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Será que governo Fernando Henrique foi tão de esquerda quanto o de Lula? Zé Carlos Barretta/Folhapress Samuel Pessôa, Celso Rocha de Barros, Marcelo Coelho e Ruy Fausto, em debate sobre livro MARCELO COELHO FSP, 07/07/2017 10h00 RESUMO Após mediar encontro sobre "Caminhos da Esquerda", livro de Ruy Fausto, Marcelo Coelho escreve sobre pontos de discordância com o filósofo, como a busca por algo além da social-democracia. Ele também diverge de um dos debatedores, o economista Samuel Pessôa, para quem FHC foi tão de esquerda quanto Lula. * Participei como mediador de um debate sobre o novo livro do filósofo Ruy Fausto, "Caminhos da Esquerda" [Companhia das Letras, 216 págs., R$ 39,90, R$ 27,90 em e-book].

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Será que governo Fernando Henrique foi tão de esquerda quanto o de Lula?Zé Carlos Barretta/Folhapress

Samuel Pessôa, Celso Rocha de Barros, Marcelo Coelho e Ruy Fausto, em debate sobre livro

MARCELO COELHO

FSP, 07/07/2017 10h00

RESUMO Após mediar encontro sobre "Caminhos da Esquerda", livro de Ruy Fausto, Marcelo Coelho escreve sobre pontos de discordância com o filósofo, como a busca por algo além da social-democracia. Ele também diverge de um dos debatedores, o economista Samuel Pessôa, para quem FHC foi tão de esquerda quanto Lula.

*

Participei como mediador de um debate sobre o novo livro do filósofo Ruy Fausto, "Caminhos da Esquerda" [Companhia das Letras, 216 págs., R$ 39,90, R$ 27,90 em e-book].

Não tenho nenhuma prática nesse tipo de coisa e cometi algumas gafes com os colunistas da Folha participantes do evento, o sociólogo Celso Rocha de Barros e o economista Samuel Pessôa. Além disso, interrompi meio sem cerimônia o próprio Ruy Fausto quando já estava passando da hora de terminar o evento.

Aproveito este artigo para pedir desculpas aos três e adianto outras pelas divergências que, engasgadas na hora, apresento por aqui.

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Autoridade indisputada em matéria de Karl Marx –sobre quem escreveu "Sentido da Dialética" (Vozes)–, Fausto tece, em seu novo livro, uma crítica ao que chama de patologias da esquerda.

A primeira seria uma tolerância persistente aos modelos totalitários surgidos com as revoluções russa, chinesa ou cubana.

A segunda seria o apoio a soluções populistas, seja em sua versão forte, a de Hugo Chávez, seja em sua versão fraca, a de Lula (PT).

A terceira seria o abandono de qualquer perspectiva anticapitalista, expressa em alguns partidos socialistas europeus e, aqui, no que ele classifica como adesismo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) ao sistema da economia globalizada.

Os debatedores não tinham reparos a fazer quanto aos dois primeiros focos da antipatia manifestada por Fausto; a discussão se deu em torno de Fernando Henrique e da social-democracia.

Celso Rocha de Barros expressou sua desconfiança quanto a uma proposta que se queira anticapitalista, vendo nisso o risco de se estimularem aventuras econômicas irresponsáveis –veja-se o que escreveu nesta Folha em coluna na última segunda-feira (3).

Samuel Pessôa já tinha desenvolvido fortes argumentos contra as teses de Fausto desde que o filósofo publicou, na revista "piauí", o artigo que daria origem ao livro lançado agora.

Resumindo ao máximo, Pessôa considera que não houve ruptura significativa entre os dois governos Fernando Henrique e o primeiro mandato de Lula: ambos foram social-democratas, podendo ostentar números equivalentes no que tange aos gastos sociais, ao poder de compra do salário mínimo e à redução das desigualdades econômicas.

Passo a alguns comentários sobre essa discussão.

SOCIAL-DEMOCRACIA

Concordo fundamentalmente com Celso Rocha de Barros e Samuel Pessôa. Não vejo no horizonte da esquerda nenhuma proposta que me faça desejar algo além da social-democracia. Não se trata, aliás, de um sistema estático, que se considere perfeito.

Novos passos no sentido da igualdade e da humanização das relações entre as pessoas são sempre possíveis e, normalmente, ocorrem pelo próprio processo das lutas sociais. Não obedecem a planos concebidos a priori.

