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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO Rodrigo Vieira de Almeida Uma propedêutica para uma reflexão sobre o conceito de imortalidade do homem na filosofia de Charles Sanders Peirce. São Paulo 2011

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Rodrigo Vieira de Almeida

Uma propedêutica para uma reflexão sobre o conceito de imortalidade do homem

na filosofia de Charles Sanders Peirce.

São Paulo

2011

FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Uma propedêutica para uma reflexão sobre o conceito de imortalidade do homem

na filosofia de Charles Sanders Peirce.

Rodrigo Vieira de Almeida

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu em Filosofia da

Faculdade de São Bento do Mosteiro de São

Bento de São Paulo, como requisito parcial para

a obtenção de título de Mestre em Filosofia.

Área de Concentração: Semiótica

Orientador: Prof. Dr. Ivo Assad Ibri

São Paulo

2011

Banca examinadora:

_________________________________

_________________________________

_________________________________

_________________________________

_________________________________

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 9

1. A CLASSIFICAÇÃO GERAL DAS CIÊNCIAS SEGUNDO CHARLES

SANDERS PEIRCE .................................................................................................................. 13

2. A FILOSOFIA .............................................................................................................. 16

2.1 A Fenomenologia .......................................................................................................... 17

2.1.1 A Primeiridade ............................................................................................................... 18

2.1.2 A Segundidade ............................................................................................................... 21

2.1.3 A Terceiridade ................................................................................................................ 24

2.2 As Ciências Normativas ............................................................................................... 28

2.2.1 O bem lógico .................................................................................................................. 30

2.2.2 O bem ético .................................................................................................................... 33

2.2.3 O bem estético ................................................................................................................ 37

2.2.4 A relação entre estética, ética e lógica ............................................................................ 42

2.3 A Metafísica .................................................................................................................. 45

2.3.1 A realidade da Terceiridade............................................................................................ 49

2.3.2 A realidade da Primeiridade ........................................................................................... 53

2.3.3 A realidade da Segundidade ........................................................................................... 58

2.3.4 O Realismo ..................................................................................................................... 62

2.3.5 Síntese da Classificação Geral das Ciências .................................................................. 63

3. O IDEALISMO OBJETIVO ....................................................................................... 65

4. SINEQUISMO E CONTINUIDADE .......................................................................... 72

4.1 O conceito de Continuidade ......................................................................................... 73

4.2 Continuidade e senso-comum ...................................................................................... 76

4.3 Continuidade e Terceiridade ....................................................................................... 76

4.4 Continuidade e Segundidade ....................................................................................... 78

4.5 Continuidade e Primeiridade ...................................................................................... 79

4.6 Continuidade e Realismo ............................................................................................. 81

4.7 Continuidade e Idealismo Objetivo ............................................................................ 82

4.8 Corolário: a relação entre Continuidade, Evolucionismo e Falibilismo .................. 83

5. O PRAGMATISMO ..................................................................................................... 84

5.1 O pragmatismo Inicial ................................................................................................. 85

5.2 O pragmatismo tardio .................................................................................................. 91

5.3 O pragmatismo e a arquitetura filosófica peirciana. ................................................. 97

6. A SEMIÓTICA ........................................................................................................... 101

6.1 Semiótica, Semiose e Signos. ...................................................................................... 101

6.2 O signo, o objeto e o interpretante ............................................................................ 105

8

6.3 As três principais tricotomias de Signos. .................................................................. 108

6.3.1 Qualissignos, sinsignos e legissignos. .......................................................................... 110

6.3.2 Ícones, Índices e Símbolos ........................................................................................... 112

6.3.3 Rema, Dicissigno e Argumento .................................................................................... 117

6.3.4 As dez classes de Signos .............................................................................................. 119

6.4 A vida do Símbolo....................................................................................................... 120

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 125

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 133

9

INTRODUÇÃO

Charles Sanders Peirce nos legou uma filosofia de extraordinária riqueza e

variedade que pode ser comparada com uma imensa árvore de diversos galhos e

múltiplas folhas, que se renovam a cada primavera, apontando para infinitas direções.

Cada pequena folhinha deve ser considerada como possuidora de um importante papel

diante de um universo sempre em evolução. Desejamos seguir a direção para a qual

aponta uma destas „folhinhas‟, a saber, a configurada pelo tema Imortalidade do

homem. No entanto, trata-se de um tema cuja abordagem satisfatória exigiria um

aprofundamento que extrapolaria os limites de uma pesquisa de mestrado. Assim, o

trabalho que o leitor tem em mãos pretende ser um primeiro passo em direção a uma

futura pesquisa de doutorado que tomará para si a tarefa de aprofundar a riqueza

proporcionada por este tema, sobre o qual falta literatura tanto no Brasil como no

exterior.

Qual é a natureza deste primeiro passo? Respondemos de imediato: sua natureza

é a de uma propedêutica1. Assim, o objetivo deste trabalho é oferecer, como

preparação, uma apresentação do que constitui os requisitos mínimos para uma

problematização do tema Imortalidade do homem no interior da obra do autor.

Quais são estes requisitos mínimos? Partindo do pressuposto que Peirce

construiu ao longo de toda a sua obra aquilo que pode ser conceituado como uma

arquitetura filosófica, que consiste, grosso modo, em um sistema onde todas as partes

relacionam-se umas com as outras de maneira articulada segundo uma relação de estrita

dependência, os requisitos mínimos não podem ser outros se não o entendimento geral

das doutrinas centrais que compõem tal arquitetura filosófica. Pretendemos, assim,

explicar sucintamente cada uma destas doutrinas e, ao mesmo tempo, tornar

paulatinamente manifesta a relação de dependência que elas mantêm entre si.

Temos plena consciência de que, para explicar de maneira satisfatória qualquer

uma destas doutrinas centrais seria necessário o espaço de um volumoso livro. Portanto,

antecipamos ao leitor que não pretendemos esgotar tema algum. No entanto, isto não

1 Propedêutica significa segundo o Caldas Aulete: “1 Ciência preparatória; instrução preliminar;

introdução a uma ciência. 2 Conjunto de estudos que precedem, como etapa preparatória, os cursos

superiores de especialização profissional ou intelectual.”

10

implica que prescindiremos do rigor, sempre necessário a uma exposição de conceitos

considerados chave.

Para levar a cabo esta tarefa, o trabalho divide-se em sete capítulos:

1- No primeiro capítulo introduziremos sucintamente a Classificação geral das

Ciências segundo Peirce, mostrando de partida o quadro lógico que nos guiará

na descrição da arquitetura filosófica do autor.

2- No segundo capítulo efetuaremos um recorte nesta classificação geral, tomando

o foco da divisão da Filosofia, no interior das chamadas Ciências da Descoberta.

Assim, serão abordadas as três ciências que compõem a filosofia no interior do

pensamento peirciano. Em 2.1 trataremos da Fenomenologia, onde faremos uma

breve descrição das três categorias, primeiridade (2.1.1), segundidade (2.1.2) e

terceiridade (2.1.3); em 2.2, abordaremos as Ciências Normativas, onde

consideraremos os três tipos de bens: o bem lógico (2.2.1), o bem ético (2.2.2) e

o bem estético (2.2.3), mostrando, em seguida, a interconexão entre as mesmas

(2.2.4); em 2.3 chegaremos à Metafísica, que vai proporcionar uma ontologia do

real, ancorada nas ciências que a antecedem na classificação. Descreveremos,

nesta ordem, a realidade da terceiridade (2.3.1), a realidade da primeiridade

(2.3.2) e a realidade da segundidade (2.3.3); após isto conceituaremos o realismo

radical do autor (2.3.4). O capítulo chegará a termo com uma breve síntese da

classificação geral das ciências (2.3.5), completando o que fora apenas esboçado

no primeiro capítulo.

3- O terceiro capítulo será dedicado a uma das doutrinas mais complexas do

edifício filosófico peirciano: o Idealismo Objetivo. Primeiramente

apresentaremos os elementos principais desta doutrina, com a esperança de

torná-la compreensível ao leitor. Em seguida pretendemos mostrar que o

Idealismo Objetivo não consiste em uma pequena fase do pensamento peirciano,

mas sim em um dos pilares de toda a sua arquitetura filosófica, tendo sido

assumido, posteriormente, no interior de outra doutrina, o Sinequismo.

4- O quarto capítulo se encarregará exatamente da doutrina do Sinequismo, que

configura um ponto nevrálgico para uma reflexão sobre a Imortalidade do

homem. Portanto seu correto entendimento, dentro dos limites deste trabalho, é

essencial para o objetivo que nos propomos. Entender o sinequismo é entender

aquilo que Peirce conceituou como continuidade (4.1) e como esta deve ser

11

pensada como estando presente em todas as coisas. Assim, veremos como a

continuidade, apesar de envolver complexas teorias que lhe sustentam

epistemologicamente, aparece já no senso comum (4.2). Logo após,

mostraremos como ela também está intimamente ligada com a fenomenologia.

Faremos isso apresentando a relação que o conceito de continuidade mantém

para com as categorias de terceiridade (4.3), segundidade (4.4) e primeiridade

(4.5). Em seguida, veremos como a continuidade também subsume em seu

interior o realismo (4.6), o idealismo objetivo (4.7) e, como um corolário,

evolucionismo e falibilismo peircianos (4.8).

5- No quinto capítulo apresentaremos, em linhas gerais, o pragmatismo do autor.

Descreveremos as origens do pragmatismo como um método lógico de

clarificação de idéias (5.1) e avançaremos sua explicação no período mais

maduro da obra do autor, no qual seu pragmatismo é devidamente aprofundado e

diferenciado dos outros „pragmatismos‟ (5.2). Este aprofundamento nos leva

diretamente ao reconhecimento de que o pragmatismo não é meramente uma

máxima de lógica para a clarificação de conceitos abstratos, mas, alinhado com

as outras doutrinas que compõem a arquitetura filosófica peirciana, pode ser

tomado como uma máxima metafísica, cujo entendimento é de capital

importância para a compreensão de qualquer tema específico na obra peirciana

(5.3).

6- O sexto capítulo, por sua vez, terá por objetivo fornecer o ferramental mínimo

sobre semiótica que se fará necessário para entender o papel que os signos

exercerão no conceito de Imortalidade do Homem tal qual Peirce o pensou. Para

tanto efetuaremos um recorte no vasto campo que constitui a semiótica do autor,

direcionando o conteúdo para dentro do escopo deste trabalho. O capítulo se

inicia com uma breve descrição do que constitui a semiótica, a semiose e os

signos para Peirce (6.1); em seguida introduziremos os três correlatos do

processo de semiose, a saber, o signo ou representamen, o objeto e o

interpretante (6.2); partindo das relações entre os três correlatos, apresentaremos

as três principais tricotomias de signos (6.3): qualissigno, sinsigno, e legissigno

(6.3.1); ícone, índice e símbolo (6.3.2); rema, dicissigno e argumento (6.3.3).

Das possíveis combinações entre estas três principais tricotomias de signos

resultam as dez classes de signos, as quais serão apenas listadas (6.3.4). Por fim,

esta breve apresentação da semiótica se encerrará com um retorno à noção de

12

símbolo (6.4), onde mostraremos como este pode ser comparado,

metaforicamente, com uma criatura viva. Tal comparação culminará em uma

polêmica afirmação sobre um possível caráter imortal dos símbolos.

Analisaremos esta afirmação, cuja importância salta à vista: ela constituirá o

ponto de partida de Peirce para a reflexão sobre a Imortalidade do homem.

7- Para concluir, levantaremos algumas questões que surgem do entrelaçamento do

conceito de Imortalidade com a propedêutica que constituiu o objeto deste

trabalho. As questões não serão respondidas e, portanto, esta será uma conclusão

que permanecerá em aberto, apontando para o futuro.

Não pretendemos fazer uma exposição original da arquitetura filosófica

peirciana e muito menos deter últimas palavras: isso seria, aliás, uma heresia para quem

trabalha com a filosofia de Peirce. Apenas desejamos, com este trabalho, realmente

proporcionar uma propedêutica que elabore uma estrutura teórica e conceitual que

permita problematizar futuramente o tema a Imortalidade do homem na filosofia

peirciana e, assim, fazer “parte da criação”, unindo nossas idéias às de tantos outros que

estudam Peirce com amor e dedicação.

13

1. A CLASSIFICAÇÃO GERAL DAS CIÊNCIAS SEGUNDO CHARLES

SANDERS PEIRCE

O que procuraremos desenvolver durante todo este trabalho sob a rubrica de

arquitetura filosófica peirciana é um todo orgânico que compreende, a nosso ver, a

totalidade do desenvolvimento filosófico-científico do autor e cuja construção remonta à

aurora da sua carreira intelectual, permanecendo em constante aperfeiçoamento até o

final de sua vida, em 1914. No entanto, não pretendemos fazer um levantamento

cronológico do desenvolvimento desta arquitetura filosófica, mas sim descrevê-la,

dentro dos limites de uma pesquisa de mestrado, a partir de uma estrutura sequencial já

elaborada de forma consistente pelo autor e cujos exemplos se encontram, em sua

maioria, na fase mais madura de seu pensamento, possibilitando, assim, a construção de

um arcabouço lógico e conceitual mínimo para uma futura problematização do tema a

imortalidade do homem à luz de tal filosofia. É por isso que adotamos a estratégia de

começar pela Classificação geral das Ciências, que, sendo uma aquisição tardia do

pensamento de Peirce, datando de 1902 e oriunda de um quadro onde Peirce efetuava

uma revisão daquilo que, como veremos, chamou de categorias2, permite fornecer ao

leitor, de saída, uma visualização diagramática do plano lógico e sequencial da sua

arquitetura filosófica matura. Ao mesmo tempo, a partir do diagrama da Classificação

Geral das Ciências, estaremos apresentando visualmente o mapa do desenvolvimento

lógico da nossa propedêutica, completando, assim, a apresentação meramente abstrata

fornecida na Introdução.

