados. Estes ltimos tratam das lnguas de especialidade, ou seja, termos especficos de uma determinada rea e so elaborados por terminlogos. Em nosso trabalho, levaremos em conta apenas os dicionrios de lngua, elaborados por lexicgrafos e/ou lexiclogos. Esses dicionrios tratam basicamente da lngua de uso comum e so classificados em monolnges, que descrevem o lxico de uma lngua, ou plurilnges, que tm como finalidade a comunicao interlingstica e intercultural, podendo ser classificados em bilnges (duas lnguas) ou multilnges (trs ou mais lnguas) (HAENSCH, 1982). Tantos os mono quanto os multilnges podem ser ainda diferenciados pelo nmero de entradas (thesaurus, minidicionrios), pelo percurso da relao entrada-

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definio (semasiolgicos, onomasiolgicos), pelo tipo de microestrutura (enciclopdicos, lingsticos) ou, ainda, pelo pblico-alvo (escolares, tradutores). A seguir, fazemos uma descrio sobre a tipologia das obras lexicogrficas e qual o espao dedicado s EIs em cada uma delas.

3.1. Dicionrios gerais de lngua

Para todo e qualquer dicionrio, preciso estabelecer critrios significativos para a seleo da sua nomenclatura, ou seja, das suas entradas. No entanto, existe uma grande dificuldade no estabelecimento desses critrios, principalmente quando se trata de ULs fraseolgicas, dentre as quais as EIs. A verificao da cristalizao e da freqncia dessas unidades seria, portanto, de grande utilidade. Nos dicionrios monolnges, o recorte do lxico para a composio de um dicionrio inevitvel e muitas vezes as ULs especiais, em particular as conotativas, acabam sendo preteridas. E mesmo as que so includas sofrem com as restries dos dicionaristas, que atendendo a determinaes editoriais, no as classificam em todas as suas especificidades, alm de nunca as colocarem como entradas. Os dicionrios de lngua bilnges so muitas vezes contestados por lingistas e tericos da traduo por tentarem propor equivalentes perfeitos entre palavras e expresses de duas lnguas. Evidentemente, quando se trata de mais de uma lngua, os sistemas lingsticos, as diferentes culturas e vises de mundo causam divergncias ao se nomear uma realidade. Assim, se devemos levar em conta as inevitveis diferenas socioculturais, um dicionrio bilnge composto apenas por enumeraes sinonmicas insuficiente, embora ainda exista a

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crena de que toda traduo possui necessariamente uma equivalncia sempre possvel (XATARA, 1998a). Quase sempre os dicionrios bilnges recorrem sinonmia interlingstica, podendo ser divididos em: unidirecionais (dicionrios de decodificao ou codificao) e bidirecionais (dicionrios que se valem da decodificao e da codificao). No caso da decodificao, o usurio possui uma atitude passiva em relao utilizao, em que o desconhecido (lngua fonte) levado ao conhecido (traduo). No caso da codificao (emprego da palavra no contexto apropriado), o usurio possui uma atitude ativa na utilizao, pois a partir de itens da lngua fonte, ele substitui os equivalentes desconhecidos da lngua de chegada (RZEAU, 1989).

3.2. Dicionrios especiais

Tantos os dicionrios especiais monolnges quanto os bilnges tm como objetivo descrever apenas uma parte do lxico geral. Os monolnges trabalham somente com uma lngua e esto em maioria no mercado editorial. J os bilnges por lidarem com duas lnguas, e tudo o que isso envolve, so mais raros e ainda apresentam certa deficincia no mercado editorial. E em relao aos dicionrios especiais, a Lexicografia ainda tem muito a contribuir. Nesse tipo de dicionrio, podemos elencar dicionrios histricos, analgicos, fraseolgicos, entre outros. Segundo Boulanger (1995), a seleo das ULs a registradas se baseia em algumas caractersticas especficas, no plano funcional ou semntico e suas informaes so sempre do mesmo tipo. Por esse motivo, os dicionrios especiais podem registrar um nmero maior (porm, ainda no total) de ULs especiais e descrev-las de modo mais adequado, por haver

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princpios e limites definidos, proporcionando uma rapidez e uma praticidade consulta. Desse modo, o registro dos idiomatismos realmente freqentes, por exemplo, seria menos falho e incompleto. Alm disso, nos dicionrios especiais, o lexicgrafo pode, sem imposies de espao, avaliar o comportamento, o significado e o uso de unidades especficas da lngua, refletindo sobre as peculiaridades das ULs a serem registradas nesse tipo de obra. No caso especfico dos dicionrios bilnges especiais, as tradues das entradas tendem a ser mais minuciosas e precisas, ao invs de simplesmente parafrsicas. Ressaltamos tambm que esse tipo de dicionrio auxilia, mais que o usurio comum, os tradutores e os pesquisadores da rea.

3.3. As EIs nos dicionrios

No caso das EIs em dicionrios monolnges de lngua geral, na maioria das vezes, temos de busc-las pela palavra-chave, o que normalmente gera dvidas no consulente. A ferro e fogo, por exemplo, deveria constar como subentrada do primeiro ou do segundo substantivo? Comer o po que o diabo amassou, deveria ter comer, po ou diabo como palavra-chave? Ao analisar como so tratadas algumas EIs no Houaiss2 e no Aurlio3 (dois dos principais dicionrios monolnges brasileiros), verificamos que a palavra-chave geralmente o primeiro substantivo do idiomatismo: caso das EIs fazer ouvidos de mercador/moucos (ouvido), conseguir seu lugar ao sol (lugar), pedra no sapato (pedra) e dar a mo palmatria (mo). Na maioria dos casos constam apenas os significados e so raras as2 HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 3 FERREIRA, A. B. H. Novo Aurlio sculo XXI: O dicionrio da lngua portuguesa. 3 edio. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999.