Para acreditar em algo mais que isso, seria necessário ter um diagnóstico preciso a respeito da inviabilidade do sistema capitalista a médio prazo, coisa que volta e meia os teóricos marxistas tentam, com grande acúmulo de insucessos.

Em seu livro, Fausto critica o adesismo social-democrata ao capitalismo porque faltaria legitimidade ao sistema: seguindo Marx, para quem tudo se baseia na apropriação

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indevida dos frutos do trabalho assalariado, Fausto considera que uma proposta de esquerda teria de buscar formas de produção diversa; cita experiências cooperativistas como exemplo.

Falar na ilegitimidade do capitalismo, contudo, não garante que nos afastemos do campo social-democrata, que se define pela adoção de métodos gradualistas e pela recusa em formular modelos prontos de anticapitalismo.

A meu ver, algum reconhecimento da ilegitimidade do capitalismo está presente em qualquer social-democracia –quando se empenha, por exemplo, em taxar fortemente as fontes de riqueza que não têm origem no trabalho.

Nossos direitistas poderiam se inspirar, aliás, nas furibundas críticas suscitadas pela adoção do Imposto de Renda como forma de tributo permanente, não faz tanto tempo assim.

Um imposto sobre a renda "fortemente progressivo" (assim como a educação pública gratuita e a abolição do trabalho infantil) constava entre os poucos pontos programáticos do radicalíssimo (na época) "Manifesto Comunista" de Marx e Engels, de 1848.

O problema está em outro lugar. Uma das grandes seduções do marxismo revolucionário estava no fato de que, além de criticar a legitimidade do capitalismo, também punha em xeque a questão de sua funcionalidade, se posso dizer assim.

Não só era impossível justificar a apropriação privada do trabalho de muitos como também o sistema estava condenado a não funcionar. As crises do capitalismo iriam agravar-se a ponto de paralisar toda a produção; à ideia de que o sistema era ilegítimo somava-se a de que era irracional e autodestrutivo.

DIVERGÊNCIAS

Nasce daí minha estranheza com relação ao livro de Ruy Fausto. Seria de esperar alguma análise (ainda que sumária) das condições reais da economia, da sociedade e da política antes de uma apresentação daquilo que a esquerda há de ser.

Do jeito que está, "Caminhos da Esquerda" se aproxima da mera expressão de preferências pessoais. Neototalitarismo? Não quero. Populismo? Nem pensar. Social-democracia? É pouco.

Seria preciso partir, entretanto, das contradições e das promessas de uma realidade determinada. Nenhuma proposta política nasce do vazio –nem da simples constatação de fracassos anteriores.

Concordando, até aqui, com Celso Rocha de Barros e Samuel Pessôa nas suas reservas ao anticapitalismo de Ruy Fausto, eu próprio me assustei, no lançamento do livro, quando me vi envolvido numa brusca divergência com o segundo –e temível– debatedor.

Fortíssimo nos números, e dando razão a seu comentário de que os esquerdistas precisam aprender matemática, Pessôa prova que o governo Fernando Henrique

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Cardoso agiu como autêntico social-democrata (tanto quanto Lula) no que se refere a políticas de redistribuição de renda. Dentro das circunstâncias, é claro –como todo bom social-democrata.

Dessa ótica, o governo de Fernando Henrique terá sido tão de esquerda, ou tão moderadamente de esquerda, quanto o de Lula.

Pareceu-me a opinião de alguém cujo gosto pela matemática se arrisca a ser excessivo. A dimensão simbólica, a atitude, o horizonte em que se insere uma ou outra medida de governo também contam.

Discutir o que é "ser de esquerda" e "ser de direita" exigiria outro artigo, é claro. Envolve atitudes e visões de mundo, para além de medidas concretas em políticas públicas.

Concentro-me aqui numa questão mais modesta, e não menos real. Por que um governo como o de Fernando Henrique, apesar de suas semelhanças com o de Lula, não "pareceu" tão de esquerda?

Os petistas também correram para a direita (e como!) para garantir a eleição de 2002. O processo não foi diverso daquele adotado pelo próprio Fernando Henrique em sua biografia política. Salta aos olhos, entretanto, quem se sentiu mais à vontade no papel.