Feitas essas considerações iniciais, convidamos o leitor para, antes de continuar,

olhar detidamente para o diagrama a seguir, que representa a Classificação geral das

Ciências3 conforme a pensou Charles Sanders Peirce:

2 Segundo Parker “A classificação das ciências em Peirce incorpora a noção de que há elementos

materiais e formais em toda ciência. A aplicação deste princípio na lógica permite que Peirce escape do

paradoxo da origem das categorias. As categorias possuem aspecto formal e material. Suas formas gerais

podem ser descobertas racionalmente, mas suas instanciações materiais devem ser experienciadas. As

categorias são primeiramente reveladas na matemática da lógica e não pela lógica que é normativa para o

pensamento. Peirce pôde, assim, ter seu bolo e também comê-lo: o nosso conhecimento das categorias

enquanto leis formais das condições do pensamento derivam da lógica matemática; mas estas categorias

são pressupostas pela lógica normativa peculiar para qualquer estágio de investigação. Em boa forma

escolástica, Peirce dissolveu o paradoxo fazendo uma distinção. A sua classificação das ciências foi

desenvolvida para mostrar que tal distinção era plausível.” Conferir: PARKER, 1998, cap. 2, p.32-33. 3 Para um aprofundamento da Classificação Geral das Ciências em Peirce, conferir LUCAS, 2003.

14

Fig. 1. FONTE: EP 2.258.

Na verdade, em um texto chamado Uma Classificação Detalhada das Ciências4,

Peirce levou a cabo um projeto classificatório tão minucioso, que ultrapassaria em

muito o escopo deste trabalho. O método classificatório utilizado por Peirce, na

construção de sua Classificação Geral das Ciências foi o de proceder das ciências mais

básicas e gerais para as mais particulares. O que faremos aqui será um breve comentário

dos principais tópicos desta classificação, para em seguida nos determos um pouco mais

sobre a divisão da Filosofia dentro das chamadas Ciências da Descoberta. Podemos nos

servir, assim, de um curto texto chamado Um Esboço da Classificação das Ciências5, no

qual nos é dado exatamente um panorama geral do que Peirce desenvolveu

aprofundadamente no texto acima citado.

As ciências estão classificadas em três grandes grupos, a saber, Ciências da

Descoberta, Ciências da Revisão e Ciências Práticas. “As Ciências Práticas são aquelas

4 A Detailed Classification of the Sciences, CP 1.203-83.

5 An Outline Classification of the Sciences, EP 2.258.

Ciências

Ciências da Descoberta

Matemática

Da Lógica

Das Séries Discretas

Dos Continua & Pseudo-Contínua

Filosofia

Fenomenologia

Primeiridade

Segundidade

Terceiridade

Ciências Normativas

Estética

Ética

Lógica

Metafísica

Ontologia

Metafísica Religiosa

Tempo, Espaço, Leis da Natureza

Ciências Especiais

Ciências Físicas

Ciências Psíquicas

Ciências da Revisão

Ciências Práticas

15

que compreendem qualquer inquirição científica que visa a um fim ulterior” 6, ou seja,

possui um objeto prático, sobre o qual deve produzir um efeito. Um exemplo de ciência

prática é o Direito (jurisprudência). “As Ciências da Revisão se ocupam em organizar os

resultados das descobertas, começando por um resumo e procurando formar uma

filosofia da ciência.” 7 Um exemplo desse tipo de ciência é, exatamente, uma história ou

classificação das ciências. As Ciências da Descoberta são a Matemática, a Filosofia e as

Ciências Especiais. Peirce define a Matemática nesse texto como a ciência que estuda

“o que é e o que não é logicamente possível, sem fazer de si mesma responsável pela

existência atual dos seus objetos.”8 Por sua vez, a Matemática está dividida em

“matemática da Lógica, matemática das séries discretas e matemática dos continua e

pseudo-continua.”9

Antes de entrarmos na segunda classe de Ciências da Descoberta, que constitui o

escopo deste trabalho, descrevamos em breves traços a terceira classe, a saber, as

Ciências especiais ou idioscopia. Estas ciências são chamadas de especiais porque se

valem de observações especiais para construírem as descobertas ou descrições de seus

objetos. Todas as ciências especiais assentam na observação de fatos dados pela

experiência, as diferenças entre elas se darão através de como são observadas e

interpretadas tais experiências10

. Peirce as divide em dois grupos: ciências físicas e

ciências psíquicas. As ciências físicas estão por sua vez dividas em três tipos: física

geral ou nomológica, física classificatória e física descritiva. “A física nomológica

descobre os fenômenos gerais do universo físico, formula as suas leis e mede as suas

constantes” 11

(a Gravitação, por exemplo). “A física classificatória tem por escopo

classificar e descrever as formas físicas que foram descobertas em sua generalidade pela

6 Especificamente nesse texto que tomamos por base, Peirce não explica em que consiste as Ciências

Práticas, no entanto, queira o leitor se remeter, por exemplo, a EP 2.458 ou CP 6.391. 7 EP 2.258-259.

8 Ibidem, 259.

9 Ibidem, 259. Peirce define a Matemática de forma geral como “A ciência que tira conclusões

necessárias”, (CP 4.229: definição esta que Peirce remonta como sendo de autoria de seu pai, o brilhante

matemático Benjamin Peirce) e também como “O estudo do que é verdadeiro quanto ao estado de coisas

hipotético. Esta é sua essência e sua definição” (CP 4.233). Como veremos um pouco mais abaixo, existe

uma relação de dependência entre as Ciências, dessa forma a Matemática se constitui para Peirce como a

primeira das Ciências e a única que não depende de nenhuma outra ciência ao passo que todas as outras

ciências dependem da matemática. Não pertencendo ao escopo desse trabalho uma análise detalhada da

Matemática na filosofia de Peirce, lembramos que ela possui estatuto fundamental para o entendimento da

teoria peirciana do contínuo, que será trabalhado dentro do espírito propedêutico deste trabalho, em

tópico específico. Para excelentes panoramas do papel da Matemática na filosofia de Peirce remetemos o

leitor a: MURPHY, 1993, Pat III e ROSA, 2003, cap. III. 10

Conferir CP 7.527. 11

EP 2.259.

16

Física nomológica” 12

(a Química, por exemplo). Já a física descritiva toma para si a

função de descrever objetos individuais, explicando os seus objetos tomando por

pressuposto o que foi descoberto pela física nomológica e classificado pela física

classificatória (a Geologia, por exemplo).

As ciências psíquicas são também dividas em três tipos: psico-nomológicas,

psico-classificatórias e psico-descritivas. “Ciências psico-nomológicas descobrem os

elementos gerais e as leis dos fenômenos mentais”13

(Psicologia). “Ciências psico-

classificatórias têm por escopo a classificação de fenômenos mentais cujas explicações

se darão em termos de princípios psicológicos”14

(Etnologia, por exemplo). “As ciências

psico-descritivas, por sua vez, descrevem fenômenos mentais individuais e os explicam

em termos psicológicos tomados das duas ciências anteriores”15

(História).

2. A FILOSOFIA

A segunda classe de Ciências da Descoberta é a Filosofia. O que é a Filosofia

para Peirce? É uma ciência que lida com verdades positivas, ou seja, com fatos

experienciáveis e observáveis por qualquer homem no seu dia a dia16

. A tarefa da

filosofia é, segundo Peirce, “encontrar o que pode ser encontrado naquelas experiências

universais que confrontam qualquer homem em qualquer momento de sua vida.” 17

Ora,

se a Filosofia é uma ciência positiva, ou seja, que lida com fatos dados na experiência, o

que a diferencia das ciências especiais? Ibri nos explica no capítulo 1 de seu livro

Kosmos Noetos, citando uma passagem por ele traduzida dos Collected Papers:

O que é a experiência sobre a qual se baseia a filosofia? Para qualquer

uma das ciências especiais, experiência é aquilo que diretamente é

revelado pela arte observacional daquela ciência [...] Mas em filosofia

não existe uma arte observacional especial, e não existe conhecimento

adquirido anteriormente à luz do qual a experiência é interpretada. A

12

EP 2. 259. 13

Ibidem, 259. 14

Ibidem, 260. 15

Ibidem, 260. 16

Conferir, CP 1.241. 17

CP 1.246.

17

interpretação em si mesma é experiência [...] Em filosofia, a experiência

é o inteiro resultado cognitivo do viver. 18

Depreende-se daí que o objeto da Filosofia é o universo total da experiência. Ou

seja, é para a experiência, como resultado do próprio ato de viver, que a filosofia está

voltada, e não para observações especiais sobre objetos, como nas Ciências Especiais. E

isso, como acrescenta Ibri, é dotar a experiência de muito importante estatuto, e tomá-la

como fator corretivo de todo pensamento, sendo esse um dos pilares de toda a filosofia

peirciana.19

Para Peirce, a Filosofia está dividida em Fenomenologia, Ciências Normativas e

Metafísica. Cada uma dessas ciências tomará a experiência a seu modo, proporcionando

um todo harmonioso entre si e com as outras ciências da classificação, resultando disso

uma relação de dependência entre as Ciências. Vamos nos deter agora na descrição de

cada uma dessas ciências que compõem a Filosofia, uma vez que elas constituem a base

para a continuidade do nosso trabalho.

2.1 A Fenomenologia

A Fenomenologia, também chamada de Faneroscopia20

ou doutrina das

categorias21

, é a primeira ciência que constitui a Filosofia, e é descrita por Peirce como

a ciência que “descobre e estuda os tipos universais presentes nos fenômenos;

significando por fenômeno qualquer coisa presente à mente, em qualquer momento e

em qualquer aspecto.”22

Ela não pretende descrever a realidade (como veremos, a

descrição da realidade pertencerá à Metafísica), mas apenas a forma como as

experiências aparecem para nós. Essa descrição do modo de aparecer dos fenômenos

(faneron, como Peirce também os chamou23

) se dará através da divisão da forma como

os fenômenos aparecem para nós, em três classes ou conceitos, que são os mais

18

Apud IBRI, 1992, p. 4. (itálicos do autor). 19

Ibidem, p. 5. Ver também SILVEIRA, 2007, p. 208-209. 20

CP 1.284. 21

Ibidem 1.280. 22

EP 2.260. 23

CP 1.284.

18

elementares e universais, chamados de categorias universais.24

Isso significa que, nem

tudo no fenômeno deve ser levado em consideração, mas somente os seus elementos

logicamente indecomponíveis25

e esses são descritos sob os nomes de Primeiridade,

Segundidade e Terceiridade.26

Descrever uma categoria é empreender uma busca pelas experiências que a

tipificam. Dessa forma, devemos fazer, para cada uma das categorias, a pergunta: “qual

o tipo de experiência que a tipifica?”.

2.1.1 A Primeiridade

Perguntemos, então, qual o tipo de experiência que tipifica a Primeiridade?

Tratam-se das experiências que são primeiras, novas, livres, espontâneas, plenas de

frescor, etc. Dizer que uma experiência é da natureza de um primeiro é dizer que, por

um lado, ela está livre de qualquer coisa de outro, de estranho a si (de segundidade,

como veremos) e, por outro lado, que ela também está livre de qualquer coisa que a

medeie, ou seja, livre de qualquer conceito (veremos, de terceiridade), ou seja, não há

nada que se coloque entre a experiência e a consciência experienciadora. Muito

importante é assinalar que essas experiências são imediatas, ou seja, não dependem do

fluxo do tempo para serem experienciadas; está excluída delas qualquer referência ao

passado e qualquer tipo de previsão para o futuro. Exatamente por isso, não são

experiências passíveis de serem analisadas, posto que qualquer análise implica no fluxo

do tempo para o estabelecimento do conceito, bem como no distanciamento do objeto

por parte do analista, algo que não ocorre aqui. Nas experiências de primeiridade, objeto

24

A forma como apresentamos as categorias nesse trabalho já se referem à fase mais madura de Peirce, a

saber, a partir do texto de 1885, intitulado One, two, three: Fundamental Categories of Thought and of

Nature. Portanto, não nos voltaremos para a questão da diferença entre esse texto em relação ao texto de

juventude On a New List of Categories. Para o leitor interessado em aprofundar o desenvolvimento do

pensamento de Peirce em relação às categorias, favor consultar MURPHY, 1993 e HAUSMAN, 1993. 25

CP 1.288. 26

Como nossa descrição das categorias será bem geral, o leitor poderá recorrer à descrição detalhada no

original de Peirce: Primeiridade, CP 1.300-321; Segundidade, CP 1.322-336; Terceiridade, CP 1.337-349.

Comentadores: IBRI, 1992 e MURPHY, 1993.

19

e sujeito são um só, daí a imediatidade da experiência. São puros estados de

consciência. Puros sentimentos: neles desaparece o dualismo sujeito e objeto.27

Embora este ponto só se torne mais claro após abordarmos o realismo do autor,

uma breve reflexão se faz necessária desde já, para evitar que sejamos induzidos a erro

no futuro: deve-se tomar muito cuidado para não pensar a experiência de primeiridade

em termos meramente psicológicos. O assento não está de nenhuma maneira no sujeito

psicológico como o lugar privilegiado da experiência, embora na fenomenologia o

faneron seja descrito conforme aparece para nós. Prova disso é que a primeiridade,

enquanto qualidade está presente de forma abundante na Natureza. Trata-se, nesse caso,

da espontaneidade e variedade dos fenômenos que aparecem na Natureza de forma

irregular, sem necessidade alguma de um sujeito psicológico para vê-los, sendo essa a

sua forma externa de aparecer.28

Nenhuma subjetividade precisa estar presente para

experimentar o sabor singular do mel para que esse possa existir enquanto singular.

Dessa forma, a primeiridade se espraia em tudo que tem qualidade, sentimento,

liberdade, espontaneidade, singularidade29

, assimetria, irregularidade, enfim, em tudo

que é em si e por si, sem necessidade de nada mais.30

Ressaltemos apenas mais dois importantes aspectos da primeiridade para não

nos estendermos muito. A primeiridade só pode ser acessada do ponto de vista lógico

27

Esse é um dos temas pelo qual se pode fazer uma excelente contraposição entre o pensamento de Peirce

e o de Descartes. Não é o caso de nos aventurarmos a tal, posto que isso fugiria ao escopo desse trabalho.