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indicaes de nvel de linguagem e/ou exemplos (e o Aurlio nos traz mais exemplos que o Houaiss). Tambm raro aparecer antes da EI uma indicao de que aquilo se trata de um fraseologismo (fras.). Uma enorme surpresa foi constatar a ausncia das EIs armar um barraco e dizer cobras e lagartos no dicionrio Houaiss, apesar de comprovadamente freqentes. Porm, isso no ocorre somente em dicionrios brasileiros. Dicionrios reconhecidos internacionalmente tambm possuem suas imperfeies no que diz respeito ao tratamento das EIs, como no caso do dicionrio francs Le Petit Robert4 e do ingls Longman5, onde pesquisamos as mesmas EIs procuradas nos dicionrios brasileiros. Comecemos pelo dicionrio francs, no qual constatamos que a palavra-chave tambm, geralmente, o primeiro substantivo do idiomatismo: faire une place au soleil (place) conseguir um lugar ao sol, ombre au tableau (ombre) pedra no sapato. Esses dois exemplos, assim como nas EIs brasileiras, possuem dois substantivos. J as EIs francesas faire la sourde oreille (oreille) fazer ouvidos de mercador e faire amende honorable (amende) dar a mo palmatria, s possuem um substantivo na equivalente francesa, sendo, portanto, este a palavra-chave. Em nossas buscas, encontramos uma EI francesa em que a palavra-chave o segundo substantivo: oeil du matre (sua traduo em portugus, olho do dono, no encontrada em nenhum dos dicionrios brasileiros consultados). Exemplos e indicaes do nvel de linguagem so escassos e EIs comuns como lancer des clairs (cuspir fogo) e jouer de pipeau (passar conversa) no esto presentes. No dicionrio Longman, de lngua inglesa, as expresses a thorn in ones flesh/side pedra no sapato, turn a deaf ear to fazer ouvidos de mercador/moucos e to get (find) a place in the sun conseguir um lugar ao sol possuem como palavras-chaves os primeiros4 LE ROBERT. Le Petit Robert: Dictionnaire de la langue franaise. Paris: Le Robert, 2001. 5 LONGMAN (ed.). Longman Dictionary of Contemporary English: the living dictionary. 3rd ed. London: Longman, 2004.

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substantivos: thorn, deaf e place. Das trs expresses encontradas somente to get a place in the sun trazia o nvel de linguagem (informal) e somente a expresso turn a deaf ear to continha exemplo. Ao procurar a expresso equivalente dar a mo palmatria no dicionrio eletrnico , s encontramos uma definio (to admit one's mistake). Partimos, ento, para a busca de uma expresso similar, dar o brao a torcer, e o dicionrio trazia como traduo to give in, o que para nossa pesquisa no relevante j que no se trata de uma expresso idiomtica. Nos dicionrios bilnges de lngua geral, as inadequaes acima mencionadas so semelhantes, embora os idiomatismos se encontrem presentes como subentradas nas obras de referncia desde o sculo XVI (XATARA, 1998b). Atualmente, para o tratamento lexicogrfico adequado dessas unidades, como objeto de estudo especfico da Fraseologia, aponta-se os dicionrios fraseolgicos, um dos tipos de dicionrios especiais de lngua. No entanto, muitas vezes, esses dicionrios incluem tambm outros tipos de lexias complexas, como provrbios, grias, ditados, frases feitas, sem oferecer as devidas informaes para que o consulente saiba diferenciar cada uma delas. Entendemos que nesse caso da Lexicografia fraseolgica deve-se evitar a heterogeneidade na natureza das entradas, pois isso pode confundir o usurio ou inform-lo incorretamente. Ou, ento, deve-se incluir uma classificao da natureza de cada unidade descrita. Alm disso, nos dicionrios bilnges de EIs, o lexicgrafo deve tentar propor equivalentes to idiomticos quanto os da lngua de partida. Para isso, ele se vale de diversas fontes: sua competncia lingstica, a competncia lingstica dos informantes, outros dicionrios e os corpora. Seguindo essas orientaes, procuramos durante a elaborao do nosso dicionrio estabelecer alguns critrios que determinaram a seleo das EIs, como um limiar de

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freqncia mnimo. Em relao a cada equivalncia apresentada em portugus de Portugal e em francs do Quebec, para as EIs do Brasil e da Frana, apenas no tambm idiomtica se no tiver sido encontrada tal correspondncia em nenhuma fonte ou informante consultado.

CAPTULO III ASPECTOS TRADUTOLGICOS E FREQENCIAIS NA ELABORAO DE UM DICIONRIO MULTILNGE DE EXPRESSES IDIOMTICAS

1. Traduo e Lexicografia Bilnge: a questo da equivalncia

Para esta pesquisa, por tratar-se de uma perspectiva contrastiva entre mais de uma lngua, damos maior destaque aos dicionrios bilnges. De fato, outra rea da Lingstica que possui estreita relao com a Lexicografia Bilnge a Traduo. E elas possuem muito mais em comum do que a prpria longevidade. Alm de terem surgido antes da prpria Lingstica como rea de estudo, ambas deparam-se com imagens sociais complexas, amplamente intuitivas, provocadas por finalidades pragmticas e mantidas por sistemas de valores scio-histricos, mas que nunca apoiaram-se em modelos tericos coerentes (XATARA, 1998a). Segundo a mesma autora, devemos considerar que tanto a Lexicografia Bilnge quanto a Traduo trabalham com culturas e ideologias que organizam semanticamente os discursos de um grupo social, em oposio a outras culturas e ideologias que esto na base dos discursos de outro grupo social (op.cit. p. 01). Mas, as prticas lexicogrficas e tradutrias comearam a basear-se em alicerces metalexicogrficos e metatradutrios somente aps a segunda metade do sculo XX. E toda essa evoluo nos permite hoje encontrar tericos da Lexicografia e da Traduo que se pem a refletir sobre seu objeto e fornecem subsdios para obras de referncia e tradues mais bem elaboradas.

