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FABRIZIO AUGUSTO POLTRONIERI UMA RELAÇÃO ENTRE OS PARANGOLÉS E OS JOGOS DIGITAIS Dissertação apresentada à Universidade Presbi- teriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Bairon São Paulo 2005

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FABRIZIO AUGUSTO POLTRONIERI

UMA RELAÇÃO ENTRE OS PARANGOLÉS E OS JOGOS DIGITAIS

Dissertação apresentada à Universidade Presbi-

teriana Mackenzie, como requisito parcial para

a obtenção do título de Mestre em Educação,

Arte e História da Cultura.

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Bairon

São Paulo

2005

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FABRIZIO AUGUSTO POLTRONIERI

UMA RELAÇÃO ENTRE OS PARANGOLÉS E OS JOGOS DIGITAIS

Dissertação apresentada à Universidade Presbi-

teriana Mackenzie, como requisito parcial para

a obtenção do título de Mestre em Educação,

Arte e História da Cultura.

Aprovada em Janeiro de 2006.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Sérgio Bairon – Orientador

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profa. Dra. Ane Shyrlei Araújo

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Prof. Dr. Marcos Rizolli

Universidade Presbiteriana Mackenzie

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À meus pais e irmãos por acreditarem em mim.

À Tatiana pela presença e amor.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Sérgio Bairon pelas palavras de sabedoria e incentivo.

Aos professores e funcionários do programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História

da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie pela contribuição.

Aos professores e alunos da graduação em Design Gráfico do Centro Universitário Belas

Artes de São Paulo pela ajuda inestimável na construção deste caminho acadêmico.

À Tatiana Gomez Martin pela paciência e ajuda incessante.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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“Pois quando escuto ou leio, as palavras nem sempre vêm atingir em

mim significações já presentes. Têm o extraordinário poder de me

atrair para fora de meus pensamentos, abrem em meu universo

privado fissuras por onde irrompem outros pensamentos”

Maurice Merleau-Ponty

(O homem e a adversidade)

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RESUMO

Este trabalho busca estabelecer elos entre a concepção de arte inaugural do artista bra-

sileiro Hélio Oiticica – com foco nos parangolés – e os games, as manifestações tecnológicas

digitais imersas na cultura. Nesta pesquisa, foram enfatizados os aspectos interativos de am-

bos. Examinamos os conceitos inclusivos e descondicionantes dos parangolés para depois rea-

lizarmos reflexões acerca dos sistemas interativos existentes nos games atuais. Com relação a

estes, a análise se deteve em suas características interativas, nos seus aspectos programados e

em suas manifestações narrativas. Finalmente, levantamos algumas questões sobre a estética

dos games, à luz de um entendimento proporcionado pelo estudo da obra de Hélio Oiticica.

Palavras-chave: Parangolé, Hélio Oiticica, Interatividade, Games, Indeterminação.

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ABSTRACT

This work aims to stablish links between the inaugural art of the Brazilian artist Hélio

Oiticica – focusing on the ‘parangolés’ – and the games, the digital and technological

manifestation immersed in culture. In this research, the interactive features of both of them

have been emphasised. First, we searched into the inclusive and unconditioning concepts of

the ‘parangolés’ and then, we contemplated the interactive systems found in ongoing games.

About the latter, the analysis aimed at their interactive facets, programmed aspects and

narrative manifestations. At last, we raised some questions about the games aesthetics, based

on the understanding provided by the study of Hélio Oiticica’s work.

Keywords: Parangolé, Hélio Oiticica, Interactivity, Games, Indetermination.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Luiz Fernando Guimarães veste PARANGOLÉ CAPA 23, M’Why Ke, NY, 1972. Foto Hélio Oiticica..................................................................33

Figura 2 Romero veste PARANGOLÉ P33 CAPA 26 junto ao World Trade Building em Manhattan, Nova Iorque, Dezembro de 1972. Foto Catálogo O q faço é Música…………………………………………………….....34

Figura 3 Nildo da Mangueira veste PARANGOLÉ P4 CAPA 1 – 1964. Foto Catá-logo O q faço é Música ………………...…………………………….....35

Figura 4 Jerônimo da Mangueira veste PARANGOLÉ P5 CAPA 2 – 1964. Foto Catálogo O q faço é Música……………………………………………..36

Figura 5 Capa 11: Eu incorporo a revolta, 1967. Foto Revista Art In America......65

Figura 6 Nildo da Mangueira veste Capa 13: Estou possuído, 1965. Foto Revista Art In América..........................................................................................66

Figura 7 Mosquito da Mangueira, sambando com PARANGOLÉ 10 Capa 6, 1965. Foto Cláudio Oiticica...............................................................................67

Figura 8 Estudo para PARANGOLÉ P6 Capa 4, Homenagem a Lygia Clark, 1965. Coleção Projeto H.O...............................................................................106

Figura 9 Estudo para PARANGOLÉ Cabeça, Gimme Head, Nova Iorque, 1976. Coleção Projeto H.O...............................................................................107

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1 ARTE, PARTICIPAÇÃO E INTERATIVIDADE 22

1.1 Hélio Oiticica 26

1.2 Os parangolés 31

1.3 Canibalismo digital: descobrindo e incorporando o outro 39

1.4 O modo de ser da obra de arte é o jogar 49

1.5 Métodos interativos digitais 53

2 PARANGOLÉ: FENÔMENO CATALISADOR DE LINGUAGENS 60

2.1 Caracterização da experiência 60

2.2 A dinâmica dos parangolés 68

2.3 Estrutura catalisadora de linguagens 70

2.4 Sintaxe e semântica 75

3 INTERATIVIDADE, CULTURA E GAMES 81

3.1 Games, cultura e inteligência 82

3.2 Games e narrativa 94

3.3 Imagem, lugar e ação 101

CONSIDERAÇÕES FINAIS 106

REFERÊNCIAS 108

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Introdução

O objetivo deste texto é realizar reflexões multidisciplinares acerca dos meios interati-

vos digitais, partindo de pressupostos fornecidos pela arte – a partir dos “parangolés”1, do ar-

tista brasileiro Hélio Oiticica (1937-1980). Os parangolés fornecem uma base para pensarmos

a interatividade tecnológica a partir de uma perspectiva humana, possibilitando o estabeleci-

mento de diálogos com um conceito-chave para a compreensão das idéias que serão aqui

apresentadas: a indeterminação. O maior investimento da pesquisa foi acerca das modalidades

de linguagens existentes nos parangolés, para então buscar pontos de intersecção com os siste-

mas digitais, em particular com os games. Os games aparecem aqui como estruturas que po-

dem possibilitar a atualização, de forma contemporânea, das inquietações encontradas nas ex-

periências artísticas de Oiticica.

Por partir de um pressuposto que aborda áreas diversas do conhecimento, o objetivo

inicial é reconstruir a idéia do homem como ser multidisciplinar, inserido em um contexto

cultural que, neste início de século, não é determinado, mas condicionado por mecanismos

contemporâneos que cada vez mais flexibilizam processos de abertura à participação indivi-

dual. Para um foco mais preciso e de acordo com os interesses desta pesquisa, o texto trata

dos processos interativos que utilizam os meios técnicos digitais como canal de transmissão,

por acreditarmos que estes processos configuram-se como convites ao pensamento multidisci-

plinar e representam uma aposta no sentido de promover uma maior participação dos recepto-

res nos processos comunicacionais.

Para esta discussão os parangolés foram escolhidos como ponto de partida para uma

aproximação com as interfaces digitais por representam uma metodologia ímpar no que diz

1 De acordo com Favaretto (2000:118), o termo parangolé advem da gíria carioca, significando, neste contexto,

“conversa fiada, palavreado, assunto, baile de ínfima classe”.

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respeito ao desenvolvimento de linguagens interativas baseadas em inquietações estéticas,

pois

Oiticica percebeu o homem moderno subjugado pela organização social, pe-

lo agenciamento e pela domesticação de todos os espaços. A sociedade deli-

mita, programa e controla o espaço do trabalho e do prazer, seja pela pobreza

(tanto econômica como de idéias), seja ainda por meio do inconsciente colo-

nizado. Sendo assim, a dimensão estética necessita ser resgatada ou estimu-

lada. É quase um imperativo ético do artista a busca dessa dimensão (Justi-

no, 1998:8).

A pesquisa sobre Oiticica e os parangolés vêm atribuir um sentido de historicidade à

discussão apresentada e uma idéia de possíveis desdobramentos no campo dos sistemas inte-

rativos digitais, apontando para a necessidade de uma metodologia multidisciplinar para a

produção destes. Nesta direção, Cutolo (1976:11) diz que

Descobertas e revoluções no mundo da ciência sempre determinaram profun-

das modificações na esfera da arte, para a seguir serem transpostas, através

de um labor de mediações e de penetração em nível intelectivo, ao terreno da

organização da sociedade como grupo.

Contemporaneamente, Bairon (2004) afirma que “arte, ciência e filosofia encontram

nas manifestações multimidiáticas deste final de século, a grande possibilidade de se acolhe-

rem numa só significação, numa só comunicação”. Atualizando esta colocação, este início de

século apresenta possibilidades de reunir em um só discurso multidisciplinar, conhecimentos,

pesquisas e discussões provenientes das esferas humanas, exatas, biológicas e, mesmo, prag-

máticas, cotidianas, promovendo o que Morin (2001) chama de “religação dos saberes”. Oiti-

cica, de certo modo, já previa esta religação em seu fazer artístico, já que

[…] a obra de Oiticica, ao fazer da transgressão a norma, completa o ciclo

do fim da figura do artista, provoca a explosão do autor único e dá a possibi-

lidade de alargar o campo estético. Não há mais fronteiras entre os materiais,

nem entre os sexos e as linguagens. O estético alarga-se a outras dimen-

sões – ética, política, social (Justino, op. cit:141).

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Já o universo aberto pelas mídias digitais revela-se inaugural por compatibilizar supor-

tes (Santaella, 2001:23) e, conseqüentemente, romper com barreiras impostas por meios de di-

fusão de mensagens que usam suportes físicos, como o livro. Assim, áreas que tradicional-

mente se estranhavam, mas que sempre possuíram elementos em comum, estão a um link de

distância, como nos embricamentos estéticos provocados por Oiticica.

Como exemplo, Oliveira (1997) cita o contexto social-científico-artístico que culmi-

nou no cubismo, na teoria da relatividade e na teorização das relações sociais. Enquanto as

pesquisas de Cézanne levaram à concepção espacial e estrutural do cubismo, Einstein traba-

lhava na teoria da relatividade e Marx já havia desenvolvido suas reflexões sobre os fenôme-

nos sociais. Em comum, todos levantavam as contradições entre as novas descobertas e os pa-

radigmas vigentes, promovendo, entre outras discussões, reflexões sobre a complexidade, o

fim das certezas e a multiplicidade de visões existentes que, até então, eram negadas em favor

de uma perspectiva apoiada em certezas absolutas. Embora o momento, no tempo, e a visão

das questões levantadas fossem compartilhadas pelos artistas do cubismo, por Einstein e pelos

pensadores sociais, não se estabeleceu uma zona de ligação entre tais áreas.

Atualmente, o aumento da capacidade humana de pesquisar e gerar dados sobre as

mais variadas áreas contribui para a urgência da religação e do cruzamento de dados entre as

diversas áreas do saber. De acordo com Oliveira (op. cit.:217):

Na era pós-Gutemberg, os novos títulos são tantos que a noção mesma de in-

finitude do saber parece concretizar-se, afirmando a sua extensividade sem

limites. O conhecimento também precisou de novos suportes para poder con-

tinuar a sua marcha cumulativa, e só se tem acesso a ele pelo acionar dos

computadores, quer consultando-os nas bibliotecas, quer a distância pelos

novos sistemas de telepresença.

A partir do momento em que bases de dados passam a coexistir digitalizadas no mes-

mo espaço, na mesma rede, não há sentido em prosseguir com a sistemática da separação.

Uma das formas de se encarar o desafio da complexidade crescente e evitar redundâncias des-

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necessárias é a indexação, possível através das tecnologias digitais, com o objetivo de indicar

ponteiros, hiperlinks, para dados que complementem informações referenciadas que perten-

çam ao escopo do assunto tratado. Os dados, neste caso, não se limitam somente a escritos. A

abertura digital permite a inclusão e o referenciamento de textos, vídeos, imagens, sons e ani-

mações, entre outros.

Porém, para que estes sistemas tenham sentido, novas interfaces multidisciplinares

precisam ser reatadas, entre as ciências humanas, exatas e biológicas. As associações come-

çam a se tornar evidentes e necessárias, o processo de reunificação dos saberes, defendido por

Morin (op. cit.), passa a se tornar viável e seu sentido passa a ser cada vez maior, em um hori-

zonte que tem o ser humano como total, e não fragmentado em especializações. Tal ideal re-

mete à pedagogia da escola alemã Bauhaus (1919-1933), que tinha como um de seus pilares a

concepção de “homem total” – em oposição ao “homem setorial”, formado sob o pensamento

fragmentado, especializado –, conforme declarou Moholy (apud Weiner, 1989:200):

O homem setorial deve novamente buscar seus fundamentos no homem cen-

tral, que cresce organicamente no seio da sociedade: forte, aberto, feliz, co-

mo era em sua infância. Sem esta segurança orgânica, as mais ricas diferen-

ciações do estudo especializado […] não passam de simples aquisição quan-

titativa, em nada contribuindo para o aumento da intensidade de vida, nem

para a ampliação com o círculo vital […] O futuro precisa do homem total.

Todo homem é sensível aos sons e às cores, é seguro no espaço e no tato,

etc. Isto significa, que, a princípio, todo homem pode participar das alegrias,

das experiências sensoriais, significa, também que todo homem saudável po-

de ser, ativamente, músico, pintor, escultor, arquiteto etc., assim como é um

“falante” como fala. Isto quer dizer que ele pode modelar seus sentimentos a

qualquer tipo de material.

Oiticica compreendia a tarefa do artista neste mesmo sentido, como sendo um abando-

no do “trabalho obsoleto do especialista para assumir a função totalizante de experimentador”

(Salomão, 2003:32). Nesta visão, retomando as questões tecnológicas e as possibilidades que

elas abrem, percebe-se que o estudo, o desenvolvimento e o aprofundamento das característi-

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cas próprias dos meios digitais só tornam-se possíveis através de uma visão do homem con-

temporâneo como total, no sentido que a Bauhaus e Oiticica empregavam ao termo. A setori-

zação aumenta o descompasso entre os saberes e as possibilidades digitais.

Bairon (op. cit.) alerta para tal descompasso:

As divisões entre as regionalidades científicas cartesiano-iluministas, propa-

gadas ao longo dos três últimos séculos, que acabaram reforçando os arautos

da separação ocidental entre arte, ciência e filosofia, têm nos impedido de

pensar o ser humano em suas manifestações tecnológicas sob um ponto de

vista macro.

Lévy (2001a), chama a atenção para o fato das tecnologias serem condicionantes de

situações sociais, e não determinantes, nascendo de problemáticas sugeridas pelo homem e

expandindo seu raio de ação através de desdobramentos de sua utilização inicial. Assim, tal-

vez o grande papel delas nessa ruptura do modelo de comunicação e conhecimento que separa

os saberes, seja atuar como uma ponte, através de instrumentos técnicos, que possibilite ao

homem realizar a permeação entre os diversos tipos de saberes, visto que os instrumentos

existentes até então contribuíam para a propagação do processo de compartimentação. Para

Plaza (2003:27), o ato artístico combinado com os sistemas técnicos interativos pode fazer

com que se recubram em uma só forma potencializada

a “esfera ideológica” como campo nuclear da cultura (sistemas de represen-

tação, valores e crenças), a “esfera cognitiva” (como sistema de conheci-

mentos científicos), a “esfera artística” (como forma multifacetada e contra-

ditória de apropriação “sensível” do real) e a “esfera técnica” (modos de

proceder das várias práticas.

A tecnologia espelha o intelecto humano, expandindo potencialmente as capacidades

cognitivas humanas, já que

ao lermos um texto impresso, apesar da sua linearidade, produzimos uma re-

de de imagens, nos dispersamos, interrompemos, voltamos, dizemos: voltei

para "pegar o fio da meada", mas este "fio" é, em grande parte, criação nossa

e não do autor. A partir deste ponto de vista a não-linearidade se constitui na

semiose essencial, constituinte do mundo, e não pode ser definida única e

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simplesmente pela tecnologia na qual estamos presos, porém, esta última po-

de delegar uma ontologia linear àquela. (Bairon, op. cit.)

É neste panorama que o este texto busca explorar zonas de interface entre a arte e a

linguagem emergente dos meios digitais, mais especificamente relacionando a obra de Oiti-

cica e as questões dos roteiros não-lineares e da inclusão de repertórios individuais ao grande

oceano digital através da interatividade. É importante precisar a concepção de sistema intera-

tivo aqui adotada, visto que o termo interatividade abarca hoje uma grande quantidade de pro-

cessos advindos de diversos níveis e envolvendo os mais variados sistemas de expressão. O

conceito é adotado neste texto como concepção projetual favorecedora de uma arte combina-

tória, não acabada, mas que contém elementos básicos constituintes e convenções de substi-

tuição e criação, definidas por meio de algoritmos2 projetados por um enunciador, que passa a

desempenhar um papel de animador de ânimos coletivos, em contraposição à concepção clás-

sica de proporcionador de mensagens prontas.

Sob esta perspectiva a mensagem transforma-se em um campo de possibilidades, subs-

tituindo as constantes por variáveis. Cada receptor irá atualizar parte desta virtualidade em

discursos únicos, e a composição da mensagem se dará nesta tensão entre as brechas do dis-

curso proposto e o desafio da inclusão dos diversos repertórios provenientes dos receptores,

que não mais simplesmente contemplam a mensagem, mas agem sobre ela de forma efetiva.

No limiar deste processo, percebe-se que neste tipo de abordagem o discurso somente torna-se

significante com a participação realmente ativa do alter, que é convidado a incluir suas im-

pressões nas brechas deixadas pelo algoritmo. Assim o receptor realmente escreve o roteiro,

“recupera (tal como nos primórdios da narrativa oral transmitida boca a boca) o seu papel fun-

dante como co-criador e contribui decididamente para realizar a obra” (Machado, 1997:146).

2 Cf. Salvetti & Barbosa (1998: 15), um algoritmo é uma seqüência finita de instruções básicas, executável den-

tro de um tempo também finito, que tem por objetivo resolver um problema lógico, qualquer que seja sua instân-

cia.

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O computador possibilita que “as categorias clássicas do emissor, do receptor, da mensagem e

do canal de comunicação entrem em movimento e se trancem” (Plaza, op. cit.:20).

A escolha da linguagem e do fazer artístico, como elementos de aproximação e de in-

clusão entre o homem e os mecanismos digitais se dá por uma série de razões. Oliveira (op.

cit.:217) aponta para o teor transformador das manifestações artísticas. Neste recorte, uma das

possibilidades a ser explorada é a ação direta de uma alfabetização não-verbal dos receptores

para a quebra da rigidez imposta pelos sistemas digitais atuais, uma busca por uma sintaxe

que desperte o interesse real dos usuários em compartilhar experiências dentro de comunida-

des que lhe digam respeito. Existe o sentido de resgate da história da humanidade e da própria

arte, visto que

fala-se tanto em arte e tecnologia como se entre esses dois campos se estabe-

lecesse uma relação inaugural e característica da arte de hoje. Sem nos es-

quecer do fato de que na Antiguidade arte e técnica designavam a mesma

coisa, a questão é que a arte sempre esteve sintonizada às tecnologias de

ponta de todas as épocas e dela se serviu como um dos elementos constituti-

vos de sua linguagem. (Ibid.:219).

Além disso a arte, segundo McLuhan (2002), tem o poder de antecipar o futuro em

termos sociais e os desenvolvimentos tecnológicos bem antes de uma geração, e, particular-

mente em termos de interatividade, Oiticica revela-se um radar, sinalizador de questões que

estavam além de seu tempo, já que realizou esta antecipação, sendo um artista que levantou

problemáticas embrionárias e essenciais aos meios interativos digitais. Eco (1976:18) diz que

“se a arte reflete a realidade, é fato que a reflete com muita antecipação. E não há antecipação

– ou vaticínio – que não contribua de algum modo a provocar o que anuncia”.

Deste modo, muitos dos questionamentos presentes no seguinte texto de Oliveira (op.

cit.:218) encontram respostas ou caminhos já percorridos na obra de Oiticica:

[…] a arte com toda a parafernália das tecnologias, incorporada também co-

mo um de seus meios de expressão, convida os sujeitos, agora de todo o pla-

neta, a fazerem parte dela e re-aprenderem a interagir. Encontrando outras

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formas para se voltar ao sujeito, chamar a sua atenção, de um modo diferente

do que até então tinha feito, a arte contemporânea propõe modos de partici-

pação3 na obra inteiramente inusitados. Seria esse o caminho não previsto?

Aquele que, anulando as obras acabadas, deu origem às obras programas de

ação que não são criadas por um só artista, o que nos impede, inclusive, de

falar em autoria. Elas são realizadas conjuntamente, a partir de interconexões

entre participantes anônimos, e que podem se encontrar em locais não só di-

ferentes mas em partes opostas do globo. De onde estiverem, os desconheci-

dos participantes entram em ação por meio das tecnologias da comunicação

e interagem. Assim o outro, não o outro artista, mas o outro, sujeito comum

“actante coletivo” das pequenas e insignificantes narrativas da cotidianidade,

assume um papel de co-criador da obra.

Importante lembrar que Oiticica não é contemporâneo dos meios computacionais digi-

tais, ou pelo menos não das facilidades de produção que encontramos hoje e, já em sua época,

utilizava um conceito de “programa” bastante próximo às questões contemporâneas que se co-

locam no campo das linguagens digitais:

Todo projeto que eu faço, gradativamente vai entrando numa coisa que eu

chamo de “programa”. Na realidade, são programas não-programados. Eu

chamo de “programas in progress”. Na realidade, tudo se transforma num

programa, a longo prazo. Todas as coisas que eu faço são coisas paulatinas e

a longo prazo (Oiticica, apud Favaretto, 2000:13).

Logo, para a reflexão a ser feita nesta pesquisa, partimos da análise dos elementos en-

contrados na linguagem constituinte dos parangolés, para em seguida estudarmos a possibili-

dade de apropriação desses elementos pela emergente linguagem utilizada nos meios digitais

3 A respeito das formas de participação do receptor encontradas na arte, Justino (op. cit.:121) traça um panora-

ma: “Sem esmiuçar o universo da participação e a título unicamente didático, posso classificar a participação em

quatro formas: a contemplação passiva (a arte tradicional), a contemplação ativa (do cubismo à arte abstrata e

outras experiências da arte moderna), a emotiva (happening) e, finalmente, a experimental (parangolés e outras

formas contemporâneas). No entanto, é preciso estar atento a que essas formas apresentam-se muitas vezes in-

trincadas”.

Já Plaza (op. cit.:10) completa dizendo que a história da participação na arte trilhou o seguinte percurso

conceitual: “participação passiva (contemplação, percepção, imaginação, evocação etc.), participação ativa

(exploração, manipulação do objeto artístico, intervenção, modificação da obra pelo espectador), participação

perceptiva (arte cinética) e interatividade, como relação recíproca entre o usuário e um sistema inteligente”.

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para troca de experiências, vivências e dados cotidianos ou de cunho específico, reaproximan-

do a arte do cotidiano. A arte contamina-se pela técnica, pela tecnologia. A questão aqui le-

vantada é porque a tecnologia, muitas vezes, não se deixa permear pela arte?

O texto persegue estas questões. Para isso, buscamos não uma compartimentação te-

mática, mas sim uma estutura que privilegie capítulos que estabelecem ligações mútuas, ini-

ciando com um capítulo dedicado à conceituação dos temas centrais: Um apanhado das expe-

riências realizadas no campo da arte participativa e interativa, seguido por um resgate da tra-

jetória de Hélio Oiticica, com foco no processo de conceituação e concepção dos parangolés.

Este primeiro capítulo também trata da descoberta do outro e das possibilidades de permeação

repertorial; do modo de ser da obra de arte enquanto jogo, mostrando que este é um conceito

nuclear para toda concepção de humanidade e cultura, e, por fim, introduz os métodos intera-

tivos digitais.

O segundo capítulo se detêm na investigação acerca dos parangolés enquanto fenôme-

nos de linguagem, com a intenção de recuperar e analisar os principais elementos que os tor-

nam sistemas singulares para o estudo de uma gramática da interatividade, partindo de um

exame das experiências desencadeadas pelo processo de fruição da estética proposta por Oiti-

cica em seus parangolés, que provocam dinâmicas muito particulares e promovem o encontro

de diversas modalidades de linguagem.