O leitor que tiver interesse em aprofundar esse tema pode consultar SANTAELLA, 2004. 28

Isso foi apontado pela primeira vez por Ivo Ibri em 1992. Um dos traços mais marcantes do mundo

fenomenológico é que ele aparece indiferenciadamente no que pode ser chamado de mundo interior e

mundo exterior. Logo, as categorias vão descrever os fenômenos que aparecem indiferenciadamente pelo

lado interno e externo. Aliás, segundo Ibri, nós só podemos conhecer o mundo interior pela forma como

ele aparece pelo lado exterior. Isto é central para o Pragmatismo, como veremos em capítulo específico. A

sua fundação começa, como se pode perceber, na Fenomenologia. 29

Não confundir singularidade com particularidade. Cada particular possui sua singularidade. Por

exemplo: um aluno tira zero e outro tira dez; o fato de ser avaliado por uma nota, qualquer que seja, é um

fato particular, agora, como cada aluno sentiu isso é uma singularidade. Outro exemplo: imagine que você

está em um mercado, diante de várias peras, cada pêra é um particular, mas por outro lado, cada pêra

possui algo que é só dela, nenhuma pêra é igual à outra, isso é cada pêra também possui sua

singularidade. Conforme Ibri explica, a singularidade é o correto significado da palavra latina haecceitas, tomada por Peirce do escolástico medieval Duns Scotus. Esse conceito, segundo Ibri, é interpretado

erroneamente por vários comentadores de Peirce, que o caracteriza como um conceito ligado à categoria

de segundidade, quando na verdade ele deve ser associado à categoria de primeiridade. O que é

característico da segundidade, como veremos, é o conceito de individual, de particular. (anotações em

sala de aula, curso de Semiótica, ministrado no primeiro semestre de 2010 na Faculdade de São Bento). 30

Conferir IBRI, 1992.

20

como algo da natureza de uma universalidade31

, ou seja, como qualidades passíveis de

serem predicadas de muitas coisas.32

Mas que tipo de universalidade lógica descreve a

primeiridade? Não é uma universalidade necessária, essa universalidade vai pertencer à

categoria de terceiridade. Então que tipo de universalidade? Trata-se da universalidade

da possibilidade. A forma lógica da primeiridade é a possibilidade.33

A primeiridade é a

categoria do possível. O que significa isso? Significa que o possível é uma forma de

generalidade, melhor seria dizer vagueza, exatamente porque não está determinado, por

isso ele é em si e singular, se houver uma determinação, esse algo deixa de ser

meramente possível e se torna algo particular, este e não aquele outro possível, e então

já estaremos no terreno da segundidade. Um ótimo exemplo é o lance de dados:

enquanto o dado está em nossa mão e não foi jogado, todas as seis faces são possíveis;

quando jogamos o dado, uma de suas seis faces se determinará, e, então, o que serão as

outras faces? Absolutamente nada, apenas no próximo lance é que as seis faces voltarão

a ser possíveis novamente.34

As faces possíveis pertencem à categoria de primeiridade.

Mas não interpretemos com isso que nada atual tenha uma qualidade e, portanto uma

primeiridade. Qualquer qualidade atual ou possível é um exemplo de primeiridade, com

a ressalva que, se tratando de uma qualidade atual, ela será exemplo de primeiridade

quando essa qualidade for abstraída do individual que a incorpora.

O outro aspecto importante de ser notado é que existem experiências de pura

primeiridade, cujo exemplo mais claro está na experiência de contemplação.35

A

contemplação se dá quando o sujeito se perde absolutamente diante do objeto,

inexistindo qualquer relação com o tempo, portanto quando sujeito e objeto se tornam

um só, permanecendo uma unidade entre mundo interior e exterior. Na maior parte do

tempo, quando olhamos para um objeto, já o observamos com um olhar judicativo, ou

seja, já olhamos para ele com um conceito formado a respeito dele. Na experiência de

31

Na verdade não só a primeiridade, mas qualquer coisa só pode ser descrita do ponto de vista lógico por

meio de Universais. Todo conceito é universal. 32

É a definição aristotélica de universal: “universal é aquilo que pode ser predicado de muitos.”

Metafísica. (ARISTOTLE, 1989, p. 26). 33

Peirce parece resgatar a Lógica Modal elaborada por Aristóteles, em seu Organon, no século quarto

antes de Cristo. 34

Este exemplo foi dado por Ibri. (anotações em sala de aula, curso de Semiótica, ministrado no primeiro

semestre de 2010 na Faculdade de São Bento). 35

Essa experiência de contemplação encontra-se claramente descrita em dois artigos de Ivo Ibri, IBRI,

2009 e IBRI, 2010a. Aqui, apenas faremos uma descrição sumária, baseados nesses textos. Vale ressaltar

que, a maioria dos comentadores de Peirce, e aqui poderíamos citar como exemplos Murphy, Hausman,

Rosenthal, Machuco Rosa e Silveira, passa direto por essa característica, tomando as categorias por

absolutamente ubíquas.

21

contemplação, ao contrário, esse tipo de olhar conceitual ou analítico desaparece,

permanecendo uma unidade entre sentimento e objeto, uma qualidade de sentimento,

sem relação com nada mais, sem a objeção do mundo exterior, característica da

segundidade, ou necessidade de encontrar uma mediação para o objeto contemplado,

traço característico da terceiridade. Esta experiência só pode ser sentida e não descrita,

exceto por uma arte tal como, por exemplo, a poesia, cuja aproximação em relação ao

objeto a ser descrito não é conceitual, mas sim metafórica, ou seja, captura o que há de

singular no objeto contemplado mediante um deslocamento semântico. Para ilustrar o

que estamos dizendo, transcrevamos um trecho de uma poesia que, a nosso ver, captura

bem essa característica e deixamo-la falar por si, encerrando assim a caracterização da

primeiridade:

“To see a World in a grain of sand

And a Heaven in a wild flower

Hold Infinity in the palm of your hand

And Eternity in an hour.”36

2.1.2 A Segundidade

Qual o tipo de experiência que tipifica a categoria de segundidade? A

segundidade se caracteriza especialmente por ser a categoria do mundo externo.37

nas experiências que tipificam a segundidade um forte sentido de alteridade, ou seja, de

algo que é independente da vontade, do desejo ou da imaginação de qualquer mente ou

coleção de mentes. O que é a alteridade? É tudo aquilo que é outro que não o eu, no

plano da fenomenologia. É o não-ego. Na nossa experiência cotidiana, que, lembramos,

é o espaço onde a Filosofia, de uma forma geral, busca a confirmação de suas hipóteses,

estamos sempre colidindo com algo que nos objeta, tanto faz se são objetos ou situações

particulares. Peirce exemplifica:

36

BLAKE, 1970, p. 481. “Para ver o mundo em um grão de areia/ e o Paraíso em uma flor selvagem/

Abrace o Infinito na palma da sua mão/ E a Eternidade em uma hora.” (Tradução livre). 37

Conferir IBRI, 1992.

22

Isso está presente até mesmo em um tão rudimentar fragmento da

experiência como um simples sentimento. Pois tal sentimento possui

sempre um grau de nitidez, alto ou baixo, e essa vivacidade é um

sentimento de comoção, uma ação e reação, entre nossa alma e o

estímulo.38

O contato com algo outro que não o eu é sempre uma experiência que traz em

seu bojo a dualidade entre duas coisas. Trata-se de um segundo em relação a, que surge

a partir da idéia de negação daquilo que queremos, ou seja, de uma espécie de

experiência de conflito ou luta. 39

Dessa forma, a experiência que tipifica a segundidade

é a experiência de reação. Essa experiência é sempre imediata, por isso Peirce a chamou

de dura.40

Ela é sempre individual, particular, isto e não aquilo. O objeto reage contra a

consciência sempre como algo individual, isso porque toda reação possui uma

individualidade, acontecendo apenas uma vez.41

Voltando ao exemplo do lance de

dados, quando uma de suas faces, após o lançamento, é determinada, por exemplo, o

número seis, essa determinação é absolutamente particular e aniquila todas as outras

possibilidades (as faces 1, 2, 3,4 e 5, no caso). É um fato e jamais poderá ser diferente;

assim é individual, aconteceu apenas essa vez, hic et nunc42

. Se lançarmos o dado

novamente e der novamente seis, esse fato é outra ocorrência, bem como seria com

qualquer face, outro fato individual e não o mesmo. Assim, a segundidade é a categoria

da determinação.

Alguém poderia objetar dizendo que em toda experiência de luta ou esforço, ou

seja, de algo que exerce uma força contra nós, opera uma lei causal, do tipo ação/reação

e, portanto estaríamos como descobriremos em breve, no terreno da terceiridade. Mas

Peirce mesmo explica: “Por luta, devo explicar, me refiro à ação mútua entre duas

coisas independentemente de qualquer mediação e em particular independentemente de

38

CP 1.322. 39

Conforme IBRI, 1992. 40

CP 1.324. Na tradução de Ibri: “Estamos continuamente colidindo com o fato duro. Esperávamos uma

coisa ou passivamente tomávamo-la por admissível e tínhamos sua imagem em nossas mentes, mas a

experiência força esta idéia ao chão e nos compele a pensar muito diferentemente.” (apud IBRI, 1992, p.

7). 41

Conforme IBRI, 1992, p. 7. 42

Expressão latina que quer dizer “aqui e agora”.

23

qualquer lei de ação.”43

Isso significa que a segundidade pretende tipificar uma

experiência também imediata.

Dessa forma, qualquer objeto está sob a categoria de segundidade. Isso está

presente inclusive na etimologia da palavra. Se não vejamos: em Latim, Objecto ou

Obiecto, avi, atum significa pôr diante de, opor, interpor, objetar, repreender, lançar em

rosto.44

Um objeto objeta, resiste contra nós, nisso consistindo um grande exemplo de

uma experiência de segundidade. A que o objeto objeta? Ele objeta à nossa vontade e à

nossa intenção de representá-lo.45

Ele permanece sendo o que é, ou seja, um individual,

independente de qualquer representação ou de querermos que ele fosse alguma outra

coisa diferente daquilo que ele é. Agora, não só objetos, mas qualquer fato nos objeta.

Em outras palavras, um fato é independente da nossa vontade, por exemplo, a

experiência de ser assaltado. Significa: um fato bruto não é redutível ao pensamento.

Outro conceito muito importante que advém da categoria de segundidade é o de

existência, ou seja, a segundidade é também a categoria das coisas que existem. Mas a

compreensão deste conceito exige um passo adiante, em direção à Metafísica. Dessa

forma, pedimos um pouco de paciência ao leitor para aguardar o momento certo de

abordarmos esse tema.

Lembrando que qualquer categoria descreve os fenômenos do lado interno e

também externo, indiferenciadamente,46

podemos dizer que aquilo que explicamos até

aqui constitui o lado externo da categoria de segundidade. Como se daria o

aparecimento do lado interno dessa categoria? Ibri nos explica:

Sob a segunda categoria está, também, toda a experiência pretérita sobre

a qual não se tem qualquer poder modificador... Por ser assim, o

passado exerce sua compulsão sobre a consciência.47

O passado é alteridade sob o aspecto interior, em relação à consciência. Não

podemos fazer nada quanto ao nosso passado, no sentido de operar sobre ele algum tipo

de mudança. Ele está lá, para sempre. É bruto, duro. E, inclusive é um dos principais

43

CP 1.322. 44

TORRINHA, 1997 – Dicionário Latino-Português. Esse insight nos foi dado também por Ibri.

(anotações em sala de aula, curso de Semiótica, ministrado no primeiro semestre de 2010 na Faculdade de

São Bento). 45

A representação de um objeto já pertence, como veremos, à terceira categoria. 46

Ver nota 29. 47

IBRI, 1992, p. 8.

24

fatores que nos constitui enquanto indivíduos.48

Podemos apenas refletir sobre ele, mas

isso já pertencerá à terceira categoria.

2.1.3 A Terceiridade

Diante da segundidade, ou seja, das coisas que permanecem sendo o que são

independentemente da nossa vontade, é necessário mediar: isso é a terceiridade. Como é

possível mediar fatos brutos? Ora, ocorre que as reações de objetos segundos possuem,

além de suas individualidades e determinações, algum tipo de regularidade, de

permanência, de ordem.49

Isso será o pivô de toda representação e mediação em face do

mundo externo e também interno. Então, quais são as experiências que tipificam a

terceiridade? São as experiências que, em seu aspecto interior envolvem cognição,

pensamento, raciocínio, síntese, aprendizado, representação, generalização, predição,

mediação, hábito, e, em seu aspecto exterior, envolvem ordem, permanência, simetria,

semelhança, redundância, repetição, tempo50

etc. Terceiro é tudo aquilo que conecta um

primeiro a um segundo.51

A terceiridade é a categoria do pensamento. O pensamento serve para

mediarmos fatos brutos, para solucionarmos problemas oriundos do desconhecimento

diante de algo. Quando não conhecemos o objeto, a experiência que temos diante dele é

de brutalidade, de objeção. Não sabemos o que fazer, ficamos muitas vezes perdidos. É

o que ocorre sempre que estamos em uma situação nova, na qual temos dúvidas sobre

como agir. Por exemplo, uma pessoa recém contratada por uma empresa, que chega ao

seu escritório sem fazer a menor noção de como funcionam os procedimentos internos

da mesma. Ela deve dar conta dos processos diários e isso se torna um problema para

ela. Ela deve ser rápida, eficaz, proativa, etc. Mas como fazer isso sem o conhecimento

preciso dos objetos que devem ser manipulados? É aí que entra o papel da mediação.

48

Esse ponto será analisado em futura pesquisa de Doutorado, uma vez que está implicado no tema geral,

a imortalidade do homem. 49

Uma ocorrência individual que se repete, ou seja, permanece, já possui algo da natureza do

pensamento, e, portanto, algo de terceiridade. 50

O tempo também possui o seu aspecto interior, a saber, a forma como sentimos o tempo. Mas o tempo

em seu aspecto interior é primeiridade. A terceiridade, por outro lado, tem a ver com o tempo em seu

aspecto exterior, ou seja, o tempo objetivo. 51

Dessa forma o que temos, ao juntar as três categorias visualmente, é 1, 3, 2 e não 1, 2, 3. Mediação e

não mera seqüência.

25

Ela vai começar um processo de aprendizagem dos procedimentos internos da empresa

com o intuito de passar do estágio de desconhecimento para um estado de

conhecimento.52

Quando esse estado for atingido, os processos já não exercerão sobre

ela a objeção bruta.53

Um processo de formação de conhecimento implica aprendizagem. Só podemos

apreender algo que possua alguma espécie de ordem.54

Esse aspecto é muito importante,

se não essencial, para a correta compreensão da epistemologia peirciana.55

Aquilo que

não tem padrão, não é cognoscível. Permanência é uma forma de ordem, dessa forma

tudo o que está sob a linguagem se refere a conceitos que surgiram como generalização

de propriedades que permanecem nos fenômenos. Só a ordem permite conceito. Um

exemplo: o que é aquilo que chamamos de livro? A palavra livro é um conceito que

captura os predicados que todos os livros têm em comum, tais como: possuem capa,

folhas, letras impressas, título etc. São predicados de livros em geral e não apenas deste

sobre o qual estou debruçado agora. É possível dizer “livro”, significando com isso os

predicados referidos, porque em geral os livros permanecem sendo livros com esses

predicados. Há uma ordem, um padrão em jogo aqui. Se eu perguntar para o meu

vizinho o que é um livro, ele vai me responder que um livro é um objeto que possui

mais ou menos essa mesma série de predicados que acabei de descrever, tanto se eu

perguntar hoje, como se eu perguntar daqui a três meses ou um ano. Ele não vai me

responder “olha, esses predicados que você usou para exemplificar o que é um livro,

eram predicados de livros até a semana passada; hoje os livros têm outros predicados

completamente diferentes, tais como são voláteis, não possuem letras ordenadas etc.”