DIREITA E ESQUERDA

A mensagem de FHC não estava na redenção dos excluídos, mas na superação da herança varguista. Foi o presidente da estabilidade econômica e das privatizações. Não digo, volto a lembrar, que isso seja necessariamente "de direita", nem que inflação e estatização sejam "de esquerda" –a meu ver, não.

Cito o que o próprio Fernando Henrique dizia, numa entrevista à Folha em 13/10/1996. Perguntavam-lhe: "De quem é o regime?".

Resposta: "Indiscutivelmente, o regime está rearticulando o sistema produtivo do Brasil. Portanto ele está dando possibilidade a que os setores mais avançados do capitalismo tenham prevalência. Seguramente ele não é um regime a serviço do capitalismo monopolista nem do capitalismo burocrático, mas daquele que é competitivo nas novas condições de produção".

Fernando Henrique continuava: "Mas ele não é só isso. Ele incorpora massas ao consumo. E, nesse sentido, ele é socialmente progressista –progressivo, progressista, como queira. (...) Mas também não vou dizer que ele seja dos excluídos, porque não tem condição de ser. Aspiraria a poder incorporar mais, mas não posso dizer que seja. (...) Temos que aumentar a dinâmica para incorporar o máximo".

O então presidente tinha, como sabemos, horror à demagogia e ao populismo. De Lula não se pode dizer o mesmo.

Gostando ou não dessa atitude, seu efeito político e simbólico foi outro. FHC se dirigia a um público diferente do de Lula e, acredito, via seu papel histórico de forma diversa.

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Fora do que dizem as estatísticas, o Bolsa Família e outras iniciativas de Lula surgiram não como uma "progressiva incorporação das massas ao consumo" (o Plano Real fez isso), mas como uma elevação de muitos ninguéns a um status mínimo de cidadania.

Fernando Henrique poderia ter dado o dobro do que Lula deu, mas os beneficiários de seus programas não se reconheceriam em alguém que se diz, em primeiro lugar, representante de quem "é competitivo nas novas condições de produção".

Competitividade e modernização conflitam, em alguma medida, com a extensão dos direitos trabalhistas e o atendimento a demandas de sindicatos. São dois lados da moeda; nenhum pode existir isoladamente. Mas também não me parece correto dizer que se trate tudo de um lado só.

Os moderados sempre se confundem perto do centro; a vida política, entretanto, os afasta e os legitima conforme valores diferentes. E valores são uma coisa, números são outra.

MARCELO COELHO, 58, é colunista da Folha

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Esquerda precisa desapegar de crenças e fazer avaliação honesta de anos FHCZé Carlos Barretta/Folhapress

Samuel Pessôa, Celso Rocha de Barros, Marcelo Coelho e Ruy Fausto, em debate sobre livro

SAMUEL PESSÔA

FSP, 14/07/2017 12h21

RESUMO Autor responde a ensaio em que Marcelo Coelho sustenta que a diferença entre as gestões Lula e FHC foi o peso que cada um conferiu à distribuição de renda -uma questão de valores ("Ilustríssima", 9/7). Para Pessôa, acertos do petista emulam os do tucano, e erros derivam de mudança de rota, com rendição ao populismo.

*

Na segunda-feira, 3 de julho, eu e Celso Rocha de Barros participamos de debate com Ruy Fausto, que lançava o livro "Caminhos da Esquerda" [Companhia das Letras, 216 págs., R$ 39,90, R$ 27,90 em e-book]. Marcelo Coelho foi o mediador do encontro.

Minha tese, desde meu debate com Fausto nas páginas da revista "piauí", nos meses de outubro, dezembro, fevereiro e março, é a seguinte: o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) foi social-democrata -em qualquer lugar do mundo, quem aumenta a carga tributária e o gasto social será caracterizado dessa forma- e não há, no desenho das políticas públicas, diferença entre FHC e Lula 1 (2003-2006), período que chamei de "Malocci" (combinação de Pedro Malan e Antonio Palocci, ministros da Fazenda dessa fase).

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Coelho apresentou resumo de nosso debate na "Ilustríssima" de 9 de julho. Concordando com meus números, ele indaga: "Por que um governo como o de Fernando Henrique, apesar de suas semelhanças com Lula, não 'pareceu' tão de esquerda?".

