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    Democracia e iDentiDaDes poltico- partiDrias

    Em artigo publicado em 2008, Alessandro Pizzorno discute pro-blemas relacionados representao poltica, retomando temas a que

    se dedica h muito1. Ressaltando o ato de que, nas condies atuais deoperao da democracia, os eleitores so cada vez mais destitudos deinfuncia real sobre as polticas pblicas, restrita amplamente a gru-pos de presso, Pizzorno examina o papel de lideranas, movimentosou partidos em termos do contraste entre os bens de curto prazo e osde longo prazo que os cidados podem esperar do processo poltico.Esse papel descrito em termos de oerta de esperana: em vez de umgoverno representativo capaz de colocar seus eleitores em condiesde avaliar as vantagens ou as desvantagens de uma ou outra polticapblica, teramos sistemas de partidos e unidades coletivas de tipo

    variado (tnicas, religiosas) em que a autoridade da classe poltica

    resumo

    O artigo analisa o processo de institucionalizao partidria

    no Brasil ps-redemocratizao. A ormao do Partido dos Trabalhadores, e seu repetido enrentamento eleitoral com

    o PSDB, aponta para um processo em andamento mas ainda incompleto: a criao, em torno dos dois partidos, de

    identiicaes poltico-partidrias estveis que podem eventualmente redundar num sistema partidrio simpliicado e

    consolidado, com, entre outras coisas, a neutralizao do xito at aqui obtido pela postura excessivamente clientelista

    e pragmtica que orienta o ragmentrio enraizamento regional do PMDB.PaLaVraS-cHaVE: Identidades poltico-partidrias; desigualdade;

    Partido dos Trabalhadores; Partido da Social-Democracia Brasileira.

    abstract

    The article discusses the process o institutionalization o

    political parties in Brazil in the post-redemocratization period. The advent o the Workers Party (PT), and its electoral

    disputes with the Brazilian Social Democracy Party (PSDB) point to an ongoing yet unaccomplished process: the emer-

    gence, in the orbit o both parties, o stable political-partidary identiications that could lead to a simpliied and conso-

    lidated party system and the neutralization o the success o the excessively clientelistic and pragmatic orientation that

    characterizes Brazilian Democratic Movement Partys (PMDB) eeble regional roots.KEywOrDS: Political-partidary identities; inequality; Workers Party;

    Brazilian Social Democracy Party.

    IdentIdade poltIca, desIgualdadee partIdos brasIleIros

    [1] Pizzorno, A. Su democrazia esfera pubblica immaginaria.Sociolo-

    gica, 2008, n 3, pp. 1-22.

    Fbio Wanderley Reis

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    estaria undada na combinao da esperana que oerece quanto a fnsde longo prazo em larga medida, segundo Pizzorno, imaginrios:fns nacionais, de classe, da humanidade, dos povos do mundo com

    a capacidade de transormar essa esperana em consenso para as po-lticas de curto prazo. a relao entre a classe poltica e a populao,afrma Pizzorno, que o Estado deve empenhar-se em tornar virtuosa;e somente a presena de doutrinas em que se expressem fns de lon-go prazo divergentes (o aspecto de divergncia salientado) pode darsentido a uma participao na vida poltica que no seja meramenteprofssional ou clientelstica, caractersticas estas associadas bus-ca de objetivos privados pela classe poltica e idia de uma sociedadede caroneiros ou aproveitadores.

    Essa perspectiva se associa, no exame de problemas da democracia

    e da poltica em geral, com a nase na identidade. Avesso a recentesconcepes da democracia de economistas que tendem a equiparara dinmica democrtica do mercado, Pizzorno salienta as questesde identidade como as que seriam distintivas da poltica. Mas as so-ciedades que Pizzorno tem mais diretamente diante dos olhos sosobretudo sociedades de caractersticas social-democrticas, ruto daafrmao de identidades reeridas em ampla medida a interesses ma-teriais e questo social, e os fns imaginrios de longo prazo a quePizzorno se reere incluem com destaque os relativos a classes sociais.

    A abordagem de Pizzorno coloca em oco alguns dos temas que

    tm sido recorrentemente tomados a propsito dos partidos e de seudesenvolvimento. De um lado, temos o tradicional recurso idia deideologia e caracterstica menos ou mais ideolgica dos partidos,elaborada classicamente na distino de Maurice Duverger entrepartidos de quadros e partidos de massas, estes ltimos corres-pondendo em particular aos partidos socialistas de origem extraparla-mentar baseados na militncia contnua de membros fliados. Vistospor Duverger como os partidos do uturo, os partidos de massas ide-olgicos ornecem a reerncia latente de um modelo geral de polticaideolgica que segue prevalecendo amplamente, no Brasil como em

    outros pases, e no qual se supe que partidos e eleitores se distribuamcom clareza ao longo de um eixo esquerda-direita. Em contraposio,revises j no to recentes tm apontado a tendncia, que resultariaatalmente do mero envolvimento no jogo eleitoral e do imperativode diluir a mensagem para conquistar maiorias, de que os partidosse transormem em partidos pega-tudo (catch-all parties), modif-cando de maneira mais ou menos acelerada suas relaes tanto comas bases quanto com o prprio Estado (eventualmente dandoorigem ao que alguns chamaram partidos-cartel, em que o acessos benesses do Estado acaba compartilhado em algum grau entre os

    diversos partidos). De todo modo, tal evoluo acabaria por ensejar a

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    prevalncia de um pragmatismo afm aos partidos de quadros, que searia acompanhar, em termos de psicologia poltica, de um clima decultura cvica em que a adeso generalizada aos valores comuns da

    coletividade abrangente (nacional) e a identifcao com ela permiti-riam que arreecessem os antagonismos polticos e, em conseqncia,o estmulo ao envolvimento com a poltica.