Todos os termos da linguagem são nomes baseados em universais. Tanto os nomes

como os predicados.

Assim, a cognição depende de um princípio de ordem no objeto. Ou seja, não

somos nós que impomos relações, mas as relações têm que ser sugeridas pelo objeto.

52

Esse tema é muito trabalhado por Peirce, sobretudo em um texto intitulado A Fixação das Crenças (The

Fixation of Belief - EP 1. 109), de 1877, o primeiro da série Ilustrações da Lógica da Ciência

(Illustrations of the logic of Science). 53

Ou seja, quando conhecemos um objeto, ele deixa de objetar. Isso quer dizer que a própria razão apenas

surge diante dessa necessidade de mediar a segundidade do mundo. 54

É por isso que jamais podemos ter uma experiência cognitiva da primeiridade, posto ser esta a categoria

do assimétrico, ou seja, daquilo que não tem nenhuma ordem. Não conhecemos a primeiridade, apenas

sentimos algo que aparece como primeiro ou contemplamos algo primeiro com a consciência em

suspenso. Conferir IBRI, 1992 e IBRI, 2009. 55

Conferir IBRI, 1992.

26

Em outras palavras, as relações ocorrem nos objetos.56

Nós representamos objetos

segundo essa ordem, que nos permite formar um conceito sobre eles. Os conceitos nos

permitem conhecer os objetos e abrandar as suas objeções (segundidade). Dizemos

abrandar, porque, mesmo depois de conhecermos um objeto e sabermos como nos

comportar diante dele, ainda permanece a sua característica individual (segundidade), e

mesmo suas qualidades (primeiridade), isso faz da representação cognitiva algo sempre

aproximado.57

Isso exemplifica outra característica da terceiridade, a saber, ela inclui

em si a segundidade e a primeiridade. Não há uma mediação que não seja entre um

primeiro e um segundo.58

A permanência supõe o tempo. O pensamento está sempre no tempo, exatamente

porque ele captura a ordem que permanece independente desse próprio pensamento no

mundo. Trata-se de uma experiência totalmente diferente da primeiridade e da

segundidade, estas imediatas. Todo processo de aprendizagem envolve tempo, um fluxo

contínuo do passado em direção ao futuro. Recolhemos as experiências do passado e

refletimos sobre elas, ou seja, efetuamos um processo de mediação. E para que? Para

que saibamos como nos comportar no futuro. Todo saber é preditivo, ou seja, está

direcionado para o futuro.59

Saber algo é ter um conhecimento geral, que não está nunca

esgotado em uma ocorrência, mas sim vale para todas as situações possíveis que possam

56

Ver HAUSMAN, 1993 e SILVEIRA, 2004, para excelentes análises do papel do objeto como elemento

que constrange a mediação da terceiridade. Para Hausman, aquilo que é chamado de objeto dinâmico, na

semiótica peirciana, exerce o papel principal naquilo que ele chamou de realismo evolucionário de tipo

peculiar de Peirce. Esse traço é tão ressaltado por Hausman que entendemos ser um dos fatores que o

levou a rejeitar um lugar legítimo para o Idealismo Objetivo na filosofia de Peirce. Ou seja, para

Hausman, por mais próximo que se diga que Peirce estava do Idealismo Objetivo ele, na verdade, estava

comprometido com um realismo cuja característica principal era “a visão de que há condições restritivas

para o conhecimento e a experiência que transcendem ou não são redutíveis ao pensamento, mesmo se

tais processos são pensados como sendo independentes de mentes particulares ou agentes conscientes”

(p.4) e o fator fundamental de tais condições restritivas é algo que, do ponto de vista semiótico, é

designado pelo objeto dinâmico, que diz respeito ao objeto independentemente de como ele é pensado no

processo de semiose. A nosso ver o papel do objeto dinâmico de fato é importante em todo o processo

que gera conhecimento, mas realçar esse ponto como um argumento contra o Idealismo Objetivo é uma

estratégia inadequada, pois o Idealismo Objetivo, tal qual será esboçado em momento oportuno não

contradita o realismo radical de Peirce, mas ao contrário o completa, sob um ponto de vista que se pode

chamar de ontológico, acrescentando uma matriz comum para a mente e a matéria, matriz esta

identificada com a mente. De outro lado, esse acréscimo ontológico proporcionado pelo Idealismo

Objetivo também terá consequências que se farão sentir sob o ponto de vista epistemológico, pois se

verificará que o conhecimento sobre a matéria é possível exatamente porque ela é de natureza inteligível. 57

Essa postura está ligada, como veremos, ao sentido forte de realidade em Peirce, bem como em sua

concepção falibilista do universo. 58

Da mesma forma, a segundidade inclui a primeiridade. Ou seja, não há individual que não possua

qualidades, que tomadas em si, são primeiridade. Apenas a primeiridade está sozinha e não possui relação

com nada mais. Se a primeiridade tivesse alguma relação desse gênero, já estaria sobre uma espécie de

ordem e, portanto poderíamos ter uma experiência cognitiva dela. 59

Conferir (IBRI 1992; p.64). Ver também (ROSENTHAL, 1968).

27

ocorrer no futuro e que implicam esse saber. Um exemplo: saber fazer um pudim, não é

apenas saber fazer um pudim agora, este pudim individual, mas sim saber fazer um

pudim a qualquer momento, agora e no futuro. Tanto que existe a receita, e esta é

mediação, está sob a terceira categoria.

O vínculo que toda mediação possui para com o futuro se traduz no seu poder de

predição. Ou seja, quando mediamos uma situação de segundidade estamos prevendo o

curso dos fatos. Um exemplo simples: uma pessoa toma um remédio e logo após

começam a sair várias “bolinhas” vermelhas pelo seu corpo, “bolinhas” que, aliás,

coçam muito. Ela vai ao médico e após os devidos exames este lhe diz que ela é alérgica

ao tal remédio. Uma vez que ela adquiriu esse conhecimento, ela não vai pensar “só

hoje é que esse remédio me causou alergia, amanhã não vai causar”. Ela vai saber que

essa propriedade do remédio lhe causar alergia perdurará no futuro e, portanto, não mais

tomará o remédio quando surgir a ocasião, ela procurará outro que não tenha os mesmos

componentes químicos.60

Isso é, sua conduta foi moldada por uma mediação, pelo

conhecimento, pela aprendizagem adquirida, que se estende sempre para o futuro. Outro

nome para esse processo é hábito. Conhecer é representar hábitos (das pessoas, dos

objetos) e, ao mesmo tempo, adquirir hábitos, pois toda conduta moldada por um

processo de aprendizagem, quando repetida, se torna um hábito. O modo como agimos

é constituído pelas nossas crenças. O hábito é o lado de fora da crença. Agora, não é só

o homem que possui hábitos, a natureza também possui hábitos, por exemplo, a

produção do mel pelas abelhas, ou a construção de sua colméia.61

Sob o ponto de vista lógico, a terceiridade é a categoria da necessidade. Essa

necessidade é a necessidade lógica. Sua forma é a do argumento dedutivo: Todo A é B.

Todo B é C. Logo, todo A é C. Essa conclusão decorre das premissas necessariamente,

em outros termos, a conclusão segue uma regra necessária. Ela é o que é e não poderia

ser diferente. Não é possível que se dê de outra maneira.62

Sob o ponto de vista interior, a terceiridade é a categoria do pensamento, da ação

da mente no tempo, instituindo mediações e criando hábitos. Do ponto de vista exterior

a terceiridade é exatamente o que se dá no tempo: a ordem do mundo. Significa, tudo o

60

Isso ocorre também com os animais, tomemos como exemplo o adestramento de um elefante. 61

O papel do hábito na filosofia de Peirce será mais aprofundado em capítulos vindouros. 62

Aqui se percebe claramente a fragrante diferença entre a terceiridade como categoria do universal

necessário e a primeiridade como categoria do universal possível.

28

que tem ordem aparece como terceiridade. Isso está associado ao nosso mundo

cognitivo e por isso temos a experiência desses fenômenos.63

Uma Lei está sob

terceiridade, mas isso já implica um passo além da fenomenologia em direção à

metafísica. Cabe agora trabalharmos na caracterização das Ciências Normativas no

interior do pensamento de Peirce, para apenas depois estarmos seguros para

adentrarmos no terreno da metafísica, completando, assim, a classificação geral das

ciências.

2.2 As Ciências Normativas

A segunda ciência que constitui a Filosofia, na verdade é uma tríade de ciências,

que Peirce chamou de Ciências Normativas.64

São elas: a Estética, a Ética e a Lógica

(ou Semiótica65

). O que significa dizer que uma Ciência é normativa? Significa dizer

que essa ciência procurará investigar as leis universais e necessárias que caracterizam as

relações dos fenômenos com os seus fins. Fins esses que estão, por sua vez, ligados à

conduta. Que fenômenos são esses sobre os quais as Ciências Normativas vão se

debruçar? São aqueles fenômenos inventariados pela Fenomenologia, ou seja, as

Ciências Normativas assentam na Fenomenologia.66

Significa: em última instância, as

Ciências Normativas estão fundadas na experiência. Assim, cada uma das três Ciências

Normativas, para Peirce, terá por tarefa caracterizar seus fenômenos em relação aos fins

que lhes são próprios e que, exatamente por isso, motivam a conduta deliberada. Isso

equivale a dizer que essas ciências são gerais, e por isso fazem parte das Ciências da

Descoberta e não das Ciências Práticas ou mesmo Especiais. Aliás, são chamadas de

normativas exatamente por causa desse caráter geral que permite conceituação, análise e

63

Entenderemos a natureza dessa associação quando falarmos do Idealismo Objetivo peirciano. 64

Ver, por exemplo, CP 1.573-615. CP 5.120-150. Também EP 2-196-207 e 371-397. 65

Neste capítulo descreveremos de maneira bem geral a Lógica como ciência normativa. Haverá um

capítulo destinado à semiótica, no qual nos aprofundaremos um pouco mais na teoria geral dos signos,

mas lembramos, sempre mantendo o propósito propedêutico deste trabalho. Fugiria totalmente ao escopo

deste trabalho uma descrição da evolução da Lógica na obra peirciana. 66

“Essa ciência, Fenomenologia, então, deve ser tomada como a base sobre a qual as Ciências

Normativas devem ser erguidas.” CP 5.39.

29

definição da conformidade dos fenômenos com os seus fins.67

Dessa forma o tipo de

aproximação que as Ciências Normativas terão para com seus objetos não é meramente

fatual. Veja bem, isso não quer dizer que as Ciências Normativas não devam confirmar

suas hipóteses junto aos fatos. Elas assim o fazem, como qualquer ciência pertencente à

Filosofia, pois lembremos, essas são ciências positivas, ou seja, ciências que se

reportam aos fatos passíveis de serem observados por qualquer um, a qualquer

momento. Mas, ao mesmo tempo, enquanto ciências gerais, suas preocupações estão em

descrever o que há de comum entre os fatos, ou seja, o que há de geral nos fatos

tomados em relação aos seus fins, cada uma segundo o escopo que lhe pertence, e não

em reunir fatos sob um determinado aspecto e, então descrevê-los (escopo das Ciências

Especiais) ou em agir segundo uma técnica para produzir algo cujo fim é prático

(escopo das Ciências Práticas). Em outros termos, as Ciências Normativas são

puramente teóricas. Nas palavras do próprio Peirce:

Por uma ciência positiva, quero dizer uma investigação que busca por

um conhecimento positivo, ou seja, por um conhecimento que possa ser

convenientemente expressado por uma proposição categórica. A Lógica

e outras ciências normativas, embora perguntem não pelo que é, mas

pelo que deveria ser, de qualquer modo são ciências positivas, uma vez

que é por afirmarem verdades positivas e categoriais que elas estão

aptas para mostrar que o que elas chamam de bem realmente é assim, e

que, o raciocínio correto, a ação correta e o ser correto, dos quais elas

tratam, derivam suas características de fatos positivos e categoriais.68

Para entendermos isso corretamente devemos, então, fazer duas perguntas

essenciais: 1) O que significa dizer que um fenômeno está relacionado a um fim que lhe

é próprio e de forma geral? 2) De que maneira essas relações com fins gerais

influenciam a conduta? Respondendo à primeira pergunta, estaremos descrevendo cada

uma das Ciências Normativas. Respondendo à segunda pergunta, estaremos

relacionando as Ciências Normativas entre si.

Pois bem, o que significa dizer que um fenômeno está relacionado a um fim que

lhe é próprio e de forma geral? Fim equivale, aqui, a propósito. Um propósito próprio

67

Para uma excelente análise das Ciências Normativas em Peirce queira o leitor consultar POTTER,

1966. 68

CP 5-39.

30

de um fenômeno é algo outro que o fenômeno.69

É uma questão de conformidade de

fenômenos com fins, portanto, supõe uma dualidade (segundidade, em termos

categoriais). Então, não devemos confundir o termo “próprio” com o termo “imanente”.

As Ciências Normativas, para Peirce, “se relacionam à conformidade dos fenômenos

com fins que não são imanentes nesses fenômenos” 70

, mas que, por outro lado, lhes são

próprios. Significa: há um tipo de propósito que, embora não imanente, pertence

exclusivamente ao fenômeno, descrito em linhas gerais por um tipo de ciência

normativa. Isso distingue as Ciências Normativas de qualquer outra ciência. Dessa

forma, não se trata de propósitos particulares, mas sim de propósitos gerais,71

a saber,

no que concerne à representação da verdade (Lógica), no que concerne aos esforços da

vontade (Ética) e no que concerne aos objetos tomados simplesmente como aparecem

(Estética).72

As Ciências Normativas descrevem tipos de bens e não graus de bens.

Então, mais especificamente, devemos perguntar por três tipos de bens: Qual é o bem

próprio da Lógica? Qual é o bem próprio da Ética? Qual é o bem próprio da Estética?