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Os dicionrios de lngua bilnges geralmente procuram estabelecer uma relao idealmente eqitativa entre corpora lexicogrficos de lnguas diferentes, apresentando essa relao como uma justaposio de formas paralelas sem dar acesso a detalhamentos da significao das entradas e sem organizar o universo semntico do idioma. Apenas os chamados semiblinges, ainda incipientes no mercado, tm essa proposta (DURAN; XATARA, 2005). A tarefa de propor equivalentes idiomticos pode parecer, primeira vista, relativamente fcil, mas, so as diferenas de descries, recortes e denominaes que cada lngua faz da realidade extra-lingstica, percebida por todos de modo semelhante ou no, que devem ser levadas em conta na elaborao dos verbetes dos dicionrios bilnges (DUVAL, 1990). Somente dessa forma, o usurio seria devidamente avisado de que cada um dos equivalentes propostos equivale entrada apenas em parte, pois geralmente no h superposio das reas semnticas entre as palavras de lnguas diferentes (sobretudo quando uma palavra for mais motivada que a sua pretensa correspondente em outro sistema lingstico). Ou seja, a traduo proposta normalmente no recobrir na totalidade o sentido do termo da outra lngua (DARBELNET, 1970). Para Werner (in: HAENSCH et al., 1982) a principal dificuldade encontrada pela Traduo na elaborao de dicionrios bilnges (DBs) est no fato de que as estruturas lexicais de lnguas diferentes no so correspondentes. Entretanto, sabemos que seria impossvel enumerar para cada UL todas as possibilidades de traduo, levando em considerao cada contexto especfico e descrevendo cada diferena e cada semelhana entre duas ou mais lnguas. Ainda de acordo com esse autor, a soluo mais vivel na elaborao dos DBs seria dar para cada UL os seus respectivos equivalentes de traduo. Para ele, equivalente uma

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lexia da lngua que contem pelo menos um semema (trao semntico) em comum com o semema de uma UL da lngua de partida. Porm, faz uma ressalva, frisando que esse termo consagrado pelo uso, mas que no o mais indicado, pois as relaes lexicais interlingsticas no se tratam de relaes de equivalncia. Devemos ressaltar que o termo equivalncia no uma unanimidade entre os lexicgrafos e os tericos da Traduo. Nos estudos sobre traduo mais tradicionais, a concepo do termo equivalncia pressupunha que seria possvel uma relao perfeita entre elementos de lnguas diferentes (RIOS, 2003). No entanto, Rodrigues (2000) contesta esse conceito apontando a relatividade dos significados e a problemtica da significao ao afirmar que:

[...] seria ilusria a crena de que as referncias de termos de lnguas diferentes podem ser objetivamente comparadas [...] pois o significado no pode ser uma entidade objetiva, na medida em que est vinculado ao comportamento dos usurios e sociedade (p. 175). Ainda segundo a autora, atribuir um mesmo valor a palavras de duas lnguas diferentes seria impensvel, pois nada ancora os signos aos referentes e o sistema quem estabelece os limites entre os signos. No sendo possvel, portanto, que um sistema lingstico organize seus componentes de modo a espelhar exatamente a organizao de outro sistema. Ao levar em conta essas afirmaes, poderamos concluir que a prtica da Lexicografia Bilnge seria inexeqvel. Porm, ela existe e, cada vez mais, encontramos pesquisas sobre o assunto. Como, ento, explicar esse paradoxo? Por outro lado, podemos relativizar as afirmaes de Rodrigues (ibidem), para quem o significado de um texto no est fixo nele, sendo sua interpretao inevitvel e produtora de tudo o que consideramos produto, uma vez que no atribumos s ULs significados quaisquer;

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ao contrrio, os significados so comunitrios e convencionais, pois os usurios de uma lngua so todos dependentes de pressuposies institucionalmente determinadas. Deparamo-nos, ento, com uma questo terminolgica: como chegar a um consenso em relao ao termo equivalente de traduo, entendido de diferentes maneiras pela Lexicografia Bilnge e pelos estudos da Traduo? Rios (2003) propem o termo correspondncia idiomtica interlingstica, a fim de tentar achar um meio termo entre as duas reas envolvidas. Porm, no que diz respeito Lexicografia Bilnge, o termo equivalente perfeitamente cabvel e amplamente utilizado. Portanto, manteremos o termo equivalente por se tratar de uma pesquisa que tem como base a Lexicografia. Esse termo atenderia aos propsitos desta pesquisa, j que, ao mesmo tempo, estabeleceria e apresentaria uma reciprocidade entre ULs de diferentes lnguas, ao analisar suas semelhanas e propor tradues que possuam uma relao harmnica entre elas e no que sejam rigorosamente iguais. Visamos com este trabalho elaborar uma obra de referncia com equivalentes idiomticos interlngsticos nas lnguas portuguesa e/ou francesa, facilitando o trnsito no somente entre duas lnguas, mas, entre quatro culturas distintas. Por esta razo, nossa proposta um dicionrio multilnge, uma vez que acreditamos que esta equivalncia seja possvel, apesar de as lnguas poderem possuir imagens diferentes para expressar os mesmos conceitos. (LOFFLER-LAURIAN; PINHEIRO-LOBATO; TUKIA, 1979).