    A esse respeito, o interesse da perspectiva trazida por Pizzornoconsiste em que, em vez de identifcaes divergentes ou antagnicasse contraporem a composies pragmticas, recupera-se a complexi-dade sempre presente no jogo poltico de interesses que se agregame hostilizam. Por imaginrios que sejam os fns de longo prazopropostos, eles so eetivos em produzir identifcao e identidadespoltico-partidrias. E mesmo se estas se mostram instrumentais para

    a produo de consensos pragmticos quanto ao curto prazo, respal-dando composies protagonizadas pelos partidos, o componente deantagonismo contido na identifcao partidria e na mobilizao emtorno de fns ambiciosos tambm condio para que a relao entrea classe poltica e a populao possa adquirir o carter virtuoso men-cionado, em vez de acabar substituda por um aguado civismo nega-tivamente marcado por profssionalismo e clientelismo polticos.

    Por outro lado, a nase em questes de identidade, tomada doponto de vista da experincia das sociedades social-democrticas ede problemas de estratifcao social, permite destacar algo especial.

    Genericamente, identidade tem a ver com relaes de igualdade ediferena, que dizem respeito diversidade de etnias, culturas e na-cionalidades, em sentido amplo, assim como tem a ver com o casoespecfco de relaes hierrquicas entre classes sociais ou catego-rias sociais estratifcadas de qualquer tipo que correspondemantes a relaes de igualdade e desigualdade. Em outras palavras, a re-lao igual-desigual um caso particular da relao igual-dierente.Contudo, so as relaes de igualdade e desigualdade, ou de podersocial desigual, que se revelam crucialmente relevantes do ponto de

    vista do tema geral da democracia, e as dierenas tnicas ou cultu-

    rais s interessam, deste ponto de vista, na medida em que tendema associar-se com domnio e subordinao.

    Diferenas, DesigualDaDes e institucionalizao poltica no brasil

    A implantao e o desenvolvimento do Estado nacional moder-no envolveu com reqncia problemas de assimilao, em que setratava justamente de dar soluo ao problema da identidade na-cional, com a neutralizao da importncia de eventuais dierenastnicas ou culturais, criando-se assim o substrato sociopsicolgico

    apropriado afrmao da aparelhagem burocrtica do Estado sobre

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    [2] Cambridge /Nova York, Cam-

    bridge University Press, 1995.

    as coletividades nacionais envolvidas. Na verdade, na Europa (e nos l) tais problemas seguem bem vivos at hoje: com a derrocada docomunismo, a ragmentao ocorrida na Europa oriental reeditou e

    intensifcou, s vezes de orma trgica, o processo de balcanizao,enquanto os prprios avanos integradores da Unio Europia (e daglobalizao, mais amplamente) avoreceram, em vrios pases da Eu-ropa ocidental, movimentos de autonomia regional que envolviam ouenvolvem dierenas tnico-lingsticas e especifcidades culturais,ou nacionalidades menos ou mais reais.

    Mas a questo social, assentada na dierena como desigualda-de, que marca a dinmica da implantao e do desenvolvimentoda democracia. Essa proposio verdadeira mesmo se recua-mos do mundo moderno para a Antiguidade clssica. A experincia

    da democracia ateniense teve seu trao distintivo, e o duradouro ocode conito que terminou por compromet-la, na fgura do cidado-campons, na qual Ellen Meiksins Wood (nos ensaios deDemocracyagainst capitalism2) sintetiza a idia de que os produtores ou traba-lhadores manuais (camponeses, sapateiros, erreiros) podiam sergovernantes, podiam ser cidados e como cidados participar dogoverno da comunidade idia esta que, como elabora Wood, veioa ser o grande cavalo de batalha nas discusses sobre a democraciaateniense nas obras dos pensadores clssicos da prpria Atenas, queem geral se opunham ortemente a ela.

    no mundo capitalista do ps-Renascimento, contudo, que aquesto social adquire relevncia defnitiva. A afrmao liberal daigualdade perante a lei e dos direitos civis radicaliza-se na reivindi-cao dos direitos poltico-eleitorais, que se desdobra na busca daigualdade de maior alcance, da redistribuio e dos direitos sociais.Em vrios pases, essa busca, apesar de trazer a questo social parao cerne das disputas eleitorais, conormou as experincias social-de-mocrticas em que arreeceu o radicalismo socialista dos casos maisexemplares de partidos ideolgicos de massas.