2.2.1 O bem lógico

Comecemos pelo bem da Lógica. Peirce o define do seguinte modo: “Parece,

então que o bem lógico é simplesmente a excelência do argumento.” 73

A Lógica trata

do pensamento, mais precisamente do pensamento controlado. Controla-se o raciocínio

através de argumentos bem construídos. A Lógica, grosso modo, seria a ciência

normativa que busca estudar o raciocínio correto, através da descrição geral das formas

de raciocínio válidas, com o intuito de proporcionar os meios para se agir

razoavelmente.74

Para isso, a lógica trabalha com a classificação e crítica de argumentos

ou raciocínios. A classificação enumera os tipos de raciocínios existentes. A crítica lhe

69

É por isso que, como veremos um pouco mais abaixo, as Ciências Normativas tratam dos seus objetos

em sua segundidade. 70

Apud. SILVEIRA, 2007, p. 212. 71

No texto Três tipos de Bem (Three Kinds of Goodness - CP 5.120), Peirce adverte que existem ciências

práticas que correspondem às três ciências normativas. Essas ciências práticas seriam as que se

preocupam com as práticas do raciocínio, da conduta da vida e da produção de obras de arte, todas em seu

aspecto mais particular. No entanto, essas ciências recebem ajuda das ciências normativas e não as

constituem, posto que as ciências normativas lhes são mais gerais. 72

Conferir POTTER, 1966. 73

CP 5.143. 74

Conferir POTTER, 1966.

31

permite dizer se um argumento é bom ou ruim. Peirce reconheceu três tipos de

argumentos: a dedução, a indução e a abdução.75

Ele as definiu do seguinte modo:

A dedução é o único raciocínio necessário. É o raciocínio da

matemática. Parte de uma hipótese, cuja verdade ou falsidade nada tem

a ver com o raciocínio; e, naturalmente, suas conclusões são igualmente

ideais [...] A indução é a verificação experimental de uma teoria. Sua

justificativa está em que, embora a conclusão da investigação num

estágio qualquer possa ser mais ou menos errônea, mesmo assim, a

aplicação ulterior do mesmo método deve corrigir o erro. A única coisa

que a indução realiza é a determinação do valor de uma quantidade.

Parte de uma teoria e avalia o grau de concordância dessa teoria com o

fato. Nunca pode dar origem a uma idéia, seja qual for. Tampouco o

pode a dedução. Todas as idéias das ciências a ela advêm através da

abdução. A abdução consiste em estudar os fatos e projetar uma teoria

para explicá-los. A única justificativa que ela tem é que, se devemos

chegar a uma compreensão das coisas algum dia, isso só se obterá por

esse modo.76

A crítica dos argumentos que se dão por raciocínios dedutivos, indutivos e

abdutivos, ou seja, a afirmação de que se trata de argumentos bons ou ruins, consiste na

capacidade ou não desses tipos de raciocínios em representar um objeto

verdadeiramente. Assim, em última instância, a representação do objeto pelos tipos de

raciocínios lógicos deve conduzir à verdade na descrição do fenômeno. Mas que tipo de

verdade é essa? Não será uma „Verdade‟ absoluta, final e acabada. Trata-se de uma

verdade sempre passível de correção ulterior, posto que a representação deve sempre se

curvar ao fenômeno. Não somos nós que imputamos a verdade nos fenômenos através

da nossa linguagem.77

Uma representação deve se adequar ao objeto e não este à

representação. O objeto sempre é representado sob algum aspecto. Isso quer dizer, a

linguagem nunca irá capturar o objeto em sua completude.78

Dessa forma, o bem da

Lógica consiste em representar bem as verdades provisórias, produzidas pelos tipos de

75

Não é o caso, aqui, de nos aprofundarmos na caracterização de cada um desses tipos de raciocínios

lógicos e a relação destes com o desenvolvimento da filosofia peirciana. O leitor que desejar se

aprofundar nesse tema pode consultar: IBRI, 2006; DIPERT, 2004; BACHA. 2002. 76

PEIRCE, 2008, p. 207. 77

Peirce vai se afastar totalmente dessa linha nominalista de pensamento. Compreenderemos ainda

melhor esse ponto depois de termos nos voltado ao Realismo peirciano. 78

Conferir SILVEIRA, 2004.

32

argumentos, desenvolvendo, assim, bons hábitos de raciocínios mediante aplicação de

regras e normas.79

Devemos notar também que, para Peirce, a verdade é um processo no

qual estamos envolvidos durante toda a nossa vida, e que é possível pensar em uma

verdade ideal, nunca atualizada, posto que se fosse assim seria absoluta, mas que serve

como guia para todo pensamento e investigação, na forma de uma esperança no

futuro.80

Dessa forma, afasta-se a possível objeção de relativismo.

O bem lógico está assentado no fato de que todo raciocínio pode ser auto-

avaliativo, ou seja, auto controlado. Alias para Peirce, isso é o único aspecto em que o

raciocínio é superior ao instinto.81

Assim, a classificação e a crítica dos argumentos

servem como normas para fundamentar a conduta deliberada. Conduta deliberada, como

vimos, supõe o autocontrole; isso significa: a lógica não lida com fatos que fogem ao

controle da racionalidade, os inconscientes por exemplo. O raciocínio é, por definição,

sujeito ao autocontrole e é precisamente por causa disso que podemos dizer que são

bons ou maus e não ao contrário82

De outro lado, mencionemos algo que agora só

entenderemos parcialmente83

: como o raciocínio se aplica às relações que existem no

próprio universo, o processo de desenvolvimento de um bom raciocínio, ou seja, um

raciocínio que verdadeiramente represente uma relação real entre fenômenos equivale,

79

As regras e as normas são aplicadas aos tipos de raciocínio e redundam na questão da validade da

dedução, da indução e da abdução. É digno de nota que Peirce afirme: “Se, então, pudermos enunciar

aquilo em que consiste a validade do raciocínio Dedutivo, teremos definido a base do bem lógico de

qualquer tipo.” (PEIRCE, 2008, p. 208). Em que consiste a excelência do argumento dedutivo? Consiste

em que sua forma geral garante a regra básica da Lógica para atingir a verdade de um argumento, a saber,

que não se pode, seguindo essa forma, passar de premissas verdadeiras para conclusões falsas (qualquer

que seja o meio pelo qual as primeiras premissas são tidas por verdadeiras). Todo raciocínio necessário é,

para Peirce, de natureza diagramática, e seu maior exemplo está no raciocínio matemático. Dessa forma,

essa é a característica principal do raciocínio necessário para Peirce e não se pode, para exemplificá-lo

simplesmente usar o famoso exemplo do silogismo em Bárbara aristotélico: Todo homem é mortal. Ora,

Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal. Na verdade, deveríamos pensar na geometria, e no papel que

a visão exerce na dedução das propriedades das entidades geométricas. Essa aparente redução do bem

lógico ao argumento dedutivo e, portanto, necessário, parece num primeiro momento conflitar com a

noção móvel de verdade caracterizada logo acima. No entanto, não devemos nos esquecer que a bondade

lógica não se aplica ao real, mas sim aos argumentos, ou seja, à representação. A verdade móvel está na

relação entre a representação e o objeto, e não somente na forma da representação. A forma dedutiva

garante a necessidade do argumento, e quando o argumento é adequado, garante também a verdade da

representação, mas não garante a certeza absoluta dessa representação, posto que o objeto é sempre

dinâmico, e portanto, a relação entre objeto e representação é também dinâmica. 80

Sobre a teoria da investigação em Peirce ver, por exemplo, os textos da série Ilustração da Lógica da

Ciência (PEIRCE, 2008 a). Para uma problematização, consultar MISAK, 2004 e BACHA, 2002. 81

Conferir WAAL, 2007, Cap. 6. 82

Conferir WAAL, 2007. 83

Na verdade só vamos estar mais preparados para entender essa afirmação depois de entendermos o

realismo e o idealismo objetivo de Peirce, o que ocorrerá um pouco mais abaixo.

33

em última instância, a um contínuo trabalho de conformidade da nossa mente com a

razoabilidade do universo.84

O raciocínio razoável que leva a uma conduta deliberada é

uma concretização da generalidade enquanto modo de ser.

2.2.2 O bem ético

A Ética não é a ciência do que é certo e do que é errado, ou seja, não é uma

prática85

, mas sim é a ciência do que faz com que algo seja adotado como sendo certo

ou errado, de uma maneira geral.86

Assim, Peirce define: “A ética é o estudo sobre quais

as finalidades de ação estamos deliberadamente preparados para adotar.” 87

O fim ou

propósito dos fenômenos descritos pela ética residem na ação.88

O que move a nossa

conduta? O que nos faz agir de tal ou qual maneira? A resposta é: algo que aparece

como um bem. A ética deve ser vista como a ciência que estuda os tipos de bens que

podemos adotar deliberadamente. Ora, já vimos que bem equivale a propósito e

finalidade. Dessa forma, a ética estuda, de forma geral, os fins que deliberadamente

adotamos para a nossa conduta. Ora, essa é exatamente a descrição de Ciências

Normativas. É por isso que Peirce tomava a ética por ciência normativa por excelência:

84

Conferir WAAL, 2007. 85

Peirce diferencia ética de moral. A ética enquanto ciência geral pertence às Ciências da Descoberta, a

moral, enquanto ciência do particular pertence às Ciências Práticas. Em CP 1.573, Peirce diz: “A ciência

da moralidade, da conduta virtuosa, do viver corretamente, muito dificilmente poderia clamar por um

lugar entre as ciências heurísticas.” Vincent Potter, em seu já citado artigo (POTTER, 1966), descreve

como Peirce, apenas após 1882 chegou à conclusão de que realmente a ética deveria ser distinguida da

moral, tomando assim o seu lugar nas ciências da descoberta; segundo Potter, antes dessa data, Peirce

tomava a ética “por nada mais que uma arte ou ciência prática que pouco tinha a ver com princípios

teoréticos.” Por outro lado, também não devemos confundir o conceito que Peirce tem da moral como

prática com a forma particular como o ser humano age diante de “tópicos de importância vital”. A moral

seria, então, uma tentativa não heurística de tornar isso assunto de uma prática. De outro lado, a ação

particular diante de dilemas e condutas morais, por exemplo, é mais uma questão de instinto e, para

Peirce, não deve ser confiada à nossa razão. No que diz respeito ao instinto, não se trata de nenhuma

forma de uma desconsideração do seu papel no mundo. Muito pelo contrário, Peirce tem o instinto em

alta conta, no entanto, ele não é objeto das ciências teoréticas, exatamente pelo fato de não estar sujeito ao

autocontrole, e, portanto à crítica. Para um aprofundamento desse tema, queira o leitor consultar AYDIN,

2009 e, para uma maior problematização MISAK, 2004 a. 86

Potter esclarece: “Assim, a ética não concerne diretamente em pronunciar que um curso de ação é certo

e aquele errado, mas em determinar o que faz do certo, certo e do errado, errado.” POTTER, 1966. 87

PEIRCE, 2008, p. 202. 88

Idem, página 201.

34

A Ética, a genuína ciência normativa da ética, enquanto distinta desse

ramo da antropologia que, em nossos dias, é conhecida pelo nome de

ética, esta ética genuína é a ciência normativa par exellence, porque um

fim, o objeto essencial da ciência normativa, está ligado com um ato

voluntário no qual não está ligado a nada mais.89

A ética envolve um ideal de conduta e isso não deve ser confundido em hipótese

alguma com um motivo para agir.90

Um ideal sempre está relacionado com uma linha de

conduta deliberada. Significa: cada ação é por assim dizer revista pelo agente através de

um julgamento. Esse julgamento tem por objeto a adoção da conduta julgada para um

futuro ou não. Ou seja, o julgamento vai estabelecer se a conduta deve ser mantida

aonde quer que surja a oportunidade. Se o julgamento estabelecer essa conduta para o

futuro, tal conduta se torna um ideal. Assim, um ideal é um tipo de conduta que atraí

uma pessoa após uma crítica, que é tanto interna quanto externa, ou seja, tanto é um

julgamento que ocorre na consciência de uma pessoa, como também advém de outras

pessoas, e de forma mais geral ainda, da sociedade.91

A ética define qualquer tipo de ideal, incluso o lógico e o estético. Portanto,

define o ideal em geral, não o ideal em si e nem o particular. Significa: a ética propõe os

fins que podemos razoavelmente perseguir. Isso envolve a escolha da conduta diante de

normas, ideais, propósitos, etc. A ética estuda exatamente essa relação, ou seja, a

relação da conduta com os ideais ou fins.92

Agora, ela estuda e define essa relação das

condutas com os ideais de forma teorética. Ou seja, ela não visa descrever as ações

pelas ações, mas sim a relação das ações com seus propósitos em qualquer situação

possível onde ocorrem na experiência. Assim, os propósitos que podem ser

deliberadamente perseguidos não são as ações particulares, mas sim idéias e ideais que

regulam e justificam as condutas escolhidas nas experiências de ações em geral.93

Controlar a conduta só é possível quando se sabe quais são os fins que estamos, em

89

PEIRCE, 2008, p. 202. 90

Ver CP 1.574. Ciano Aydin, em seu já citado artigo, AYDIN, 2009, p.432, onde observa agudamente

que essa distinção peirciana entre um ideal de conduta e um motivo para agir, equivale à distinção

aristotélica entre causa final e causa eficiente. 91

Segundo Ciano Aydin, é no sentimento social e não no individual que estará contido, para Peirce, o

critério para definir o que é o bem, posto que a sociedade é o resultado de um longo processo de

interação, correção e modificação oriundo de diferentes perspectivas. Ibidem, p. 438. 92

POTTER, 1966, p. 20. 93

AYDIN, 2009, p. 431.

35

geral, preparados para adotar. Dessa forma, a ética também pode ser definida como a

teoria do controle da conduta, e da ação em geral, de tal forma a se conformar com um

ideal.94

A deliberação acerca de qual conduta adotar é, por um lado sempre oriunda de

experiências e, por outro lado, sempre direcionada para o futuro. Ou seja, envolve a

forma como estamos preparados para agir acerca de assuntos cuja escolha já fizemos e

que por isso se tornou um ideal e, portanto guiarão nossa conduta no futuro. É porque

temos um ideal x que agimos de forma y de acordo com tal ideal, sempre que qualquer

situação que implique x surgir. Tomemos um exemplo bem simples: um pai que toma

por um ideal, ou seja, um bem, ensinar o seu filho pequeno a não roubar doces dos seus

colegas na escola. Quais as ações corretas que estarão em conformidade com o fim que

este pai está deliberado a adotar? Podemos descrever várias ações que esse pai pode

executar de acordo com esse ideal: ele deve ensinar isso ao seu filho; ele deve escolher a

forma certa de dizer; ele deve dar o exemplo, etc. Suponha-se que esse pai receba um

bilhete da diretora da escola, dizendo que seu filho fora surpreendido roubando um doce

de seu colega. Diante disso, o pai terá outras possíveis ações a executar, mas todas elas

conforme o mesmo ideal (supondo também, é claro, que esse ideal não tenha mudado).