Já o terceiro e último capítulo trata das questões envolvendo os games enquanto pro-

dutos culturais que utilizam meios técnicos digitais como suporte para a criação de narrativas

interativas baseadas em mundos possíveis. É realizada uma avaliação e generalização das

configurações estéticas encontradas na linguagem dos games, e um olhar sobre a constituição

simbólica das camadas de programação – que dão forma e possibilitam a ação e atualização

dos elementos propostos nos games –, indicando alguns caminhos para novas possibilidades

narrativas. Uma dessas possibilidades estudada é a aproximação do processo de desenvolvi-

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mento de narrativas com a lógica das imagens, mais aberta e plural. Paralelos com os paran-

golés e as potencialidades que podem ser desencadeadas por esta junção de conceitos também

são analisadas, concluindo a pesquisa.

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“Com vocês, o costureiro Hélio Oiticica!”

Chacrinha, animador de auditório, ao anunciar Hélio Oiticica

em seu programa de televisão, 1967

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1 Arte, participação e interatividade

Ao contrário do que muitas vezes o senso comum leva a acreditar, a interatividade4,

como possibilidade de estabelecimento de interação com o sistema de expressão, não nasce

com o advento das redes telemáticas e dos computadores digitais. Como veremos, esta discus-

são não foi desencadeada pelos sistemas informáticos. A história da arte apresenta um grande

caminho percorrido no que diz respeito a experiências interativas, já que, em última análise, o

próprio processo de leitura de qualquer obra implica em reconstruí-la, pois o ato de observar

muda o observador e o observado, dessa forma “o leitor, ao executar, interpretar e avaliar a

obra, apodera-se do modo como ela foi feita, já que a leitura é efetuada pela restituição ou re-

cuperação da poética a ela inerente” (Tavares, 2003:39). É claro que os meios técnicos e as

possibilidades por eles abertas deixam este processo mais evidente, pois efetuam mudanças

nas discussões que envolvem a imaterialidade da obra e as formas de reprodução e reproduti-

bilidade, entre outras.

Retomando alguns aspectos e passagens da história da arte, percebemos que alguns

movimentos exploraram a importância do receptor e tentaram, de várias maneiras, construir

ambientes abertos, antes das inovações introduzidas pela tecnologia digital. Os impressionis-

tas, e mais radicalmente os cubistas, segundo Oliveira (op. cit.:221), já haviam percebido e

explorado a importância do receptor

mover-se diante da grande tela para, pelo seu movimentar-se, compor os

pontos de luzes justapostos que, nas suas vibrações, faziam-se imagens. Mas,

com Cézanne, a descoberta é outra. Na mais completa dedicação para chegar

4 Santaella (2003a:24) traz uma análise do campo semântico do termo “interatividade”: “A palavra 'interativida-

de' está nas vizinhanças semânticas das palavras 'ação', 'agenciamento', 'correlação' e 'cooperação', das quais em-

presta seus significados. Na ligação com o termo 'ação', a interatividade adquire o sentido de operação, trabalho e

evolução; da sua ligação com 'agenciamento' vem o sentido de intertrabalho; na vizinhança com o termo 'correla-

ção', a interatividade ganha o sentido de influência mútua, e com o termo 'cooperação' adquire os sentidos de

contribuição, co-agenciamento, sinergia e simbiose.”

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a uma plástica das sensações, banindo de vez a estaticidade da perspectiva

ideal nas representações, Cézanne propõe o impressionismo da perspectiva

que os cubistas Braque e Picasso levariam às suas últimas conseqüências.

Negando totalmente uma centralidade organizadora da visão, está se postu-

lando também a sua relatividade, assim como o fim das posições fixas e pre-

determinadas para a contemplação de um objeto artístico.

A existência de um espectador, que com seu repertório determina a quantidade de in-

formação estética percebida na fruição artística, torna toda obra de arte virtualmente aberta a

leituras infinitas, cada uma contextualizada com as vivências pessoais de cada receptor, mes-

mo na arte representativa, figurativista por natureza:

A arte representativa imita a natureza, e essa imitação nos dá prazer: em con-

trapartida, e quase dialeticamente, ela influi na “natureza”, ou pelo menos

em nossa maneira de vê-la. Tem-se observado que o sentimento em relação à

paisagem nunca mais é o mesmo depois que se pintaram paisagens; também,

movimentos pictóricos como a arte pop ou o hiper-realismo nos fazem “ver”

o mundo cotidiano, e seus objetos, de modo diferente […]. O reconhecimen-

to proporcionado pela imagem artística faz parte pois do conhecimento; mas

encontra também as expectativas do espectador, podendo transformá-las ou

suscitar outras: o reconhecimento está ligado à rememoração (Aumont,

2004:83).

Eco (1976) defende um modelo teórico que ele chama de “obra aberta”, modelo este

que não tem a pretensão de ser um tratado estruturalista sobre um hipotético modelo de pensa-

mento artístico que poderia produzir obras participativas, mas sim caracterizando-se como um

estudo sobre a representação da estrutura de uma relação fruitiva – “independente da existên-

cia prática, fatual, de obras caracterizáveis como ‘abertas’” (Cutolo, op. cit.:9) –, que estaria

presente em todas as manifestações artísticas, evidenciando a

prerrogativa estética de toda obra de arte absorver uma multiplicidade de in-

terpretações, disponibilizando-se para o ato de contemplação, mesmo que,

sob o ponto de vista poético, não exista intencionalmente um programa ope-

racional propondo a inclusão do espectador como agente produtivo da exe-

cução da obra (Tavares, op. cit.:40).

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Em seu estudo, conforme Cutolo (op. cit.:10), Eco analisa as relações envolvidas na

fruição da arte, os processos que presidem a criação artística e as probabilidades que compre-

endem os processos de criação e fruição, apontando que esta característica probabilística é um

dos aspectos fundamentais de um discurso aberto, típico da arte. O outro aspecto apontado co-

mo fundamental é a ambigüidade. A obra de arte é, portanto, a manifestação ambígua de um

discurso onde as fronteiras são fixadas por leis probabilísticas. O resultante de uma intencio-

nalidade artística sempre foi um significado aberto, portanto dependente da ação de um recep-

tor para completá-lo. A arte moderna, contudo, amplificou esta percepção, pois contesta

os valores ‘clássicos’ de ‘acabado’ e ‘definido’, propõe uma obra indefinida

e plurívoca, aberta, verdadeira rosa de resultados possíveis, regida e gover-

nada pelas leis que regem e governam o mundo físico no qual estamos in-

seridos” (Ibid.:12).

Conforme Eco (op. cit.:22), a obra de arte por si só constitui-se como sendo uma men-

sagem com alto grau de ambigüidade, plural em significados que convivem em um só signifi-

cante, sendo naturalmente fecunda para a inclusão dos mais variados repertórios. A ambigüi-

dade fundamental da arte, entendida como abertura, é elemento presente em qualquer obra, de

qualquer tempo ou movimento artístico, indicando que a arte, mais do que resolver questões,

acaba por problematizá-las através de proposições. A relação entre a obra e seus fruidores é

marcada por uma dialética entre a estrutura da obra e a resposta ativa do consumidor, que in-

sere-se no sistema proposto, constituindo sempre uma relação de alteridade.

Quando o artista dá sua obra por acabada, formalmente realizada, ela torna-se ponto

de partida para que os receptores iniciem um processo de consumação que articula-se e volta

a dar vida à obra, por meio de leituras e perspectivas diversas, muitas vezes completamente

distintas e absolutamente repertoriais, sendo que é o repertório do receptor que acaba por de-

terminar a quantidade de informação estética percebida e passível de interpretação. (Eco, op.

cit.:28). A obra não é somente um modo de formar, mas também algo a ser formado, já que

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a leitura de uma dada obra implica reconstruí-la e recriá-la. O leitor, ao exe-

cutar, interpretar e avaliar a obra, apodera-se do modo como ela foi feita, já

que a leitura é efetuada pela restituição ou recuperação da poética a ela ine-

rente” (Tavares, op. cit.:39).

A obra exibe-se como teia complexa de constuções comunicativas, que pode ser infi-

nitamente atualizada e resignificada pelo receptor, passando a incorporar as escolhas culturais

e gostos pessoais deste.

Para Plaza (op. cit.:10), porém, a interatividade é realmente inaugurada de modo pio-

neiro no campo artístico quando Moholy-Nagy5 “pinta”, em 1922, um quadro pelo telefone.

Contudo, é a partir da década de 1950 que transformações ocorridas no campo tecnológico

passam a estar presentes no discurso da arte, muitas vezes com as manifestações artísticas an-

tecipando as mudanças condicionadas pela tecnologia. Os artistas passam a se interessar pelos

sistemas de comunicação, realizando críticas e rupturas com a forma de emissão de mensa-

gens unidirecional, buscando cada vez mais a participação do espectador na elaboração e

constituição da obra de arte. Esta tendência problematiza o estatuto até então atribuído à obra

de arte. (Plaza, op.cit:10-11). Atualmente, muitas das intervenções artísticas que buscam no

computador um suporte material procuram problematizar o uso das tecnologias como mero

aparato para o crescimento acelerado da economia simbólica que move a sociedade capitalis-

ta, não vendo o computador somente como um instrumento para o aumento da produtividade

do trabalho cotidiano.

Porém, ainda conforme Plaza (Ibid.:14) é somente a partir da década de 1960 que a

participação efetiva do espectador começa a se tornar tema de estudo e prospecção corrente

nas artes, sendo a partir desta década que os artistas passam a incluir em suas obras mecanis-

mos que possibilitam a intervenção ativa dos observadores, solicitando uma resposta autôno-

5 Cf. Martin (2004:21), Laszlo Moholy-Nagy, artista auto-didata e professor da Bauhaus, era interessado na in-

vestigação dos novos meios artísticos, em conciliar a arte aos meios técnicos de produção e em conferir à arte

um novo posto na então nova sociedade industrial.

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ma e não prevista, dissolvendo fronteiras físicas entre a obra e o processo de fruição. A per-

cepção passa a tomar o lugar, antes privilegiado, da materialidade artística. A percepção que

os espectadores tem sobre as propostas artísticas são incorporadas como uma “re-criação” do

discurso iniciado pelo artista, agora muito mais um propositor do que alguém que apresenta

algo acabado.

O corpo começa a ocupar posições centrais nesta concepção de arte, já que não é mais

somente o olhar que se inscreve e atua na obra, mas, com o conceito de ambientes e instala-

ções ocupando o lugar dos quadros, o corpo do espectador passa, muitas vezes, a ser a própria

materialidade do discurso artístico. Neste tipo de obra, é o “corpo inteiro do observador e não

mais somente o seu olhar que se inscreve na obra, enquanto esta ganha em extensão […] po-

de-se então falar de participação real e não mais mental” (Couchot, 1997:136). Estabelecendo

o espectador como centro da obra, o artista convida-o uma nova atitude diante dela: “A obra

desmaterializa-se e a atividade criativa, de forma geral, torna-se pluridisciplinar” (Plaza, op.

cit.:10). Este discurso faz o espectador partilhar do tempo da criação da obra (Couchot, op.

cit.:136), pois ela passa a ser sensível à solicitações e manipulações oriundas dos observado-

res e do ambiente.

Como exemplos de manifestações artísticas interativas da década de 1960, Machado

(1997:145) cita, entre outros, os móbiles no norte-americano Alexandre Calder, os espetácu-

los coletivos do grupo Living Theatre, os happenings do grupo Fluxus e os bichos da brasilei-

ra Lygia Clark. É no contexto desta época que Oiticica se insere e passa a criar ruídos novos

nas formas de produzir e pensar arte.

1.1 Hélio Oiticica

Como descrito, atualmente percebemos uma grande especulação sobre métodos de

produção de linguagens híbridas interativas transmitidas, principalmente, através de canais di-

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gitais. Como contraponto, têm-se uma parcela significativa da produção embrionária de expe-

riências neste campo revelando-se extremamente conformada, descontextualizada e inapta a

apontar horizontes prospectivos para a constituição de novas sintaxes6. Uma retomada do

olhar para a obra de Oiticica pode indicar novos rumos conceituais e fazeres desafiadores para

a produção crítica de sistemas de linguagem que encontram no meio digital um canal ímpar

para seus arranjos de sinais.

Para Oiticica, autor de uma concepção de obra de arte inaugural, a obra de arte só

existia enquanto anti-arte7 já que, classicamente, a arte operou em um mundo descolado dos

valores cotidianos, tidos como superficiais ou mundanos. Ele sempre se colocou como um

provocador, em todos os sentidos, sendo alguém que clamou por uma “transcendência social

da arte, isto é, uma metafísica concreta, uma arte interessada na vida” (Justino, op. cit.:21).

Suas obras quebram estruturas mediadoras clássicas, que acompanham a arte desde tempos

remotos. O contato – através dos parangolés, principalmente – é estabelecido de maneira dire-

ta com o público, sem passar por galerias de arte, museus, críticos ou historiadores. O salto é

direto para o cotidiano.

Figura prenhe de contradições, traduzidas em todas suas propostas, Oiticica foi um ar-

tista “brutalista e matemático, delirante e rigoroso, geométrico e carnaválico, trangressor de

valores e construtivista” (Salomão, op. cit.:132), “legenda do artista-inventor; aquele que cava

no desconhecido, definindo suas próprias regras de criação e categorias de julgamento” (Fa-

varetto, 2000:16) e ainda “caracterizava-se como artista-pensador. Isso não significa afastar a

sensibilidade, mas tão somente lembrar que saber as regras do jogo era essencial para esse ar-

tista” (Justino, op. cit.:4). Nos espaços/quadros/objetos/idéias criados por Oiticica, arte e coti-

6 Cf. Machado, 2001:13 7 A respeito do conceito de anti-arte, Schenberg (1973:89) diz que “desde a época do dadaísmo vem assumindo

importância a chamada anti-arte. Podemos considerar a anti-arte como um alargamento do campo da arte no sen-

tido tradicional. Ela procura essencialmente eliminar o afastamento entre a arte e as vivências tidas como não ar-

tísticas pela estética do passado”.

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diano se fundem, criando um jogo com o participante e distanciando sua obra da chamada

vanguarda, muito próxima ao sistema: “Não faço ‘vestimenta de vanguarda’, como muitos,

para esconder idéias conservadoras: não me calo, também, esperando um ‘reconhecimento fu-

turo’: estou vivo, falando” (Oiticica, 1971).

Para Schenberg (1973:97),

Hélio Oiticica tornou-se uma das personalidades mais importantes do movi-

mento da arte ambiental em todo o mundo. Partindo do neo-concretismo ca-

rioca, compreendeu a riqueza de possibilidades artísticas da vida dos morros

e favelas, sabendo aproveitá-las com um talento excepcional. Foi uma das fi-

guras principais da nova objetividade e do movimento tropicalista.

Para Oiticica, “o exame vivenciado pela experiência direta é uma didática superior à

obediência passiva e cega” (Salomão, op. cit..:22). Oiticica foi um artista que não travou diá-

logos com o sistema de arte vigente, vivendo toda sua vida com recursos de sua família, de

bolsas de estudo8 e de traduções que realizava. Considerava que os críticos de arte brasileiros

não possuíam uma visão realmente crítica sobre o que estava acontecendo. A este respeito, em

carta enviada de Nova Iorque, em setembro de 1971, o artista esclarece que:

[…] não vou expor em galeria alguma em S. Paulo, como vem sendo noticia-

do em jornais do Rio – S. Paulo, segundo soube; em primeiro lugar: não sei

desde quando “exponho em galerias”; as experiências que fiz foram bem li-

mitadas, quanto a exposições e promoções: uma no Rio, em 66 (G-4); as ex-

periências no MAM e na Rua (Apocalipopótese, em 68, Tropicália, em abril

de 67); Internacionais: uma retrospectiva na Whitechapel em Londres (69),

que foi uma experiência ambiental (sensorial) limite; e em 70, praticamente

1/3 da exposição Information, no Museu de Arte Moderna de New York, de-

dicado a mim (ninhos). (Oiticica, 1971).

Aveso à retrospectivas, Oiticica dizia que não iria ficar repetindo ad infinitum as mes-

mas coisas, como um artista acabado e que seu compromisso era somente com o caráter ino-

vador das novas experiências. Tais experiências não tinham nenhuma finalidade comercial, 8 Em 1970 Oiticica ganha o prêmio Guggenhein e passa a residir em Nova Iorque, retornando ao Brasil somente

em 1978.

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nenhuma ligação com a parcela da burguesia interessada em arte. Para ele, “tudo é [era] feito

propositalmente como defesa das instituições que se abrigam no conceito de ‘artes plásticas’ e

de suas promoções paternalistas: salões, bienais: principalmente a de S. Paulo” (Oiticica,

1973:148). Entretanto, Oiticica não aderia ao discurso inocente das chamadas esquerdas, ten-

do consciência de que a simples fuga, seja do mercado, seja do sistema de arte ou do capital, é

tão alienante quanto o deslumbramento causado por estes mecanismos. É neste caminho que

Oiticica afirma que a solução é “consumir o consumo como constituinte da linguagem” (Oiti-

cica apud Justino: op. cit.:133). A anti-arte, neste sentido, não é a negação da arte, mas sim

uma oposição ao rotineiro e contra o sistema de arte, pois, de acordo com Justino (op. cit.:9):

no momento em que não existe mais obra, apenas proposta, o objeto desapa-

rece, e com sua ausência não se tem mais contemplação nem comércio de ar-

te. O que o artista chamou de antiarte segue de perto a visão de Mário Pedro-

sa: para ambos, a arte possui uma natureza afetiva que aflora no exercício

experimental da liberdade. O papel do artista passa a ser tão somente o de

auxiliar o coletivo a viver este experimental, sem limites.

É assim que Oiticica é ao mesmo tempo marginal –

Hoje, recuso-me a qualquer prejuízo de ordem condicionante: faço o que

quero e minha tolerância vai a todos os limites […] Hoje sou marginal ao

marginal, não marginal aspirando à pequena-burguesia ou ao conformismo

[…] mas marginal mesmo: à margem de tudo, o que me dá surpreendente li-

berdade de ação. […] Sempre gostei do que é proibido, da vida da malandra-

gem que representa a aventura, das pessoas que vivem de forma intensa e

imediata, porque correm riscos […]. Grande parte da minha vida passei visi-

tando meus amigos na prisão. (Oiticica apud Justino, Ibid.:81)

– e herói –

“Não sou pela paz; acho-a inútil e fria – como pode haver paz, ou se preten-

der a ela, enquanto houver senhor e escravo!” (Oiticica apud Justino,

Ibid:106)

– sendo caracterizado por Salomão (op. cit.:26) como

Usina inaudita de energia, um homem onde […] coexistem resquícios de um

romantismo mais radical, extremado até as últimas conseqüências como a

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frase-estandarte SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI que é o pináculo, o ápice

deste romantismo desbragado.

Oiticica nega a busca de raízes, de afirmação de identidades brasileiras, considerando

estes processos uma reafirmação e propagação de nossa condição enquanto colônia, depen-

dente de outras culturas. O mundo e principalmente as questões do homem urbano passam a

ser o objeto de suas pesquisas. Oiticica foi um artista com

uma necessidade maior, não só de criar simplesmente, mas de comunicar al-

go que para ele é fundamental, mas essa comunicação teria de se dar em

grande escala, não numa elite reduzida a experts mas até contra essa elite,

com a proposição de obras não acabadas, abertas (Ibid.:116, grifo do autor).

As inquietações de Oiticica com relação aos procedimentos interativos começam a to-

mar forma durante os anos 1961-1965, quando realiza uma ruptura e estabelece uma nova

possibilidade de linguagem para a artes visuais a partir de seus “penetráveis”, “bólides” e pa-

rangolés. Os bólides incorporam o sensorial, os penetráveis a participação e, finalmente, os

parangolés – iniciados em 1964 – realizam a junção das experiência anteriores com a questão

do tempo. Este percurso incomum encontra sentido em sua formação, já que o artista foi

iniciado no rigor construtivo, sem passar pelo aprendizado costumeiro, [as-

sim] Oiticica chega rapidamente às experiências-limite do monocromatismo,

ao abandono da moldura e do suporte, ao salto para o espaço real. (Favareto,

op. cit.:18).

Porém, metodologicamente, os princípios da construção de discursos interativos sem-

pre estiveram presentes em suas reflexões, tendo em vista que não há muito sentido em esta-

belecer uma cronologia do conjunto de sua obra, já que o artista trabalhava com um processo

de produção não-linear, algo próximo

a uma montagem/desmontagem cinematográfica. Como em um filme, pode-

mos tomar algumas das últimas obras de Oiticica e refazê-las, numa espécie

de montagem, recriando-as e adicionando-lhes outras significações, porque a

própria proposição-processo permite isso. Precisamente por se tratar de um

programa aberto, cada realização é uma nova obra (Justino, op. cit.:6).

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O próprio Oiticica disse que não há sentido em pensar sua obra em termos do que terá

vindo “antes” ou “depois”, visto que

na verdade há uma tal simultaneidade de raízes e veios q se erguem q não é

possível saber o q veio antes ou depois: raízes criadas no ar a partir da IN-

VENÇÃO do criador-artista e nunca as malfadadas tão faladas “raízes” e q

estas sim seriam o empecilho à INVENÇÃO CRIATIVA (Oiticica, 1986,

grifo do autor).

1.2 Os parangolés

Dessas experiências, as mais pertinentes para o contexto aqui apresentado são, sem

dúvida, os parangolés. Segundo Justino (op. cit.), o poeta Haroldo de Campos define o paran-

golé como sendo uma “asa delta para o êxtase”, na medida em que, mais que um conjunto de

obras, trata-se de um vôo para a liberdade, onde o artista perseguiu a participação livre, es-

pontânea e aberta; o diálogo com a incerteza9, com o indeterminado, em uma estrutura precá-

ria, no sentido da não-completude, a ser construída também pelo receptor e onde o resultado

transcenda, ou até mesmo contradiga, as intenções iniciais do artista. Para Salomão (op. cit.:

17), neste tipo de estrutura “é o processo criativo total que é ativado impedindo o fetichismo

coagulador da obra feita”.

Oiticica classificava os parangolés como programa ambiental:

O meu programa ambiental a que chamo parangolé não pretende estabelecer

uma nova moral ou coisa semelhante, mas derrubar todas as morais, pois

que estas tendem a um conformismo estagnante, a estereotipar opiniões e

criar conceitos não criativos […] Os parangolés são, então, programas desti-

nados a abrir o comportamento individual em direção ao coletivo. Dessa for-

ma, enriquecem a experiência da vida. (Oiticica apud Justino, op. cit.: 43,

grifo do autor).

9 Conhecer e pensar, para Morin (2001:59), “não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com

a incerteza”.

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Tal caracterização tem uma relação direta com a configuração de uma linguagem inte-

rativa que contemple os meios digitais. Formalmente e materialmente, a maioria dos parango-

lés apresenta-se como capas para vestir, de tecido ou plástico, servindo de suporte para ele-

mentos pictóricos ou verbais10 (figuras 1, 2, 3 e 4). É a partir da experiência de vestir o paran-

golé e desdobrar este ato em uma desprogramação intelectual e corporal, na medida que o pa-

rangolé traz um espaço livre não institucionalizado, aberto a experimentação e fantasia e, por-

tanto, próximo dos aspectos e heranças primitivas, onde o homem encontra o homem, que Oi-

ticica propõe a experimentação de novas sensações. O espaço está disponível para ser cons-

truído e reconstruído constantemente, já que os parangolés permitem o diálogo em tempo real

entre Oiticica, o receptor co-autor, elementos visuais, sonoros, gestuais e táteis, o que recria a

obra a cada utilização/fruição, caracterizando os parangolés como projetos em eterna constru-

ção. As concepções de Oiticica – enquanto autor metamorfoseado em propositor –, sofrem um

processo de hibridização, dissolvendo-se em meio às mutações provocadas pelos receptores,

ao refazerem, constantemente, a obra.