    Mas as vicissitudes das lutas sociais tm tambm um resultado de

    eies distintas, que vem a ser de grande importncia para a dinmicapoltica e partidria no Brasil: a conrontao em nvel planetrio entrecapitalismo e socialismo na Guerra Fria, que marcou longamente asegunda metade do sculo XX. Um aspecto saliente do quadro assimcriado o de que os enrentamentos domsticos que ocorrem em cadapas, especialmente na perieria do sistema mundial, se aguam ao setransormarem em episdios do enrentamento internacional entre osdois campos. No Brasil, isso tem o eeito de intensifcar algo que vinhade longe: o protagonismo poltico dos militares (o pretorianismo,na expresso de alguns) como parte crucial da debilidade do enqua-

    dramento institucional do jogo poltico. A implantao, em 1964, da

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    [3] Finley, M. I.Ancient sla very and

    modern ideology. Nova York: Viking

    Press, 1980.

    [4] Tenho evocado a respeito um

    editorial dO Estado de So Paulo de 1de janeiro de 1901, republicado pelo

    jornal em 31 de dezembro de 1999, a

    propsito da virada do sculo XX para

    o XXI, e cujo interesse consiste na

    candura com que transparecem o eu-

    rocentrismo e o racismo da elite bra-

    sileira do imediato ps-escravismo. A

    imagem do Brasil que o editorial dei-

    xa entrever a de um pas europeu que

    acontecia ter recorrido s convenin-

    cias da mo-de-obra escrava africa-

    na e agora a via transformada num

    problema.

    ditadura militar que viria a durar 21 anos o coroamento desse proces-so. Ela acontece num momento em que a grande desigualdade herdadade nossa longa experincia escravista se combina tumultuadamente

    com a transormao econmico-social, o crescimento das cidades edas massas populares urbanas e a enorme expanso do eleitorado.Os elementos de transormao e novidade nesse quadro tm, na-

    turalmente, grande importncia na explicao das turbulncias queculminam em 1964. Mas o entendimento mais adequado da complexaatualidade poltica brasileira e das defcincias institucionais que per-manecem, mesmo superada a ditadura, exige que se ressalte o papelcumprido pelo que h de viscoso e resiliente no legado de nossa his-tria mais remota.

    O ponto crucial so os eeitos da multissecular experincia escra-

    vista recm mencionada, da qual, naturalmente, todos temos conheci-mento, mas de cujo impacto proundo reqentemente no tomamosconscincia adequada. Ela singulariza o Brasil de modo especial: nos nos inclumos entre os poucos casos, em toda a histria, de socieda-des propriamente escravagistas (que Finley3 caracteriza pelo recursoem grande escala ao trabalho escravo tanto no campo como nas cida-des e que, na listagem de Ellen M. Wood, so a Atenas clssica, a Itliaromana, as ilhas das ndias Ocidentais, o sul dos Estados Unidos e oBrasil), mas somos tambm o nico pas moderno de dimenses sig-nifcativas a contar com um legado escravista macio nos Estados

    Unidos, afnal, a escravido perdeu a guerra.A conseqncia, que se pode resumir na singular e persistente de-

    sigualdade brasileira, que as carncias materiais em que a longa es-cravido se traduz para grande parcela dos estratos populares do pastm contrapartida decisiva no plano da psicologia coletiva e de suasprojees polticas. Um aspecto merece destaque: na sociedade de cas-tas que a escravido construiu (demarcadas, ademais, por traos si-cos de alta visibilidade), a populao de origem aricana no chegavasequer, durante muito tempo, a ser percebida como azendo realmenteparte do povo brasileiro4, o que certamente a explicao ltima de

    nossos investimentos insufcientes em educao e da precariedade dosistema educacional brasileiro at hoje (educar essa gente?). Essadefcincia um correlato importante do quadro psicolgico produ-zido, em que o longo jogo poltico oligrquico e seus mecanismosclientelsticos combinavam a perspectiva aristocratizante da elite coma passividade e o conormismo prprios, na sociedade de castas, dascamadas menos avorecidas. Aos olhos destas, a desigualdade tendea aparecer como parte da ordem natural das coisas e a no ser vividacomo problema eetivo: no se maniestasubjetivamente de orma a darlugar ao sentimento de injustia e conseqente disposio afrmati-

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    Naturalmente, as transormaes estrutural-ecolgicas e comu-nicacionais das dcadas recentes no poderiam deixar de impactartambm o plano da psicologia coletiva, gerando mecanismos de com-

    parao e rustrao h muito estudados pela sociologia como ontedo sentimento de injustia e ator de instabilidade e dando razo,em termos psicolgicos e no apenas objetivos, observao de Fer-nando Henrique Cardoso, quando presidente da Repblica, de queo Brasil no seria mais um pas subdesenvolvido, e sim um pas in-justo. Mas, apesar da incorporao eleitoral que acaba por mostrar-seinelutvel nas condies do diuso apoio convencional democraciana atualidade mundial, as defcincias de todo tipo perpetuadas peloresistente osso social brasileiro condicionam de modo relevante oseeitos do processo geral na esera poltica e partidria.