Por exemplo, ele pode escolher castigar o filho com uma semana sem jogar vídeo game,

para que ele aprenda; ele pode dar-lhe uma surra; ele pode simplesmente sentar junto

com seu filho e conversar, visando reeducá-lo etc. Suponha-se agora uma última coisa

neste exemplo: esse mesmo pai chega a sua casa hoje, após longa jornada de trabalho e

recebe de sua esposa a notícia de que ela está esperando mais uma criança. Nove meses

depois nasce uma bela menina, e conforme ela vai crescendo chega o momento de

ensinar-lhe a não roubar doces de suas colegas na escola. Ou seja, o mesmo ideal que

regulou as ações desse pai para com o primeiro filho estará regulando e justificando as

suas ações para com a nova filha, e regulará, de forma geral, para um possível terceiro e

quarto e etc., desde que não mude o próprio ideal.

As normas e regras que balizam a conduta deliberada não precisam, mas devem

(ought) ser seguidas. Esse “deve” tem o peso semântico de um “pode”. Assim se coloca

a liberdade da vontade. Uma pessoa “pode” escolher agir em conformidade com os

ideais ou o contrário. Significa: sempre é possível agir de forma contrária ao

94

EP 2. 377.

36

“deveria”.95

Isso quer dizer que nada é imposto à vontade de seguir um ideal. Ao

contrario, é a vontade que procura pelo ideal de forma deliberada.96

Sempre haverá a

presença do autocontrole nas experiências fenomênicas que envolvem escolhas de um

bem ou propósito. Isso significa que a decisão ou a relação da conduta com os fins, se

dá sem a necessidade de apelar para algum tipo de mediação, ou seja, literalmente é

uma relação entre duas coisas, a saber, entre a vontade e o fim.97

Nisso reside o caráter

irredutível da ética.

Os fins que estamos preparados para adotar devem ser considerados como fins

últimos, e assim para Peirce “o homem correto é o homem que controla as suas paixões,

e as faz conformarem-se com os fins que ele está deliberadamente preparado para adotar

como fins últimos.” 98

A ética, como acabamos de ver, define de forma geral a relação

da conduta com os seus fins, quaisquer que sejam esses fins, sem necessidade de

nenhuma mediação, dada a liberdade da vontade. Assim à pergunta “qual é o bem

próprio da ética?” a resposta deve ser: a conformidade das ações com os fins

deliberadamente adotados, ou seja, razoavelmente escolhidos. Porém, esses fins são

fins relacionais, ou seja, visam a solução de algum problema dado pelo mundo da

segundidade ou é tomado como se fosse último em virtude de algum tipo de fixação de

crenças. Ou seja, podemos nos devotar a vários fins tomados como se fossem últimos.

Cabe, então, a pergunta: existe algum tipo de fim que funcione como fim último de uma

conduta deliberadamente adotada, sem relação com nada mais? Ou perguntando de

outra forma: os ideais que são pressupostos por qualquer adoção de conduta deliberada,

pressupõem, por sua vez, algum tipo de ideal último, que seja recomendável em si e

sem relação com nada mais? Apesar de isso ser uma questão fundamentalmente ética, a

sua resposta exige que tenhamos entendido, de maneira geral, do que se trata o bem

estético, para o qual nos voltaremos agora. Portanto adiemos essa resposta para quando

95

Conferir POTTER, 1966. 96

É obvio que o grande interlocutor de Peirce no que concerne a esse ponto é Kant, que em sua Crítica da

Razão Prática estabelece o papel do imperativo categórico no que diz respeito aos assuntos de natureza

ética. Peirce aceita o imperativo categórico, posto que a vontade não pode renunciar a escolher, sob pena

de renunciar a si mesma, mas vai se contrapor à interpretação desse imperativo como uma instância

transcendente aos fenômenos. Não seria possível a ética enquanto Ciência Normativa, nos moldes como

Peirce a descreve, se a vontade fosse guiada por um imperativo que não pode ser confirmado na

experiência fenomênica. Não cabe aprofundar aqui essa questão, mas o leitor que tiver interesse pode

consultar COLAPIETRO, 2006, artigo inteiramente dedicado em explorar a complexa relação entre

Peirce e Kant acerca da abordagem da identidade prática. 97

No entanto, isso não significa que essa relação não possa ser representada. Pelo contrário, deve ser

representada e nisso consiste a relação entre as ciências normativas, como veremos logo adiante. As

ciências normativas são irredutíveis entre si, mas são também relacionais, ou seja, uma depende da outra. 98

PEIRCE, 2008, p. 202.

37

formos falar das relações entre as ciências normativas, o que se dará logo depois de

investigarmos o bem estético.

2.2.3 O bem estético

Da mesma forma que a ética, para Peirce, não é a ciência do certo e do errado, a

estética também não é a ciência do belo e do feio, mas sim a ciência que descreve o que

faz do feio, feio e do bonito, bonito, ou seja, é também uma ciência do geral e não do

particular.99

Peirce num primeiro momento relutou em asserir a existência de uma

verdadeira Ciência Normativa do belo, uma vez que a normatividade da adoção de uma

conduta está ligada com um ato voluntário que, por sua vez não tem relação com nada

mais, além dessa relação entre duas coisas, vontade e finalidade, garantindo assim a

liberdade da vontade.100

Dessa forma, as Ciências Normativas parariam na ética. No

entanto, a linha de raciocínio que leva dos ideais deliberados de conduta estudados pela

ética até a pergunta por um fim possível admirável em si para o qual tenderiam todos os

outros ideais, o levou a aceitar o bem estético como pertencente ao escopo das Ciências

Normativas. Isso significa que essa inserção da estética é um tanto problemática,

gerando uma tensão que só pode ser resolvida, a nosso ver, através da consideração do

papel do valor na abordagem geral da conduta humana em relação aos seus fins.

Veremos como isso acontece primeiro descrevendo a estética em geral e depois

abordando a sua inserção no campo das Ciências Normativas.

O que um fenômeno, ou seja, qualquer coisa que aparece à mente deve possuir

para ser considerado esteticamente bom? Peirce diz:

[...] deve ter um sem-número de partes de tal forma relacionadas umas

com as outras de modo a dar uma qualidade positiva, simples e

imediata, à totalidade dessas partes; e tudo aquilo que o fizer é, nesta

99

Conferir POTTER, 1966. 100

PEIRCE, 2008, p. 202.

38

medida, esteticamente bom, não importando qual possa ser a qualidade

particular do total.101

Qual é a consequência que se pode depreender da citação anterior? É Peirce

mesmo quem diz:

Esta sugestão deve ser tomada por aquilo que ela vale, e atrevo-me a

dizer que o que ela vale é muito pouco. Se estiver correta, segue-se que

não existe algo como um mal estético positivo; e dado que por bem,

nesta discussão, o que queremos dizer é simplesmente a ausência do

mal, ou seja, a perfeição, não haverá algo como um bem estético. Tudo

o que pode haver serão várias qualidades estéticas; isto é, simples

qualidades de totalidades incapazes de corporificação completa [...]

Minha opinião é que há inúmeras variedades de qualidade estética, mas

nenhum grau puro de excelência estética.102

A consequência, dessa forma, seria que não haveria nem um mal estético

positivo, ou seja, não poderíamos nunca afirmar que uma qualidade é má em si e, por

outro lado, também não haveria um bem estético em si, ou seja, não poderíamos nunca

afirmar que uma qualidade é boa, posto que para dizer isso, teríamos que afirmar que

nessa mesma qualidade não há o mal estético. A única coisa que poderíamos dizer,

assim, é que existem várias qualidades estéticas e ponto, nem boas nem más, mas

qualidades em si e sem relação com nada mais, em outros termos, puras

potencialidades.103

Poderíamos dizer que essa primeira caracterização da estética nada tem a ver

com uma normatividade, posto que ela trata de qualidades em si sem relação com nada

mais e a normatividade visa definir os fins que, como vimos, são outros em relação aos

fenômenos. Dito de outro modo, se fossemos considerar aquilo que a estética enquanto

ciência tem a dizer dos fenômenos sobre os quais se debruça, deveríamos excluí-la das

ciências normativas, dado que os fenômenos são descritos por ela como sendo o que

são, na qualidade com que aparecem à experiência e, portanto não em relação a um fim

ideal.

101

PEIRCE, 2008, p. 203. 102

Ibidem, p. 203. 103

Em termos de categorias: primeiridade. Um primeiro, como vimos, é algo que não tem relação com

nada mais e, portanto, não pode ser tomado como outro, ou seja, como segundidade e nem como uma

relação, ou seja, como terceiridade. Dessa forma, num primeiro momento, a estética não poderia ser

incluída entre as ciências normativas.

39

Dessa forma, como pode ocorrer de a estética ser tomada como uma ciência

normativa? Como assentar em bases sólidas a tensão existente entre o aspecto

absolutamente imediato das qualidades estéticas com as finalidades da conduta

deliberada? O ponto que permite resolver essa tensão e, dessa forma, inserir a estética

no campo das Ciências Normativas é, segundo Peirce, o momento em que um ideal

estético é proposto como um fim último da ação.104

Ou seja, a estética só pode ser

incluída dentro das Ciências Normativas quando tomada em relação com as outras duas,

ética e lógica, de forma tal que os fenômenos que ela descreve sejam tomados como

ideais de conduta passíveis de serem adotados e bem representados. Em outras palavras,

em um dado momento, uma qualidade estética, em si nem boa nem má, é tomada como

um valor105

, ou seja, como um bem não mais em si, mas relacional, ou ideal, em suma

como um fim a ser perseguido. Relacional no sentido de que vai estar unida a

complexas redes de interações que vão balizar a conduta futura. Isso não significa que a

qualidade sofra uma imposição por parte da linguagem, perdendo assim o seu caráter

imediato, mas sim que ela é considerada como sendo um fim relacional. Clarifiquemos:

a estética deve considerar o bem em si, sem relações, nisso consiste o seu caráter

singular e isso deve começar com uma descrição das qualidades estéticas; mas, em

algum momento, aquilo que a estética separadamente descreve como uma qualidade

estética em si, deve ser tomada como um tipo de fim que é relacional, posto que outro

em relação ao fenômeno, ou seja, o bem que pode ser objeto próprio das Ciências

Normativas. Quando isso ocorre, as qualidades estéticas continuam sendo o que são, ou

seja, puras potencialidades que aparecem de forma imediata, mas, ao mesmo tempo, são

tomadas como fins, ou seja, como outros em relação aos fenômenos. O valor é o que

permite esse passo duplo, um voltado para o caráter estético do que aparece considerado

sem relação com nada mais e o outro voltado para a apropriação desse mesmo caráter

estético por uma forma ética, ou seja, como um fim ideal.

104

PEIRCE, 2008, p. 203. 105

O valor, como veremos, exercerá um importante papel em relação às ciências normativas como um

todo. É por isso que houve até quem pretendesse tomar o valor, enquanto tópico de vital importância,

como uma quarta categoria, que completaria a primeiridade, a segundidade e a terceiridade, posto que o

valor seria um fenômeno impar que não poderia ser reduzido a nenhuma das três categorias descritas por

Peirce, ver SCHNEIDER, 1952. Sem entrar em contenda, apenas mencionemos que não consideramos

correta essa linha de interpretação, simplesmente porque ela não passa pela navalha de Ockham, ou seja,

ela supõe mais elementos elementares do que o necessário. Assim, Carl Hausman, em seu maravilhoso

artigo Value and the Peircean Categories, demonstrou que é possível, sim, explicar o papel do valor, sem

equacioná-lo, mas sim relacioná-lo com as três categorias. Ver HAUSMAN, 1979.

40

O que é o valor e como ele permite esse passo? Segundo Carl Hausman, o valor

é em seu significado profundo exatamente o bem estético.106

Considerado como valor, o

bem estético aparece como condição cooperante e co-presente com as três categorias da

experiência, fundamentando a definição de todo e qualquer fim. Depois de

fundamentados pela estética enquanto valor é que esses fins podem ser definidos pela

ética e representados pela lógica. Estabeleçamos então a estrutura de forma mais clara,

sugerindo a abordagem da estética de duas maneiras: de um lado, a estética descreve de

forma geral os fenômenos conforme simplesmente se apresentam e assim considerados

os seus fenômenos serão exatamente tal como aparecem, ou seja, apenas manifestações

de qualidades estéticas, em si nem boas nem más; por outro lado, a estética também tem

um bem próprio, ou seja, um fim próprio, e esse fim ou propósito próprio é exatamente

o valor. Na primeira abordagem reside o aspecto da estética que não se alinharia à sua

inserção no terreno das Ciências Normativas e na segunda abordagem, o aspecto em que

ela se insere dentro das Ciências Normativas, proporcionando uma fundação para a

definição da conduta ideal definida pela ética enquanto conformidade com fins e

representada pela lógica de acordo a atingir uma verdade móvel. Por isso Peirce pode

dizer:

[...] um fim último da ação deliberadamente adotada, isto é,

razoavelmente adotada, deve ser um estado de coisas que razoavelmente

se recomenda a si mesmo em si mesmo, à parte de qualquer

consideração ulterior. Deve ser um ideal admirável, tendo o único tipo

de bem que um tal ideal pode ter, ou seja, o bem estético.107

O bem estético é a admirabilidade em geral. Dessa forma, é em seu caráter de

valor que o bem estético pode108

ser tomado como um ideal e é nesse momento que,

segundo Peirce, “um imperativo categórico pronuncia-se a favor ou contra ele”.109

E

então, já estamos no terreno das Ciências Normativas, com a estética exercendo o seu

papel junto com a ética e a lógica em direção à conduta deliberada.

106

HAUSMAN, 1979, p. 209. 107

PEIRCE, 2008, p. 202. 108

Dizemos que o bem estético enquanto valor pode ser tomado como ideal porque a sua natureza é ser

pervasivo, ou seja, ele se aplica a qualquer complexo de qualidades presentes no mundo da experiência e

não apenas como ideal. Isso é o que permitirá Peirce dizer que a ética é um bem estético acrescido de um

elemento que se lhe acrescentou. Voltaremos a isso em seguida. 109

PEIRCE, 2008, p.203.