2. O reconhecimento e a traduo lexicogrfica de expresses idiomticas

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A identificao e a traduo de uma EI em lngua estrangeira merecem uma ateno especial, pois trabalham com divergncias culturais que se acentuam em razo da histria de cada lngua, ou melhor, de cada povo. Normalmente, as lnguas no recortam a mesma realidade extralingstica, por isso indiscutvel que os sistemas lingsticos, a cultura e a viso de mundo na nomeao da realidade divirjam (XATARA, 1998a, p. 04). Segundo Rey-Debove (1998), em um DB, o estabelecimento das relaes entre os signos de lnguas diferentes no tem a preocupao com o referencial (extralingstico). Tenta-se conservar aproximadamente o mesmo contedo, na passagem de um signo a outro (de lnguas diferentes), tendo em vista que no possvel a sinonmia entre lnguas diferentes. No DB, ento, so apresentadas equivalncias lexicais por meio da transcodificao de uma lngua para uma UL de outra. De acordo com Blanco (1997), a relao entre unidades de lnguas diferentes s interessa se apoiada por outros dados complementares que tornem possvel a leitura e a compreenso das relaes intersgnicas propostas e evidenciadas nas obras lexicogrficas. Assim, o consulente poder com sua busca realizar tarefas como a decodificao (compreenso), a codificao (produo) e a traduo de formas que pertencem a um discurso e no apenas buscar por uma equivalncia de uma palavra em outra lngua. Lembramos que o objetivo de um dicionrio bilnge no estabelecer relaes de igualdade entre lnguas diferentes e assim neutralizar as suas diferenas. Ao contrrio, por meio de comparaes interlingsticas, ele deve apontar semelhanas e diferenas entre as lnguas, o que facilita a sua compreenso e nos faz enxergar a sua grandeza. No entanto, sabemos que as lnguas no apresentam somente diferenas, visto que todos os seres humanos vivem no mesmo planeta, no qual a realidade fenomnica, na maioria das vezes, comum em parte do mundo, quem motiva a criao lingstica. Segundo Szende

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(in: BJOINT; THOIRON, 1996), todos ns estamos confrontados com a realidade da terra e do cu, do frio e do calor, com noes de espao e tempo, entre outras situaes. Temas como a morte e o nascimento, por exemplo, so comuns a qualquer pessoa, embora possam ser tratados de maneira distinta pelas diversas culturas e as expresses correspondentes formuladas com imagens bastante diferentes. o caso das EIs dar luz e pr no mundo, que significam parir: com certeza haver em outra lngua uma expresso equivalente, por tratar-se de uma condio vivida por todo ser humano, assim como expresses referentes morte como vestir o palet de madeira, ir desta para melhor e assim por diante. Como sabemos, os valores so construdos em uma cultura pelo sujeito de maneira particular e os significados no so intrnsecos s lexias. Mas, para que a traduo se torne uma possibilidade real, defendemos que os valores lexicais so construdos de modo semelhante por cada sujeito, seja em uma mesma cultura, seja em culturas diferentes. Isso porque dependemos de pressuposies convencionais de nossa sociedade e os fenmenos que motivam a produo lingstica so muito parecidos nas diversas culturas, embora as lnguas tenham recortes variados. Dessa forma, so os traos comuns dos significados comunitrios e convencionais de lexias de lnguas diferentes que esto presentes na correspondncia interlingstica. Galisson (1989) acredita que os idiomatismos, por serem lexias conotativas que fazem parte da cultura compartilhada de um povo, apresentam uma certa dificuldade para os tradutores e estudiosos de lnguas estrangeiras. De acordo com esse autor, por meio dessa cultura compartilhada, que rege o cotidiano, os indivduos de um grupo sociocultural se identificam, se reconhecem e aproximam-se uns dos outros. Da a dificuldade de um estrangeiro em se comunicar com falantes nativos, pois ele no possui essa cultura cotidiana.

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Os implcitos culturais presentes na linguagem cotidiana, comeam a ser considerados mais atentamente pela Lexicografia Bilnge atual e pelo ensino de lngua estrangeira, j que toda e qualquer UL de uma lngua carrega uma carga cultural compartilhada (GALISSON, ibidem). E nesta carga cultural compartilhada que so encontradas as conotaes das palavras, normalmente compreendidas somente pelos nativos. Para podermos traduzir no s as EIs, como tambm qualquer UL de uma lngua para outra, devemos primeiramente identific-las, tanto em relao ao seu significado, quanto ao seu papel no sistema lingstico. imprescindvel, portanto, reconhecer a EI na lngua como sendo um idiomatismo e no apenas uma expresso similar com sentido conotativo (RIOS; RIVA, 2002). Depois, a equivalncia idiomtica proposta pela traduo de um idiomatismo deve conter o maior nmero de elementos que sustentem a nossa escolha, sempre observando se a traduo est apoiada e cerceada pela cultura da comunidade interpretativa na qual o lexicgrafo/tradutor se insere e para qual ele destina seu trabalho (RIOS; RIVA, 2002, p. 97). Portanto, para que se possa haver uma proposta de equivalncia, seria ideal que as lexias apresentassem, nas diferentes lnguas, alm do mesmo estatuto no sistema lingstico, valores estilsticos e situacionais correspondentes. A expresso comer grama pela raiz, por exemplo, que significa morrer, pode encontrar na expresso francesa manger les pissenlits par la racine sua equivalente, j que as duas referem-se morte, possuem elementos semnticos correspondentes como comer / manger e raiz / racine e remetem a uma situao parecida, a de estar embaixo da terra, ou seja, enterrado, e por isso comer grama pela raiz, que tambm se localiza debaixo da terra.

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3. Os problemas de traduo nos dicionrios bilnges/multilinges

inquestionvel a importncia do uso de dicionrio, seja ele bilnge, monolnge, terminolgico, especial ou geral, para um tradutor (iniciante ou experiente), um estudante ou qualquer pessoa que queira aprender mais sobre uma lngua. E apesar da preferncia por dicionrios monolnges, j que estes conseguem dar conta de um recorte muito maior das lnguas que abrangem, nem sempre possvel a sua utilizao exclusiva. Principalmente no caso de tradutores aprendizes ou alunos iniciantes em lngua estrangeira que ainda no conseguem compreender muito bem a nova lngua. Nessas situaes sempre plausvel o uso de dicionrios bilnges para complementar a busca. A questo que se deve ter conscincia das imperfeies dos dicionrios bilnges e da insuficincia de muitos modelos que no abarcam convenientemente uma realidade emprica complexa, realidade esta que ultrapassa a prpria linguagem e esbarra em problemas semiticos (PICOCHE, 1994). Apesar de contestados, os equivalentes entre ULs e expresses idiomticas de duas ou mais lnguas so buscados a todo momento. Seria invivel que um texto traduzido contivesse somente as definies das palavras ou enumeraes sinonmicas, j que, o recurso aos dicionrios bilnges visa assegurar preciso na traduo de termos que melhor designam, na lngua de chegada, a noo apresentada na lngua de partida. Os usurios, mais precisamente o tradutor, buscam nesses dicionrios um equivalente, mas muitas vezes tm de optar, num paradigma sinonmico, entre um estrangeirismo, um emprstimo, um decalque ou um vernculo (CARVALHO, 1989).