Um governo é mais do que somente números; há que olhar os valores. Assim Coelho responde à pergunta que ele mesmo fez.

Eu, com os números, as estatísticas e a matemática, não teria me apercebido dos valores. Coelho conclui: "Os moderados sempre se confundem perto do centro; a vida política, entretanto, os afasta e os legitima conforme valores diferentes. E valores são uma coisa, números são outra".

Para documentar o ponto de vista de que valores contam, Coelho lembra entrevista de Fernando Henrique em outubro de 1996. Há duas partes no texto citado. Na primeira, o tucano expõe o desejo de superar a herança varguista. Na segunda, ele reconhece as limitações práticas e orçamentárias de incluir rapidamente toda a população brasileira no mercado de consumo.

É interessante notar que, nesses trechos, aparecem duas patologias do petismo que ajudaram a nos trazer ao quadro atual, com a pior perda de PIB per capita dos últimos 120 anos no Brasil e mais de 14 milhões de desempregados.A primeira dessas patologias foi reviver o intervencionismo, clara herança varguista, e a segunda, tratar o Orçamento como fonte ilimitada de recursos, atitude que produziu um desequilíbrio profundo nas contas públicas.

De acordo com Coelho, FHC, embora tenha feito um governo social-democrata "stricto sensu", foi percebido como de direita ou neoliberal por causa de seu discurso ou da forma como os próprios tucanos se enxergavam ou se apresentavam para a sociedade.

Não está claro o que Coelho entende por valores. Parece-me sugerir que, para o grupo político petista, o tema da redistribuição de renda tem maior prioridade (maior valor) do que para o grupo político tucano. De alguma forma, essa característica teria sido transmitida à população ou por ela percebida, mesmo que inconscientemente.

ENGANOS

Discordo totalmente dessa resposta. Ela é elegante e sofisticada, mas equivocada; foi elaborada com frases bem construídas, mas não há evidência que a sustente. Muito pelo contrário. A constatação de que não há diferença na formulação das políticas públicas entre os governos sugere o oposto. Ambos os grupos eram igualmente avessos à desigualdade. Diante das mesmas circunstâncias de FHC, Lula não faria melhor.Há, no entanto, diversas respostas à interessante questão de Coelho: por que FHC é visto como um governante de direita, quando de fato foi social-democrata?

Um primeiro motivo encontra-se na própria citação de Coelho. Como ele nota, Fernando Henrique não era populista e compartilhava com a população as limitações e as possibilidades do Estado.

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Essa franqueza deve ter cobrado um preço de popularidade, especialmente num país em que é tão forte a atuação de uma esquerda populista, sempre disposta a demonizar plataformas mais centristas quando isso lhe convém.

O segundo motivo é natural e absolutamente esperado. O PT era -e, se não tivesse se perdido no desastrado experimento nacional-desenvolvimentista, ainda seria- o verdadeiro partido social-democrata brasileiro. Trata-se de agremiação com sólidas raízes nos movimentos sociais e sindicais. Nada mais normal que seja vista como uma legenda disposta a batalhar por políticas de esquerda.

Além disso, a esquerda e o Partido dos Trabalhadores demonizaram o governo FHC. Essa campanha ajudou a colar na administração tucana o signo da direita, quando de fato era social-democrata.

Mas, perguntaria Coelho para mim, por que motivo a demonização foi eficaz? Por que colou?

Duas razões explicam por que a pecha de governo de direita colou.

Primeiro, as circunstâncias históricas concretas com que cada uma das administrações se defrontou. Lula pôde colher os frutos de anos de arrumação de casa -inclusive da política econômica estritamente ortodoxa que praticou no primeiro mandato- e teve a fortuna do boom de commodities. Foi o governo social-democrata da época das vacas gordas.

Segundo, a capacidade ou não da sociedade de aprender com as experiências do passado.

DECEPÇÕES

O longo processo de redemocratização brasileira desde os anos 1980 nos frustrou repetidamente.

As frustrações estavam associadas a expectativas excessivamente otimistas quanto à capacidade de o novo governo solucionar problemas que estavam pendentes havia muito tempo.

O otimismo se justificava pela interpretação de que o governo (ou o regime) anterior era incompetente e pela noção, comum na América Latina e no Brasil, de que a solução da maior parte dos problemas depende de vontade política.