41

Poder-se-ia objetar dizendo: mas o valor não é uma atribuição somente moral?

Responder-se-ia: o bem estético é uma qualidade ou sentimento que funciona como um

valor, melhor dizendo, aparece pelo lado de fora como valor; considerada enquanto

qualidade pertence ao mundo interior e não necessita de justificativa, considerada

enquanto valor surge pelo lado de fora, ou seja, na experiência e pode ser tomada como

objeto de uma descrição científica e colocada em termos de proposições categóricas.

Considerado assim, o bem estético ou valor é condição de possibilidade de qualquer

atribuição moral e não ele mesmo uma atribuição moral.110

A próxima pergunta que se deve fazer é a seguinte: existe um bem que deve ser

considerado como o mais alto bem, um bem último supremo, para o qual todos os ideais

definidos pela ética e representados pela lógica tendem a se conformar? Esse é o ponto

de intersecção entre a pergunta que deixamos em aberto no fim do tópico anterior (o

bem ético) e o bem estético. Esclareçamos: a pergunta por um bem último é uma

pergunta ética, mas a ética não pode dar essa resposta, cabendo apenas à estética dizer

se há e em que consiste um admirável em si, um ideal último. Então, à luz da estética, a

resposta de Peirce é sim, que existe um bem que deve ser considerado como o bem

supremo para o qual todos os ideais tendem a se conformar. A esse bem Peirce chama

de summum bonum.111

Repare que a resposta positiva a essa pergunta não elimina a

pervasividade da qualidade estética, ou seja, o fato de que ela se aplica a vários

complexos de qualidades, conforme definiu Peirce.112

Não há exclusão mútua entre a

qualidade estética pervasiva e o fim último, o admirável em si descrito pela estética

(como se pudéssemos dizer: ou o bem estético se refere a vários complexos de

qualidades ou apenas ao summum bonum).113

Dito isso, devemos perguntar em que

consiste, para Peirce, o bem supremo, o admirável em si e por si?

110

Isso equivale a dizer que, em termos categoriais o bem estético está associado à primeiridade e não à

segundidade. 111

Expressão latina que significa: o sumo bem, o bem supremo. 112

E, logo, não elimina também a asserção, nesta mesma citação de que não há um grau puro de

excelência estética, posto que, o sumo bem é uma questão de valor. 113

Não cremos ser estritamente correto dizer que a estética estuda o ideal em si. A estética estuda os seus

fenômenos em seu caráter de primeiridade e um ideal, que é um fim, é sempre um segundo, um fenômeno

relacionado com algo outro que não ele mesmo. Isso vale para qualquer ideal, mesmo para o ideal em si,

mesmo para o sumo bem. Na verdade, estritamente falando, a estética estuda as qualidades estéticas, ou

seja, as experiências que carregam qualidades possíveis de receberem o atributo de estéticas. Esperamos

ter mostrado que o que leva alguém a pensar que a estética estuda o ideal em si é o fato de que em um

dado momento isso acaba ocorrendo e esse momento é onde a estética de fato se insere no campo das

ciências normativas.

42

O admirável em si, o supremo bem para o qual todos os ideais tendem a se

conformar, para Peirce, consiste na Razão, ou melhor, no crescimento da razoabilidade

concreta. Esse ideal dos ideais seria buscado sobre todas as circunstâncias e sem relação

com nada mais, e consiste na interação de todas as coisas em direção à evolução

razoável do universo e, portanto, não está reduzida à racionalidade humana, como

muitos poderiam pensar em princípio, essa apenas exerce um papel em meio a muitas

outras coisas com as quais interage no seio do seu sempre em curso crescimento. Para

Peirce, a Razão114

assim explicitada, seria a única coisa que é desejável sem necessidade

de nenhuma espécie de explicação ulterior (embora possamos dar razões para pensar

assim, e nisso consiste, por exemplo, a própria explicação peirciana das Ciências

Normativas) e dessa forma seria um tipo de ideal identificado com o bem estético

considerado como valor e, por isso, só a estética poderia ao fim e ao cabo dizer isso.

Agora, logo após a estética dizer isso, a ética toma tal afirmação como um fim com o

qual relacionar os fenômenos e a lógica poderá representar isso verdadeiramente.

Estamos assim no terreno das relações entre as Ciências Normativas, tópico que

encerrará este capítulo.

2.2.4 A relação entre estética, ética e lógica

De que maneira essas relações com fins gerais descritos pela estética, ética e

lógica, influenciam a conduta? Isso é dado pela relação que as três Ciências Normativas

mantém entre si. A natureza dessa relação é de dependência. Dessa forma, Peirce vai

manter que a lógica depende da ética e essa, por sua vez, depende da estética:

[...] o significado de um símbolo115

consiste em como poderia levar-nos

a agir, é evidente que este “como” não pode referir-se à descrição dos

movimentos mecânicos que o símbolo poderia causar, mas deve ser

entendido como referente a uma descrição da ação como tendo este ou

aquele objetivo [...] A fim de que o objetivo pudesse ser imutável sob

114

A razão, para Peirce, possui, então, o sentido de razoabilidade, ou seja, se refere a condutas que

razoavelmente podem ser adotadas diante de um fim admirável, que implicam em consequências práticas.

Uma conduta razoavelmente adotada envolve, assim, os três tipos de bem. 115

Ainda não esclarecemos aqui o significado de símbolo para Peirce, o que faremos no tópico específico

sobre semiótica, por isso, basta neste momento entender o símbolo como o resultado de um processo

lógico de inferência.

43

todas as circunstâncias, sem o que não seria um fim último, é necessário

que ele esteja em concordância com o livre desenvolvimento da

qualidade estética do próprio agente. Ao mesmo tempo, é necessário

que, ao final, não tenda a ser perturbado pelas reações sobre o agente,

provenientes desse mundo exterior pressuposto pela própria idéia de

ação. É evidente que as duas condições podem ser preenchidas de

imediato apenas se acontecer de a qualidade estética, em direção à qual

tende o livre desenvolvimento do agente, e a da ação última da

experiência sobre o agente, forem partes de uma estética total.116

Para explicar essa passagem, devemos em primeiro lugar reconhecer que as

ações humanas são ações razoáveis, ou seja, autocontroladas. Para controlar uma ação

devemos, por um lado, estar movidos por um ideal que admiramos e, por outro,

devemos representar bem esse ideal, para que possamos ter claras as ações que

executaremos para chegar até ele. Assim, o papel da lógica é representar com excelência

tanto a ação como o objetivo. O objetivo é dado, como vimos, pela ética, consistindo

naquilo que estamos preparados, deliberadamente, para adotar sob quaisquer

circunstâncias. “Sob quaisquer circunstâncias” implica que esse fim deve possuir um

caráter de fim último, imutável, sendo o fim ao qual queremos chegar por que o

admiramos. Ora, esse “admirável”, como vimos, é dado pela estética, consistindo nas

qualidades, em si livres, mas tomadas como valor pelo agente. Em outras palavras, as

ciências lógica, ética e estética, devem formar um todo contínuo117

, que move o

pensamento e a ação em direção a algo que se apresente como um bem e que, em última

instância, como já acentuado, será o crescimento da razoabilidade concreta. Ao todo

desse movimento relacional, cremos, Peirce chamou de estética total118

, o que indica o

primordial papel exercido pela estética na construção das Ciências Normativas: ela é a

base sobre a qual se funda as outras duas, ética e lógica. Assim o bem ético seria o bem

estético especialmente determinado por um elemento peculiar que se lhe acrescentou, a

saber, o fato de o bem estético, o admirável em si, ser tomado como um ideal ou fim; o

116

PEIRCE, 2008, p. 204. 117

Depois que estudarmos o papel do contínuo na filosofia de Peirce esta afirmação se tornará mais clara.

Basta por agora, tomá-la como significando que, na essência, a relação entre as ciências normativas é de

natureza geral e não é esgotada por nenhuma ação particular. Só isso já serviria para distanciar totalmente

a filosofia de Peirce daqueles que tomaram o pragmatismo como residindo na ação particular como fim

de qualquer pensamento significativo. 118

PEIRCE, 2008, p. 204.

44

bem lógico, por sua vez, seria o bem moral especialmente determinado por um elemento

especial que se lhe acrescentou, a saber, o fato de um bem estético funcionando como

um fim ser bem representado e chegar a uma verdade que moverá a ação como um todo.

Toda a conduta humana está fundada nessa relação. O movimento que vai do

admirável, passando pela descrição do objetivo e da melhor forma de alcançá-lo, até a

ação em si, é a forma geral como a conduta humana se dá. Uma conduta em direção a

um fim admirável que se torna repetida configura um hábito119

. Hábitos de conduta, por

sua vez, estão também sujeitos à crítica, ou seja, ao autocontrole, sendo assim passíveis

de modificação. Dessa forma, a modificação da conduta está também sob o escopo da

descrição das Ciências Normativas. Um hábito pode, por exemplo, ser modificado pelo

surgimento de um novo ideal admirável ou pelo reconhecimento de que a representação

do objetivo não fora bem executado, e, mudando a representação, percebemos que o

melhor meio para se atingir o fim admirado não deve mais ser o que vínhamos

adotando, e, por isso, passamos a adotar outro. Ou seja, o hábito pode ser modificado

por alterações nos três tipos de bem.

É interessante notar que essa visão das Ciências Normativas oferecida por Peirce

não diz que existem regras a priori que são consideradas corretas e, partindo delas,

devemos classificar se uma determinada ação está em concordância com tais regras e

por isso deve ser chamada de ação eticamente correta. O movimento é na verdade

oposto a esse: observam-se os fenômenos que aparecem ligados às ações, esses não

sendo outros que não a conduta e hábitos humanos, e, partindo deles, vê-se que possuem

formas gerais e relacionais, passíveis de serem descritas pelas ciências ditas normativas,

ou seja, que descrevem (e não impõem) a forma como geralmente agimos em direção a

um fim que admiramos, quaisquer que sejam eles.120

Trata-se de estética, ética e lógica

científicas121

e não apriorísticas.

Por outro lado, esse movimento de descrição normativo - científica pode e é

estendido por Peirce até o universo, não ficando restringido apenas à conduta humana; a

119

Entenderemos melhor o conceito de hábito em Peirce no tópico dedicado ao pragmatismo. 120

Isso poderia levar um espírito apressado a dizer que essa linha de pensamento acabaria levando ao

hedonismo. Não nos cabe aqui discutir isso, mas apenas apontar que, na verdade, ela está diretamente

oposta ao hedonismo. Remetemos o leitor interessado ao já citado artigo de Vincente Potter: Peirce‟s

Analysis of Normative Sciences. Ver POTTER, 1966. 121

Da mesma forma que, veremos, Peirce desenvolveu uma metafísica científica.

45

razoabilidade concreta, o fim último e incondicional, é um movimento evolucionário do

qual participam todas as coisas122

.

Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas o leitor já pode vislumbrar,

desde já, que a filosofia de Peirce não se apresenta fragmentada, mas pretende ser, ao

contrário, uma filosofia bem ordenada, com cada uma de suas partes intimamente

conectadas. Assim, por exemplo, as três ciências normativas mantêm uma relação de

dependência entre si e estão, como certamente o leitor notou, regradas pelas três

categorias inventariadas pela fenomenologia. Assim, a lógica considera os seus objetos

tomados em sua terceiridade, a ética considera os seus objetos tomados em sua

segundidade e a estética considera os seus objetos tomados em sua primeiridade. As

relações regradas pelas três categorias não param por aí: a fenomenologia, vimos,

descreveu seus fenômenos da forma como eles apareciam, em si, ou seja, segundo a

primeiridade; de outro lado, as Ciências Normativas, acabamos de ver, descreveram

seus fenômenos relacionados com os seus fins, com outros que não eles mesmos, ou

seja, segundo a categoria de segundidade. Vejamos como será descrita a última das

ciências que compõem a Filosofia.

2.3 A Metafísica

A Metafísica é a terceira e última ciência que compõe a Filosofia. A exposição

da metafísica tal qual Peirce a pensou constitui tarefa altamente complexa.

Pretendemos, aqui, apenas tratá-la em seus traços essências, seguindo o espírito

propedêutico deste trabalho. Esse tratamento geral consistirá na descrição geral da

metafísica no interior da Filosofia e na caracterização da forma como aparecerão as

categorias consideradas ontologicamente. A metafísica que Peirce elaborou deve, como

122

É difícil descrever um exemplo sem corrermos o risco de errar profundamente, mas sugiramos um: um

leão que precisa se alimentar e age por instinto em conformidade com esse fim. A ação não é deliberada

logicamente e muito menos a sua presa é um objeto por ele admirado esteticamente. Portanto, o único

elemento que aqui permanece da normatividade seria a ação em conformidade com o fim, que, aliás, é a

descrição definidora das ciências normativas. Mas podemos nos arriscar a dizer que o que é descrito pela

estética e pela lógica, enquanto ciências gerais, está inscrito na história da espécie dos leões: as puras

qualidades presentes em todas as experiências de todos os leões e os hábitos de caça formados ao longo

do tempo impulsionados pelo bem qualitativo da alimentação.

46

no caso das Ciências Normativas, receber o predicado de científica. O que isso quer

dizer? Quer dizer que é uma metafísica que se volta para os fatos, ou seja, que parte dos

fenômenos que aparecem para qualquer um e não a partir de instâncias a priori, que, em

último caso, redundam na admissão de alguma espécie de incognoscível123

. É, assim,

uma ciência positiva, que visa representar o seu objeto, a realidade, de acordo com a sua

forma própria de considerá-lo, a saber, ontologicamente. Por outro lado, ela é também

uma ciência positiva profundamente marcada por uma heurística124

, ou seja, há em seu

interior um marcante papel de hipóteses criativas que visam explicar a realidade e não

apenas descrevê-la, e isso em última instância levará a uma cosmologia.