    Assim, parte importante da insatisao popular, em vez de encon-trar canalizao poltico-institucional apropriada, pode servir sim-plesmente de combustvel na intensifcao acentuada da violnciae da criminalidade comum. Mesmo nas suas maniestaes poltico-partidrias, contudo, evidente que o idealizado modelo de polticaideolgica difcilmente poderia ser visto como ajustando-se, em par-ticular, aos mecanismos populistas que h muito operam no processopoltico do pas.

    pmDb, psDb e pt

    De todo modo, as defcincias de nosso substrato social desigualse traduzem tambm em claras defcincias no processo de construopartidria, quando apreciado do ponto de vista do modelo de polticaideolgica. certo, no deixamos de encontrar a percepo, por partedo establishment, de ameaas prprias da poltica ideolgica a surgiremno plano da dinmica partidria, como ocorreu, num quadro de ra-dicalizao que se intensifcava, com o crescimento gradual do apoioeleitoral ao PTB de Getlio Vargas durante o perodo de 1945 a 1964. Aditadura militar de 1964 tratou de agir contra as ameaas percebidas,

    especialmente com a dissoluo dos partidos daquele perodo e suasubstituio pelo bipartidarismo imposto de Arena e MDB. A inicia-tiva, contudo, revelou-se um erro de clculo. Sua conseqncia oi quea simplifcao das opes eleitorais se ajustasse bem aos simplismosda viso poltica das parcelas populares majoritrias do eleitorado ca-racterstica do populismo e, ao contrrio do esperado pelos men-tores do regime militar, avorecesse o partido de oposio, o MDB, apartir do momento em que as vicissitudes do regime lhe permitiramtransmitir, em 1974, uma mensagem afrmativa de eio popular.

    As manobras seguintes do regime, como se sabe, ensejaram novas

    mudanas do quadro partidrio, em que se esacelou o singular recur-

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    so eleitoral que o MDB chegou a representar. Tais mudanas atingiramseu pice j bem mais tarde, em 1988, quando se dividiu o PMDB,herdeiro direto do MDB, com a criao do PSDB. Mas o quadro geral

    alterado permitiu o que oi, sem dvida, a grande novidade na histriapartidria brasileira, o aparecimento do PT. A novidade consistiu nacombinao indita que o partido conseguiu realizar de dois traos: deum lado, como conseqncia da gradual afrmao da orte lideranasindical de Lula e do poder catalisador que veio a ter junto a outros se-tores comprometidos com idias progressistas, nos movimentos so-ciais e na Igreja, o partido veio a representar singular promessa de atu-ao orientada por princpios ticos e ideolgicos (em particular certocompromisso redistributivo), capaz de conjugar militncia aguerridacom disciplina partidria; de outro lado, o simbolismo popular diuso

    ligado fgura de Lula trazia um elemento propcio insero bem-sucedida no jogo eleitoral, com seu inevitvel componente populistanas condies gerais do Brasil.

    As modifcaes dramticas no cenrio internacional acarretadaspela derrocada mundial do socialismo tornaram possvel que a atraopessoal exercida por Lula e a militncia aguerrida do PT viessem a en-sejar um experimento impensvel no quadro anterior de Guerra Fria:a chegada presidncia da Repblica, em 2002, do lder operrio deum partido de esquerda, de programa socializante e retrica radical.

    No obstante os temores inicialmente suscitados no establishment,

    que cercaram a eleio daquele ano da ameaa de crise catastrfca, esseevento acabou por representar uma oportunidade singular de apren-dizado geral e um teste decisivo para a democracia brasileira, permi-tindo seu acesso a um novo patamar institucional. Parte importantedo aprendizado realizado oi o de moderao e equilbrio por partede Lula e do PT, substituindo as propostas socialistas originais porpolticas sociais de orientao social-democrtica conjugadas com acontinuidade de polticas econmico-fnanceiras austeras. As origensideolgicas do PT levaram, esquerda, no s a cobranas baseadas na

    viso equivocada de que, com a moderao ocorrida, no teramos tido

    um teste autntico de nossa democracia (que dependeria, nessa tica,da aposta obviamente precria de que a democracia viesse a ser o en-quadramento institucional de um governo propriamente revolucio-nrio e sobrevivesse a ele...); tais origens esto tambm claramentesubjacentes arrogncia ideolgica que se transvestiu no tosco rea-lismo da compra de apoio parlamentar desvendado na grande crise de2005, na qual a prpria imagem de apego a princpios e compromissotico do partido se viu comprometida.

    As difculdades da resultantes colocaram em xeque o processoindito de construo institucional na aixa partidria que a mescla

    petista parecia envolver. Seguiu-se o aastamento, em grau importan-

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    te, entre o partido como tal, submetido a cises e deeces, e a lideran-a pessoal de Lula, que, tendo tido certamente seu pior momento nacrise de 2005, terminou por reeleger-se com grande votao para um

    segundo mandato e por alcanar altssimos nveis de popularidade naesteira dos xitos da poltica social e econmica. Tais xitos culminammesmo na sbita elevao dostatus do pas na cena mundial, impul-sionada pela dinmica econmica propcia j de h algum tempo, massem dvida incorporando a imagem de Lula como ator coadjuvante.