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Os lexicgrafos devem elaborar materiais de consulta que auxiliem os usurios por meio de indicao das imagens que em lnguas diferentes remetem a conceitos semelhantes. E devem estar atentos aos problemas mais comuns de traduo para garantir uma boa qualidade do material. Por isso, Xatara (1998b) afirma que preciso prestar ateno questo dos sinnimos justapostos, separados unicamente por vrgulas sem uma indicao de diferenas de significados e usos. Para resolver esse problema, a autora sugere que se coloque no incio ou no final de cada traduo uma definio (mesmo que abreviada por questes de espao) que indique o sentido e o emprego. Essa medida ajudaria o consulente na hora de procurar a melhor traduo para seu texto e o conscientizaria de que aquele termo equivale apenas em parte entrada, j que no h superposio de reas semnticas entre palavras de lnguas diferentes. Os dicionrios semibilnges, apesar de ainda escassos no mercado, apareceram para preencher essas lacunas e j so vistos como uma alternativa aos dicionrios bilnges atuais. Esse tipo de dicionrio utiliza oraes-modelo e definies nos verbetes, o que auxilia os consulentes (principalmente os aprendizes) a compreenderem melhor o significado na lngua de chegada e as diferenas entre as duas lnguas envolvidas no processo. E, principalmente, define com mais clareza o contexto em que so empregados, no apenas listando alternativas tradutrias, sem nenhum critrio e fora do contexto, como fazem os bilnges (DURAN; XATARA, 2005). Xatara (1998b) tambm prope que se evite que as definies ocupem o lugar das tradues, mesmo no caso de decalques, pois isso no resolve o problema dos tradutores que, na maioria das vezes, procura uma UL correspondente e no uma explicao, o que ele encontraria no dicionrio monolnge da lngua de chegada.

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No caso das EIs, particularmente, muitos dicionrios bilnges trazem somente as definies, as quais servem apenas para elucidar o que elas querem dizer, mas no ajudam em nada o tradutor, que deve colocar no seu texto expresses de igual valor idiomtico, para que o texto no perca sua caracterstica estilstica. No Dicionrio escolar francs-portugus / portugus-francs6, de Corra e Steiberg (1982), a expresso francesa prendre racine possui como definio enraizar-se; arraigar-se. Porm, no h nenhuma indicao de que se trata de um idiomatismo e no oferece ao consulente uma EI equivalente em portugus (que seria criar razes), o que garantiria o mesmo nvel de expressividade ao texto traduzido. Outras informaes como ilustraes, nvel de linguagem, freqncia e marcas cronolgicas tambm so de bastante importncia, devendo ser inseridas na microestrutura sempre que possvel.

4. Lnguas em contraste

Quanto s lnguas que esto em contraste, a portuguesa de Portugal e do Brasil e a francesa da Frana e do Canad, de mesma origem, a latina, sabe-se que so praticadas por civilizaes distantes geogrfica e culturalmente. Entretanto, ao lado de previsveis diferenas entre muitas expresses, principalmente aquelas ligadas ao passado sociocultural de cada povo, podemos encontrar formulaes idiomticas quase idnticas. Fenmenos que ocorrem tambm no interior de uma mesma lngua: entre idiomatismos do portugus europeu e do brasileiro, do francs gauls ou canadense, do espanhol peninsular ou hispnico, etc. De acordo com Tagnin (1989), as conotaes podem ser distintas em culturas diversas, j que, algumas vezes, uma imagem pode possuir significados diferentes em outras culturas.6 CORRA, R. A.; STEIBERG, S. H. Dicionrio escolar francs-portugus / portugus-francs. 7.ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1982.

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Chamamos ateno, ainda, para o fato de Tagnin ter usado a palavra cultura e no lngua, pois, como observamos neste trabalho, mesmo dentro do francs e do portugus percebemos diferenas nas EIs, pois so empregadas em sociedades distintas. Vejamos o exemplo da EI brasileira a passos de tartaruga: em Portugal encontramos 5 equivalentes, sendo que dois deles remetem ao mesmo tipo de animal a passos de tartaruga e a passos de cgado - porm, os outros no a passos de caracol, a passos de lesma e a passo de boi. Na lngua francesa, o mesmo fenmeno ocorre: na Frana temos as EIs pas compts, pas mesurs; pas de fourmi e pas de tortue. No francs quebequense encontramos 3 EIs iguais s da Frana (exceto pas de fourmi) e trs diferentes: au pas de la grise, au pas de la blanche e (avancer) petit-peta. Observamos tambm a existncia dos falsos cognatos idiomticos: idiomatismos que, em duas culturas diferentes, recorrem mesma imagem, mas que possuem significados distintos. A EI passar de pato a (para) ganso no Brasil quer dizer mudar de um assunto para outro, enquanto no portugus europeu significa piorar de situao. Tambm encontramos diferentes EIs numa mesma lngua, falada num mesmo pas, mas que significam a mesma coisa. o caso da EI brasileira meter a colher, utilizada em quase todo o pas, mas que tambm encontramos no Cear como equivalente a EI botar catinga. Desse modo, esperamos que este trabalho comparativo revele a riqueza fraseolgica do portugus de Portugal, ajudando-nos a resgatar um pouco da diversidade lingsticocultural de nosso idioma, assim como ressalte a importncia da lngua francesa, no s em territrio francs, mas tambm em outro pas de bastante relevo na conjuntura mundial, o Canad.