O artista tinha um interesse pela pessoa humana no sentido completo. A participação

do expectador em Oiticica nunca teve a frieza encontrada em outras experiências onde a con-

tribuição existente na fruição é puramente mecânica e o receptor é, na verdade, passivo e pas-

sível de efeitos pré-concebidos. Para Oiticica, a construção da experiência e da própria obra,

já que sem o participante não existe obra, se dá no tripé constituído por três categorias bási-

cas, identificadas por Justino (op. cit.): a indeterminação, o transitório e o acaso. É nesse espa-

ço extremamente aberto que o sensório se une ao intelectual para a criação de uma experiên-

cia que não estava, e nem poderia estar, prevista pelo artista. Oiticica posiciona-se como um

propositor, animador de repertórios coletivos, já que os elementos que permitem a interativi-

dade estão disponíveis: o samba, as capas, os valores pictóricos, os pigmentos, as pedras, a 10 Cf. Salomão (op. cit.:129), “o primeiro PARANGOLÉ foi calcado na visão de um paria da família humana

que transformava o lixo que catava nas ruas num conglomerado de pertences”. A materialidade dos parangolés,

nasce, portanto, da constatação de uma contingência, nada tendo de decorativo ou polido (Ibid.: 38).

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Figura 1

Luiz Fernando Guimarães veste PARANGOLÉ CAPA 23, M’Why Ke,

Nova Iorque, 1972

(Foto Hélio Oiticica)

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Figura 2

Romero veste PARANGOLÉ P33 CAPA 26 junto ao World Trade Building em

Manhattan, Nova Iorque, Dezembro de 1972

(Foto Catálogo O q faço é Música)

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Figura 3

Nildo da Mangueira veste PARANGOLÉ P4 CAPA 1 - 1964

(Foto Catálogo O q faço é Música)

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Figura 4

Jerônimo da Mangueira veste PARANGOLÉ P5 CAPA 2 - 1964

(Foto Catálogo O q faço é Música)

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areia, as folhas. Porém, estes signos são organizados e só adquirem um sentido mais pleno

“com a incorporação do elemento mais rico, o participante, que se torna corpo e obra”

(Ibid.:46).

Salomão (op. cit.:37) completa dizendo que

a relação do artista-propositor com o participante que veste o PARANGOLÉ

não é a relação frontal do espectador e do espetáculo, mas como que uma

cumplicidade, uma relação oblíqua e clandestina, de peixes do mesmo cardu-

me.

Aqui, o artista “providencia o espaço, a cartografia, mas cabe ao usuário traçar o seu

percurso […] delega ao fruidor uma parte de sua autoridade, responsabilidade e capacidade

para fazer crescer a obra” (Plaza, op. cit.:25-26). Desta forma, o repertório individual, que se

torna coletivo é a base do trabalho de Oiticica:

A experimentalidade tal como definida por ele [Oiticica] está profundamente

apoiada nessas possibilidades do vivido, nas vivências de poéticas com e do

outro, fenômeno que se dá também pela impregnação entre campos expressi-

vos (Figueiredo, 2003:9).

O que interessa é a apropriação: do espaço, do tempo, das experiências e sensações da

coletividade para construção de novos espaços, tempos, experiências e sensações. Através

destas apropriações, os parangolés realizam intercâmbios entre linguagens, para darem origem

a uma nova dimensão semiótica. Para entender esta característica dos parangolés, o texto de

Santaella (2001:373) é esclarecedor:

As três matrizes da linguagem e pensamento11 não são mutuamente exclu-

dentes. Ao contrário, comportam-se como vasos intercomunicantes, num in-

tercâmbio permanente de recursos e em transmutações incessantes.

Nesta concepção, os parangolés atuam como facilitadores da transitação entre lingua-

gens. Porém, é importante observar que apesar do aspecto material e tátil das capas, elas não

11 A saber: matriz sonora, matriz visual e matriz verbal.

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se constituem como objetos, no sentido mais comum do termo, principalmente no que se refe-

re ao objeto de arte. A capa é muito mais um ponto que emana possibilidades e concentra vir-

tualidades do que uma escultura. Justino (op. cit.:46) muito apropriadamente nomeia os pa-

rangolés de “núcleos12 energéticos”, a partir da constatação de que “a ausência do objeto dá

lugar ao nascimento das possibilidades, mesmo porque o espectador foi abolido, dando lugar

ao participante que, agora, equilibra-se na corda bamba da sensibilidade pura” (Ibid.:46). Oiti-

cica passou da produção de objetos para a invenção e produção de modelos e sistemas, onde

ele “propõe seus modelos como alternativa, seus próprios valores como ética, perseguindo sua

produção simbólica por meio de ações transgressoras” (Tavares, op. cit.:41).

Seria o parangolé uma zona autônoma, livre das amarras que condenam o homem das

cidades contemporâneas, mas que se apropria dos elementos que constituem este mundo insti-

tucionalizado? Neste sentido, perfazendo uma experiência multimodal, os parangolés passam

a incorporar a música das massas do Rio de Janeiro – o samba produzido no morro da Man-

gueira – e a dança. A música e a dança são entendidas por Oiticica como elementos que possi-

bilitam uma comunhão com o ambiente, sendo que foi

durante a iniciação ao samba que o artista passou da experiência visual, em

sua pureza, para uma experiência de tato, do movimento, da fruição sensorial

dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante

do visual, entra como fonte total da sensorialidade (Pedrosa, 1965).

Além do samba, Oiticica passa a incorporar outros ritmos a suas experiência:

Descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é “uma das artes” mas a

síntese da conseqüência da descoberta do corpo: porisso o ROCK p. ex. se

tornou o mais importante para minha posta em cheque dos problemas chave

da criação (o SAMBA em q me iniciei veio junto com essa descoberta do

12 Todo trabalho de Oiticica tem como modelo guia o conceito de “núcleo”, de centro de energia. Suas obras não

se constroem a partir de relações formais. Conforme Brett (1986), o núcleo em Oiticica pode ser “um garrafão

cheio de terra e tijolo moído ou capas que cobrem o corpo […]. Intimamente ligada à idéia do ‘Núcleo’ está a

idéia de proteção, de abrigo, as quais novamente incluem ambas, substâncias e o ser humano, fazendo uma espé-

cie de solidária troca espiritual entre as duas”.

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corpo no início dos anos 60: PARANGOLÉ e DANÇA nasceram juntos e é

impossível separar um do outro): o ROCK é a síntese planetário-fenomenal

dessa descoberta do corpo q se sintetiza no novo conceito de MÚSICA co-

mo totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI HENDRIX

DYLAN e os STONES são mais importantes para a compreensão plástica

da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK! (Oiticica, 1986).

Os parangolés passam, portanto, a possibilitar a desprogramação de ambientes hermé-

ticos ao estabelecerem ligações entre dança, música, ambiente, experimentação e fantasia. O

espaço institucionalizado de uma galeria, como a Whitechapel Gallery de Londres – onde o

artista expôs em 1969 –, por exemplo, ganha autonomia para o expectador na medida em que

este percebe o parangolé como instrumento estético que possibilita trazer ao espaço justamen-

te o que o espaço nega: o uso efetivo do espaço e do tempo – a participação – ao invés da sim-

ples contemplação. Estruturas de comportamento não previstas emergem através da interação

com as capas. Para Oiticica, o ato de vestir o parangolé já instaura o novo no ambiente e no

sensório, pois a contemplação é abolida a partir do contato físico, do panejamento da capa so-

bre o corpo.

Da experiência estética proporcionada pelos parangolés nascem novas linguagens e

caminhos para a arte pós-moderna. O que os produtores e pesquisadores de conteúdos para os

meios digitais, enquanto território livre para exploração, podem aproveitar destas experiências

para a construção de linguagens mais apropriadas para este meio? Alguns confrontamentos

neste sentido passam a ser explorados nos desdobramentos a seguir.

1.3 Canibalismo digital: descobrindo e incorporando o outro

Lévy (2001b) ao conceituar suas reflexões sobre coletivos inteligentes aponta para a

importância dos meios de comunicação contemporâneos como ferramentas para a construção

de novas formas de relacionamento humano. Tais meios de comunicação são elementos cha-

ves para a constituição da sociedade da informação que, nas palavras dos educadores espa-

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nhóis Flecha & Tortajada (2000:22) “é uma realidade econômica e cultural, e não uma abstra-

ção intelectual”.

Se para McLuhan (2002) o meio é a mensagem e Lévy (op. cit.:120) indica que a co-

municação através de canais digitais pode “modificar a antiqüíssima distribuição de cartas an-

tropológicas que condena as grandes coletividades a formas de organização políticas muito

afastadas dos coletivos inteligentes”, uma articulação destas idéias indica que uma das mensa-

gens principais embutida nos meios digitais é a desarticulação da arquitetura que predominou

no século XX, onde a emissão de mensagens pela mídia de massa foi um fenômeno separado

da recepção.

Partindo deste ponto e vislumbrando um cenário embrionário, onde configura-se “um

novo setor (quartenário ou informacional), em que a informação é a matéria-prima e o seu

processamento é a base do sistema econômico” (Flecha & Torjada, op. cit.:22), com o compu-

tador ocupando o papel de grande “mídia das mídias semióticas” (Santaella, 2003b:20), che-

ga-se a um dos elementos fundamentais para a articulação de uma nova arquitetura que privi-

legie a comunicação e não somente a informação: a interatividade aplicada aos processos di-

gitais de comunicação.

Neste paradigma, a mensagem é montada, desarticulada e rearticulada inúmeras vezes

não somente por quem a produz, mas também por seus receptores que agora, teoricamente,

possuem meios técnicos que possibilitam esta assemblagem em tempo real, desestruturando a

idéia de núcleos centrais de produção e difusão de mensagens, instaurando a criação coletiva

– em rede – de mensagens, abrindo brechas13 na relação linear mecanicista que separa produ-

ção e recepção e criando uma nova relação tempo-espaço, já que as mensagens deixam de es-

13 Para Plaza (op. cit.:13), são as brechas – intervalos – que possibilitam a leitura do outro, do heterogêneo. As

brechas são, assim, intervalos dedicados a criação coletiva.

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tar ligadas necessariamente a um suporte físico e passam a habitar o espaço digital, adquirin-

do um caráter mutante.

De acordo com a Santaella (2003b.:71) “graças à digitalização e compressão dos da-

dos, todo e qualquer tipo de signo pode ser recebido, estocado, tratado e difundido via compu-

tador”, caracterizando o espaço digital como uma grande rede de transmissão e acesso a estes

signos e estabelecendo uma cisão entre os dados que são simplesmente manipulados digital-

mente, mas continuam habitando suportes físicos que necessitam de instrumentos especializa-

dos para seu acesso e manipulação, e os dados que estão disponíveis digitalmente na rede e

que utilizam o computador como único meio de acesso, manipulação e distribuição. O conhe-

cimento acumulado perde o que restava de sua materialidade e volume, tornando-se invisível,

virtual, e, assim, possibilitando ser atualizado de diversas maneiras, contextualizando-se e li-

gando-se com outros saberes.

As possibilidades de preenchimento das brechas abertas na mensagem mostram-se de

acordo com as reflexões de Bakhtin14 (2003) no que diz respeito a conceitos lingüísticos, onde

o produtor – falante – e o receptor – ouvinte – não estão mais isolados por um hiato:

Até hoje ainda existem na linguística ficções como o "ouvinte" e o "enten-

dendor" (parceiros do "falante", do "fluxo único da fala", etc.). Tais ficções

dão uma noção absolutamente deturpada do processo complexo e amplamen-

te ativo da comunicação discursiva. [...] Não se pode dizer que esses esque-

mas sejam falsos e que não correspondam a determinados momentos da rea-

lidade; contudo, quando passam ao objetivo real da comunicação discursiva

eles se transformam em ficção científica. Neste caso, o ouvinte, ao perceber

e compreender o significado (lingüístico) do discurso, ocupa simultaneamen-

te em relação a ele uma ativa posição responsiva – concorda ou discorda dele

(total ou parcialmente) –, completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc;

essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de

audição e compreensão desde o início, às vezes literalmente a partir da pri-

meira palavra do falante. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo

14 Para Bakhtin, a verdade tem sempre uma expressão polifônica.

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é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bas-

tante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela

forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. (Ibid.:271)

Embora o conceito de trabalho em rede seja relativamente recente nos meios digitais –

as primeiras interfaces comerciais para conexão inter-computadores surgiram no final da dé-

cada de 1970 –, o conceito é bastante familiar ao homem, já que o cérebro, embora ainda seja

um terreno vasto a ser explorado, opera a partir de uma rede neural, onde conexões não-linea-

res são estabelecidas a cada instante. Segundo Lévy (op. cit.:105), “o funcionamento psíquico

é paralelo e distribuído, em vez de seqüencial e linear” e, para Boccara (2004:1),

o centro da experiência existencial humana, onde tudo se concentra e se pro-

cessa, é a mente. Esta base terminal […] é, por natureza operacional, cons-

truída de signos, portanto de qualidade virtual.

Neste momento de nosso processo civilizatório, esta mente elaborou exten-

sões de suas funções simbólicas de tal modo que adquiriu autonomia supe-

rando os limites de mentes individuais configurando uma mente de natureza

coletiva: as redes telemáticas planetárias.

O trabalho digital em rede mostra-se, então, muito mais próximo do ser humano do

que a simples emissão de mensagens de comando pelo computador, onde o usuário pode so-

mente clicar em botões do tipo “aceito”, “sim”, “não” ou “ok”. Este sistema de emissão de

mensagens programadas domina grande parte das produções mediadas por computadores,

desperdiçando um grande potencial latente, em que o receptor poderia atuar ativamente no

processo de semiose, participando de maneira mais atuante na geração de novas significações

ao invés de somente seguir caminhos programados.

A distribuição em rede e conseqüente inclusão repertorial quebra o paradigma consti-

tuído por esta programação autoritária, indo de encontro às inquietações de vários setores da

sociedade contemporânea, à medida em que,

ao contrário da sociedade industrial, que se baseava na produção material e

na qual os grupos que possuíam os meios de produção, ou tinham uma posi-

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ção vantajosa no mercado, eram os que conseguiam benefícios, a sociedade

informacional é o tratamento da informação – e, em todo o mundo, temos

oportunidade de processá-la. (Flecha & Tortajada, op. cit.:24)

Machado (2001a) aponta para o conceito de irreversibilidade linear como constituinte

da produção midiática centralizada, onde o objetivo e os elementos que compõe a mensagem

são pré-determinados e fechados. Machado nos diz que, no conceito de trabalho em rede, “se

pode, num sistema considerado, selecionar não apenas vários objetivos, mas também várias

maneiras de se atingir o mesmo objetivo” (Ibid.:122), abrindo o horizonte da construção e in-

terpretação de mensagens. Novamente Oiticica mostra-se embrionário do cenário digital que

constitui-se neste início de século, visto que

a idéia de determinação, com sua carga de irreversibilidade, é afastada do

trabalho de Oiticica. Com os parangolés não sobra mais espaço para qual-

quer definição a priori: a obra é abertura radical. Não existe mais aquele fos-

so entre participante e objeto, na medida em que um torna-se o outro. (Justi-

no, op. cit.:50)

O espaço digital também constitui-se como local matricial, sendo local privilegiado

para a construção do conhecimento reversível, inacabado, abrindo a possibilidade de constru-

ção de visões mais contextualizadas, formadas a partir de vários pontos de vista, aproximan-

do-se, também, do discurso da ciência reflexiva, que “dessacraliza inclusive seu próprio con-

ceito, rompendo com a busca de uma verdade absoluta definida unilateralmente ou de forma

definitiva” (Flecha & Tortajada, op. cit.:25). O espaço digital em rede nega a contemplação

como via de fato, sendo um enorme buraco negro que engole e devolve dados, possibilitando

a reversibilidade.

Cada integrante desta grande comunidade passa a absorver os conhecimentos de seus

pares, incorporando-os de forma crítica ao seu repertório, constituindo uma espécie de “cani-

balismo digital”, fazendo analogia aos conceitos usados por Ribeiro (1997:47), quando coloca

em uma perspectiva antropológica os rituais canibalistas praticados pelos índios brasileiros no

início do processo de colonização:

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Um guerreiro lutava, bravo, para fazer prisioneiros, pela glória de alcançar

um novo nome e uma nova marca tatuada cativando inimigos. Também ser-

via para ofertá-lo numa festança em que centenas de pessoas o comeriam

convertido em paçoca, num ato solene de comunhão, para absorver sua va-

lentia, que nos seus corpos continuaria viva.

Neste caso, a “valentia” transmuta-se em repertórios e imaginários individuais que se

juntam em um grande caldeirão digital, para comporem e continuarem vivos em um coletivo

maior, que Lévy (2000:10) chama de “inteligência coletiva”:

Forma social inédita, o coletivo inteligente pode inventar uma “democracia

em tempo real”, uma ética da hospitalidade, uma estética da invenção, uma

economia das qualidades humanas. […] Depois de ter sido fundados na rela-

ção com o cosmos, na pertença aos territórios e finalmente na inserção no

processo econômico, a identidade das pessoas e os vínculo social poderiam

expandir-se no intercâmbio de conhecimentos.

Oiticica, segundo Justino (op. cit.:87), chamava suas obras de “espaços imantados”,

pontos de atração, transformação e vibração, possibilitando a criação de espaços onde a or-

dem, a organização dos signos, se faz com o receptor. A obra só existe e se configura como

tal com a presença ativa do participante, mesmo que esta atividade se configure pela não-par-

ticipação15, pois esta abordagem

traria uma nova estrutura, na qual o artista transforma-se em investigador da

criação coletiva latente. A contribuição do artista vem a ser a de engendrar a

ação na qual as significações emprestadas são possibilidades suscitadas pela

obra, não previstas, incluindo a não-participação (Ibid.:73).

Dessa forma o “espaço imantado” passa a se constituir como lugar, já que o lugar se

diferencia do espaço pelo “fato ou acontecimento que o justifica e se caracteriza através da

15 Aqui existe uma problematização com relação à recepção interativa, já que existe um processo de co-autoria, é

necessário que o receptor seja alguém capacitado para exercer seu livre-arbítrio. Plaza (op. cit.:24) ao ponderar

sobre este aspecto, diz que “o principal problema da leitura, agora transferido para as questões da interatividade,

é o da qualidade da resposta, qualidade da significação, ou seja, qualidade do interpretante. É aqui que reside o

nó da questão, pois todo leitor escolhe e é escolhido. Neste sentido, o leitor interativo deve escolher as melhores

opções que lhe convêm para se manifestar, como leitor criativo ou não”.

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imagem, do signo que o representa. Portanto, o lugar é marcado pela sua manifestação semió-

tica” (Ferrara, 2002:18). Para Plaza (op. cit.:20), “é possível falar de um lugar de encontros

fundado sobre as comunicações, graças ao qual os processos interativos se tornam uma reali-

dade em escala planetária”. Tais “espaços imantados” aproximam-se da concepção de espaço

digital na medida em que este exerce a função de lugar, já que caracterizam-se processos co-

municacionais, de significação, estabelecendo-se ligações sociais no processo de composição

em rede, o que significa que o outro – o alter – deve ser levado em conta e o roteiro que for-

ma as mensagens deve ser flexível ao ponto de possibilitar a inclusão repertorial dos recepto-

res. Na concepção de Oiticica o

outro não é uma abstração desencarnada, com o qual é imperativa a união

para construir uma futura sociedade utópica, como no redentorismo marxis-

ta. O outro é um corpo de carne y hueso que opera uma transmutação do

próprio corpo do Hélio tornando-o sensível ao sensível (Salomão, op. cit.:36-

37).

O princípio da interatividade reside neste ponto: deve ser aberta aos receptores a pos-

sibilidade de modificar os roteiros, que passam a incorporar elementos não-lineares à sua

constituição, o que implica em recortes no tecido da mensagem proposta, estabelecendo diálo-

gos com a indeterminação:

o emissor não emite mais mensagens, mas constrói um sistema com rotas de

navegação e conexões. A mensagem passa a ser um programa interativo que

se define pela maneira como é consultado, de modo que a mensagem se mo-

difica na medida em que atende às solicitações daquele que manipula o pro-

grama. (Santaella, 2003a:36).

Ou seja, existem espaços para os receptores preencherem, a mensagem não é mais fi-

xa, mas forma-se na mobilidade de jogos que ocorrem simultaneamente, montados com uni-

dades mínimas fornecidas por diversos participantes, trazendo implicações profundas, já que a

interatividade “não é somente uma comodidade técnica e funcional; ela implica física, psico-

lógica e sensivelmente o espectador em uma prática de transformação” (Plaza, op. cit.:20).

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Rompe-se com a idéia de linearidade, já que as relações entre os elementos constituin-

tes são mutantes, dependem das relações estabelecidas, que podem ser alteradas por qualquer

receptor/produtor. A mensagem deixa de ser simplesmente a somatória do conjunto de ele-

mentos que a constitui:

a comunicação interativa pressupõe que haja necessariamente intercâmbio e

mútua influência do emissor e receptor na produção das mensagens transmi-

tidas. Isso quer dizer que as mensagens se produzem numa região intersticial

em que o emissor e o receptor trocam continuamente de papéis. (Santaella,

2003a:32):

A interface com os parangolés de Oiticica é inevitável, comprovada por Justino (op.

cit.:86):

Em Oiticica a obra só aparece pelo jogo criado na trindade artista-participan-

te-ambiente. A maneira como o participante vive essa aventura – que vai

desde a forma como ele veste as capas até o que ele pode inventar com o que

encontra – é um roteiro traçado por ele mesmo.

Estabelecendo uma aproximação ainda maior com a arte, Machado (2001a:183) traz

uma colocação pontual a este respeito:

A leitura verdadeiramente rica é aquela que vê na incompletude ou na plura-

lidade da obra uma abertura real: não tenta preenchê-la de articulações episó-

dicas, nem reduzir a sua multiplicidade discursiva a uma coerência imediata

e simplificadora. A abertura, a imprevisibilidade e a multiplicidade são da-

dos na obra como tais e como tais devem ser codificados.

Completando a idéia de que uma mensagem é potencializada a partir da abertura à par-

ticipação do receptor, Bakhtin (op. cit.: 272) diz que

toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão de uma

fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma que ela se dê). O

próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamen-

te responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que

apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma con-

cordância uma participação, uma objeção, uma execução etc.

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Assim, a interatividade revela-se como estratégia e não como simples acaso na consti-

tuição do aparato midiático. O conceito de indeterminação não deve ser confundido com o

acaso, já que a indeterminação surge de processos experimentais, que se revelam metodológi-

cos e não simplesmente frutos de relações causais deterministas. O experimentar acaba por

romper o ciclo causa-efeito. A abertura ao experimento é essencial para a caracterização e

produção de mensagens abertas, pois “experimentar não é mais preparar algo para um resulta-

do acabado, mas já algo em si: um processar que se junta mais ao comportamento do indiví-

duo do que à contemplação-prazer do acabado”. (Oiticica apud Justino, op. cit.:101).

O processo cíclico de constituição, significação e resignificação das mensagens exige,

como os parangolés de Oiticica ser tratado como projeto, porém aberto, a favor de novos usos

por parte dos receptores. Nesta perspectiva, a aproximação talvez se identifique ainda mais

com o conceito de probjeto, “em que o conceito de obra acabada é trocado por estruturas ger-

minativas, nas quais a participação do indivíduo é a sua própria criação, quer ocorra de forma

direta, quer através de sua imaginação” (Oiticica apud Justino, Ibid.:104). Para Barbosa

(2005:12), é na passagem do estado virtual, da potencialidade, para a atualização, onde se

insinua a incerteza e a indeterminação. No caso dos parangolés, este processo ocorre no ato de

vesti-los e jogar o jogo proposto.

A função dos mecanismos interativos passa a ser a desinibição dos repertórios indivi-

duais para, com eles, formar um caldo comunicacional heterogêneo, metamorfoseando os re-

ceptores em produtores inventivos. Os produtores abandonam definitivamente o papel de cria-

dores e censores solitários ou impregnados de um coletivismo institucionalizado e burocrati-

zado para assumirem a posição de motivadores, animadores do repertório e imaginário coleti-

vo.

O espaço digital configura-se como virtualidade na medida em que abre diversas pro-

blemáticas novas e não as atualiza. Um dos grandes problemas abertos pela digitalização diz

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respeito ao que Oiticica (apud Justino, op. cit..:100) chamou de “difícil tarefa de abrir o parti-

cipante para si mesmo”, ou seja, a criação de mecanismos que possibilitem a desautomatiza-

ção dos padrões de comportamento estabelecidos, ao mesmo tempo que incentivem o compar-

tilhamento espontâneo dos repertórios. O receptor deve se sentir instigado a participar da ex-

periência. Os signos devem provocá-lo neste sentido e, ao mesmo tempo, os meios técnicos

que servem como suporte a estes signos precisam oferecer métodos fáceis aos leigos em tec-

nologia para que eles possam partilhar seus saberes de forma transparente. Os projetos intera-

tivos devem servir como pontos de partida para os receptores, sendo que os resultados devem

ser constituídos à partir da experiência individual em meio à coletividade de cada participante.