    Democracia e reDistribuio: brasil e amrica latina

    Dois aspectos podem ser destacados como especialmente signi-fcativos nessa situao. O primeiro o mencionado ortalecimento

    institucional da democracia brasileira. Difcilmente se poderia exage-rar, mesmo pondo de lado os xitos indicados, a importncia de umapresidncia PT/Lula que chega ao fm do segundo mandato num qua-dro de normalidade institucional. Naturalmente, dado o nosso longopretorianismo e o protagonismo h muito exercido pelas oras arma-das, a questo decisiva aqui a da domesticao institucional dosmilitares e de at que ponto ela se ter cumprido cabalmente. Acaba-mos de ter, com a retomada da discusso em torno da Lei de Anistia de1979 a propsito do III Programa Nacional de Direitos Humanos e oempenho do governo em aplacar a insatisao exibida por chees mi-

    litares, clara indicao de que o assunto no se encontra inteiramenteresolvido. Contudo, mesmo se o trato com os militares persiste comoalgo delicado para o governo em circunstncias em que a memria dospesados custos da longa ditadura de 1964 ainda est bem viva, nadaparece justifcar a idia de que tenhamos uma crise militar eetiva, outemores anlogos aos que marcavam com reqncia o perodo preto-riano de nossa histria recente: no h como cogitar a srio de golpemilitar, e a defnitiva insero democrtica das oras armadas no qua-dro poltico-institucional brasileiro, com a superao do complexode sublevao que elas compartilhavam com outros setores de nossas

    elites, parece no ser seno questo de tempo.Seja como or, temos aqui algo que subsiste como relevante nos

    embates da atual cena poltica brasileira, dizendo respeito a como lidarcom a memria da ditadura e, em particular, com o tema da anistia edos esoros de certos setores para obter a reviso judicial da lei corres-pondente e, assim, possibilitar a punio dos envolvidos nos crimesda represso, especialmente a tortura. A questo principal que o pro-blema encerra o equilbrio a ser alcanado entre o apego a um realis-mo necessrio superao dos conitos que produziram a ditadura ese aguaram com ela, de um lado, e, de outro, o empenho normativo de

    azer justia. Como elaborado por alguns, especialmente Paulo Bros-

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    sard em artigo de jornal que circulou no incio de 2010 na internet(Anistia irreversvel), o objetivo da anistia, em vez de azer justia,oi o de pacifcar o pas, criando condies propcias implantao e

    eventual consolidao da democracia. Essa perspectiva convergentecom anlises de cientistas sociais sobre o processo de transio de-mocracia na Amrica Latina e em outras partes, que recomendavam oreconhecimento realista das assimetrias de poder e destacavam, emespecial, a necessidade de acomodar os interesses da corporao mili-tar como orma de tornar a transio eetivamente possvel.

    No debate corrente sobre a Lei de Anistia, porm, esse nimo rea-lista tem sido substitudo, nos setores de opinio de esquerda, peloproblemtico apelo contraposio entre crime poltico e crimecomum, em que a idia de crime poltico acaba por legitimar as aes

    daqueles que, por terem na cabea certa idia que presumem permi-tir organizar melhor o Estado e a sociedade, se sentem autorizados arecorrer violncia. Apesar da tendncia da imprensa a tratar s vezesas vtimas da ditadura como opositores do regime que pegaram emarmas, claro que a ditadura, com seus crimes inequvocos e hedion-dos, se conrontou tambm com uma cultura de violncia que haviatempos vinha se diundindo, marcada pela romntica aceitao da

    violncia em nome de objetivos polticos supostamente nobres (umaltima violncia para por fm violncia sistmica...), sob a inun-cia de idias marxistas ou por motivos de inspirao at diretamente

    religiosa. Mas pode-se ver tambm o realismo a operar em surdina,por assim dizer, mesmo na posio ansiosa por azer justia. Pois adisposio de caa aos torturadores que subsiste az vista grossa parao ato de que eles eram, afnal, pau mandado dos chees maiores doregime ditatorial, que no se procurou levar ao banco dos rus. O queacaba convergindo com a hipocrisia contida na amosa maniestaoem que Pedro Aleixo, opondo-se ao Ato Institucional n 5 mas evi-tando enrentar-se com os chees militares, declarava que o motivo depreocupao eram as arbitrariedades que viriam no do presidente daRepblica, mas do guarda da esquina.

    Como quer que seja, no obstante as reservas que talvez se justi-fquem quanto timidez da justia brasileira sob a ditadura, cabe vercom bons olhos, em perspectiva mais ampla sobre a dinmica polticado pas, as decises do Judicirio que tm preservado a simetria pacif-cadora da Lei de Anistia ainda que cumpra reconhecer, sem dvida,que os atos do sombrio perodo ditatorial de nossa histria recentedevem ser desvendados e trazidos ao conhecimento de todos.

    Quanto ao segundo aspecto signifcativo acima anunciado comrespeito ao panorama poltico atual, ele se reere nova orma adqui-rida pela presena da questo social no processo poltico-eleitoral

    do Brasil. Naturalmente, a questo social se az presente h tempos,

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    desde que o osso social herdado da escravido comeou a combinar-se com a mudana social, a concentrao da populao nas cidades eo grande crescimento do eleitorado. Durante muito tempo, porm, o

    resultado dessas mudanas em termos poltico-eleitorais oi a ormaclssica de populismo, caracterizada, como nas anlises de Torcuatodi Tella, pelo apelo ao povo por parte de lideranas de elite e conten-do claro componente raudulento, que se integrava como contrapontono quadro geral de instituies rgeis e pretorianismo.