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Como sabemos, esse pas conserva muito bem suas origens francesas e orgulha-se muito delas: isso confirmado pelo fato de o francs ser uma das lnguas oficiais, pelo grande incentivo do governo s pesquisas sobre a provncia de Quebec e tambm pelo oferecimento de bolsas de estudos e oportunidades de emprego para quem pretende trabalhar na regio francesa do pas. No entanto, apesar de todos os estmulos aos estudos do fenmeno da francofonia pelo mundo, ainda h muitas diferenas lingsticas entre o francs quebequense e o francs da Frana a serem focalizadas sob diversos aspectos. Pois, as variantes de uma lngua, seja o portugus, seja o francs, procuram numa atitude plurilingista, sustentar suas identidades, um movimento contrrio inevitvel globalizao, que parece buscar tambm por uma padronizao mundial da cultura. No Quebec a luta contra o domnio norte-americano talvez seja a mais desleal, por ser vizinho dos Estados Unidos e por fazer parte de um pas onde a maioria dos seus habitantes fala o ingls. No entanto, a regio do Quebec sempre defendeu arduamente sua identidade, que est intimamente ligada lngua francesa, frente s tentativas de monopolizao do ingls. Na Frana, tambm existem medidas para se evitar a invaso da lngua inglesa e, na medida do possvel, elas tm sido eficazes. J no Brasil e em Portugal, apesar das tentativas, ainda no vingaram projetos que visem proteger a lngua portuguesa, e o que notamos, cada dia mais, uma grande disposio em aceitar tudo o que vem do exterior. Esperamos que com esta pesquisa as diferenas lingsticas e culturais comecem a ser vistas com outros olhos: no mais como algo negativo, que possa vir a atravancar o relacionamento entre os povos, mas sim como um aspecto que amplie nossos conhecimentos e que nos faa enxergar novas perspectivas. Dessa forma, ao pesquisar os idiomatismos e ao produzir dicionrios especiais que insiram duas variantes da lngua portuguesa e duas da lngua francesa, apresentamos nossa

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contribuio para o desenvolvimento lexicogrfico no s no Brasil, mas ainda nos outros pases envolvidos. Alm disso, esperamos colaborar com a conservao de nossas razes culturais para, assim, podermos entender um pouco melhor nossa histria. Outra importante contribuio desta pesquisa refere-se atualizao dos conhecimentos sobre os instrumentais da Lingstica de Corpus para a anlise de dados empricos, mais especificamente na computao da freqncia das EIs consideradas equivalentes.

5. Freqncia de uso e corpora

A tecnologia tem ajudado muito no desenvolvimento da Lexicografia, e de vrias outras reas da Lingstica, com a criao de programas computacionais que processam a linguagem humana. Segundo Kilgarrif (2002), a Lexicografia e a Tecnologia da Linguagem beneficiam-se uma da outra e, cada vez mais, podemos enxergar a cooperao entre essas duas reas. A Tecnologia da Linguagem utiliza-se da Lexicografia, pois precisa conhecer a fundo as palavras: desde como so soletradas e a sua freqncia at a sua pronncia e como se relacionam com outras palavras. E onde melhor encontrar essas informaes se no em um dicionrio? Por outro lado, a Lexicografia utiliza-se das ferramentas da Tecnologia da Linguagem para a anlise da lngua. Ultimamente, todo grande projeto de dicionrio tem como base um corpus. Com efeito, h mais de 20 anos os corpora tm sido usados para essa funo, desde a criao, no incio dos anos 80, do corpus Cobuild (em torno de 7 milhes de palavras, em ingls), que transformou a maneira de se fazer dicionrios (KILGARRIF, 2002). De l para c, o nmero

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de corpora s tem aumentado, assim como o nmero de palavras compreendidas por eles (j se estimam centenas de milhes de palavras), cujo manejo viabiliza-se apenas por meio de ferramentas tecnolgicas. A Lingstica de Corpus, portanto, ocupa-se da coleta e da explorao de dados lingsticos textuais, que podem servir para a pesquisa de uma lngua ou variedade lingstica e para descrever os mais variados aspectos da linguagem. (BERBER SARDINHA, 2004). Como, ento, a descrio da linguagem e a computao da freqncia so duas das reas de pesquisa privilegiadas pela Lingstica de Corpus, consideramos bastante pertinente para esta pesquisa recorrer aos seus subsdios terico-prticos e utilizar um corpus representativo e adequado aos nossos propsitos. Entretanto, detectamos a inexistncia de um corpus escrito, nas quatro lnguas, que denote privilegiadamente a linguagem coloquial cotidiana, principal fonte de EIs. Segundo Sinclair (1991), muito mais fcil encontrarmos materiais com linguagens formal e literria, ou mesmo jornalstica, do que materiais com linguagens informal e coloquial. Como os idiomatismos compreendem caractersticas bastante peculiares - so combinaes de palavras situadas no universo lexical da lngua geral, que perderam sua independncia e adquiriram um sentido global -, eles necessitam de um corpus imenso para assegurar evidncias suficientes com vistas a um tratamento estatstico. Por isso, apesar de serem muito comuns na linguagem cotidiana, so raros mesmo em corpora relativamente grandes. De fato, pudemos observar que as bases textuais conhecidas realmente no computam grande quantidade de textos coloquiais e a indicao da freqncia das EIs nesses corpora no revela adequadamente a recorrncia de seu emprego. Abaixo, um trecho do quadro de Berber Sardinha (2004, p. 09) sobre as dimenses dos principais corpora eletrnicos do portugus brasileiro:

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Corpus Banco de Portugus Usos do Portugus PB Contemporneo Tabela (1)