Não há espaço para o resultado pronto.

Tal problemática deságua no que Lévy (2001a) aponta como sendo a banalização do

termo “interativo”. Na falta de uma linguagem própria, que justifique seu discurso, a palavra

“interatividade” acaba sendo utilizada erroneamente para indicar ações distintas que nada têm

a ver com interatividade. Lévy cria um quadro ligando diversos tipos de mensagens, e as rea-

ções por ela criadas, a seus respectivos dispositivos comunicacionais. Este quadro atribui

graus de interatividade para cada tipo de mensagem. O grau mais baixo é formado por mensa-

gens lineares provenientes de dispositivos como a imprensa escrita, o rádio, a TV e o cinema,

chegando às conferências eletrônicas. O grau de interatividade mais alto corresponde às men-

sagens participativas, desencadeadas através de dispositivos que variam dos videogames com

um só participante até a comunicação em mundos e comunidades virtuais, envolvendo ações,

reações e negociações contínuas.

Neste contexto, surge a necessidade da produção de sintaxes que contemplem e dêem

conta dos processos de incorporação do repertório individuais na constituição das mensagens

tratadas digitalmente. Enquanto a grande parte das produções digitais insiste no modo de pro-

dução determinista, cria-se uma crise, que na verdade acaba por constituir-se em território fér-

til para que processos desautomatizantes se desenvolvam. Tal crise “surge pela inexistência

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de uma única forma de vida e pensamento, porque as tradições têm que se explicar e porque a

informação não é um terreno restrito aos especialistas” (Flecha & Tortajada, op. cit.:25). Co-

mo, então, tentar dar conta das exigências deste novo cenário?

1.4 O modo de ser da obra de arte é o jogar

No núcleo do conceito de interatividade está o jogar, o jogo, conceito que também tem

um papel fundamental para a construção do discurso da arte e da própria idéia de cultura,

pois, para Huizinga (2004:6), “encontramos o jogo na cultura, como um elemento dado exis-

tente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens

até a fase da civilização em que agora nos encontramos”. O jogo, portanto, perspassa e ultra-

passa a esfera do humano.

Considerando o espaço digital como o lugar nuclear do jogo constituinte dos processos

interativos digitais – com suas regras e mecanismos – pode-se perceber que, aproximando-se

das reflexões sobre o conceito trazidas por Gadamer (2003), o jogo digital, por exemplo, exis-

te e desenvolve-se como entidade independente dos jogadores, no caso, dos receptores. O mo-

vimento do jogo, autorizado na dinâmica criada pela existência de um lugar para este jogar,

garante autonomia ao processo. Esta autonomia provê uma independência do jogo com rela-

ção aos jogadores, pois o jogo constitui-se como “atividade ou operação que se exerce ou se

executa por si mesma, e não pela finalidade à qual tende ou pelo resultado que produz”

(Abbagnano, 2000:589). Ou seja, o jogo é fim e meio para si mesmo.

No caso específico dos ambientes digitais, tal autonomia pode ainda ser ampliada ou

garantida pela possibilidade dos computadores serem programados com algoritmos que garan-

tam a simulação de inteligências, fato que torna a dinâmica autônoma, já que, em última ins-

tância, o jogo digital em rede pode ser travado somente por estas inteligências, que negociam

estratégias e informações com base em suas memórias digitais.

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Porém, para a interatividade, o ato de jogar torna-se válido quando o receptor assume-

se como jogador, visto que o jogar preenche sua finalidade “quando aquele que joga entra no

jogo” (Gadamer, op. cit.:175), negociando e apostando no espaço digital seu repertório e es-

tando aberto a permeação e contaminação por repertórios advindos de outros jogadores. Para

que este processo seja válido, do ponto de vista da qualidade da troca, é necessário que algu-

mas regras sejam estabelecidas no sentido de garantir qualidade às informações que estão sen-

do jogadas, pois “todos os jogos têm restrições ou regras que delimitam suas possibilidades.

Mesmo em jogos simples e individuais existem tais restrições” (Abbagnano, op. cit.:590). Pa-

ra que o jogo se dê efetivamente, os jogadores devem ver o processo e o ato com seriedade,

com a perspectiva dos fins propostos pelo lugar e pelas regras do jogo, pois jogar é agir de

acordo com as regras, admitidas como regras que adquirem sentido ao impulsionarem a criati-

vidade do jogador. É dessa maneira que o jogo estético proporciona desprendimento e liberda-

de, atuando em prol de uma expansão do sujeito (Tavares, op. cit.:36).

O papel de animador, de propositor, assume uma posição central. Os parangolés, en-

quanto elementos interativos, só são vivenciados a partir do momento em que quem os veste

leva a experiência com seriedade e respeito pelo jogo. O papel de descondicionador e de desi-

nibidor repertorial e sonsório dos parangolés somente torna-se efetivo a partir da consciência

de suas regras, que partiram de Oiticica: a proposição, o estatuto de que o ato de jogar com o

parangolé coloca quem o veste como co-autor da obra, em uma nova relação espaço-tempo.

Gadamer (op. cit., 175) diz que “não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é

por si. A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá

transformar aquele que a experimenta”. Segundo Nunes (2000:54-55), é o impulso para o jo-

go, o aspecto lúdico da arte que conjuga o sensível ao inteligível, o material ao espiritual. Por-

tanto a arte constitui-se pelo jogar. O jogo, neste caso, caracteriza-se como jogo estético, que

concilia a matéria, aspecto sensório, com a forma, ato racional, pensamento que molda a ma-

téria. O jogo estético da arte está ligado a liberdade, pois

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força eminentemente livre, o jogo estético neutraliza tanto o rigor das formas

abstratas, produzidas pelo intelecto, quanto a imediatidade das sensações

passageiras, e, “dando forma à matéria e a realidade à forma”, liberta o ho-

mem do jogo da natureza exterior e das exigências racionais exclusivistas

(Ibid., 55).

O homem se encontra na arte, já que

o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra e so-

mente é homem pleno quando joga […] com o agradável, com o bom, com a

perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga

(Schiller, 1995:83, grifo do autor).

Nunes (op. cit.: 56) completa dizendo que “nenhuma necessidade pende sobre a Bele-

za e a Arte a não ser aquela que decorre da liberdade”. Os parangolés embelezam o homem,

no sentido em que estabelecem um jogo lúdico, onde as capas adornam o corpo biológico. É

assim que o jogo do parangolé pode superar a realidade, instaurando o que Nunes (Ibid.:57)

chama de “aparência”. Vejamos:

Nas formas que se originam da criação artística ou da simples descoberta da

Beleza, […] implanta-se uma aparência, que não é simulacro ou derivativo.

Sem ser defectiva, ilusória, sem pretender substituir aquilo que já existe,

nem concorrer com o que é, a aparência estética vale por si. Devemos aceitá-

la e amá-la em sua qualidade mesma de aparência, porque ela encarna o hu-

mano em sua plenitude, porque revela a operação criadora da liberdade.

E ainda,

ao perceber a obra, por meio de uma reconciliação entre o sensível e o racio-

nal, o espectador vai, pouco a pouco, reinventando e recriando as regras des-

se jogo, sendo a ele possibilitado expandir as suas capacidades criativas, ex-

pressas por meio de uma atividade espontânea sem fim específico a não ser a

própria prática a ela inerente (Tavares, op. cit:36).

E eis que o parangolé é uma forma de se operacionalizar a criação da liberdade, sendo

uma proposição onde o sujeito pode “dispor ludicamente da realidade, configurando-a segun-

do os seus estados de ânimo e, por meio dessa atividade, convertendo-a em aparência estéti-

ca” (Nunes, op. cit..:58). Com os parangolés o espectador, consumidor ou contemplador trans-

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forma-se em participante, “suposto realizador de propostas; arrancado da imobilidade e da le-

gibilidade, estimulado por objetos, situações e idéias, exercitando o ludismo num misto de es-

colha e abandono” (Favaretto, op. cit.:22). O sujeito é dilatado a partir da experiência com os

parangolés.

Estabelecendo interfaces entre a arte e o jogo da interatividade mediada por instru-

mentos digitais, a qualidade do jogo e sua eficiência em tornar o jogador apto a desempenhar

suas tarefas de modo lúdico está diretamente ligada a qualidade conceitual da proposta do jô-

go. Ou seja, não é a inclusão de meros estandartes tecnológicos que torna o meio digital inte-

rativo, mas sim o uso destas tecnologias para a execução de conceitos nucleares para a exis-

tência do jogo. Quem propõe o ambiente digital deve fazê-lo com base em regras claras, mas

não absolutamente rígidas, que permitam níveis taxionômicos de flexibilidade para que exista

a troca e co-autoria. Os extremo oposto é o método de comunicação de um para todos ou um

ambiente onde não se comunica absolutamente nada, por predomínio único e exclusivo de

técnicas de programação.

Trazendo novamente uma proposta de interface entre o digital e a arte, a experiência

do parangolé não necessita, como condição si ne qua non, da capa específica criada por Oiti-

cica. O que persevera aqui não é a execução técnica, mas a idéia, o conceito, de algo que se

constrói junto a quem usa e que este usar atende a determinados conceitos e proposições. As-

sim o conceito da obra perdura enquanto experiência estética – mesmo que no lugar de um pa-

rangolé se utilize uma mera capa de pano –, pois ela tem uma proposta que se sustenta, que

neste caso não é baseada somente na subjetividade de quem a utiliza – não se limita a uma

discussão do tipo “é bonito” ou “eu gosto” – mas está enraizada na própria proposta.

O jogo do parangolé tem autonomia, tem um enredo que lhe garante a sobrevivência,

ao passo que grande parte das críticas feitas a interatividade digital tem razão de ser justamen-

te por condenarem a falta de enredo, de proposta, de regras, de estética nas aplicações tecno-

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lógicas. Os meios digitais precisam permear-se por propostas que levem em conta o jogador

enquanto ser atuante em um mundo em rápida transformação, que continua sendo físico, ma-

terial, mas que passa a ser representado também por duplos virtuais.

Já que o jogo, segundo Gadamer (op. cit.), tem uma natureza própria, que é indepen-

dente dos jogadores, mas que somente ganha representação através da ação e existência dos

que jogam, é preciso, justamente neste ponto, que a proposta do jogo digital esteja alinhada

com as questões contemporâneas, para que sua representação através do ato de jogar tenha

atribuições reflexivas, como os parangolés, que atingem sua potencialidade e constituem-se

como experiências realmente interativas por representarem e possibilitarem a construção de

soluções a problemáticas que eram contemporâneas de Oiticica e continuam sendo contempo-

râneas deste início de século. A experiência extremamente rica dos parangolés não existiria

caso a intenção fosse simplesmente discutir, ou exibir, a habilidade de dança de cada um ou

os aspectos físicos e materiais dos tecidos e plásticos utilizados.

1.5 Métodos interativos digitais

Se a pesquisa de Oiticica, no campo da arte aponta para caminhos bem definidos na

criação de uma linguagem participativa, como se apoderar destes elementos para a constitui-

ção de uma linguagem mediadora adequada para o espaço digital? Como visto, um item cons-

tituinte básico em projetos interativos é a consciência de que, embora a ambientação deva

propor e estimular a multiplicidade de caminhos, é preciso que exista uma intenção inicial de

quem estabeleceu, inaugurou ou criou o espaço. É necessário que haja uma preposição, um

item germinal que dará espaço para o florescimento da construção coletiva. As obras de Oiti-

cica eram criadas a partir deste embrião:

As obras compreendidas entre 1964 e 1969 desenvolvem o que o artista cha-

mou de células-comportamento: núcleos germinativos que provocam e proli-

feram, lugares de emanações. Nesses ambientes, o artista transforma-se mais

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em instigador que propriamente em criador, mas não abandona a sua condi-

ção construtiva. Embora Oiticica persiga a criação de ambientes sempre

abertos e inacabados, a célula criativa lhe pertence, é o artista que provoca a

participação, é ele ainda que põe a célula em funcionamento, seja através dos

projetos, seja pelas apropriações. (Justino, op. cit.:93, grifo do autor).

Não existe a redução ao acaso, que se configuraria pela completa ausência de propósi-

to. O que deve pautar o discurso interativo é um projeto que permita o diálogo com o indeter-

minado, com a incerteza, enfim, com a contemporaneidade. A interatividade mostra-se, então,

constituida por mecanismos reflexivos, já que a incorporação da incerteza é uma característica

das sociedades reflexivas (Flecha & Tortajada, op. cit.:26).

Os projetos interativos, porém, devem contemplar uma margem de determinação tanto

em seu núcleo quanto em sua motivação, aproximando-se do que Flecha & Tortajada

(Ibid.:26) chamam de “contradircurso filosófico da modernidade”, onde

não se elimina a subjetividade e a razão, mas propõe-se de novo sua concep-

ção, substituindo o paradigma do sujeito conhecedor e transformador de ob-

jetos pelo do entendimento entre sujeitos capazes de linguagem e ação. Uma

das características da teoria da ação comunicativa habermasiana16 é a de-

monstração de que toda tentativa de explicação do que é a pessoa implica,

discursivamente, o que ela deveria chegar a ser; explica a possibilidade de

realização da mudança social a partir do ato comunicativo e da capacidade

discursiva das pessoas; portanto, outorga-lhe a possibilidade de desenvolver

ações para a emancipação. Desse modo a incerteza não é uma barreira para a

ação, mas a possibilidade para a democratização.

Oiticica, segundo Justino (op. cit.:49) trabalhava precisamente com estes conceitos:

16 Diz respeito às reflexões do filósofo alemão Jürgen Habermas (1929). Habermas foi assistente de Teodoro

Adorno, no Instituto de Pesquisas Sociais em Frankfurt até 1959. Depois ensinou filosofia e sociologia em uni-

versidades alemãs até sua aposentadoria em 1994. De acordo com Flecha & Tortajada (op. cit.:29) “Habermas

desenvolve uma teoria da competência comunicativa na qual demonstra que todas as pessoas são capazes de se

comunicar e gerar ações. Todos nós possuímos habilidades comunicativas, entendidas como aquelas que permi-

tem comunicarmo-nos e atuarmos em nosso meio. Além das habilidades acadêmicas e práticas, existem habilida-

des coletivas que buscam coordenar ações por meio do consenso”.

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Nas proposições de Oiticica, a “obra” constrói-se abertamente e o projeto

pode ser traído pela ação. Como em um jogo entre artista e participante, obra

e vida, tudo vira circuito. […] Nos parangolés, o ponto de partida é dado pe-

lo artista: ele prepara o campo, fertiliza o terreno, delimita o espaço da ação,

mas não limita a criação. Ao contrário, é um campo aberto onde o partici-

pante inventa, inova.

Torna-se possível a partir dos dados reunidos, a tentativa de identificação de alguns

métodos possíveis para a interação digital. Partindo da concepção de Oiticica de obra como

“jogo entre artista e participante”, as principais experiências bem sucedidas no campo da inte-

ração digital ocorrem justamente nos jogos de videogame e computador, principalmente nos

últimos, que utilizam o computador e sua capacidade de ligação e trabalho em rede como pla-

taforma e o meio para troca de informações.

Os videogames são, por excelência, equipamentos que permitem a criação e a explora-

ção de ambientes interativos, onde o receptor interfere diretamente na narrativa e na constru-

ção da história. Os jogos eletrônicos começaram como um hobby de programadores que dedi-

cavam seus momentos livres à criação de jogos. O advento do computador pessoal, no início

da década de 1980, tornou muito mais acessível o desenvolvimento de programas de compu-

tador, e os jogos sempre agradaram muitos programadores, por unirem tecnologia e diversão.

Dessa forma, o desenvolvimento de jogos tornou-se uma atividade popular e o que

começou como um hobby transformou-se em um negócio lucrativo para vários desenvolvedo-

res, pois, com a criação de um número maior de consoles17, os videogames se popularizaram

rapidamente, tornando-se um mercado ávido por novos títulos e contribuindo para a prolifera-

ção da tecnologia, pois

brinquedos e jogos constituem o modo mais rápido de fazer com que uma

nova tecnologia se torne popular e lucrativa. A tecnologia dos computadores

17 Console refere-se ao hardware, a parte física do videogame, que compreende o processador e seus circuitos

eletrônicos.

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não cresceu de modo explosivo até que tivesse sido incorporada a jogos

(Dyson, 2002:90).

Nesse processo de criação de jogos, muitas tecnologias novas foram criadas e aperfei-

çoadas. A inteligência artificial, por exemplo, é uma área que teve um enorme desenvolvi-

mento a partir da criação de jogos mais complexos, em que o computador deve controlar os

oponentes e tomar decisões baseadas em modelos neurais, embora ainda esteja bastante longe

de constituir-se como uma verdadeira inteligência. Esta questão é pertinente a discussão pois,

lidando com a incerteza, os processos interativos não possuem controle efetivo sobre o desen-

rolar do enredo. Portanto, sistemas interativos digitais necessitam de algum tipo de inteligên-

cia, que permita criar uma estratégia em tempo real, baseada na mudança do cenário, analisan-

do as ações do usuário e criando reações baseadas nestes eventos que ocorrem de forma para-

lela. Gilbert Simondon (apud Machado, 2001b:126) faz uma importante e contemporânea co-

locação, que pode ser transportada para o campo da inteligência artificial e da interatividade

digital: se um dispositivo técnico prevê "uma certa margem de indeterminação, ele pode tor-

nar-se sensível a uma informação exterior".

Atualmente, existem técnicas que permitem que o computador seja programado para

operar como se estivesse funcionando em condições incertas, indeterminadas, em especial po-

de-se usar um ramo da lógica, chamado "lógica difusa"18 para criar cenários que tentem ante-

ver a possibilidade de vários resultados quando uma, ou mais de uma, condição pertinente não

seja muito conhecida. Retornaremos a questão da inteligência no capítulo 3.

No presente contexto, a grande colaboração dos jogos foi levar a possibilidade de ex-

periências interativas reais ao grande mercado consumidor, com títulos que unem enredos

não-lineares – colocando o jogador na posição de co-autor – com ambientações multimodais

cada vez mais elaboradas, a partir de uma proposição, de um ambiente aberto e inacabado,

18 A lógica difusa instrumentaliza a capacidade de capturar informações vagas, em geral descritas em uma lin-

guagem netural e convertê-las para um formato numérico, de fácil manipulação pelos computadores atuais.

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mas que se constitui como ambiente, que tem determinações básicas que possibilitam o diálo-

go com a indeterminação, resgatando dos parangolés de Oiticica o conceito de “participação

aberta, indeterminada, na qual a obra, agora elaborada também pelo participante, transcende

as intenções do artista” (Justino, op. cit.:48).

Leão (2002) lança caminhos no sentido de traçar um estudo tipológico dos tipos de jo-

gos, já que nem todos os títulos possuem o mesmo grau de interatividade, pois classificam-se

em diversas categorias, cada uma exigindo tipos de habilidades específicas. Alguns jogos, ba-

seados na solução de enigmas e labirintos, exigem raciocínio lógico, concentração, paciência,

reflexão e perseverança como os títulos da série Final Fantasy19.

Outros títulos possuem roteiros lineares, baseados em histórias fixas, onde o jogador é

conduzido por diversos níveis, devendo tomar decisões que irão impactar a existência de seu

personagem no jogo, porém, sem nenhum enigma intelectual proposto, com a dinâmica do en-

redo se apoiando exclusivamente em cenários de ação. Neste ambiente, o desafio se dá em ou-

tro plano, onde o racional não necessariamente predomina. Nessa categoria estão os jogos de

corrida, como Mario Kart20, produzido pelo Nintendo, e alguns títulos de aventura, como

Oni21, da Bungie Software.

Em outra categoria encontram-se títulos que apenas disponibilizam regras básicas –

cenários e comportamento de itens específicos, como armas –, criando um espaço virtual com

características não-lineares, onde o jogador tem um controle maior sobre o desenvolvimento

do enredo. Nesta categoria encontram-se jogos de tiro em primeira pessoa, como Quake III

Arena22, da Id Software e a série Unreal Tournament23, produzida pela Epic Games. Essa ca-

19 http://www.square-enix-usa.com/seui/index.htm 20 http://www.nintendo.com/gamemini?gameid=m-Game-0000-652 21 http://www.bungie.net/Games/Oni/ 22 http://www.idsoftware.com/games/quake/quake3-arena/ 23 http://www.unrealtournament.com/

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tegoria de jogos costuma exercer um grande fascínio sobre os jogadores, por permitir que,

através do espaço criado pelo jogo, eles possam contar suas próprias histórias e viver expe-

riências únicas. A experiência de um jogador será sempre única, pessoal, repertorial, nunca

será igual a de outro jogador. Este fato pode ser facilmente comprovado em uma simples con-

versa com alguém que acaba de participar de uma partida. O ambiente desses jogos possibilita

ao usuário liberdade de pensamento, como em um sonho ou alucinação, só que com um gran-

de controle. Daí o nascimento do fascínio exercido sobre os receptores.

Leão (Ibid.: 29-30) traz uma abordagem a respeito da estrutura dos jogos:

A narrativa dos videogames processa-se por meio da estruturação de espa-

ços. Diferentemente da linguagem do cinema, por exemplo, na qual os even-

tos sucedem-se no tempo, na arte dos videogames, a seqüência de eventos e

atividades desenvolve-se por fases ou níveis. Assim, uma das características

da estrutura dos videogames é que para passar a uma outra fase é necessário

que se tenha resolvido o problema proposto pela fase anterior.

Da resolução desses enigmas surge a atmosfera dos jogos. Aqui o conceito de enigma

é utilizado de forma abrangente, não apenas no sentido intelectual, já que os jogos podem pro-

por desafios racionais, motores ou uma mistura das duas modalidades. Essa atmosfera criada

a partir da aplicação é envolvente. Quando o receptor é estimulado a participar efetivamente

da construção do enredo/projeto ele passa a ter um interesse maior, participando ativamente

do desenvolvimento da narrativa, tornando-se, ao mesmo tempo, receptor e produtor, mesmo

não tendo domínio pleno da tecnologia envolvida, o que também ocorre com os parangolés. O

participante não precisa ser artista para participar da construção da obra. O que precisa existir

é um processo de desinibição para que os repertório individuais venham à tona. Assim, as tec-

nologias interativas revelam-se estruturas de baixa definição, inclusivas, cinestésicas por suas

característica multimodais. Retomaremos e aprofundaremos a questão da narrativa nos games,

de uma forma crítica, adiante.

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“É preciso entender que uma posição crítica implica inevitáveis ambi-

valências: estar apto a julgar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às

ambivalências, já que valores absolutos tendem a castrar quaisquer

dessas liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em

erro constantemente – envelhecer fatalmente; conduzir-se a uma posi-

ção conservadora (conformismos, paternalismos, etc.); o que não sig-

nifica que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção

forte é sempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por

pedaço cada problema. Assumir ambivalências não significa aceitar

conformisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se

então a colocá-lo em questão. Eis a questão”

Hélio Oiticica

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2 Parangolé: fenômeno catalisador de linguagens

Conforme traçado anteriormente nos interessa nos parangolés como objetos de estudo,

sua constituição projetual, sua estrutura sígnica enquanto linguagem e o que tais fatores acar-

retam quando são postos à disposição dos receptores em processos de percepção, atribuição

de significados e, neste caso, criação de novas linguagens, e não somente sua atuação enquan-

to canais transmissores, pois, segundo Santaella (2001:380):

[…] o veículo, meio ou mídia de comunicação é o componente mais superfi-

cial, no sentido de ser aquele que primeiro aparece no processo comunicati-

vo. Não obstante sua relevância para o estudo deste processo, veículos são

meros canais, tecnologias que estariam esvaziada de sentido se não fossem

as mensagens que neles se configuram. Conseqüentemente, o estudo de pro-

cessos comunicativos deve pressupor tanto as diferentes linguagens e siste-

mas sígnicos que se configuram dentro dos veículos em consonância com o

potencial e limites de cada veículo, quanto deve pressupor também as mistu-

ras entre linguagens que se realizam nos veículos híbridos de que a televisão

e, muito mais, a hipermídia são exemplares.

A proposta é tentar desconstruir o feito, procurar identificar os rascunhos, as escolhas,

os conceitos, em suma, o processo de formação da dinâmica proporcionada pelo parangolé

para, posteriormente, buscar uma aproximação e contaminação destes constituintes com os

métodos de reflexão e produção digitais. Para tanto, este capítulo parte da caracterização e

identificação dos parangolés, para depois examinar o que os torna tão poderosos, em termos

de linguagem, como sistema interativo.