    Agora, talvez possvel continuar a alar de populismo, ou vero caso de Lula como parte de uma nova onda populista na AmricaLatina, que alguns identifcam em casos como o dos Kirchner, na Ar-gentina, e os de Hugo Chvez (Venezuela), Evo Morales (Bolvia) eRaael Correa (Equador). Mas problemtico separar aquilo que jus-

    tifque a carga negativa da idia de populismo, de um lado, e, de outro,a simples operao da democracia num contexto de desigualdade ede massas material e educacionalmente carentes. O que temos visto,no Brasil e em pases como Bolvia, Venezuela e Equador, marcadosestes ltimos por turbulncias recentes, tende a corroborar algo quea sociologia poltica vem salientando de novo com ora: se a demo-cracia chega a operar de modo a incorporar as maiorias populacionais,ela se torna atalmente redistributiva. Os dados mostram redistribui-o eetiva nos pases em questo, o Brasil includo (e surpreenden-temente, como tm revelado as pesquisas do Latinobarmetro, com

    apoio crescente democracia nos trs pases vizinhos, no obstanteas turbulncias). Em nosso caso, de todo modo, o lulismo, combinan-do simbolismo popular e empenho redistributivo, resultou em algoindito nas disputas presidenciais, tendendo a caracterizar o processoeleitoral de maneira mais geral: a intensa correlao, que transpareceucom nitidez especial na eleio de 2006, entre o apoio eleitoral a umcandidato ou outro e a posio socioeconmica dos eleitores comas projees regionais dessa correlao. No casual, naturalmente,que o tema da poltica social se tenha imposto de orma saliente nacampanha daquele ano, e prometa continuar a ser um tema de decisiva

    relevncia nas disputas uturas.

    um nico centro social-Democrata?

    As coisas so incertas, porm, quanto ao aspecto da eventual insti-tucionalizao partidria. A alternativa realisticamente concebvel aomodelo idealizado de poltica ideolgica que tem predominado en-tre ns a de um sistema partidrio em que a percepo desinormadae diusa dos interesses em jogo permita, mesmo se inuenciada poratores personalistas e esprios do ponto de vista daquele modelo,

    a identifcao estvel com alguns partidos, podendo assim servir de

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    suporte a polticas orientadas por perspectiva de longo prazo. Pes-quisas sobre identifcao partidria no Brasil tm mostrado que elano ocorre seno numa minoria do eleitorado (cerca de 35% dele em

    2002), incluindo proporo aprecivel da minoria sofsticada e politi-camente atenta. Isso pode ser comparado, por exemplo, com nmerosrelativos aos Estados Unidos: inormaes do portal Rasmussen Re-ports de meados de 2009 mostravam que 36,8% dos adultos estadu-nidenses se consideravam democratas e 33,3% se diziam republicanos;sem embargo das oscilaes nas propores de identifcados com umpartido ou outro ou de independentes, o total de identifcados girah anos, naquele pas, em torno dos 70%.

    Por outra parte, pesquisas sistemticas revelam com abundnciaos matizes envolvidos nas relaes entre as identifcaes partid-

    rias, de um lado, e os debates programticos ou as posies a seremadotadas em circunstncias diversas, de outro. J o caso clssico dospartidos socialistas originalmente revolucionrios instrutivo, poisa soluo representada pelo partido para o problema da identidadepessoal de seus membros acaba por preponderar sobre os objetivosinstrumentais da ideologia revolucionria e por dar a esta ltimauma eio ritualstica que permite a convivncia pragmtica com o ca-pitalismo. Mas pesquisas experimentais recentes nos Estados Unidosmostram, na verdade, o componente propriamente irracional dasidentifcaes partidrias. Elas revelam, por exemplo, que as pessoas

    identifcadas com um dos dois grandes partidos tendero a percebersuas prprias posies sobre um assunto como sendo expressas pelocandidato de seu partido mesmo quando ele se ope a ela sem am-bigidades e o candidato do outro partido tem posies inequivoca-mente mais prximas; ou que as simpatias ou antipatias ditadas pelaidentifcao partidria azem que os eeitos de inormao delibera-damente alsa sobre fguras ligadas a um partido ou outro persistam,na avaliao das pessoas, mesmo depois de desvendada com toda aclareza sua alsidade.

    Mas velhos dados de pesquisas brasileiras reeridos ao conronto

    entre MDB e Arena durante o regime autoritrio de 1964 so tam-bm de interesse, mostrando com nitidez, na simplicidade artifcial dobipartidarismo imposto, os limites de consideraes programticasrelativas a questes diversas, e dando at a aparncia de banalidades constataes permitidas. Assim, nos casos em que as pessoas, demaior ou menor inormao, declaravam identifcar-se com um parti-do ou outro, a congruncia ou a incongruncia percebida por elas entreas suas posies pessoais e as dos partidos sobre os temas suposta-mente quentes do momento era quase inteiramente irrelevante nocondicionamento de sua deciso de voto. Quer atribussem Arena,

    por exemplo, posio contrria ou a avor de eleies populares diretas

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    para os cargos polticos, quer tal posio correspondesse ou no quedeclaravam ser a sua prpria, quer simplesmente desconhecessem aposio do partido a respeito, os eleitores estudados concentravam

    maciamente seus votos no partido de sua preerncia, osse MDB ouArena e s entre os que no declaravam identifcao com algumdos partidos que temas diversos produziam disperso no voto.