Palavras 240 milhes 200 milhes 100 milhes

Composio PB, escrito e falado PB, escrito PB, escrito e falado

Localizao PUC/SP UNESP/Araraquara UNESP/Araraquara

S para se ter uma idia da escassez de EIs em corpora tradicionais, no corpus do Laboratrio de Lexicografia da Unesp de Araraquara, um dos maiores do pas, o idiomatismo botar chifres em (algum) no foi encontrado. Mesmo alterando o verbo (colocar, meter, pr), os tempos verbais e at reduzindo o idiomatismo palavra chifre, no foi encontrada nenhuma ocorrncia (RIVA, 2004). Alm disso, programas de gerenciamento de bases textuais, como o Wordsimth Tools, o Folio Views ou o Hyperbase, tambm no so muito eficazes na identificao de Uls complexas, sendo necessrio recorrermos a um outro tipo de corpus que comea a ganhar espao nos estudos sobre Lingstica de Corpus: a World Wide Web. Colson (2003) afirma que, atualmente, para o estudo de fraseologismos o nico corpus que pode nos oferecer resultados satisfatrios a Web, na qual podemos encontrar mais de 60 bilhes de palavras escritas nas mais diversas lnguas. E, apesar do autor acreditar que a Web no oferece ainda uma soluo perfeita para pesquisar fraseologismos, sua imensido e caracterstica multilnge devero, em breve, transform-la em um competidor imbatvel para os corpora tradicionais. (COLSON, 2007).

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Berber Sardinha (2004), para quem a dimenso da Web responde mais adequadamente verificao de hipteses em uma amostragem da lngua que precise ser suficientemente abrangente para validar uma pesquisa, complementa:

A Internet, mais especificamente a World Wide Web, tornou-se um vasto depsito de textos dos mais variados tipos. J h, inclusive, propostas de encarar a www como um corpus em si, variado e multilnge, que pode ser acessado pelo usurio sem necessidade de ter os arquivos gravados em sua mquina. (BERBER SARDINHA, 2004, p. 45)

Alm da quantidade dos seus dados textuais, a Web tambm pode nos oferecer uma demonstrao do idiomatismo em um contexto real e pode apresentar informaes importantes concernentes significao e ao uso de cada EI: em poucos segundos temos nossa disposio centenas de exemplos, sobretudo de textos, seja da imprensa ou de propagandas, seja de entrevistas ou de conversas, que podem ser utilizados como informao metalingstica (COLSON, 2003). Todos esses fatores corroboram a utilizao da Web como base textual. Ainda que no seja um conjunto controlado de textos (isto , um agrupamento sistemtico de textos, explorveis por uma mquina, preparados, codificados e armazenados de acordo com regras predefinidas) e que as informaes encontradas na rede no sejam totalmente confiveis, podendo ser temporrias, conter imprecises e, at mesmo, erros ortogrficos. Porm, o que nos interessa no a preciso gramatical dos textos, mas sim atestar o quanto uma EI de fato reincidente para determinada comunidade lingstica, a fim de selecion-la ou no como idiomatismo freqente. Entretanto, ainda persiste um grande problema entre os lexicgrafos definir o limiar de freqncia de uma determinada UL para garantir sua presena em um dicionrio, visto que

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sua freqncia envolve diversos fatores, como o meio social, contextos, preferncias pessoais, entre outros (MESSELAAR, 1988). H mais de 30 anos, para a elaborao do primeiro dicionrio de freqncia do portugus (DUNCAN, 1972), foi estabelecido como 20 o limiar mnimo de ocorrncia para uma palavra ser considerada freqente. Mas, ainda aqui, tratava-se de lexias simples ou compostas, no de lexias complexas. Os estudos de Colson (2003), no entanto, retomando proposies de Moon (1998), felizmente nos esclarece o seguinte:

A Lingstica de Corpus oferece um padro til para medir a freqncia idiomtica: o nmero de ocorrncias por milho de palavras (PMW, em ingls). Muitos idiomatismos verbais do ingls, do francs e do holands (e provavelmente de todas as lnguas europias) apresentam uma freqncia de menos que 1 PMW, ou seja, sua ocorrncia no corpus inferior a um, em um milho de palavras. Vale saber que um corpus de um milho de palavras corresponde, aproximadamente, ao texto de dez romances (COLSON, 2003, p. 47)!7

Ainda de acordo com Colson (2003), 70% das EIs frasais tm freqncia inferior a 1 PMW e os pesquisadores no conseguem detectar muitos idiomatismos comuns nos bancos de corpora eletrnicos tradicionais. E conclui:

Idiomatismos, como um todo, costumam ser muito freqentes em qualquer tipo de texto. Isso no significa, entretanto, que um idiomatismo especfico aparecer freqentemente, mesmo em grandes corpora. Lingistas ou estudantes que procuram vrios contextos do mesmo idiomatismo tm de usar corpora de bilhes de palavras. A Web , atualmente, o nico corpus gigante que pode atingir essa meta. (COLSON, 2003, p. 59). 8

7 Traduo nossa de Corpus linguistics offers a useful standard for measuring idiom frequency: thenumber of occurrences per million words (PMW). Many verbal idioms of English, French and Dutch (and probably of all European languages) correspond to a frequency of less than 1 PMW, i.e. their occurrence in a corpus is inferior to one in a million words. It is worth nothing that a corpus of a one million words roughly corresponds to the text of ten novels!8 Traduo nossa de Idioms as a whole turn out be very frequent in any given text. This does not

mean, however, that a specific idiom will appear frequently, even in large corpora. Linguists or students looking for many contexts of the same idiom have to use corpora of billions of words. The Web is presently the only gigantic corpus that can stand up to that goal.