2.1 Caracterização da experiência

Antecipando, de certa forma, as possibilidades de abertura que a produção hipermidiá-

tica digital oferece, Oiticica junta em um caldo único a realidade carioca da favela da Man-

gueira, música popular, questões cotidianas e discussões a respeito dos meios de comunicação

de massa com um pensamento erudito, obtido através de aproximações com Malevitch,

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Artaud, McLuhan, Kant e Hegel, entre outros. O sistema de pensamento de Oiticica nasce

desta rede complexa de influências. O que nasce disso são obras híbridas, que exploram a

união dos códigos matrizes em busca da aproximação com o que o artista chama de "homem

primitivo", conceito que nasce de sua proximidade com a obra de Nietzsche e que leva Oitici-

ca a percorrer

Multitrilhas da forma mentis: Klee e the waste land do Caju, Husserl e

Nietzsche, Angela Maria e Caetano Veloso, limpeza Malevitch e transes ex-

cessivos do carnaval, Mangueira e Rock, Hendrix e Dylan, Stonnemaniac e

sambista. Descartes e Rimbaud, delírio e rigor, gozo e revolta, hedonismo e

ascetismo, L’être et le néant e TV Guide, ao mesmo tempo (Salomão, op.

cit.:26).

Para Oiticica,

o homem primitivo vivia mais intensamente o estado de indeterminação e

gratuidade, por excelência, o estado estético. Nessa via, Oiticica se põe a

perseguir a participação aberta, indeterminada, na qual a obra, agora elabora-

da também pelo participante, transcende as intenções do artista. Sendo as-

sim, é inevitável nos parangolés a imbricação entre ética e estética (Justino,

op. cit.:48).

As reflexões de Oiticica transformam-se em obras conscientes, geradas a partir de

conceitos racionalizados, mas que formam-se, ao mesmo tempo, a partir de uma sensibilidade

extrema, que floresce de suas observações e críticas sobre os aspectos institucionais que cer-

ceiam o homem moderno, com sua vida cada vez mais condicionada ao sistema de normas

que dá o tom ao funcionamento amplo da sociedade e, em um nível mais cotidiano, às regras

impostas pelas diversas instituições por onde este homem transita.

Neste ponto, as propostas de Oiticica podem ser tomadas como projetos de interven-

ção social. Neto do famoso líder anarquista e lingüista José Oiticica e filho de José Oiticica

Filho, fotógrafo, ele vai, além de criticar o sistema vigente, propor novos rumos, novas lin-

guagens, que rompam com o estabelecido. O que interessa para esta análise é a forma como

Oiticica tratou as questões que dizem respeito aos processos comunicacionais. Acreditando

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que o sistema de produção de mensagens um-todos, com seu determinismo e grande carga de

pseudo-certeza, se encontrava saturado e contribuindo cada vez mais para o condicionamento

do homem, o artista inicia uma pesquisa onde discursos interativos passam a ser considerados

essenciais para o despertar da consciência crítica, para o descondicionamento do homem mo-

derno. É neste contexto que nasce a concepção dos parangolés, verdadeiros lugares de contar,

de narrar.

Como visto, materialmente, os diversos parangolés surgem em forma de capas cons-

truídas dos mais diversos materiais – plástico, tecido, saco, resina, pigmento, lona, filó, náilon

– cujo suporte é o corpo do receptor, que confere vida à experiência. Somam-se a esta mate-

rialidade palavras-estandartes, impressas no suporte. Tais palavras constituem aportes verbais

à intenção de descondicionar o percepto. Assim, surgem parangolés como “Eu incorporo a

revolta” (figura 5), “Estou possuído” (figura 6) ou “Mascote do parangolé” (figura 7). Na

concepção de Justino (op. cit.:52),

em uma espécie de jogo, os participantes abrigam e envelopam-se nas cores-

poemas das capas, trocam-nas, deslocam-se, abrem-se para o espaço, de tal

forma que, envolvidos pelas cores, pelo som e pelo movimento, criam outras

dimensões. As capas são mágicas: o participante veste poemas, veste cores,

veste vivências.

Na dinâmica compositiva do discurso proposto por Oiticica, a música desempenha um

papel fundamental, principalmente o samba. Este processo cria paralelos interessantes com

outras formas de expressão, que também utilizam elementos comuns à experiência dos paran-

golés para que os participantes atinjam estados descondicionados, como é o caso dos cultos

afro-brasileiros, onde o indivíduo crê entrar em contato com entidades sobrenaturais. Porém,

embora possuam elementos comuns – entre eles o resgate da questão da primitividade –, as

ambições de cada experiência são diversas. É importante que fique clara esta distinção com-

parativa para acentuar que a consciência de linguagem é imprescindível para a criação de es-

truturas conceituais com finalidades específicas. Enquanto Oiticica buscava a evolução de

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Figura 5

Capa 11: Eu incorporo a revolta, 1967

(Foto Revista Art In America)

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Figura 6

Nildo da Mangueira veste Capa 13: Estou possuído, 1965

(Foto Revista Art In America)

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Figura 7

Mosquito da Mangueira, sambando com PARANGOLÉ 10 Capa 6, 1965

(Foto Claudio Oiticica)

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suas reflexões em estruturas de conhecimento que ele chamava de “programas in progress”,

os participantes dos rituais religiosos não tem esse domínio do código, não conseguem criar

funções metalingüísticas com tais experimentos.

Toda a apropriação em Oiticica era conceitual, não visava o mero espetáculo. Em seus

programas, o carnaval une-se ao conceito de precariedade, a obra incorpora a favela, não de

forma simplesmente temática, mas sim estrutural, orgânica, com vistas ao conceito nuclear de

comunidade que existe em tais locais. Fica claro que o interesse de Oiticica em sua busca de

discursos interativos não era a perseguição da acuidade técnica, mas sim a preocupação com o

homem, o retorno da tecnologia a seu lugar histórico: atender demandas humanas e não impor

o mundo institucional dos negócios à sociedade.

Os parangolés caracterizam-se portanto como experiências verbais, sonoras e imagéti-

cas em um tempo-espaço definido, mas que ao mesmo tempo promovem alterações na relação

tempo-espaço coletiva, já que o espaço onde atualiza-se parte do potencial comunicativo dos

parangolés é compartilhado, público, institucionalizado, mas o tempo torna-se individual, di-

zendo respeito às questões que emergem da relação do receptor com a materialidade dos

parangolés, que, por serem uma experiência repertorial individual, e portanto única, o tempo

dos parangolés passa a refletir a percepção de cada receptor, transmutado em roteirista. É nes-

ta dinâmica que se dá o descondicionamento do participante através da interatividade, que o

conduz ao que Huizinga (2004) chama de “círculo mágico”, um espaço onde o receptor é se-

duzido pela proposta apresentada, sendo conduzido à um mundo sincrético, composto por

combinações de imagens, sons e gestos.

O que se apresenta é pura proposta, representada pela capa. Abertura ao fazer, ao

construir coletivo. Proposta, entretanto, extremamente contaminada de uma intencionalidade

apurada que constitui o sistema lógico, o algoritmo combinatório do parangolé. A capa repre-

senta uma alma desprovida de corpo, um sistema carregado de questões morais, éticas, filosó-

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ficas, contemporâneas e, simultaneamente, com uma historicidade surpreendente. Quem dá

corpo a esta alma, e, portanto, a completa, é o receptor, quem veste a capa e deixa-se banhar

na dança do parangolé, em uma espécie de “arquitetura viva em que o homem através de sua

expressão gestual constrói aquela como sistema biológico vivo, verdadeiro tecido celular”

(Clark, 1973:159). Justino (op. cit.:25) ainda afirma que “a obra de Oiticica apaga definitiva-

mente a dicotomia entre corpo e espírito: um só existe no outro”.

A proposta fica clara: o que os parangolés permitem é um acesso a uma nova percep-

ção espacial e temporal, onde o receptor pode atuar como bem entender, realizando movimen-

tos, ações, gestos, performaces, ruídos, ou seja, criação de linguagens em espaços desautoma-

tizados pelo fato de estar vestindo e incorporando e completando o parangolé.

O processo de co-autoria encontra um campo enorme a ser explorado, que depende so-

mente do repertório do receptor, que passa a atuar como uma espécie de roteirista. Os paran-

golés abrem o espaço, cabe a este roteirista pós-moderno preenchê-lo com suas cores, ima-

gens, sons e palavras, o que torna impossível distinguir onde começa e onde acaba qual lin-

guagem. Tal divisão não existe, os códigos fundem-se. É desta forma que o hall institucionali-

zado de um prédio, por exemplo, com a predominância quase que absoluta de suas leis pode

se transformar em um espaço muito mais aberto para as questões qualitativas. Oliveira

(1998:93) observa que

como as características do que nos rodeia e da vida em geral são sistematiza-

das em uma somatória de hábitos, acaba sendo a própria repetição das ocor-

rências e a sua quase previsibilidade que dissolvem as qualidades sensíveis

do vivido, as particularidades dos objetos.

Os parangolés por quebrarem a rotina, por romperem uma cadeia sintagmática e ins-

taurarem o paradigma, tornam possível uma maior percepção dos objetos, da vida, abrindo es-

paço no cotidiano mais banal para o surgimento de atos criativos, encarnados por participan-

tes que em determinado tempo-espaço podem jogar livremente com os signos, com os ele-

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mentos constituintes das mensagens, pois estão sob a esfera de uma concepção projetual que

visa promover a absorção do espaço e do tempo em prol de uma atitude extremamente criati-

va e inclusiva.

2.2 A dinâmica dos parangolés

Na presente pesquisa, entende-se por dinâmica um modo de agir e de pensar fluído,

“que implica não só movimentos necessariamente ligados segundo leis, mas também uma for-

ça ativa e uma finalidade” (Lalande, 1999:261). Tal sentido de dinâmica coloca-se em conso-

nância com os conceitos aqui propostos, principalmente em relação ao conceito de jogo. O jo-

go, conforme apresentado e já discutido por Gadamer (op. cit.) e outros autores constitui um

conceito nuclear para a compreensão da dinâmica dos parangolés. Primeiramente é preciso

deixar claro que o jogo de descondicionamento e inclusão permitido pelos parangolés existe

queira o participante o jogue conscientemente ou não. Tal fato se dá por toda a concepção da

obra ter sido criada visando tais objetivos. Ou seja, os parangolés contém regras que definem

algoritmos de combinação abertos a permeação por repertórios distintos. Implícito a este fato

está a condição de que o receptor tenha um posicionamento crítico com relação a experiência,

ou, nas palavras de Gadamer, que “se coloque no jogo uma seriedade própria, até mesmo sa-

grada” (Idib.:174) para que o ato de co-autoria possa ser efetivo, e não se torne uma mera ale-

goria.

Tais algoritmos agem no sentido de promover certo resgate de uma historicidade, que

diz respeito à alguns aspectos:

• Inicialmente um resgate da história do próprio fazer artístico, já que Oiticica dialo-

gou muito com diversos movimentos que influenciaram seu fazer. Travar um diá-

logo com um discurso extremamente complexo como o existente nos parangolés é

trazer à tona discussões que foram realizadas no percurso da história da arte – e,

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portanto, da humanidade – e que acabam por desembocar nas angústias contempo-

râneas. Pode-se perceber a importância desta historicidade artística para a realiza-

ção de discursos tão criativos, já que estes se dão a partir da síntese e da combina-

ção de dados de uma forma nova, que ainda não havia sido realizada. Sem uma

consciência histórica existe o perigo eminente, observável em grande parte da pro-

dução contemporânea de arte digital, de se reproduzir o passado, achando que este

é contemporâneo, visto que

a multiplicação do aparato tecnológico à nossa volta pode nos dar a falsa im-

pressão de que estamos experimentando algo novo, quando na verdade nós

podemos não estar experimentando coisa alguma. (Machado, 2001:13);

• Já que um dos preceitos da condição pós-moderna – e Oiticica, segundo Justino

(op. cit.) apresenta-se como pós-moderno – é a abolição das vanguardas (Santos,

2004), não há mais sentido em causar rupturas completas com o pensamento e pro-

dução em curso, mas sim associá-los com novas formas organizacionais, em um

processo de construção do pensamento por patamares. Os parangolés representam

o cruzamento do que Oiticica considerava como sendo os discursos mais consis-

tentes em termos de avanço da liberdade, incorporando, sem distinção, os preceitos

do dadaísmo, as experiências de Malevitch e os conceitos de McLuhan e Nietzche

à dinâmica da favela, por exemplo;

• Construções projetivas em espiral, os parangolés incorporam, como um buraco ne-

gro, todas as referências que dão corpo às suas existências, não exaurem-se na en-

tropia de algo que não dialoga com o contexto, com o ambiente, mas sim renovam-

se em permanente repetição procedimental passível de combinação com o mundo

exterior,

• Por fim, o sentido de historicidade autônoma dos próprios parangolés enquanto ob-

jetos que se desprendem de seu propositor e passam a trilhar percursos em que es-

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tabelecem diálogos inclusivos com os participantes que aceitam as propostas e o

jogo. Aqui há o estabelecimento de uma dinâmica onde coexistem e entram em ce-

na a historicidade dos próprios parangolés enquanto propostas e matéria e o resga-

te do repertório individual de cada participante, que se torna, através de um pro-

cesso análogo ao canibalismo dos índios brasileiros, integrante, também, da histó-

ria dos parangolés enquanto projetos coletivos, proporcionando o resgate da histo-

ricidade humana.

Habita aqui um dado importante e de fundamental compreensão para a produção de

linguagens que utilizem os canais digitais: Os parangolés, enquanto obras de arte não produ-

zem nostalgia24, pois atualizam-se a cada momento de fruição entre o participante e a capa,

contemplando o que Gadamer (op. cit.:175) diz sobre a experiência da arte enquanto criação

contínua da consciência estética: “[a obra] não é um objeto que se posta frente ao sujeito que

é por si. A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá

transformar aquele que a experimenta”. O programa dos parangolés pode ser dinamizado a

qualquer momento, pois não está preso a uma tendência de mercado. A importância desta au-

tonomia mostra-se quando comparamos tal potencial conceitual com as produções digitais ro-

tuladas como interativas que mostram-se com a única preocupação de atender, sem maiores

reflexões, oportunidades de mercado.

2.3 Estrutura catalisadora de linguagens

Este sentido de historicidade apurado permite que o algoritmo combinatório que move

a experiência seja rico em possibilidades, formando uma lógica complexa, onde reside toda

uma estruturação de obra aberta, de baixa definição. Formalmente, esta estrutura atualiza-se

de maneira sintética e mínima, o que desmistifica o saber de que estruturas complexas só po-

24 Cf. Santaella, 2002:108.

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dem ser atualizadas por meio de interfaces também complexas, fato visível nas interfaces de

boa parte dos programas informáticos.

Embora a idéia de algoritmo combinatório possa parecer, em um primeiro momento,

redutora das possibilidades à somente operações de decisões simples e binárias, é nela que re-

side o motor da experiência interativa, que articula as escolhas sintáticas-semânticas que irão

compor a linguagem híbrida de que estamos tratando. O autor cria o sistema do algoritmo co-

mo um conjunto de regras que paradoxalmente confere liberdade de composição ao receptor

(Arana, 2002).

A idéia de que os parangolés apresentam-se como “estruturas catalisadoras de língua-

gens” nasce da constatação de que, no campo da química, a característica primordial de uma

substância catalisadora é aumentar a velocidade de uma reação, abaixando sua energia de ati-

vação para possibilitar novos caminhos25. O dicionário Houaiss ainda nos traz a seguinte defi-

nição para o verbete “catalisador”: “Diz-se de ou que estimula ou dinamiza <centro circa de

criação artística> <circa de novas idéias>”. Este conceito emprestado da química é interessan-

te para ilustrar a compreensão de como o sistema dos parangolés estimula, dinamiza e abre

novos caminhos para possibilidades estéticas de realização. Os elementos combinatórios que

formam o algoritmo já estão presentes, mas soltos, aguardando um olhar mais atento, algo que

desencadeie processos de percepção, de composição.

É aqui que os parangolém entram, atuando como catalisadores e abrindo novos cami-

nhos para estes elementos combinatórios. Um indício de que Oiticica enxergava os parangolés

como um projeto com o objetivo de combinar elementos e catalisá-los, impulsionando-os para

novas direções, encontra-se em um trecho de um artigo escrito por ele: “(no parangolé) a idéia

se realiza procurando utilizar todos os meios de comunicação, no sentido plástico e verbal,

por cores, palavras e o próprio ato de vestir cada capa” (apud Justino, op. cit.:53).

25 Cf. Wendell & Theran (1990).

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Em uma análise simples, seguem alguns dos aspectos que caracterizam algoritmos

combinatórios como os utilizados nos parangolés junto, quando for necessário para termos de

contextualização, com uma comparação com os algoritmos mais utilizados nas produções

digitais:

• De acordo com Oliveira (1998:96), “toda manifestação textual […] guarda tam-

bém em suas entranhas as indicações das ordens sensoriais que levam o texto a

sensibilizar e convocar sensorialmente o sujeito”. Assim, toda manifestação so-

mente adquire poder de representação a partir de sua forma compositiva inicial,

elencada a partir das escolhas feitas pelo enunciador. Ora, tais indicações com-

põem justamente o que estamos chamando de algoritmo. Uma estrutura que se

proponha a ser interativa deve indicar direções, caminhos a serem trilhados, for-

mas alternativas de combinação que não estejam previstas no discurso inicial. O

algoritmo deve ser permeável pela história do receptor, em um processo de tensio-

namento das memórias que formam a base de dados do algoritmo e a memória re-

pertorial do participante. Arana (2002), a partir de uma leitura de Greimas, afirma

a importância do resgate das competências históricas dos receptores, como sujeitos

históricos, dotados de capacidades cognitivas anteriores à experiência proposta,

que por este fato, não deve ser totalizante. Sem este resgate o que impera são abs-

trações com relação aos receptores, idealizadas por um aqui e agora carregado de

efemeridade e vazio conceitual;

• O fato do canal digital estruturar-se logicamente de modo binário, operando em

sua essência somente com 0 e 1, com seqüências de decisão baseadas em opera-

ções lineares do tipo se – então – caso contrário26 tende a forçar que ao receptor

seja dado o direito à somente escolhas binárias. Em contraponto com o algoritmo

26 If – then – else

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combinatório enunciador de estruturas não-lineares dos parangolés a determinação

excludente do sistema binário fica em grande evidência. Um exemplo trivial: em

uma aplicação digital típica, o elemento sonoro já é dado pronto, ou em pacotes de

escolha que permitem 2 ou 3 opções. O parangolé permite a inclusão de qualquer

elemento sonoro à sua fruição, mesmo que Oiticica tenha realizado a maior parte

de suas experiências com o samba. Se torna necessária a realização de um proces-

so de desprogramação da lógica binária dentro da própria estrutura binária, como

são os sistemas computacionais que atuam de forma efetiva em rede;

• Na estrutura binária linear acima descrita, a exploração se processa até o receptor

dar-se conta de que não poderá explorar o enredo proposto de forma realmente au-

tônoma, causando um desinteresse pela aplicação, “tornando-se este mais um pro-

duto descartável da mídia, pois as estratégias de persuasão tornam-se nulas” (Ara-

na, op. cit.:141). A autora completa, adiante que esta frustração torna o receptor

“um sujeito de estado, atualizado, mas que não se transforma em sujeito do fazer,

apesar de seu discurso altamente personalizado, ou criativo” (Ibid.). As aplicações

digitais, portanto, devem passar a incorporar em seus algoritmos possibilidades re-

ais para a ampliação de sua matriz combinatória, associadas a interfaces de fácil

uso que permitam ao usuário inserir novos arranjos combinatórios;

• Constituído por um roteiro embrionário não-linear, os parangolés possibilitam a

expansão e subversão consciente das regras de seu jogo pelo receptor. Este fato di-

ferencia-os, estruturalmente, das estruturas baseadas em decisões binárias lineares.

Ou seja, a concepção dos parangolés é metalingüística, seu conjunto de regras con-

tém, de forma embrionária, novos conjuntos que aguardam por atualizações, de

formas sucessivas,

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• Para Gadamer (op. cit.), o jogo constitui-se, entre outros aspectos, pela consuma-

ção do seu próprio movimento, o que identifica-se nos parangolés como constru-

ção projetiva em espiral, e na constatação de que as regras do jogo podem ser alte-

radas à partir da consciência do jogo pelo jogador. Para quebrar o contrato do jogo

é preciso levá-lo a sério. Nos parangolés enquanto programas descondicionadores

o receptor pode, caso queira, subverter a proposta. O que torna-se pragmaticamen-

te diferente, por exemplo, de uma estrutura binária onde o caminho já está feito pe-

lo propositor, com um simples verniz de possibilidades, onde, embora consciente

das regras, o receptor não pode subvertê-las.

É pelo dinamismo que pode ser proporcionado pela estrutura mostrada que os paran-

golés tornam-se multiplicadores de linguagens. Através de sua proposta aberta, contando com

as questões levantadas a respeito da historicidade resgatada, somada ao programa, ao algorit-

mo combinatório, os signos que os parangolés portam e atualizam fundem-se aos criados pela

atuação do receptor, gerando de forma exponencial novas semânticas27. O que entra no siste-

ma – a ação do receptor – é multiplicado pelas possibilidades do algoritmo combinatório e si-

multaneamente abre novas possibilidades para o algoritmo trabalhar. O processo de criação e

expansão dos parangolés torna-se cada vez mais aberto conforme seu programa vai sendo uti-

lizado de modo criativo, constituindo-se, portanto, em uma linguagem multiplicadora de lin-

guagens. Pontual, neste contexto, a observação de Salomão (op. cit.:129): “O PARANGOLÉ

quando gira no espaço real encarnado por um corpo pulsante dispara e presentifica camadas e

27 Cf. Ilari & Geraldi (1985), o termo “semântica” abarca as mais diversas compreensões, encontrando, entre se-

us estudiosos, orientações distintas. Porém, os autores indicam que a semântica diz respeito à ciência que estuda

a significação. Por tratar o objeto a ser estudado a partir do ponto de vista de sua significação, é preciso, muitas

vezes, fazer referência à sua forma, ou seja, à sua constituição sintática, já que tratar da forma é “analisar sintati-

camente, e toda análise semântica pressupõe que sejam dadas de antemão informações sintáticas” (Ibid.: 7). Por-

tanto, novos significados, no contexto do texto apresentado, surgem a partir de novas configurações formais,

sintáticas, criadas graças aos rearranjos possibilitados pelo algoritmo aberto dos parangolés.

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camadas e camadas de sinais”, de modo absolutamente reticular, “tenso e sempre com muitas

camadas espessas, muitos níveis superpostos de sinais” (Ibid.: 50).

2.4 Sintaxe e semântica

Ora, o computador também apresenta, mais do que qualquer outro meio técnico, ca-

racterísticas de uma máquina multiplicadora de linguagens. O fato de poder ser programado e

aceitar qualquer tipo de input – desde os advindos de processos mecânicos até os captados

através do monitoramento do ambiente – torna-o capaz de processar tais dados e a partir deles

estruturar novas cadeias. Soma-se a esta possibilidade metalingüística uma capacidade de ar-

mazenamento e recuperação de informações rápida e eficiente, que torna-se cada vez maior à

medida que o conceito de funcionamento em rede avança.

O computador torna-se a mídia das mídias semióticas, pois não estabelece relações de

simples representação estática de dados, mas sim uma relação intersemiótica, onde os dados

de input se unem para criação de novos signos. Um meio técnico que tudo suga, dissolve e

transforma em bits e bytes para criar novas significações. Como lembra Santaella (2003b:20):

A aliança entre computadores e redes fez surgir o primeiro sistema ampla-

mente disseminado que dá ao usuário a oportunidade de criar, distribuir, re-

ceber e consumir conteúdo audiovisual em um só equipamento. Uma máqui-

na de calcular que foi forçada a virar máquina de escrever há poucas déca-

das, agora combina as funções de criação, de distribuição e de recepção de

uma vasta variedade de outras mídias dentro de uma mesma caixa.

Desse modo, o ponto para um uso crítico e metalingüístico do meio técnico não está

na materialidade tecnológica, mas sim no plano do conteúdo. Trata-se da pesquisa de novas

sintaxes que possam se aproximar do potencial disponibilizado pelo meio técnico e ampliá-lo

para aumentar a abrangência do corpo semântico, de construção de sentidos dentro da sintaxe.