    Tudo isso deixa ver a ora da identifcao partidria, que conormavigorosamente ao ponto da irracionalidade as disposies polti-cas em contextos dierenciados. Mas o que sugerem os dados brasilei-ros citados talvez especial. Se nos outros casos se pode alar de longaeervescncia ideolgica em torno de partidos socialistas ou da atualguerra cultural nos Estados Unidos, de que os partidos tm sido ato-res destacados, no caso de Arena e MDB trata-se de mero articio ins-

    titucional recm-inventado por uma ditadura. E a sugesto de que cil, de certo modo, produzir a identifcao partidria e seus eeitos:basta que o sistema partidrio se superponha adequadamente (comoprovidenciaram inadvertidamente os ditadores) ao osso social do pase simplicidade com que surge na conscincia popular.

    A grande pergunta a respeito da eventual consolidao de nossosistema partidrio a de se e quando vir a produzir-se a identifcaopartidria estvel na massa dos eleitores menos envolvidos politica-mente (os cerca de 65% no identifcados que indicavam as pesquisasde 2002), independentemente do carter menos ou mais sofsticado

    ou ideolgico dessa identifcao. Condio crucial para isso seria aestabilidade da oerta partidria, que tem sido impedida nas trope-lias de nossa histria poltica.

    Em termos da perspectiva proposta por Pizzorno, esboada no in-cio deste artigo, o caso brasileiro envolve especifcidades signifcati-

    vas. Questes de igual-dierente relativas ao enrentamento de etniase culturas jamais tiveram presena relevante na vida poltica do pas.No obstante a importncia das caractersticas raciais como ator deestratifcao social, dierenas raciais como tal, parte os equvocos decerto movimento negro brasileiro, no so necessariamente o unda-

    mento de dierenas culturais e tnicas. De toda orma, as identidadespoliticamente relevantes so claramente, em nosso caso, as relativas aquestes de igual-desigual. E, no jogo entre os atores mobilizadores edesmobilizadores do legado escravista e de sua superao na dinmicasocioeconmica, a indagao se viremos a ter o jogo poltico demo-crtico marcado pela convivncia sadia que Pizzorno aponta entre, deum lado, a divergncia, como estmulo necessrio participao e poltica virtuosa que v alm do profssionalismo poltico negativo,do clientelismo e da mera busca do ganho privado, e, de outro lado, apossibilidade de construo pragmtica de consenso nas sucessivas

    esquinas da conjuntura em que sempre vivemos.

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    de se esperar que a estabilidade institucional bsica que aparen-temente alcanamos, com a superao da eio mais abertamentepretoriana do processo poltico (mesmo se a superao real do osso

    social continua a exigir larga perspectiva de tempo), venha a permitir oavano quanto institucionalizao partidria nos termos modestossugeridos quanto natureza das identifcaes partidrias. O ltimopar de dcadas pareceu corroborar a expectativa: o que a experincia doPT teve de singular se conjugou com o repetido enrentamento eleito-ral com o PSDB, de orma a sugerir que se viessem a criar em torno dosdois partidos as identifcaes estveis que eventualmente redundas-sem num sistema partidrio simplifcado e consolidado, com, entreoutras coisas, a neutralizao do xito at aqui obtido pela posturaexcessivamente clientelista e pragmtica que orienta o ragmentrio

    enraizamento regional do PMDB. Mas, se a crise petista ensejou que oPT acabasse, em ampla medida, cedendo o passo ao lulismo, ela resul-tou tambm, ironicamente, em crise do PSDB: sucessivas derrotas emeleies para a presidncia, certo vezo oligrquico da dinmica internaque transorma a escolha de candidatos presidenciais em ameaa co-eso partidria, alha em encontrar o discurso alternativo a um lulismoinado por avassalador apoio popular, o que impele o candidato pes-sedebista a presidente na eleio de 2010, Jos Serra, a pouco menosdo que se declarar ele prprio lulista... E o xito no enquadramentopartidrio de nossa democracia parece requerer que venhamos a ter

    novidades signifcativas em relao ao cenrio atual.H nesse cenrio, contudo, aspectos que podem talvez ser aprecia-

    dos de maneira mais positiva. Um deles, que tem sido salientado naimprensa, o de que o PSDB, apesar da difculdade de opor-se com ef-ccia ao lulismo, mantm a perspectiva de continuar a controlar gover-nos estaduais importantes, e mesmo a hiptese de derrota do partidona disputa presidencial de 2010 no tem por que ser lida como redun-dando em desastre irremedivel para ele. Por outro lado, no obstanteos srios percalos da experincia do PT como partido peculiar entrens e as reservas que o personalismo da liderana de Lula possa jus-

    tifcar, a ora mesma adquirida pelo lulismo, em sua conexo com apenetrao do processo poltico-eleitoral pela questo social, podeser avaliada como ajudando a trazer uma eio social-democrtica arena em que devero desdobrar-se os principais enrentamentospoltico-partidrios no pas. A ampla unio de oras progressistas noMDB durante a ditadura e a ora eleitoral da resultante para o par-tido sugerem a possibilidade terica de uma espcie de grande MDBsocial-democrtico. Se esse caminho se mostrou pouco vivel, e se sur-ge mesmo como indesejvel na perspectiva de uma dose saudvel dedivergncia, com certeza positivo que, sucedendo-se instabilidade

    associada com extremismos e com a conrontao de posies radica-

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    lizadas, venha talvez a ser possvel encontrar as condies da estabi-lidade institucional, como nas experincias especialmente europiasdo ps-Segunda Guerra Mundial, num espao de disputas defnido

    em termos social-democrticos. Ele se ajusta no s proposta quedeu o prprio nome ao Partido da Social-Democracia Brasileira, mastambm posio para a qual o duro aprendizado do PT eleitoralmen-te vitorioso e no exerccio do governo o ez reuir.