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Ento, para se obter a computao lxica desejada, trabalhamos com o buscador Google, comprovadamente de grande capacidade de pesquisa (mais de 4,28 billhes de pginas indexadas, dentre livros, jornais, revistas, agncias de notcias on-line, blogs, pginas pessoais, etc), ultrapassando em muito o nmero total de palavras de qualquer banco textual (Super Interessante, 2004). Portanto, baseando-nos nos estudos de Moon (1998) e Colson (1999, 2001, 2003), propusemos utilizar como parmetro para medir a freqncia idiomtica o nmero de ocorrncias por milho de pginas da Web, uma vez que podemos supor que cada resultado (ocorrncias por pgina) apresentado nas buscas por determinada EI corresponda a pelo menos uma ocorrncia desta EI no conjunto de textos da pgina. Esta pesquisa de freqncia observou os dados reunidos por Grefenstette (2000, 2004), por Evans et al. (2004) e pela Unio Latina (2006), que estimam que exista na Web cerca de 157 milhes de pginas em francs da Frana e 56 milhes em portugus brasileiro. Dessa forma, aplicando o coeficiente de 1 PMW, estabeleceu-se o limiar de freqncia em 56 ocorrncias para o portugus e 157 para o francs, visto que, normalmente, cada EI ocorre pelo menos uma vez em cada pgina da Web. Esses parmetros foram utilizados para a composio do DEEI Dictionnaire lectronique d'expressions idiomatiques franais-portugais / portugais-franais (XATARA, 2007), o dicionrio que nos serviu de base para esta pesquisa. Na tabela abaixo, ilustramos como, baseados nos estudos de Colson (2003), chegamos ao limiar de freqncia exigido para que uma EI fosse considerada freqente e, assim, pudesse constar em nosso dicionrio.

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Pas Brasil Frana Portugal Canad (Quebec) Tabela (2)

Nmero de pginas na Web (em milhes) 56 156,1 14 6,6

Limiar de freqncia baseado em PMW 56 157 14 7

Foram considerados freqentes, portanto, os idiomatismos lusitanos com no mnimo 14 resultados e os idiomatismos quebequenses que apresentaram pelo menos 7 ocorrncias. As EIs que no obtiveram esse nmero mnimo de ocorrncias foram descartadas.

CAPTULO IV MATERIAL E MTODOS

A fim de melhor detalharmos os procedimentos metodolgicos a serem observados, explicitamos abaixo como determinamos a nomenclatura em portugus do Brasil e em francs da Frana. Assim como explicamos como foi feito o levantamento de equivalentes em portugus de Portugal, com base em expresses idiomticas brasileiras, e de equivalentes em francs do Quebec, considerando expresses idiomticas francesas. Tambm demonstramos neste captulo como foi verificada a freqncia dos equivalentes em portugus de Portugal e em francs do Quebec e como localizamos as EIs. Alm disso, relatamos em que condies recorremos a informantes portugueses e quebequenses. E, por ltimo, apresentamos a microestrutura dos verbetes do inventrio final.

1. Nomenclatura em portugus do Brasil e em francs da Frana

Para estabelecermos a nomenclatura em portugus do Brasil e em francs da Frana, baseamos-nos na nomenclatura elaborada pelo DEEI (XATARA, 2007), assim como nas definies parafrsicas propostas para os verbetes deste dicionrio, o que otimizou nossa pesquisa em termos de tempo hbil para sua execuo. Avaliamos que se trata de uma fonte confivel por ser fruto de anos de reflexo sobre o assunto, fundamentado em pesquisas de mestrado, doutorado, publicao nacional de dicionrio impresso, ps-doutorado e publicao on-line de dicionrio em site de renome internacional. Alm disso, a nomenclatura apresentada apoiou-se em anlise freqencial tambm na Web, etapa da pesquisa da qual participamos em estgio de iniciao cientfica, e

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as definies sugeridas subsidiaram-se em anlise pragmtica dos contextos que utilizam idiomatismos, procedimentos que garantem maior cientificidade aos dados obtidos.

2. Levantamento de equivalentes em portugus de Portugal a partir de expresses idiomticas brasileiras

Num primeiro momento, nos valemos de fontes secundrias, ou seja, dicionrios de lngua geral e dicionrios fraseolgicos do portugus de Portugal (v. Corpus para EIs em portugus de Portugal). Num segundo momento, para todas as equivalncias dbias ou no encontradas, entramos em contato com informantes nativos: portugueses residentes no Brasil e/ou em Portugal, jovens e adultos, leigos ou especialistas (professores, pesquisadores, lexicgrafos). Nossa primeira informante contatada foi a blgara Yovka Batista Valverde, filha de portugueses, que desenvolve pesquisa sobre idiomatismos com a orientao do Prof. Joo Malaca Casteleiro, diretor do Departamento de Lngua e Cultura Portuguesa - Faculdade de Letras / Universidade de Lisboa. Atravs da Profa Margarita Correia (pesquisadora do grupo Lxico e Modelizao Computacional do ILTEC Instituto de Lingustica Terica e Computacional), em Lisboa, entramos em contato com alguns alunos do curso de Letras da Universidade de Lisboa: Miguel Filipe Gonalves Arranhado, Brigite Martins, Ana Matafome e Irene Candeias. Alm desses informantes, obtivemos a ajuda de mais dois portugueses de outras reas: Sabrina Correia d'Agostino (formada em Turismo pela Escola de Hotelaria e Turismo do Algarve - Inftur) e Hugo Virgilio Pereira Roupar Leite (mestrando em Engenharia de Comunicaes pela Universidade do Minho, em Portugal).

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Contamos ainda com a valiosa colaborao da Profa. Maria Augusto Celeste, lexicgrafa portuguesa vinculada Universidade de Utrecht Holanda.

3. Levantamento de equivalentes em francs do Quebec a partir de expresses idiomticas francesas

Tambm com base na nomenclatura do DEEI, fizemos um levantamento das EIs do francs quebequense que correspondem a cada entrada em francs da Frana. Como j explicamos no captulo anterior, nossa busca limitou-se provncia do Quebec ou s expresses quebequenses, por tratar-se da regio francesa mais representativa do Canad. Para tanto, partimos inicialmente para pesquisa em obras lexicogrficas (v. Corpus para EIs em francs do Quebec) e posteriormente a informantes nativos, da mesma forma que procedemos para procurar todos os equivalentes em portugus europeu: quebequenses residentes no Brasil e/ou no Canad, jovens e adultos