O computador, devidamente programado para tanto, pode conferir a relação sintaxe-semântica

uma perspectiva muito ampla, já que em um mesmo arranjo sintático podem estar investidos

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inúmeros conteúdos semânticos28. Claro que esta multiplicidade semântica já se realiza nas

linguagens criadas pelo homem há mais tempo, mas o computador por possibilitar a combina-

ção que Santaella descreve – de todas as mídias em uma – pode gerar caminhos muito mais

heterogêneos.

O computador e o parangolé se tangenciam. Ambos são sistemas aglutinadores, masti-

gadores de linguagens para criação de fluxos semânticos pulsantes29. Porém, além das distin-

ções formais e materiais óbvias entre os dois sistemas, a diferença fundamental entre eles está

no plano do conteúdo. Enquanto o uso do computador é encarado, em grande parte das produ-

ções que o habitam, como um meio burocrático que atende à necessidades imediatistas de

prover e criar demandas para o fetiche existente na relação contemporânea homem-máquina,

Oiticica concebeu o programa dos parangolés como sendo um algoritmo que lida com ques-

tões de ordem estética para o estabelecimento de uma ética do descondicionamento através da

interatividade. Para Oiticica, a estética constitui-se como a ética da arte, e não como a doutri-

na do belo.

Foi a partir desta desvinculação com o compromisso do que é tido socialmente como

belo que Oiticica pôde dar vazão em sua obra a conceitos como a precariedade, o indetermi-

nado e a reversibilidade. Esta concepção encontra-se na raiz do que Peirce30 conceituou como

sendo as três ciências normativas que emergem da fenomenologia: a estética, a ética e a lógi-

ca. A estética fornece a fundamentação da ética, que por sua vez é a base da lógica. Assim, se-

gundo Santaella (2002:2):

A estética visa determinar o que deve ser o ideal último, o bem supremo para

o qual a nossa sensibilidade nos dirige […] Não pode haver nada mais admi-

rável do que encorajar, permitir e agir para que idéias, condutas e sentimen-

tos razoáveis tenham a possibilidade de se realizar.

28 Cf. Oliveira, 1998. 29 Cf. Santaella, 2003b:20. 30 Cf. Santaella, 2002.

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Todo esforço de Oiticica foi neste sentido. Seu grande foco de trabalho foi o homem,

as questões que afligem e condicionam o homem moderno e como este homem pode se des-

condicionar através da liberdade em seu mais alto grau. Enquanto sistema que atende priorita-

riamente preceitos institucionalizados, sem historicidade e, portanto, sem perspectivas em um

horizonte que não seja somente imediato, os meios técnicos digitais continuam fechados em si

mesmos, realizando a exaltação de suas próprias características, que acabam por entrar em um

sistema entrópico, onde a salvação do homem encontra-se no próximo chip, mais rápido e

portanto com capacidade de executar a demonstração de suas próprias virtudes com mais de-

senvoltura para uma platéia anestesiada, cujo repertório estreita-se cada vez mais na idéia de

coletividade imposta pela indústria.

Para compreender como de um programa estético pode surgir a livre escolha, que pas-

sa pelo conceito de interatividade aqui adotado, o texto de Santaella (2002:131), com as con-

ceituações de Peirce sobre estética e ética, é pontual:

O problema fundamental da ética está voltado para aquilo que estamos deli-

beradamente preparados para aceitar como afirmação do que queremos fa-

zer, do que temos em mira, do que buscamos. […] É na estética, na sua de-

terminação daquilo que é admirável, que vem a indicação da direção para

onde o empenho ético deve se dirigir, daquilo que deve ser buscado como

ideal. O fim último da ética reside, portanto, na estética. O ideal é estético, a

adoção deliberada do ideal e o empenho para atingí-lo são éticos. A adoção

do ideal e o empenho para realizá-lo, sendo deliberados, dão expressão à

nossa liberdade no seu mais alto grau.

Aqui está a diferença entre o parangolé e as produções descontextualizadas que habi-

tam o mundo digital. Oliveira (1998:91) considera as criações estéticas

como elaborações linguageiras não para representar mas para presentificar o

mundo, os sentimentos, as impressões, as sensações, etc […] Num texto de

qualquer linguagem estética, o arranjo não está no lugar de alguma coisa ex-

terior que recria mas é, em si mesmo, a criação de algo.

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Ora, para a criação deste “algo” passa por um mundo repertorial, e portanto histórico,

que os sistemas digitais devem passar a incorporar. Daí nasce a necessidade de uma busca por

novas estruturas sintáticas que possam presentificar esteticamente a virtualidade dos bits e

bytes. Cabe aos propositores esta busca, que passa pelo embricamento das ciências humanas,

exatas e biológicas, pois nenhuma, em si mesma, pode dar conta de um meio, que abarca de

forma a dissolver em um só arranjo, as três. A qualidade dos parangolés enquanto sistema in-

terativo está no algoritmo combinatório, em seu núcleo conceitual impregnado de valores es-

téticos, diferenciando esta experiência da grande parte das produções interativas digitais, que

não trabalham com conceitos caros para projetos do gênero, como o resgate da historicidade

ou propostas estéticas que não atendam somente a uma demanda imediata dos meios de mas-

sa. A importância de uma consciência histórica inclusiva para todas as esferas da produção di-

gital mostra-se necessária para que as experiências constituam-se de modo prospectivo. Pro-

postas criativas, que ampliem o conjunto estrutural da sintaxe utilizada nos meios digitais pre-

cisam percorrer este processo, pois caso contrário, corre-se o risco de utilizar um meio emer-

gente extremamente potencial para somente produção de sistemas redundantes, vendidos co-

mo paradigmas a receptores cada vez mais condicionados e sem capacidade critica. Este é o

lado perverso da tecnologia aliada aos meios contemporâneos de produção e mídia.

A arte possibilita um resgate histórico no sentido de devolver a técnica para o homem.

Experiências como as de Oiticica mostram-se contextualizadas com a contemporaneidade por

devolverem esta dimensão. A crítica, aqui, não é apocalíptica, no sentido de que as máquinas

irão por elas mesmas contribuir para o aumento da alienação de parcelas significativas da po-

pulação. Constitui-se, sim, em uma tentativa de provocar aberturas à discussões sobre a forma

como é conduzido o processo de criação em sistemas digitais e a importância da inclusão do

receptor nestas mensagens. A importância de um arranjo algorítmico constituído a partir de

conceitos precisos é fundamental. As experiências que Oiticica nos deixou são essenciais para

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a compreensão da importância que as mídias digitais interativas ocupam nos processos de

produção e reflexão atuais.

Se o processo de sedução causado nos receptores pelo arranjo complexo das imagens,

animações, textos e sons exibidos pelos monitores e aparelhos sonoros dos computadores pu-

der migrar do estado de demo-tapes31 para um estado de consciência crítica que comece a in-

fluenciar a relação do homem com o saber crítico em seus mais diversos níveis, a “asa delta

para o êxtase” pode atingir alturas inimagináveis.

31 No sentido em que se refere Machado (2001:13): “Muitos trabalhos que circulam atualmente exibindo o rótulo

de vídeo-arte, computer art ou computer music podem, muitas vezes, não passar daquilo que se costuma chamar,

no âmbito industrial, de demo tape, ou seja, um inventário de possibilidades da máquina, para efeito de demons-

tração de suas virtudes”.

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“A palavra experimental é apropriada, não para ser entendida como

descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de suces-

so e fracasso, mas como um ato cujo resultado é desconhecido”

Hélio Oiticica

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3 Interatividade, cultura e games

A noção de que um computador poderia competir com seres humanos ou com outros

computadores em jogos interativos é tão antiga quanto os computadores. De acordo com Rich

(1988:131), Charles Babbage, matemático que concebeu a Máquina Analítica (Analytical

Machine), considerada a precursora do computador atual, pensou em criar rotinas para que

seu invento pudesse jogar xadrez e depois em projetar uma máquina que disputasse partidas

do jogo-da-velha. Babbage esteve envolvido com a Máquina Analítica entre 1833 e 1842. Sua

máquina, entretanto, não pode ser construída, por limitações técnicas existentes no século XIX.

A revolução digital iniciada a partir da década de 1970, entretanto, capacitou os computadores

a desempenharem as mais diversas funções, de modo simultâneo e com uma velocidade cres-

cente. Entre tais funções está o uso do computador como plataforma de entretenimento, que

encontra no uso de games sua maior potencialização.

Muito já foi dito sobre a história e o desenvolvimento tecnológico dos games, motivo

pelo qual não abordaremos estes tópicos aqui. Também não será realizada a análise de ne-

nhum título específico. A proposta deste capítulo é estabelecer vínculos entre os parangolés e

algumas características conceituais encontradas nos games, principalmente as características

que dizem respeito aos aspectos narrativos e estéticos das duas experiências.

Partimos da constatação de que os games são fenômenos imersos na cultura e que,

diante disso, não constituem mundos completamente autônomos da realidade em que o intera-

tor se encontra socialmente. Rüdiger (op. cit.:17) diz que os recursos informáticos não consti-

tuem outro mundo, mas são mediações da sociedade em que vivemos, sendo que

as tecnologias de informação colaboram é certo para formar uma imagem do

homem, mas por isso mesmo sempre são veículo, mais do que uma filosofia,

de um projeto de construção do mundo, que precisa ser pensado em seu al-

cance não-tecnológico (Ibid.:20).

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Segundo este ponto de vista, os games não são uma nova realidade, mas sim uma su-

blimação tecnológica da realidade com que estamos acostumados a lidar. As contradições e

conflitos sociais e políticos de nossa época, antes de encontrarem solução, tendem a ser repro-

duzidos eletronicamente nos espaços digitais, e as “patologias históricas e culturais não são

postas de lado neste contexto, mas redimensionadas, quer falemos de crime e demagogia, quer

falemos de racismo e atividades terroristas” (Ibid.:17); ou seja, “em linhas gerais, a máquina

ainda é vista pelas massas sobretudo na forma do bem de consumo, estando acoplada a imagi-

nários de constrangedor tradicionalismo” (Ibid.:19). Nos games, regidos pela lógica da esco-

lha e do consumo individualizado, “imagens e textos se descolam de seus contextos, fragmen-

tando e desestruturando as referências semânticas e históricas em que seus sentido se conecta-

vam” (Santaella, 2001:391). A possibilidade, e necessidade, de uma junção entre arte e tecno-

logia fica ainda mais clara quando constatamos que “o artista trabalha na contramão da teleo-

logia tecnológica, no sentido em que ele não a homologa enquanto produtora de mimese do

real, mas na criação de outros referentes” (Plaza, 2003:17). Este exercício de criação referen-

cial esteve bem presente em Oiticica, marcando toda sua obra.

Logo os games divertem ao tratarem dos temas contemporâneos pertencentes ao uni-

verso do senso comum. Mas será que eles também podem ser exercícios interativos para a li-

berdade, como são os parangolés, descondicionando os jogadores e despertando-os para novas

sensibilidades? Até que ponto os games podem este tipo de apelo estético? Essas questões são

as principais na aproximação proposta.

3.1 Games, cultura e inteligência

Os games, gênero bastante híbrido de produto cultural, encontram suporte formal nos

atuais aparelhos tecnológicos digitais, sendo construções simbólicas imersas dentro de um pa-

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norama cultural bastante amplo e complexo. Segundo Santaella (2003b:31), a cultura32 está

em tudo e, partindo deste princípio, antes de serem produtos tecnológicos, os games e suas es-

truturas são produtos culturais. O jogador, ao iniciar um game, não está envolvido somente

com o mundo fantástico e rico em possibilidades criado pelo jogo, mas está imerso em um

ambiente mais complexo e híbrido, que extrapola o jogo, se transforma constantemente e in-

fluencia o jogador durante sua experiência com o game. O jogador, imerso na cultura, tem se-

us canais perceptivos tomados não somente pelos gráficos, sons e textos emitidos pelo apare-

lho tecnológico, mas também pelas construções semióticas que estão presentes em sua volta,

no ambiente em que ele está inserido, da mesma forma que ao vestir um parangolé, o receptor

se vê dentro de um “espaço intercoporal criado pela obra ao ser desdobrada” (Oiticica, 1965),

que existe dentro de um panorama maior, como um subconjunto de um conjunto maior, pelo

fato dos parangolés serem estruturas ambientais e, portanto, levarem em consideração o ambi-

ente em que estão inseridos33.

Deste modo, ao jogar o jogador não aprende somente com o jogo, mas também com o

meio cultural em que ele se encontra, em um processo de inter-relação e retro-alimentação, já

que a tendência da cultura é “crescer, desenvolver-se, proliferar” (Santaella, 2003b:29). A cul-

tura se estende e abarca toda nossa experiência. Os games, portanto, não podem ser isolados

da cultura. Todavia, quando tratamos de analisar os processos envolvidos na lógica e na pro-

gramação34 de alguns dos games comerciais mais famosos, percebemos que, paradoxalmente,

32 Cf. Santaella (2003b:31), a cultura “é mais do que um fenômeno biológico. Ela inclui todos os elementos do

legado humano maduro que foi adquirido através do seu grupo pela aprendizagem consciente”. 33 Diz Oiticica: “O Parangolé revela então o seu caráter fundamental de estrutura ambiental, possuindo um nú-

cleo principal: o participador-obra, que se desmembra em participador quando assiste e obra quando assistida

de fora nesse espaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-obra, ao se relacionarem num ambiente deter-

minado (numa exposição, p.ex.) criam um sistema ambiental Parangolé, que por sua vez poderia ser assistido

por outros participantes de fora” (Oiticica, 1965, grifos do autor). 34 Entendemos por programação a formalização “de um conjunto de procedimentos conhecidos, em que parte

dos elementos constitutivos de determinado sistema simbólico, bem como suas regras de articulação são inventa-

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os tipos de lógicas implantadas nestes sistemas tecnológicos muitas vezes desprezam a expe-

riência cultural do jogador, seu repertório, por se comunicarem de forma rudimentar com este

mundo externo ao sistema tecnológico. Assim, muitos games atuais não acompanham o cres-

cimento perceptivo do jogador e não desenvolvem novas interfaces, novos modos de comuni-

cação, com outros sistemas culturais.

Constatamos, também, que os programas destinados a implantar os modelos lógicos

encontrados nos games são destituídos de capacidade criativa, sendo constituídos por regras

baseadas em uma abstração da inteligência lógico-matemática humana. É possível prever, de

modo determinístico e lógico, o resultado da execução destes programas tecnológicos. O diá-

logo com o indeterminado, como encontrado nos parangolés, é muito pequeno, visto que o

sistema se fecha em um diálogo que se dá meramente com seu próprio código. Pode-se dizer

que este determinismo surge, em grande parte, da separação entre o meio tecnológico e a cul-

tura, já que é a cultura “que permite a avaliação autoconsciente das possibilidades humanas à

luz de um sistema de valores que reflete as idéias prevalescentes sobre o que a vida humana

deveria ser” (Ibid.:34).

Claro que, como visto anteriormente, os sistemas tecnológicos fazem parte do sistema

cultural. Um questionamento a ser feito, portanto, é se quem produz as “caixas pretas” tecno-

lógicas possui tal consciência. Conforme Flusser (2002), o termo “caixa preta” refere-se a

aparatos técnicos sobre os quais seus usuários não possuem conhecimento acerca das opera-

ções realizadas em seus interiores, somente fornecendo dados de input e maravilhando-se com

os resultados obtidos como output. Flusser utilizou como paradigma a fotografia para elaborar

sua teoria. Porém, ela pode ser muito bem utilizada no contexto presente, ao tratarmos dos

games, já que eles continuam sendo caixa pretas para grande parte dos pesquisadores – princi-

palmente para os advindos da área das ciências humanas –, e para seus usuários, os jogadores.

riados, sistematizados e simplificados para serem postos à disposição de um usuário genérico, preferencialmente

leigo” (Machado, 2001b:39).

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Continuam constituindo-se como um aparato técnico do qual não se detém o conhecimento

acerca de seu funcionamento interno. Ou ainda podemos dizer que “a civilização contemporâ-

nea apenas superficialmente é cada vez mais tecnológica” (Rüdiger, op.cit:18). Entender o

processo e realizar sua crítica, propondo novos fazeres, é uma maneira de desmistificar a cai-

xa preta, subvertendo a lógica da programação determinística muitas vezes encontrada nesses

sistemas.

Neste ponto, é importante frisar a importância da abordagem feita por Oiticica com re-

lação a esta tensão entre o que está determinado e o diálogo com o indeterminado. Oiticica diz

que, no caso dos parangolés,

o que surgirá no contínuo contato espectador-obra estará condicionado ao

caráter da obra, em si incondicionada. Há portanto uma relação condiciona-

da-incondicionada na contínua apreensão da obra. Essa relação poder-se-ia

constituir numa transobjetividade e a obra num transobjeto ideal. (Oiticica,

1965, grifos do autor).

Portanto a própria concepção do sistema lógico existente nos parangolés já está im-

pregnada por componentes que trazem sua própria subversão. O sistema foi construído para

ser subvertido, enquanto que a base lógica dos games é contituída pela manipulação de matri-

zes35 de dados internos – pré-definidos em seus códigos de programação –, desconsiderando o

desenvolvimento de lógicas contextualizadas com as ações desenvolvidas durante o ato de jo-

gar. Neste caso, todas as possibilidades combinatórias existentes em uma narrativa estão devi-

damente pré-programadas e armazenadas nestas matrizes controladas pelo algoritmo respon-

sável pelo game. Poderíamos afirmar que os parangolés estão livres do processo rígido de

programação que forma a base dos sistemas digitais e que, dessa forma, são mais facilmente

passíveis de subversão. Porém é preciso lembrar que os parangolés possuem uma constituição

35 Matrizes são conjuntos de dados, variáveis ou não, mas claros e distintos, vetorizados e indexados, utilizados

para o armazenamento de informações pertinentes ao jogo. Estes valores são consultados ou alterados conforme

o jogo se desenvolve. Um exemplo de matriz pode ser a relação de armas ou suprimentos que o jogador possui

dentro do game.

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material, plástica e que, assim, também estariam condicionados a esta materialidade e à carga

significativa que ela traz culturalmente. O que existe nos parangolés que permite sua subver-

são é a proposta de resignificação material e conceitual que eles trazem. Oiticica (Ibid.) assu-

me isso como parte integrante do problema e diz que embora os objetos e materiais possuam

uma carga simbólica instituida, eles também possuem um lado desconhecido, reversível. É

com isso que o artista trabalha no que ele chama de “fundação objetiva da obra”, que estabe-

lece como objetivo da intervenção artística a descoberta deste lado desconhecido dos objetos,

na especificidade e contexto da obra.

Enquanto Oiticica revela esta consciência da linguagem, propondo uma resignificação

constante que precisa do receptor para se desenvolver, os games processam-se de maneira au-

tomática, movidos pela permutação de valores em suas matrizes constituintes. Em sistemas

deste tipo o jogo obedece à lógica do acaso, onde lances individuais são imprevisíveis, pro-

movendo a percepção inicial de que o jogo renova-se sempre. Porém, como foi bem observa-

do por Flusser (op. cit.), este tipo de sistema está condenado ao automatismo, visto que, a lon-

go prazo, a mesma possibilidade já elencada se repetirá mecanicamente, pois o sistema não

está aberto à aprendizagem de novas possibilidades. O jogo, tido muitas vezes como inteli-

gente, se esgota conforme vai sendo jogado, ao contrário dos parangolés, cujas capacidades de

montagem são expandidas conforme os interatores os utilizam.

A concepção que envolve o tipo de programação dos games é dominada pelo espírito

determinista. Conhecendo os dados de partida e os processos a que eles serão submetidos, po-

de-se prever os resultados. Se os dados forem submetidos várias vezes ao mesmo processo,

obter-se-á os mesmos resultados. Flusser (op. cit.:65) diz que, neste tipo de algoritmo, “todas

as virtualidades inscritas no programa, embora se realizem ao acaso, acabarão se realizando

necessariamente”, com a possibilidade de que determinada virtualidade se atualize n número

de vezes, antes que outra se atualize pela primeira vez. Porém, todas as virtualidades nesta ló-

gica se atualizarão. Este tipo de algoritmo não dialoga com a incerteza. Sua certeza linear já

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está programada, de forma a tornar a experiência estética, para Lyotard (1999), uma atividade

controlada, baseada na reação diante de uma situação calculada.

A “inteligência” dos games é, portanto, onisciente e onipotente dentro do jogo, en-

quanto que nos parangolés não há este tipo de controle, sendo eles exercícios para a liberdade.

Vestir o parangolé é muito mais um ato de buscar algo do que ser controlado pela capa. Diz

Oiticica (1965) que o parangolé “não toma o objeto inteiro, acabado, total, mas procura a es-

trutura do objeto, os princípios constitutivos dessa estrutura, tenta a fundação objetiva e não a

dinamização ou desmonte do objeto”. Ao fazer tal proposta, Oiticica visava a abertura de no-

vos rumos na própria sensibilidade contemporânea (Favaretto, op. cit.:34). Por outro lado, o

sistema que controla um game do tipo futebol, por exemplo, detém o conhecimento de todas

as possibilidades de direção que a bola pode tomar no campo virtual, até mesmo quando a bo-

la está em posse do interator humano.

É, inclusive, nestes momentos que o determinismo pode ser considerado maior, já que

o sistema lê as coordenadas emitidas pelo interator, através de um dispositivo de entrada

(joystick, teclado, mouse ou qualquer outro), processa-as, verifica se estão de acordo com a

programação pré-inscrita no jogo e, então, as executa. O game traz o objeto pronto. Fica claro

que o sistema do game sabe, sempre, os movimentos do interator antes de atualizá-los na tela

ou monitor, podendo barrá-los ou modificar o comportamento de outros elementos em função

destas interações. Os movimentos do interator humano já estão, todos, também programados

no interior lógico do game.

Podemos fazer um contraponto interessante: onde, nos games, o interator é vislumbra-

do como alguém que deve seguir regras, em Oiticica ele é visto como “suposto realizador de

propostas; arrancado da imobilidade e da legibilidade, estimulado por objetos, situações e

idéias, exercitando o ludismo num misto de escolha e abandono” (Favaretto, op. cit.:22, grifo

nosso). A palavra abandono aparece destacada por referenciar um vazio a ser preenchido, um

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espaço lúdico para a inclusão e não para a redutora obediência. Isso constitui uma diferença

fundamental para a compreensão do sentido de descondicionamento existente nos parangolés,

pois, até então, o conceito de realizador de propostas e as demais colocações de Favaretto

apontam para um discurso também pertencente aos games, mas parece que nestes, ao contrá-

rio dos parangolés, não resta nada mais ao jogador que não seja a obediência às regras que se

apresentam na tela do computador. Ao possibilitar a invenção pela arte, Oiticica propõe a in-

venção da própria vida – a intervenção direta na caixa preta –, encarando seus projetos como

estados de invenção, e não meras seqüências de etapas a serem cumpridas. Guimarães

(2002:149) ao comentar o texto de Lyotard – citado acima – diz que

se o espaço e o tempo foram reduzidos a condições calculadas, isto é, sinteti-

zados pelos procedimentos de simulação típicos da chamada realidade virtu-

al, realmente só podemos lamentar a “perda de raízes” e o esquecimento do

ser, pois as novas tecnologias tornaram-se capazes de prever e de planejar

aquilo que nos atinge, isto é, aquilo que nos afeta, tornando mediado pelo

conceito o que deveria ser objeto de uma recepção imediata: o sentimento

estético popriamente ditto (grifo do autor).

Deste modo, o próprio sentido de invenção encontraria-se esvaziado. Rüdiger (op.

cit.:18) diz que este tipo de estrutura marca a condição humana através de um disciplinamento

tecnológico acrítico, já que

observou-se bem que o desenvolvimento de “processos descritíveis e meca-

nicamente reexecutáveis, com meios formais, por uma seqüência de sinais

(algoritmos) [...] soa bem para o funcionamento de tubulações hidráulicas,

aparelhos de fax e motores de automóveis”. O problema surge, porém,

“quando também o comportamento social e mental de seres humanos é [por

eles] representável, calculável e programável: estamos então diante de uma

concretização de visões de terror das modernas utopias negativas”.36

O funcionamento deste tipo de estrutura baseia-se na permutação de símbolos progra-

mados de forma “blocada”. É claro que o problema aqui, para o funcionamento dos games,

não se localiza na existência de regras, já que um conjunto de regras é necessário para a exis-

36 Neste trecho, entre aspas, Rüdiger cita Kurz (vide referências).

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tência do jogo. A questão se coloca no fato dos algoritmos digitais serem fórmulas para a exe-

cução de procedimentos cartesianos, onde estes procedimentos resumem-se em seguir uma

linha reta pré-definida.