    reforma poltica

    A questo geral das perspectivas de estabilidade poltico-institu-cional leva ao tema da reorma poltica, que se associa, em seu carterrecorrente, ao da corrupo em suas aces variadas. Sucintamente,

    cabe destacar duas proposies a respeito.A primeira reere-se ao papel das normas e a sua dupla eio, quercomo componentes culturais de um contexto viscoso e resiliente (oque tenho chamado o institucional como contexto), quer como ob-jetos passveis de manipulao deliberada no nvel da aparelhageminstitucional-legal (o institucional como objeto). Em vez da posturaedifcante que conta com uma espcie de apropriada converso cole-tiva, no podemos esperar ser efcazes em prazos relevantes seno naao dirigida ao institucional como objeto ou seja, na elaboraoe na implementao rigorosa de leis que alterem as expectativas dos

    atores e lhes aetem o clculo. A aposta a de que assim possamoseventualmente ver cumprir-se o preceito sociolgico segundo o qual ex-pectativas que se reiteram e corroboram acabam por transormar-seem prescries ou normas, com a eventual mudana em direo pro-pcia da cultura mesma e do contexto que representa. Naturalmente,as chances de que os atos corroborem as expectativas propcias au-mentam com a divergncia de que ala Pizzorno e com a convivncia

    vigilante de identidades partidrias em conronto. Do ponto de vistaespecfco da reorma poltica, de todo modo, penso que, contra o con-

    vite passividade que encontramos em certos analistas, cabe extrair

    do realismo da aposta no condicionamento do clculo dos agentes ede suas expectativas o nimo de experimentar com dispositivos legaiscomo os relativos a fdelidade partidria, clusulas de barreira, regrassobre coligaes, adequada combinao de princpios majoritrios eproporcionais, listas partidrias echadas ou exveis...

    A segunda proposio vincula a perspectiva empenhada na reormaa certo diagnstico da natureza da crise tica que estaramos vivendono momento, com a intensa corrupo poltica. Esse diagnstico v aintensifcao da corrupo como conseqncia da democratizao dopas: cento e trinta milhes de eleitores num Brasil desigual signifcam

    peso poltico decisivo para os menos iguais e, supe-se, correspon-

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    dente deteriorao intelectual e tica na qualidade da representaopoltica. Mas, parte as muitas antasias sobre a qualidade intelectuale tica de nossa velha representao oligrquica, clara a distoro en-

    volvida em omitir, a propsito dos nossos problemas tico-polticosde hoje, a longa tradio de estado cartorial, clientelismo e quejandosque vicejava como parte da poltica oligrquica (e cujos mecanismossubsistem e moldam de muitas ormas o presente) e destacar, ao re-

    vs, a democratizao que solapa essa poltica justamente ao criarpotenciais ocos divergentes de identifcao e mobilizao que gra-dualmente se atualizam. O elitismo do diagnstico desatento aospesados traos estruturais negativos do nosso ponto de partida e aosdiceis constrangimentos que este segue impondo ao jogo polticocomo conduto inevitvel de possveis avanos.

    Um ltimo ponto. Avaliaes recentes da conjuntura polticabrasileira tm salientado a eio de Estado-amlgama que carac-terizaria o governo Lula, no qual um Estado ativo trata de envolver asoras variadas da sociedade civil e supostamente lhes comprometea autonomia. Mas, nas condies do nosso osso social e de precriastradies institucionais, patente o risco de que o jogo que se decidis-se no nvel da sociedade civil como tal redundasse, como sempre, emtranspor sem mais para o plano das polticas do Estado as assimetriasproundas que a caracterizam. Em outras palavras, no h como esca-par de dose importante de paternalismo como trao distintivo do Es-

    tado democrtico, que no ser aquele orado a limitar-se a responder capacidade dierencial de presso de interesses de poder desigual.Ora, como os xitos da social-democracia neocorporativa demons-traram apesar das vacilaes produzidas pela onda recente de un-damentalismo de mercado, j agora em retirada diante de crises cada

    vez maiores , esse trao se liga com a necessria acomodao dosinteresses diversos pela ao do Estado, ou mesmo, em alguma me-dida, no mbito do prprio Estado. Note-se que, no caso brasileiro, adesigualdade se reete, parte a tese da perda de qualidade da repre-sentao, na extrao social dos membros do prprio Legislativo, no

    obstante sua escolha por meio de eleies assim como se reete, emsurdina mas de modo bem claro, no uncionamento de um Judiciriocomposto por membros doutos, que supostamente decidiro impar-cial e isentamente com base na lei. Cumpre talvez procurar assegurarque nosso processo eleitoral traga mais nitidamente a caracterstica deamlgama socialmente integrador ao Legislativo, que possa assimagir com efcincia de orma a neutralizar certo ativismo requente-mente torto do Judicirio a que nos vimos habituando.

    Fbio Wanderley Reis cientista poltico e proessor emrito da Universidade Federal de

    Minas Gerais.

    Recebido para publicaoem 8 de junho de 2010.

    noVos estudos

    cEbraP

    87, julho 2010

    pp. 61-75