De acordo com essa visão, o espaço para que a política interfira nas restrições econômicas é amplo. A troca dos agentes geraria ganho significativo de renda, fruto da maior competência e da melhora na alocação da renda,que viria como consequência da mudança política.

As esperanças eram grandes no início dos anos Fernando Henrique Cardoso. Logo nos frustramos. A percepção que todos tínhamos era a de que o governo fazia menos do que o possível e concedia ao atraso mais do que o necessário.

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Essa percepção era compartilhada por todos, até por operadores de dentro do governo. Quem não se lembra de Sérgio Motta dizendo para FHC não se apequenar?

A frustração e as críticas ao governo FHC resultavam não só das grandes expectativas que não poderia satisfazer mas também do desconhecimento da sociedade quanto às restrições políticas e econômicas de um país com a nossa complexidade.

Nesse sentido, é óbvio que a experiência posterior, empregando expressão popular entre psicanalistas, ressignifica o governo FHC -ou deveria ressignificá-lo.

A constatação de que o melhor período de Lula ocorreu quando ele essencialmente reproduziu as políticas da administração anterior, tanto no plano econômico quanto nos contornos gerais da gestão política, implica -ou deveria implicar- a reavaliação do período de Fernando Henrique, bem como o reconhecimento da necessidade de lidar com as restrições.

Aprender com a experiência é exercício ainda mais natural e necessário em uma democracia muito recente. Tal criança, estamos tateando e aprendendo com a vivência.

Sociedades incapazes de processar suas experiências ficam amarradas ao passado e não avançam. Repetem compulsivamente os mesmos erros. Tome-se a Argentina como maior exemplo disso.

ARMADILHA

Essa reavaliação, no entanto, demanda elevada honestidade intelectual e, muitas vezes, é emocionalmente custosa. Precisamos nos desapegar de nossas crenças e visões de mundo e ter abertura para repensar. A esquerda tradicional não se mostra muito afeita a tais esforços. Insistir na cantilena que associa o governo FHC ao neoliberalismo impõe custos muito menores.

Daí vem a armadilha que a esquerda brasileira armou para si. Como demonizou a administração de Fernando Henrique e não consegue ressignificar esse período, não tem opção senão tentar construir novos modelos.A experiência, entretanto, tem demonstrado que esses novos modelos são irrealizáveis e, a médio prazo, resultam, do ponto de vista do desenvolvimento social, no contrário de seu intento. Vimos isso com Dilma Rousseff (PT), com Cristina Kirchner e com o chavismo.

Essa dificuldade de ressignificação é muito bem documentada em inúmeros intelectuais e artistas que não conseguem se desapegar de seus heróis e mitos de juventude, como Fidel Castro e a ditadura cubana, e no surpreendente apoio ao chavismo por parte expressiva da dita esquerda brasileira.

Os jovens dos anos 1960 são os idosos da segunda década do século 21 sequestrados por um patético complexo de Peter Pan.

Não me parece, portanto, que esteja nos valores o ponto de distinção entre os dois grupos políticos. Apesar da maior proximidade cultural e afetiva do petismo com boa parcela da população, e a despeito da carga simbólica da biografia de Lula, a sua

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prática, nos bons momentos, em nada diferiu da de FHC: ambos garantiram a estabilidade econômica em meio a políticas eficazes de transferência de renda e cuidado com os mais pobres.

A diferença relevante ocorreu nos momentos de dificuldade. Fernando Henrique Cardoso reconheceu os erros e os limites da gestão pública e optou pelo ajuste. Lula e o petismo, quando da crise externa, optaram pelo populismo e pela expansão dos gastos -e a grave crise econômica que atravessamos decorre dessa escolha.

O populismo pode seduzir alguns nos momentos de bonança, quando se resume ao discurso falastrão: promete muito e se diz responsável por tudo de bom que acontece. O risco do populismo está nos períodos de dificuldade.

O falastrão não aceita a existência de restrições, não aceita que ajustes têm de ser feitos e, embriagado pelo sucesso anterior, apela ao voluntarismo para superar os problemas.

A América Latina de Perón-Kirchner, Chávez e Lula 2-Dilma conhece bem as suas lastimáveis consequências.

SAMUEL PESSÔA, 54, é físico com doutorado em economia, ambos pela USP. É pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, sócio da consultoria Reliance e colunista da Folha.