Isso significa que todo processo de decisão é tomado por meio de relações do tipo se-

então-caso contrário37. O sistema compara um valor armazenado em sua matriz de dados com

a interação realizada pelo jogador e verifica se ela é válida em seu banco de regras. Caso a in-

teração seja válida a partir desta comparação, ela é executada. Caso contrário, o sistema está

programado para seguir por outro caminho pré-definido ou para não tomar nenhuma decisão.

Depende da forma como o procedimento foi concebido inicialmente. Não há nesta lógica ne-

nhum procedimento que verifique a possibilidade de que a interação “inválida”, apesar de não

constar do banco de regras pré-estabelecido, tenha algum tipo de validade e passe a constituir

um problema novo, passível de resolução por parte do sistema.

Em oposição a esta “programaticidade” oferecida pelo discurso digital, que nasce de

uma estrutura altamente dissertativa bastante formalizada – o código de programação –, o dis-

curso interativo proporcionado pelos parangolés é concebido a partir de um algoritmo combi-

natório aberto, catalisador – como descrito no capítulo 2. Um olhar mais atento a estas capaci-

dades algorítmicas dos parangolés ajuda a colocar em crise, inverter ou desviar o caminho

“natural” da evolução técnica38. Os parangolés não trazem listas de possibilidades pré-elenca-

das, mas sim possibilidades de inserir todo e qualquer elemento desejável. É possível praticar

o jogo do parangolé incoporando elementos materiais, sonoros e visuais de qualquer ordem,

enquanto que nos games a construção está presa ao mundo já elencado pela programação. É

claro que esta estutura é inerente aos sistemas digitais, baseados em uma programação pré-

inscrita. Porém, é preciso notar que

37 If-then-else 38 Cf. Guimarães (op. cit.:155).

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para além de simular as competências lingüísticas e comportamentais huma-

nas, é necessário apreender a interatividade como categoria da comunicação,

ou seja, um modo singular de comércio entre subjetividades, obedecendo a

constrangimentos particulares, onde sua “programaticidade” no sentido in-

formático é certamente a principal condição. Todavia, a interatividade é con-

siderada, ao mesmo tempo, como autocomunicação (mensagem, história, re-

lato endereçado a si mesmo), e como metacomunicação: atualização dos pro-

gramas concebidos por outros para se fabricar os próprios programas de es-

crita, espaços cenográficos, circulação de narrativas e acesso aos bancos de

dados. (Plaza, op. cit.:24).

Parece, assim, que a interatividade existente nos sistemas digitais pertence a uma outra

categoria quando comparada aos parangolés. Trata-se de uma interatividade que subjaz a um

controle sofisticado e já determinado. Os parangolés permitem a troca entre distintos sujeitos

e o ambiente, construindo sentidos a partir de relações descentralizadas, possibilitando aos re-

ceptores a recriação de imaginários. Ora, mas será que os poderosos computadores, mesmo

caracterizados por sua necessidade de programação, não serão capazes de criar propostas tão

poderosas quanto as desencadeadas por simples capas que panejam sobre o corpo? Um cami-

nho para tentar decifrar este enigma pode estar no estudo da forma como as possibilidades de

construcão narrativas são tratadas nos games hoje, contrapondo a figura de Oiticica, como

grande arquiteto e propositor, aos esquemas utilizados no mundo digital. A posição de propo-

sitor transfere para o interator a co-responsabilidade pela construção do discurso e para que

este tipo de relação propositor/interator seja desenvolvida é necessário que o propositor inau-

gure o ambiente – ou sistema – que será palco do desenvolvimento da construção narrativa,

assim como Oiticica concebeu o núcleo estético dos parangolés, que desencadeia todas as ex-

periências com as capas.

Entretanto, os games, construções simbólicas programadas, operam pela lógica da lei,

da generalização, do que Peirce conceituou como sendo legi-signo, abstrações operativas que

fazem com que as singularidades se conformem, se moldem à sua generalidade (Santaella,

2002:13). Quais são as possibilidades de um discurso interativo emergir desta estrutura?

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Muitos teóricos têm defendido o conceito de “agência” como uma resposta a esta

questão. Entende-se como agência

a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados

de nossas decisões e escolhas. Esperamos sentir agência no computador

quando damos um duplo clique sobre um arquivo e ele se abre diante de nós,

ou quando inserimos números numa planilha eletrônica e observamos os to-

tais serem reajustados (Murray, op. cit.: 127).

Portanto, parece que o conceito de agência está mais ligado à reafirmação da suprema-

cia do código, da certeza de funcionamento. A interatividade, como aqui colocada, estaria ma-

is próxima à liberdade de ação, provocada por estruturas como os parangolés. Ao vestir um

parangolé, o participante ultrapassa esse sentido estrito de agência, visto que

o vestir já em si constitui-se numa totalidade vivencial da obra, pois ao des-

dobrá-la tendo como núcleo central o seu próprio corpo, o espectador como

que já vivencia a transmutação espacial que aí se dá: percebe ele, na sua con-

dição de núcleo estrutural da obra, o desdobramento vivencial desse espaço

intercorporal.

Há como que uma violação do seu estar como indivíduo no mundo, diferen-

ciado e ao mesmo tempo coletivo, para o de participar como centro motor,

núcleo, mas não só motor como principalmente simbólico, dentro da estrutu-

ra-obra. É esta obra a verdadeira metamorfose que aí se verifica na inter-re-

lação espectador-obra (ou participador-obra). (Oiticica, 1965, grifos do au-

tor).

Onde está este “núcleo central” nos sistemas digitais? Como veremos, a criação de

propostas para games costuma ser estudada a partir da visão única de quem propõe a narrati-

va, tentando criar cada vez mais formas de controle restritivas sobre o raio de ação do intera-

tor. A este respeito, Murray (op. cit.:191) diz que, do ponto de vista da criação de narrativas

geradas por computador, “o desafio para esses esquemas tão ambiciosos está em fornecer ao

computador conhecimento suficiente sobre os elementos da história, de modo que ele possa

diferenciar uma cena de reconhecimento aristotélica de um evento gerador de suspense”. Esta

afirmação está diretamente ligada à uma idéia de inteligência artificial algorítmica como sen-

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do um depósito descritivo de informações, que controla todos os aspectos da experiência com

o objetivo de assegurar uma coerência narrativa. É preciso repensar esta idéia, a partir de uma

discussão sobre o que é o conceito de inteligência para então tentar aplicá-lo à sistemas tecno-

lógicos.

Podemos dizer que inteligência diz respeito não a uma qualidade própria das condutas

humanas, mas sim a uma “função auto-organizadora de comportamentos que se desenvolvem

e evoluem” (Dubois, 1990:15). Este conceito pode ser generalizado para qualquer sistema –

seja ele biológico ou tecnológico –, que demonstre a capacidade de estabelecer comportamen-

tos inteligentes. Esta capacidade é formada por diversas características, que podem ser enten-

didas como constituintes de um prisma de numerosas faces. Passaremos, então, a tratar das fa-

ces que formam esta capacidade sistêmica que chamamos de inteligência.

A primeira questão a ser compreendida é que a existência de inteligência não é um fa-

tor associado à quantidade de informações contidas em determinado sistema. Ou seja, um sis-

tema não se torna mais inteligente pelo simples aumento da quantidade de informações arma-

zenadas em sua memória. As interfaces que podem ser estabelecidas entre estas informações é

um fator de importância maior. Estas interfaces devem ser reguladas por uma lista, não neces-

sariamente grande, daquilo que Pinker (2005:24) chama de “verdades essenciais”, um conjun-

to de regras que regem o processo de tomada de decisões e que alimentam um algoritmo que

deduza implicações relacionadas a este conjunto de verdades. A existência de um conjunto de

regras que sirva de modelo para estruturas de comportamento é fator imprescindível para a

existência de inteligência. Um sistema inteligente também deve possuir a capacidade de criar

ligações entre suas verdades essenciais nucleares e fatores provenientes do mundo exterior,

tendo a capacidade e a necessidade permamente de aprender na interação com outros siste-

mas.

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As verdades essenciais, acima citadas, são complexas e difíceis de determinar. Esta di-

ficuldade está, em boa parte, localizada no fato de que sistemas inteligentes devem lidar com

informações fragmentadas e simultâneas para montarem proposições lógicas e racionais. Te-

mos a simultaneidade, ou seja, a capacidade do sistema de atuar com uma quantidade signifi-

cativa de fatores ao mesmo tempo, associando-os em cadeias sintáticas reticulares, como uma

das peças-chave dos processos que envolvem mecanismos inteligentes.

Esta implicação significa que, mesmo criando-se um grupo de regras satisfatório, es-

sas regras teriam de agir em conjunto para a criação e resolução de proposições lógicas sensa-

tas; cada elemento envolvido no processo tem de portar um valor semântico que o identifique

e que permita estabelecer relações baseadas no que chamamos de “bom senso”. A complexi-

dade e o número de variáveis envolvidas nessas operações lógicas é grande, mesmo nas ope-

rações mais simples, pois elas envolvem um grande número de conjuntos e subconjuntos sis-

têmicos.

Por exemplo: um sistema inteligente artificial que esteja envolvido em um processo de

interação presencial com um ser humano, em que a base da interação seja a conversação, deve

“saber” discernir, para que a interação seja efetiva, as diversas expressões faciais produzidas

pelo interator humano, respondendo a cada tipo de expressão com uma atitude adequada. As-

sim, um sorriso cordial produzirá uma reação distinta da produzida por um sorriso sarcástico.

Tal sistema precisa, em uma descrição bastante simples, “saber” avaliar o contexto e o teor da

conversa, identificar, dentro deste contexto, a ocorrência de um sorriso e, diante disso, aces-

sar, em seu subconjunto correspondente, qual tipo de sorriso foi produzido, associando-o ao

contexto em que a situação ocorreu, para então gerar uma resposta. Caso uma situação dessa

natureza já tenha acontecido, o sistema deve recorrer à sua memória para produzir uma res-

posta automática, já internalizada. Porém, diante de uma situação nova, ou no caso de insu-

cesso nos resultados obtidos pela reprodução da resposta internalizada, um sistema inteligente

deve demonstrar capacidade de adaptação, aptidão para encontrar caminhos face a situações

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novas ou inesperadas, encontrando soluções para novos problemas. As informações memori-

zadas devem estar à disposição de métodos de recuperação, seja para uso imediato ou para

servirem como integrantes de fundamentações em processos antecipatórios.

De acordo com Dubois (op. cit.:16), “um sistema inteligente é um sistema que está em

continua evolução e que se torna cada vez mais complexo”. Portanto, os sistemas inteligentes

devem estar preparados para apreender os efeitos que uma ação produz, não somente de for-

ma direta, mas indiretamente também. Em seres humanos, a base deste algoritmo é cultural

(Rector e Trinta 1990: 5-7), agindo em conjunto com o aparelho biológico.

Retomando o exemplo do sorriso: um ser humano reconhece, de acordo com Rector e

Trinta (ibid:57), os tipos de sorrisos emitidos em uma conversa por meio de seu programa cul-

tural. A cada cultura correspondem usos diferenciados das expressões faciais. Já em aparelhos

tecnológicos, os algoritmos são modelos de pensamento humano programados, enxertados em

suas memórias eletrônicas. Abstrair da cultura modelos matemáticos complexos e, portanto,

lógicos, que sirvam de modelo para sistemas tecnológicos, é um dos maiores desafios para os

pensadores e projetistas de modelos de inteligências artificiais baseados em processos racio-

nais humanos, já que a cultura constitui-se por um tecido com alto nível de complexidade,

mantendo particularidades contextualizadas por diferenças regionais, climáticas e lingüísticas,

entre outros diversos fatores.

Ampliando o quadro, o algoritmo nuclear de um sistema inteligente computacional de-

ve considerar as implicações colaterais de suas ações, mas não de todas, já que o cálculo de

todas as possíveis probabilidades levaria à paralisia qualquer sistema, fosse ele biológico ou

tecnológico. Dai a importância de um diálogo com a incerteza. Um sistema dotado de inteli-

gência necessita, portanto, que seu conjunto de regras permita discernir o que é relevante,

dentro do conjunto de dados conhecido, para a execução e a análise dos efeitos de suas ações.

Esta implicação torna os algoritmos – sejam eles convenções sociais ou computacionais –, ex-

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ponencialmente mais complexos, pois, embora seja realizada uma filtragem prévia das variá-

veis envolvidas na equação que rege a ação, abre-se espaço para a incerteza. Não podendo

calcular ou prever todos os resultados de suas ações, o sistema inteligente deve estar munido

de instrumentos teleonômicos que possibilitem a ele o estabelecimento de um diálogo com o

indeterminado. “Inteligência” requer o contato com o incerto, tendo como parâmetros o uni-

verso finito conhecido e a lógica das probabilidades.

Outro fator primordial, destacado tanto por Pinker (op. cit.) quanto por Dubois (op.

cit.), para a existência de inteligência é a motivação objetiva. Um sistema inteligente precisa

ter um motivo, ou motivos, que conduzam a presentificação, em forma de ações, de parte de

seu conjunto algorítmico de regras. A existência de inteligência acarreta a atualização motiva-

da de uma parte das possibilidades – virtualidades – contidas no algoritmo. De acordo com

Pinker (op. cit.:72-3), sem uma especificação de objetivos, a idéia de inteligência não teria

sentido. Não se pode identificar um sistema de qualquer tipo – humano ou artificial – como

inteligente sem ter compreendido em que tipo de ação sua inteligência é utilizada. As regras

algorítmicas devem estar a serviço do que move o sistema: a busca de algo e o enfrentamento

dos obstáculos que se colocam entre o ponto de partida e o objetivo a ser alcançado. O algorit-

mo deve utilizar o conjunto de regras de que dispõem para perseguir o objetivo, permutando

as possibilidades relevantes.

Por fim, é necessário a um sistema inteligente a capacidade de realizar objetivos dis-

tintos, utilizando suas regras racionais de maneiras diferentes, de acordo com a demanda exi-

gida pelo problema a ser enfrentado, efetuando a transposição de uma problematização for-

mulada de uma certa maneira para outra forma, generalizando conceitos (Dubois, op.

cit.:148). Um sistema inteligente necessita de mecanismos que possibilitem a apreensão do

contexto em que o objetivo está inserido. Sob o prisma da inteligência, o objetivo pode ser al-

go fixo, mas o caminho que leva a este objetivo pode ser redesenhado indefinidamente, levan-

do à divisão do objetivo maior em objetivos menores – conjuntos de informação que contêm

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subconjuntos, em uma estrutura fractal. Pode-se dizer, então, que inteligência é a capacidade

que um sistema possui de alcançar objetivos diante de obstáculos e aprender com esse proces-

so, e não o simples empilhamento de informações acessadas por regras lineares.

3.2 Games e narrativa

A idéia de narrativa está ligada à ação, ao contínuo fazer, construir, que se desenvolve

na junção tempo-espaço. É preciso que um interator, leitor ou ouvinte mobilize energia para

que qualquer forma narrativa se desenvolva. O conceito de narrativa é plural e a idéia de civi-

lização e formação do homem está ligada a narrativa, como algo que se constrói ininterrupta-

mente. Santaella (2001:322) define a narração como “ação que é narrada”, idéia também de-

senvolvida por Aumont (op. cit., 244), que esclarece tratar-se de um conjunto organizado de

significantes, cujos significados constituem uma história que se desenrola no tempo, com du-

ração própria. Para Barthes (1973:19),

há, em primeiro lugar, uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos en-

tre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem

lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem

articulada, oral ou escrita, pela imagem fixa ou móvel, pelo gesto ou pela

mistura ordenada de todas estas substâncias […] A narrativa está presente

em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa

começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo

algum sem narrativa […] a narrativa está aí, como a vida.

Dentre esta gama enorme de possibilidades narrativas, Platão definiu três tipos princi-

pais, elencados por Aumont (op. cit.:244):

– a narrativa que exclui a mimese. Narração exclusivamente verbal em que

nenhuma parte é analógica (em particular, não se relatam tais quais as pala-

vras de um personagem). É a forma da epopéia, a que Platão preconiza;

– a narrativa que só comporta a mimese. Constituída por um análogo das

ações e das palavras dos personagens. É em essência o teatro;

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– a narrativa mista, que comporta ao mesmo tempo parte verbal e parte mi-

mética. É a narração hoje dominante em literatura, com suas descrições, por

um lado, e seus diálogos “citados”, por outro.

Os games, enquanto gêneros híbridos, apresentam formas narrativas que misturam ele-

mentos lineares, mais próximos à verbalidade, com fragmentos dispersos que vagueiam e se

encontram em estruturas rizomáticas sem pontos de entrada ou de saída definidos. Estes frag-

mentos se encontram mais próximos da linguagem imagética, assim como os parangolés, cuja

manifestação expressiva só se dá pela ação e não pela simples contemplação, sendo esta ação

uma manifestação mais imagética, visual, do que verbal. Santaella (2001:317), entretanto,

aponta para o fato de que a “narrativa é uma ação lingüística, um discurso, do qual participam

um autor e um leitor, um narrador e um ouvinte”, marcando, claramente, os campos da emis-

são e da recepção. Como pode existir, portanto, uma narrativa interativa, que se construa na

ruptura entre as figuras clássicas do emissor e do receptor? Santaella (Ibid, 320-21) diz que

[…] a narratividade parece estar na medula da discursividade verbal. […]

Além disso, a narratividade, como uma das modalidades abstratas da lingua-

gem e pensamento verbal, pode migrar de uma manifestação no verbal para

se manifestar em domínios extraverbais, tais como a música, cinema, video,

pintura, dança etc. Entretanto, isso não deixa de significar que a narrativida-

de é uma modalidade discursiva verbal. Quando migra para a música, por

exemplo, ou para a dança, isso quer dizer que há aí um processo de hibridi-

zação entre o discurso verbal e a música ou dança. Em outras palavras, uma

dança ou uma música narrativa apresentam um substrato verbal […]

Neste ponto, deve-se tomar cuidado para não se levar o argumento até a ge-

neralização de que a narratividade está na raiz de todo e qualquer processo

de linguagem […] a narratividade é modalidade precípua do verbal, podendo

estar subjacente também à descrição e à dissertação, e podendo se espraiar

ainda para as outras matrizes, a sonora e a visual. Contudo, estas duas últi-

mas, sonora e visual, têm uma autonomia lógica própria, como matrizes de

linguagem e pensamento que também são e, como tal, a narratividade não

lhes é inerente. Isso reduz a universalidade da narrativa apenas ao reduto do

discurso verbal.

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Santaella aponta que a hibridização entre as linguagens em processos narrativos apre-

sentam substratos verbais, que não são necessariamente dominantes. O que existe nos games

e nos parangolés são hidribizações sofisticadas das matrizes de linguagem que, portanto, esca-

pam da lógica estritamente verbal, marcada pela narrativa que se constrói no binômio emis-

sor/receptor. É esta hibridização que torna possível a interatividade, tanto nos games quanto

nos parangolés. As performances realizadas com os parangolés contém uma origem narrativa,

mas são, na verdade, linguagens verbo-visuais-sonoras, assim como os games. O seguinte tex-

to de Santaella (Ibid.:385) torna esta questão mais clara:

A performance e o happening, mesmo se não acompanhados de fala, são

prolongamentos do gesto39, mais propriamente gesto teatralizado, gesto pos-

to em cena, encenado. Essa encenação do gesto é, via de regra, ritualizada,

sendo, portanto, narrativa, na medida em que, por se constituir em uma se-

qüência temporal de atos, no ritual se encontra a origem da narrativa. Mesmo

na ausência da fala, performances e happenings têm uma raiz narrativa e,

conseqüentemente, verbal. Quando acompanhados de som, o que é bastante

comum, tornam-se linguagens verbo-visuais-sonoras (grifos do autor).

Esta idéia de narrativa e apropriação do tempo e do espaço estão bem presentes na

produção de Oiticica – para quem a ação era a pura manifestação expressiva da obra –, estan-

do na essência da idéia de participação e interatividade em sua produção:

Já não quero o suporte do quadro, um campo a priori onde se desenvolve o

“ato de pintar”, mas que a própria estrutura desse ato se dê no espaço e no

tempo. A mudança não é só dos meios, mas da própria concepção de pintura

como tal; é uma posição radical em relação à percepção do quadro, à atitude

contemplativa que o motiva, para uma percepção de estruturas-cor no espaço

e no tempo, muito mais ativa e completa no seu sentido envolvente (Oiticica,

1986:51, grifos do autor).

Esta apropriação do espaço e do tempo na construção do discurso, e não só a contem-

plação no espaço, representa um salto em direção ao receptor. Esta pesquisa levou Oiticica a

formação de espaços ativos e ativantes. O espaço extraquadro ao trazer uma relação entre su-

39 Assim como o movimento realizado pelos jogadores ao manipularem joysticks.

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perfícies já acarreta a figura do espectador como participante, modificando os comportamen-

tos habituais da experiência estética (Favaretto, op. cit.:61), pois

para Oiticica, o tempo como elemento ativo, duração, implica o fim da repre-

sentação e, com ela, da contemplação. No espaço “representativo”, a tela

funciona como janela; o tempo, aí, é linear, movimento entre figuras. Quan-

do, porém, o plano da tela é ativado, o tempo, como duração, lança-se no di-

namismo das áreas de cor, que agem como focos de energia. Na medida que

o observador é chamado, de alguma forma, a intervir na produção desse di-

namismo, esse tempo ganha “vitalidade” e “significação” (Ibid.:79).

Oiticica abriu e trilhou este caminho, aperfeiçoando-o na nova linguagem híbrida in-

troduzida com os parangolés. Os games também são uma nova linguagem, uma hiper lingua-

gem, que continua em busca de si mesma, que pode trazer novos modos de pensar, de agir e

de sentir. Esta nova linguagem heterogênea traz a possibilidade da abertura de espaços para

novos modos de pensamento, não-lineares e sintonizados com a contemporaneidade. Mas é

preciso que os games se abram ao homem, trilhem também o caminho das inquietações con-

temporâneas. Muitas das abordagens sobre os games encontradas hoje vão em uma direção

contrária: ou encarando-os como um novo campo de exploração unicamente literário, o que

acaba por eliminar em grande parte o potencial híbrido de suas linguagens, ou ainda como

sendo unicamente um espaço para o desenvolvimento de novas técnicas de programação.

É preciso ter em mente que os processos interativos, assim como os encontrados nos

parangolés, relativizam a narrativa. Pinto (1971:13), a respeito da hibridização narrativa e de

sua importância, afirma que

a narrativa parece ser apenas um sistema conotativo transfrásico, uma mito-

logia, entre as diversas que se podem misturar para formar um discurso. Não

é portanto um tipo de discurso, como afirma a retórica [...] Com seu estudo,

não se esgotam as possibilidades interpretativas potenciais de um discurso,

bem longe disso, e haverá mesmo alguns, sobretudo quando nos aproxima-

mos da literatura contemporânea, em que sua eficácia interpretativa será

muito reduzida.

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Talvez a forma de contar histórias existente nos games mais recentes e sofisticados es-

teja muito mais próxima do modo de ser das imagens, e não do texto narrativos. Murray

(2001), entretanto, defende a idéia da criação de padrões narrativos para os games. Estes pa-

drões, ou funções, seriam constituídos por pequenos fragmentos dentro de uma narrativa mai-

or que iriam se encadeando para a construção da história do game. O interator ao realizar es-

colhas estaria juntando estes fragmentos em um grande quebra-cabeças. Esta abordagem tem

um grande parentesco com os modos de criação verbal, que geram discursos lineares40, em-

bora, como Santella (2001:322) observa, uma história ao ser narrada pode adquirir configura-

ções que rompam com a linearidade41.

Porém, até mesmo a aproximação feita por Murray (op. cit.) com o cinema parece re-

forçar a idéia de linearidade apresentada nas abordagens sugeridas. A aproximação das carac-

terísticas do computador como meio expressivo à câmera cinematográfica já pressupõe uma

montagem prévia e estática do que é apresentado ao interator. Murray (op. cit.:17) diz que “o

computador parece cada dia mais com a câmera de cinema da década de 1890: uma invenção

40 Murray toma como base para suas concepções os estudos, publicados originalmente em 1928, do formalista

russo Vladimir Propp. A respeito da obra de Propp, Santaella (2001:318) diz que “tradicionalmente, as persona-

gens, os objetos e os incidentes ou motivos eram considerados os elementos mínimos do discurso narrativo. Em

oposição a isso, a partir do exame de uma amostra de cem contos maravilhosos, Propp propôs a função como

unidade mínima. A função é uma ação que não pode ser definida fora do seu lugar no curso da narração. As fun-

ções servem como elementos estáveis, constantes de um relato e independem de como e por quem elas são pre-

enchidas”. Propp identificou trinta e uma funções invariantes para a construção de narrativas, sugerindo que

“histórias satisfatórias podem ser geradas pela substituição e reagrupamento de unidades padronizadas, obede-

cendo-se a regras tão precisas quanto fórmulas matemáticas” (Murray, op. cit:189). 41 Northrop Frye (apud Santaella, 2001:385-6) diz que “A literatura parece ser intermediária entre a música e a

pintura: suas palavras formam ritmos que se aproximam de uma seqüência musical de sons numa de suas frontei-

ras e formam padrões que se aproximam da imagem pictórica ou hieroglífica na outra. As tentativas de se chegar

tão próximo quanto possível dessas fronteiras formam o corpo principal daquilo que se chama de escrita experi-

mental. Podemos chamar o ritmo da literatura de narrativa, e o padrão, a apreensão mental simultânea da estrutu-

ra verbal, de significado ou significação. Ouvimos e escutamos uma narrativa, mas quando compreendemos o

padrão total de um escritor ‘vemos’ o que ele quer dizer”.

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verdadeiramente revolucionária que a humanidade está prestes a colocar em uso como um

fascinante contador de histórias”.

Paira sempre, nestas aproximações entre dispositivos técnicos, o perigo de se tomar o

veículo, meio, mídia ou dispositivo enunciador como componente mais importante dos pro-

cessos comunicacionais, quando este papel é sempre da linguagem. Neste caso específico, o

estudo dos games, e dos outros arranjos comunicacionais que utilizam o computador como su-

porte, deve pressupor as diferentes linguagens e sistemas sígnicos que se configuram no inte-

rior do computador, levando em consideração a condição deste como veículo híbrido, verda-

deiro misturador de linguagens (Santaella, 2001:380).

O próprio termo “contador de histórias” utilizado por Murray parece preso à idéia de

condicionamento, já que as histórias contadas já vem acompanhadas de uma iconografia e so-

noridade próprias. O que resta para o interator contar? Quais imagens podem ser criadas em

um mundo possível que já traz suas próprias imagens, sem a possibilidade de intervenção, já

que, ao contrário das histórias contadas em papel, onde o leitor pode fazer anotações e dese-

nhos, são poucos games que permitem que o interator modifique os cenários ou personagens

propostos. Oiticica, por outro lado, não pretendia contar histórias com seus parangolés. Os pa-

rangolés são facilitadores, não condicionadores, para que cada participante possa contar sua

própria história, e não a história de Oiticica ou dos parangolés.

Neste sentido, têm-se a impressão de que os games, ao apresentarem mundos já cons-

truídos com uma historicidade alheia ao receptor acabam por tirar a beleza existente na expe-

riência de construção do mundo. Pode-se contra-argumentar com o fato de que o propositor

do game pode querer contar uma história própria, utilizando os recursos disponibilizados pelo

computador. Esta é uma argumentação válida, mas para os interesses da pesquisa – a discus-

são de mecanismos interativos – o que isso traz de novo? A discussão neste nível acaba fican-

do presa ao aparato técnico, desvinculando-se, muitas vezes, de uma crítica às linguagens em-

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pregadas. Parece que esta abordagem acaba por desconsiderar, ou sub-utilizar, características

interessantes encontradas nas possibilidades digitais. Murray (op. cit.:194) diz que

Uma história é um ato de interpretação do mundo, enraizado nas percepções

e nos sentimentos particulares do escritor. Não existe um meio mecânico que

substitua isso, e nenhum razão para querer fazê-lo. Nosso questionamento,

em vez disso, deveria ser: Como tornar esse novo e poderoso meio para his-

tórias multiformes tão capaz de exprimir a voz do escritor quanto o é a pági-

na impressa? A resposta está em desenvolver estratégias que dêem ao autor

controle direto sobre todos os vários níveis da escolha artística. O autor deve

ser capaz de especificar todos os elementos da estrutura abstrata: as primiti-

vas de participação – como um interator se move, age, conversa; a segmenta-

ção da história em temas ou mofermas – os tipos de encontros, desafios, etc.

que compõem os blocos de construção da história; e as regras para monta-

gem do enredo – quando e para quem os eventos acontecem. […] Nós ape-

nas começamos a refletir sobre como um autor empreenderia a criação de

um mundo ficcional a partir de elementos tão complexamente padronizados.

Porém, como bem aponta Santaella (2001:406), um “roteiro multiforme”, mais do que

dar ao autor um controle preciso e direto sobre todos os elementos da história, deve se cons-

tituir como uma

imagem-modelo, um mapa-desígnio que delimita os aspectos da realidade

sensória, pragmática ou cognitiva que os fluxos informativos visam abraçar e

transmitir. Um tal modelo evidentemente não pode ser estático, pois isso ini-

biria o aspecto mais significativo do modelo […]: seu funcionamento asso-

ciativo por similaridade e contigüidade, mimetizando o próprio funciona-

mento das ações mentais humanas. Portanto, é um modelo-mapa que deve

incluir as rotas de navegação do usuário. Por isso mesmo, também não se

trata tão-só e apenas de um modelo-mapa, mas de um modelo-mapa-desíg-

nio, isto é, um mapa que contém programas de viagem. O território a ser per-

corrido, entretanto, é imaterial, feito basicamente de fluxos e nexos. Conclu-

são: o desígnio deve ser brando para que o líquido de sua arquitetura não se

solidifique.

E embora Barthes (op. cit.:21) alerte para o fato de que

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Há um abismo entre a mais complexa aleatória e a mais simples combinató-

ria, e ninguém pode combinar (produzir) uma narrativa, sem se referir a um

sistema implícito de unidades e de regras,

temos a impressão de que a estrutura proposta por Murray, onde o autor tem um pseu-

do-controle total sobre a narrativa, solidifica a arquitetura possível nos sistemas digitais, e a

afirmação de que “a resposta está em desenvolver estratégias que dêem ao autor controle dire-

to sobre todos os vários níveis da escolha artística” (Murray, op. cit:194) parece ir de modo

frontalmente contrário à teoria da obra aberta, de Eco. Os parangolés também possuem um

“sistema implícito de unidades e de regras”, conforme detalhado no capítulo 2.2, porém o que

os torna tão interessante e inaugurais é justamente o fato de que eles existem para serem sub-

vertidos, recriados e recontados, e não para atenderem aos desejos narrativos de Oiticica. O

caminho trilhado por Oiticica, mais do que propor construções fechadas e, portanto, acabadas,

se aproximam do que Barthes (op. cit.:21) diz ser um caminho para o estudo das formas narra-

tivas, constituindo uma via contrária ao pensamento e método de Propp e as propostas de

Murray:

Muitos comentaristas […] preconizam intrepidamente que se aplique à nar-

ração um método puramente indutivo e que se comece por estudar todas as

narrativas de um gênero, de uma época, de uma sociedade, para em seguida

passar ao esboço de um método geral. Este projeto de bom senso é utópico.

A própria lingüística, que só tem umas mil línguas a abarcar, não o faz; sa-

biamente, fez-se dedutiva, e assim, desde aí, ela se constituiu verdadeira-

mente e progrediu a passos de gigante, chegando mesmo a prever fatos que

ainda não tinham sido descobertos42. Que dizer então da análise narrativa,

colocada diante de milhões de narrativas? Ela está por força condenada a um

procedimento dedutivo; está obrigada a conceber inicialmente um modelo

hipotético de descrição [...], e a descer em seguida pouco a pouco, a partir

deste modelo, em direção às espécies que, ao mesmo tempo, participam e se

afastam dele: e somente ao nível destas conformidades e diferenças que re-

42 Barthes aqui chama a atenção para a “história do a hitita postulado por Saussure e descoberto de fato cinqüen-

ta anos mais tarde; em: BENVENISTE: Problèmes de Linguistique générale, Gallimard 1966, p. 35” (op.

cit.:21).

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encontrará, munida então de um instrumento único de descrição, a pluralida-

de das narrativas, sua diversidade histórica, geográfica, cultural.

A questão deve deslocar-se do meio utilizado como suporte da história em direção à

qualidade da proposta interativa apresentada. Não parece que o modo verbal de contar históri-

as seja o mais adequado para os games. Os games parecem aproximar-se mais do modo de ser

das imagens, como citado anteriormente. O texto aparenta (re)afirmar a programação do pró-

prio código simbólico que está na base dos games – as linguagens de programação dos com-

putadores. Um pensamento projetual imagético pode tornar mais híbrido, mais arejado, este

código. Não em sua essência sintática, mas nas interações que ele propõe, em sua dimensão

semântica. Vejamos algumas possibilidades que esta abordagem pode trazer.

3.3 Imagem, lugar e ação

Confome Bellour (1999:214), é difícil conceitar o que são as imagens, pois, apesar de-

las serem onipresentes em um mundo cada vez mais tomado por telas e por painéis publicitá-

rios – o que atesta que nossa percepção do mundo é cada vez mais imagética –, sabemos cada

vez menos o que elas são. Todavia, o que interessa aqui não é a conceituação precisa do que

seja uma imagem, mas sim a identificação de algumas de suas propriedades e a importância

delas para as formas interativas. Assim, de início, podemos dizer que as imagens são basica-

mente sínteses que oferecem traços, cores e outros elementos visuais em simultaneidade,

constituindo-se como linguagem por serem “mediações entre o homem e o mundo” (Flusser,

op.cit:9). Após contemplar a síntese imagética é possível explorá-la aos poucos; só então

emerge novamente a totalidade da imagem (Neiva, 1994:5). Este caráter simultâneo da ima-

gem constitui-se como um dos pontos chaves para nossa abordagem.

A simultaneidade da imagem é o que permite que múltiplos eventos aconteçam em pa-

ralelo, em fragmentos que possibilitam a formação de um todo. Em um game, a experiência é

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multisensória: sons, imagens e textos combinam-se ao mesmo tempo, assim como nos paran-

golés. A possibilidade de intervenção por parte do receptor se dá justamente nas brechas aber-

tas por essa fragmentação, que não é contemplada nos roteiros que se estabelecem através de

eventos sucessivos e não simultâneos. O acontecer simultâneo é o modo de ser da imagem,

dos parangolês e das experiências mais ricas em games.

A imagem também é aberta, plural por excelência, sendo sua decodificação “uma mis-

tura de erudição e quebra-cabeças, uma espécie de trabalho histórico de dedução, como nos

contos de detetive” (Neiva, op. cit:6). A imagem traz, ao mesmo tempo, o passado, a memó-

ria, e a sua atualização presente, permitindo perceber simultaneamente elementos diferentes

da estrutura narrativa proposta em relações uns com os outros. A narrativa textual se processa

por sua sucessão no tempo, multiplicando-se em série. É uma progressão no tempo e espaço.

As imagens permitem a existência múltipla em um único espaço-tempo, sendo um eterno re-

torno, pois nelas “o vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já

vistos. Assim, o ‘antes’ se torna ‘depois’, e o ‘depois’ se torna o ‘antes’” (Flusser, op. cit.:9).

Os parangolés dinamizam esta característica do discurso imagético, pois é ela que permite ao

receptor que veste o parangolé se descondicionar de espaços altamente institucionalizados. O

que a forma narrativa proposta e desenvolvida por Oiticica traz é justamente esta circularida-

de imagética:

Em Oiticica, a circularidade do jogo remete à vertigem do sentido (e dos

sentidos): a pensamentos e experiências em abismos, que liberam a invenção

de outros ritos e outros mitos: a utopia da arte no fio do vivencial. Assim, a

estética do movimento e do envolvimento é uma poética do gesto, que res-

salta fazer-aparecer, o manifestar, o significar uma nova atitude artística

(Favaretto, op. cit.:67).

O discurso da imagem é portanto a forma narrativa trazida por Oiticica. Embora ele te-

nha produzido inúmeros textos a respeito de suas experiência, esta concepção imagética fica

muito clara no modo como ele pensava seus projetos, de forma absolutamente visual, com a

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imagem servindo não como ilustração do texto, mas sim o contrário. Em seus projetos, é o

texto que ilustra a imagem, conforme mostram as figuras 8 e 9.

Com relação à criação de mundos possíveis, tão explorados nos games, as imagens

dispensam semelhanças com o “mundo real”, característica que se torna mais evidente princi-

palmente a partir do discurso imagético que passou a tomar forma no final do século XIX,

quando as imagens passam a ter uma maior autonomia, desencadeada pelos sucessivos movi-

mentos artísticos de vanguarda. Esta autonomia conferiu a elas maior poder de fabulação, já

que as imagens das vanguardas modernas não precisavam somente reproduzir o real. O poder

que as imagens portam para a criação de mundos fantásticos é vasto. Por meio do discurso

imagético, “podemos representar o que inexiste materialmente – por exemplo, dragões, uni-

córnios, fantasmas –, mas que se apresenta como imagem” (Ibid.:11), muito embora a sonori-

dade esteja mais livre da obrigatoriedade de representar um mundo exterior à seu próprio dis-

curso.

É claro que estes mundo fantásticos, onde reinam leis físicas, químicas e perceptivas

diferenciadas, podem ser criados, e o são constantemente, por meio do texto. Porém Foucault

(2002:12) alerta para o fato de que a linguagem verbal e a linguagem imagética são “irredutí-

veis uma à outra: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se

diz”. Não é, portanto, mera transposição de linguagens o que se propõe, mas sim o estudo da

lógica imagética em proveito da criação de propostas interativas. Não se trata também de uma

simples exaltação da imagem em relação ao texto, ou, ainda, da negação do texto, o que seria,

no mínimo, ingênuo, mas sim do estudo de novas possibilidades para a compreensão das es-

truturas narrativas contidas nos games. Neiva (op. cit.:14) elenca algumas propriedades co

mundo visual que, conceitualmente, se aproximam e se entrecruzam com os sistemas interati-

vos: extensão na distância; modelação em profundidade; ilimitabilidade; integração por super-

fície, bordas, formas e interespaços e pluralidade de coisas que possuem significado. As ima-

gens aproximam-se ainda mais da interatividade por serem conotativas, não sendo “conjuntos

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Figura 8

Estudo para PARANGOLÉ P6 Capa 4

Homenagem a Lygia Clark, 1965

Coleção Projeto H.O

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Figura 9

Estudo para PARANGOLÉ Cabeça, Gimme Head

Nova Iorque, 1976

Coleção Projeto H.O

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de símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras: não são ‘denotativas’. Ima-

gens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: símbolos ‘conotativos’” (Flusser,

op. cit.:8).

Portanto, as imagens, assim como os games mais sofisticados, são como grandes es-

truturas rizomáticas por onde o olhar vagueia, sem ponto de entrada ou local específico para

saída, convidando a descoberta e instigando o imprevisto, o indeterminado: “Imagens convi-

dam os olhos a não se apressar, mas sim a descansar por um instante e a se abstrair com elas

no enlevo de sua revelação” (Campbell, 1994:9). Flusser (op. cit.:7) diz que as imagens estão

diretamente ligadas à imaginação, sendo que esta é a “capacidade de fazer e decifrar ima-

gens”.

Graças à tecnologia digital, as imagens podem ser formalmente navegáveis, tornando-

se lugares exploráveis, repletos de informação, e portanto fluídas e facilitadoras de processos

diversos de leituras, sendo assim inclusivas. A imagem deixa de ser estática mas é, alem dis-

so, diferente da imagem em movimento do cinema ou do vídeo. O movimento deste tipo de

imagem-lugar não se dá somente nos planos, com uma imagem sucedendo a outra, mas tam-

bém na profundidade da própria imagem, que passa a ser explorada, com movimentos de am-

pliação, de retrocesso, de interação com os seus elementos constituintes. De tal maneira que

portas e janelas podem ser abertas ou fechadas e objetos são passíveis de deslocamento. A

imagem-lugar se redesenha conforme o jogo proposto é jogado, e por isso exige que o jogador

se posicione no centro da experiência:

Diferentemente do cinema moderno, que elevou a imagem à sua mais alta

potência, libertando-a do movimento sensório-motor, as artes interativas so-

licitam cada vez mais o corpo, seja para mergulhá-lo no ilusionismo tridi-

mensional dos videogames, para provocar sinestesias em ambientes de simu-

lação, para metaforizá-lo sob uma camada de signos simbólicos que redupli-

ca sua imagem, produzida pelos mais diferentes dispositivos técnicos (das

radiografias à modelagem em 3D) (Guimarães, op. cit.:153).

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Esta modalidade de imagem-lugar opera, nuclearmente, de um modo não-linear, em

saltos, fragmentando-se e recompondo-se conforme o interator descobre as várias facetas de

seus lugares. Os dispositivos de entrada (mouse, joystick e teclado) quem ligam o jogador aos

games também operam através da lógica do salto, permitindo deslocamentos abruptos que

rompem com o tecido fino da seqüêncialidade linear. Constituem-se, mais do que qualquer

outro tipo de imagem, como frutos da digitalização, já que “nascem da manipulação do com-

putador, que concebe essas imagens: manipulação engenhosa, certamente, mas sobretudo ins-

trumental, corporal, gestual” (Bellour, op. cit.:227), reafirmando o computador como sendo o

grande espaço para os encontros semióticos. São nessas imagens-lugares que se processam os

eventos, passagens de uma imagem à outra, espaços entre-planos que acabam por constituir

formalmente a narrativa dos games. A seqüência rígida de leitura ocidental, da esquerda para

a direita, de cima para baixo, e a racionalidade que ela traz em seu cerne são substituídas por

um processo de montagem em tempo real, como se o jogador fosse um grande editor que,

através de saltos, operasse a montagem de sua história única, que tem seu próprio tempo,

compartilhado com a dinâmica da imagem:

Não há mais tempo para o trabalho de formação da imagem, ela se apresenta

imediatamente, a luminosidade do mundo não vem banhar mais nenhuma

chapa nem se inscrever em película alguma. A imagem não traz mais consi-

go a duração do olhar. O ato de ver foi substituído por uma operação mental

e simbólica que conecta a imagem a nossos circuitos sensório-motores e neu-

ronais, tornando-a, conforme a ocasião, objeto de toque, lugar de imersão,

meio de transporte imperceptível que religa o aqui e o lá, o interior e o exte-

rior, como se o mundo se desdobrasse em filamentos inumeráveis que se in-

filtram em nosso corpo pela pele, olhos, tato, respiração, pensamento (Gui-

marães, op. cit.:156).

As histórias narradas nos games trazem como um de seus conceitos principais a rever-

sibilidade, a capacidade de retomar a narrativa a partir de pontos já passados, de desafios já

enfrentados, podendo com isso modificar os acontecimentos futuros. Em grande parte dos

games é possível salvar na memória do computador pontos específicos do jogo, que podem

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ser determinador pelo jogador ou pelo algorítmo, de forma que no caso de uma eventual der-

rota ou perda de pontuação ou de vidas no jogo, seja possível ao interator retomar a narrativa

de um ponto específico, modificando a estratégia adotada anteriormente para obter um desem-

penho melhor. A reversibilidade proporciona a experimentação, sendo, como aponta Flusser

(op. cit.:8), também uma característica do discurso imagético:

[nas imagens] o tempo que circula e estabelece relações significativas é mui-

to específico: tempo de magia. Tempo diferente do linear, o qual estabelece

relações causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol é a causa do

canto do galo; no circular, o canto do galo dá significado ao nascer do sol, e

este dá significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da magia,

um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das

imagens é o contexto mágico das relações reversíveis.

As imagens, os games e os parangolés compartilham deste “tempo mágico”, reversível

e que pode ser constantemente reconstruído. Este tempo de magia também já havia sido incor-

porado por Oiticica, em 1965:

A criação da capa [parangolé] veio trazer não só a questão de considerar um

ciclo de participação na obra, isto é, um assistir e vestir a obra para a sua

completa visão por parte do espectador, mas também a de abordar o proble-

ma da obra no espaço e no tempo – não mais como se fosse ela situada em

relação a esses elementos, mas como uma vivência mágica dos mesmos. […]

Toda a minha evolução, que chega aqui à formulação do Parangolé, visa à

essa incorporação mágica dos elementos da obra como tal, numa vivência

total do espectador, que chamo agora participador. (Oiticica, 1965, grifos do

autor).

Como visto nos parangolés, estas propriedades interativas/imagéticas podem ser po-

tencializadoras de um reencontro do homem com ele mesmo, através do jogo estético, ou po-

dem reduzir a ação à uma mera atualização mecânica de possibilidades já elencadas através de

uma programação hermética já pré-inscrita. Esta escolha depende do propositor, já que a ma-

gicidade encontrada na interatividade envolve uma transformação estética, que “deixa de ser

uma atividade interior, uma viagem pelo imaginário e pela reflexão, tal como se dá na pintura,

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para ser uma articulação de corpos e materiais43. Mas é o participante que articula os elemen-

tos artísticos e não-artísticos, lançados pelo artista” (Favaretto, op. cit.:69).

43 Essa relação corpo e material nos games é encontrada na manipulação dos dispositivos que fazem a mediação

entre o jogador e o jogo, como os joysticks, mouses e teclado.

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Considerações finais

Tangenciando de forma crítica os games com os parangolés, percebemos que os pri-

meiros já incorporam discursos interativos razoavelmente complexos, mas poucos mostram-se

sensíveis com relação aos efeitos das narrativas propostas. Um processo de hibridização con-

ceitual entre a tecnologia e a arte – aqui representada pelos parangolés – pode indicar novas

propostas, mais abertas, para os games.

A qualidade do parangolé enquanto sistema interativo está em seu núcleo conceitual,

impregnado de valores estéticos que buscam o resgate da historicidade individual de cada in-

terator. É importante que os sistemas tecnológicos passem a incorporar estruturas que permi-

tam a recuperação da historicidade individual, para que as experiências constituam-se de mo-

do prospectivo, em diálogo com o conhecimento humano adquirido através da experiência ci-

vilizatória. Propostas criativas, que ampliem o conjunto estrutural das sintaxes utilizadas nos

sistemas digitais, precisam percorrer este processo, passando a atender mais do que as quês-

tões meramente comerciais encontradas em boa parte dos títulos de hoje.

Dyson (op. cit.: 40) alerta para o fato de que tecnologias que atendem somente pulsões

mercadológicas estão fadadas ao ostracismo ou a sub-utilização. Corremos o risco de utilizar-

mos sistemas potencialmente latentes, como os games, para a mera produção de ciclos redun-

dantes, vendidos como novidades a receptores cada vez mais condicionados e sem capacidade

crítica.

A arte possibilita um resgate histórico no sentido de devolver a técnica ao homem.

Como discutido, experiências como as de Oiticica mostram-se contextualizadas com a con-

temporaneidade por trazerem esta dimensão. A crítica aos sistemas digitais não é apocalíptica.

Os games não irão, por eles mesmos, contribuir para o aumento da alienação de parcelas sig-

nificativas da população, já que as tecnologias são condicionantes e não determinantes. Apre-

sentou-se aqui uma tentativa de provocar aberturas à discussões sobre os meios utilizados pe-

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los desenvolvedores para a sedução dos jogadores, através de arranjos complexos de imagens,

animações, textos e sons que não passam, muitas vezes, de demonstrações das capacidades e

virtudes da máquina, onde a salvação do homem encontra-se no próximo chip, mais rápido e

portanto com capacidade de executar a demonstração de suas próprias virtudes com mais de-

senvoltura para uma platéia anestesiada, cujo repertório estreita-se cada vez mais na idéia de

coletividade vendida pela indústria. Oiticica, com seus parangolés, propõe a migração para

um estado de consciência crítica, que descondicione o homem de suas amarras sociais, cultu-

rais e ideológicas. Todo o esforço de Oiticica foi neste sentido.

A pesquisa apontou para outras maneiras de se encarar o desafio de pensar narrativas

digitais, com a intenção de inserir cada vez mais, estéticamente, o jogador e seu repertório

nestes mecanismos. A apropriação das características conceituais dos parangolés pelos games

pode impulsionar, de forma exponencial, a criação de mundos onde as narrativas fantásticas

dos ambientes digitais possam servir como instrumentos para o descondicionamento do ho-

mem e para sua reinserção de forma crítica na sociedade. É neste sentido que os games preci-

sam vestir parangolé.

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