No texto que vimos tomando como base para a descrição geral das ciências

segundo Peirce, An Outline Classification of the Sciences125

, Peirce caracterizou

brevemente a metafísica da seguinte forma:

A metafísica deve ser dividida em (i) metafísica geral ou ontologia; (ii)

metafísica psíquica ou religiosa, que aborda principalmente as questões

de (1) Deus, (2) Liberdade e (3) Imortalidade; (iii) metafísica física, que

discute a natureza real do Tempo, Espaço, Leis da Natureza, Matéria

etc.126

A isso acrescenta: “o segundo e o terceiro ramo, no presente, olham um para o

outro com supremo desprezo.” 127

Peirce se refere ao fato de Teologia e Ciência,

sobretudo em sua época, teimarem em se manter em completa oposição. Mas essa

Ciência e essa Teologia a que Peirce se refere são ciências que não fundam as suas

hipóteses no mundo fenomênico, mas sim sobre dados a priori, sobre os quais nunca

chegam a um acordo, ou seja, trata-se, de um lado, de uma Ciência que faz as suas

proposições lógicas dependerem de uma metafísica apriorística e, de outro lado, de uma

Teologia que faz as suas proposições lógicas dependerem de um método de fixação de

crenças baseado na autoridade de um Deus em particular ou do que é agradável à razão.

Peirce segue um caminho totalmente diferente: a Metafísica deve ser fundada na Lógica

e não a Lógica na Metafísica (como, por exemplo, Descarte o fez). Na verdade, segundo

123

A recusa peirciana de qualquer tipo de apelo ao incognoscível pode ser encontrada sobre tudo em dois

textos da chamada série cognitiva: Questões concernentes a certas faculdades ditas humanas; Algumas

consequências de quatro incapacidades. 124

Ver IBRI, 2006. 125

EP 2.258. 126

Ibidem, 2.260. 127

Idem, 2.260.

47

a arquitetura filosófica peirciana que vimos tentando expor, a Metafísica depende de

todas as Ciências que lhe antecedem na classificação, assim, ela depende da Lógica, da

Ética, da Estética, da Fenomenologia e, considerando o método heurístico, depende

também da Matemática. Portanto, não é de se estranhar que Peirce não via contradição

alguma entre metafísica psíquica ou religiosa e a metafísica física, estando as duas

fundadas na observação do mundo fenomênico, e inclusive dedicando escritos aos dois

ramos, além, é claro do primeiro.128

Porém, a metafísica que pretendemos descrever em

traços gerais, aqui, é a ontológica.

A Metafísica, de forma geral, não ficará restrita à observação e descrição dos

fenômenos tais como eles aparecem para nós. Isso, como vimos, é escopo da

Fenomenologia. A Metafísica dará um passo além e procurará explicar heurísticamente

a realidade das formas com as quais os fenômenos nos aparecem, ou seja, a realidade

das três categorias. Então, segundo Ibri, a pergunta a ser respondida pela metafísica é:

como deve ser o mundo para que ele me apareça assim?129

Perguntando de outro jeito:

de que forma está constituída a realidade, para que ela possa aparecer segundo as três

categorias? Trata-se, então, de descrever a realidade a partir da forma como ela

aparece130

. A resposta constituindo uma ontologia do real. Compreenderemos em que

consiste o Realismo de Peirce à medida que entendermos como se dá a realidade das

três categorias. Assim tomaremos por base o texto The Seven Systems of

Metaphysics131

, não com a pretensão de esgotar o seu conteúdo, demasiado complexo,

mas apenas para seguir o movimento do pensamento de Peirce para chegar a uma

apresentação da realidade das três categorias enquanto acaso, existência e lei. Não

pretendemos fazer uma descrição minuciosa de acaso, existência e lei. Para os

propósitos deste trabalho bastará mostrar como este texto pode ser um bom ponto de

partida para a introdução destes três princípios metafísicos operantes na natureza. Em

seguida, veremos que aquilo que as três categorias, consideradas não mais como meras

aparições, mas sim como representações de princípios operantes no mundo, têm em

comum, será o que caracterizará o conceito de Realidade em Peirce.

128

Os dois volumes já citados Essential Peirce estão repletos de textos em que são abordados assuntos

metafísicos dos três ramos: exemplos, EP 1 textos 9, 11, 15, 17, 19, 22, 23, 24 e 25; EP 2 textos 1, 7, 13,

22, 29. 129

IBRI, 1992, p. 21. (itálicos do autor). Toda a parte dois do livro de Ibri é dedicada a expor

minuciosamente a metafísica peirciana e seus desdobramentos, o Realismo, o Idealismo Objetivo, o

Continuum e a Cosmologia, demonstrando, assim, a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce,

subtítulo do livro. 130

Idem. 131

EP 2. 179.

48

Peirce começa o texto descrevendo aquilo que ele chamou de as classes

possíveis de abordagens metafísicas baseadas na admissão ou não das três categorias

como constituintes reais da Natureza. Seriam sete, segundo o diagrama representado

abaixo:

Fig. 2. FONTE: EP 2.180.

1- Admissão da primeira categoria apenas: nihilismo ou Idealismo sensualista.

2- Admissão da segunda categoria apenas: individualismo estrito.

3- Admissão da terceira categoria apenas: hegelianismo.

4- Admissão da segunda e terceira categorias: cartesianismos de todos os tipos,

leibnizianismo, spinozismo e a metafísica dos físicos em geral.

5- Admissão da primeira e terceira categorias: berkeleyanismo.

6-Admissão da primeira e segunda categoria: nominalismo.

7- Admissão das três categorias: kantismo, reidmismo, platonismo, aristotelismo.

Ressalvando que essa sétima classe deveria ser subdividida também, visto as formas da

admissão das três categorias variarem bastante. No entanto, Peirce não opera essa

subdivisão.132

Peirce, então, caracteriza a si mesmo como “um aristotélico de veia escolástica,

aproximando-se do escotismo, mais indo além em direção a um realismo

132

Esse texto é a impressão de uma Lecture, ou seja, uma conferência, e, o motivo que levou Peirce a não

operar a subdivisão foi a falta de tempo. No entanto, no que diz respeito a sua filosofia, a continuação do

texto demonstra claramente em que ele se diferencia dos outros sistemas que admitem as três categorias

como constituintes reais da natureza.

I II

II I I II

III

III

II

III III

I

49

escolástico.”133

Em outras palavras, a característica da metafísica peirciana é a admissão

das três categorias como constituintes operantes na natureza, e o que o diferenciará dos

outros sistemas que também admitem as três categorias será a radicalidade do realismo

presente nessa admissão. A isso Peirce chamou de realismo escolástico.

Em seguida, Peirce procede à caracterização da forma como cada uma das

categorias surge como constituinte operativa na natureza, o que equivale a dizer que

Peirce ontologizará as três categorias. A ordem seguida por Peirce, nesse texto, é a

realidade da terceiridade, a realidade da primeiridade e, por fim, a realidade da

segundidade. Deve-se ressaltar que uma das peculiaridades deste texto é que em muitos

momentos Peirce utiliza elementos de sua epistemologia. Embora, no espaço deste

trabalho, não tenhamos reservado um capítulo sobre este tema, não consideramos ser

isso um problema. Peirce é bastante claro em sua apresentação e quando se utiliza de

conceitos epistemológicos não pretende obscurecer, mas sim tornar mais compreensível

aquilo que é desde o início o seu foco.

2.3.1 A realidade da Terceiridade

Peirce diz: “Procedo a argumentar que a Terceiridade é operativa na

Natureza.”134

Significa: há princípios gerais operativos na Natureza. Para demonstrar tal

afirmação Peirce sugere um pequeno experimento: tomar uma pequena pedra e largá-la

de forma tal que não haja nenhum obstáculo entre ela e o chão. O que acontecerá?

Qualquer um poderá prever que, assim que a pedra for solta no ar, certamente cairá até o

chão. Este experimento é muito ilustrativo. Supondo que eu pegue uma pedrinha agora

para também realizar este experimento e verificar se a predição está correta; não só a

pedra cairá no chão neste específico momento em que solto a pedra, desde que

cumprida a condição de não ter nada entre os dois, como isso com certeza135

acontecerá

133

EP 2.180. 134

Ibidem, 2.181. 135

Ao menos se a gravidade não for revogada enquanto operativa na natureza. A filosofia de Peirce

oferece espaço para algo desta natureza ocorrer, trata-se do seu Falibilismo. De acordo com essa doutrina,

cuja raiz está na presença do acaso no mundo, não podemos nunca ter certeza absoluta de nada, posto que

50

em qualquer momento que um experimento igual a esse for realizado por mim ou por

qualquer pessoa e em qualquer lugar. Como podemos saber que isso acontecerá? Peirce

diz: “certamente vocês não pensam que é por clarividência, como se eventos futuros,

com suas reatividades existenciais, pudessem me afetar diretamente.” 136

Então por quê?

Diz Peirce: “Eu sei que a pedra irá cair se eu a soltar porque a experiência me

convenceu que objetos desse tipo sempre caem.” 137

Podemos representar esse conhecimento através de uma proposição geral do tipo

“todos os corpos sólidos caem na ausência de qualquer força ou pressão em contrário.”

Ora, uma pessoa que não admite que aquilo que é descrito fenomenologicamente pela

categoria de terceiridade é operante na natureza, dirá que essa proposição não passa de

exatamente uma mera representação, sendo completamente diferente algo ser e ser

representado. Em outras palavras, dirão que a proposição geral, que funciona como uma

fórmula, só tem seu ser na forma de uma representação. Peirce replicará que, não há

dúvida alguma de que aquela proposição geral é uma representação e que algo que é

uma representação não é ao pé da letra real138

. Porém, acrescentará:

O fato de eu saber que a pedra irá cair no chão assim que eu soltá-la,

como vocês devem confessar, se não estiverem cegos pela teoria, que eu

sei isso [...] é a prova que a fórmula, ou uniformidade, fornecendo uma

base segura de predição, é, ou se vocês preferirem, corresponde à

realidade.139

Ora, aonde se encontra a realidade da representação, uma vez que Peirce mesmo

admite que uma coisa é ser e outra ser representada? Ela está no fato de que aquilo que é

representado por uma proposição qualquer não depende da representação para ser o que

é, mas sim do que a experiência reativa mostrar e que, portanto, funcionará como prova

indutiva. Em outras palavras: que a pedra vai cair, cumpridas as condições, tanto se

fizermos o experimento agora como se qualquer um o fizer no futuro, não depende de

dizermos que ela cairá, mas sim do fato de que ela realmente cai e se fizermos o teste

comprovaremos agora ou a qualquer momento. Contrastemos: supondo que Peirce

um novo arranjo das coisas pode surgir em um universo em evolução, por mais improvável que seja. Para

um aprofundamento do Falibilismo, ver IBRI, 1992, cap. 3 e IBRI, 2000a. 136

EP 2.181. 137

Ibidem, 181 138

O que Peirce quer dizer com isso é que o que é ao pé da letra real é algo caracterizado por ser reativo,

ou seja, aquilo que fenomenologicamente fora descrito pela segunda categoria. 139

EP 2. 182.

51

tivesse dito que, ao soltar a pedra, ela se tornaria um cavalo alado e sairia voando pelo

ar; isso continuaria sendo uma proposição, passível inclusive de ser transformada em

uma fórmula de tipo idêntico ao exemplo anterior, a saber, “toda pedra, na ausência de

uma força ou pressão em contrário, quando solta no ar se transforma num cavalo alado e

levanta vôo”; o que aconteceria quando ele, de fato, soltasse a pedra? A experiência iria

mostrar que ela somente iria cair no chão e que sua representação estava incorreta.

Vamos supor uma última coisa: várias pessoas fazem diversas predições, todas bem

diferentes umas das outras, quanto a esse mesmo assunto, o da pedra solta no ar; depois

disso passam a fazer o experimento para verificar o que vai acontecer; todos os

experimentos redundam no mesmo fato, ou seja, a pedra cai no chão; em algum

momento, todos os experimentalistas, se pretendem ser honestos, concordarão que a

única representação que corresponde com o fato é aquela que prediz que a pedra irá cair

sob tais e tais circunstâncias tanto agora como em qualquer momento do futuro140

.

É essencial, aqui, o caráter de ser para o futuro (esse in futuro) das predições

sobre os fatos gerais. Vimos que o papel do pensamento é mediar entre um primeiro e

um segundo, ou seja, o papel da mediação, do aprendizado, em suma de qualquer

conhecimento que obtemos é o de tornar a força bruta, caracterizada

fenomenologicamente pela segundidade, menos bruta. Conhecer um objeto é saber

como ele se comporta para que a sua reatividade seja diminuta. Dessa forma podemos

dizer que todo conhecimento é preditivo. Dizer que um conhecimento é preditivo

equivale a dizer que ele está direcionado para o futuro, e isso como veremos será a base

do pragmatismo. Assim, quando dizemos que um objeto se comporta em geral de uma

certa maneira, como é o caso da pedra, estamos dizendo que ela se comportou assim, se

comporta assim e em qualquer caso análogo no futuro se comportará assim, até que a

experiência diga o contrário. Há uma uniformidade em jogo aqui, uma esperança de que

140

Aqui, estamos preocupados em apenas seguir o movimento do texto de Peirce para mostrar como ele

defende a realidade das três categorias. A disputa acerca da teoria da verdade em Peirce, que surge desse

âmbito não está em questão aqui. Para o leitor interessado nesse rico debate, recomendamos vivamente os

artigos Reflections on inquiry and truth arising from Peirce‟s method for fixation of belief, de David

Wiggins e Truth, Reality, and Convergency, de Christopher Hookway, ambos publicados em MISAK,

2004. Excelente também é o primeiro capítulo do livro de Sandra Rosenthal ROSENTHAL, 1994,

intitulado World, Truth and Science. As implicações de se adotar o modelo de correspondência ou de

coerência ou mesmo negar os dois em favor de um outro modelo (Rosenthal) estão bem delineados nestas

referências.

52

as coisas mantenham seus predicados, que é como já vimos, o princípio pelo qual

podemos conhecer as coisas e nomeá-las de acordo com uma mediação.141

Dessa forma, Peirce mantém que princípios gerais são realmente operantes na

Natureza, estando baseados na uniformidade da mesma e é exatamente por isso que

podem ser representados. A possibilidade de representação de fatos gerais baseada na

uniformidade da Natureza e no caráter predicativo de toda generalidade é o que permite

conectar o princípio geral operante na natureza com a terceiridade em nível

fenomenológico. Significa: os fatos gerais são da natureza da representação.142

Assim:

[...] terceiridade é nada mais que o caráter de um objeto que incorpora

relação ou mediação em sua forma mais simples e rudimentar; e eu o

uso como um nome para o elemento do fenômeno que é predominante

onde quer que a mediação seja predominante e que adquire completude

na representação.143

Dizer que os princípios gerais operantes na natureza são da natureza da

terceiridade, ou seja, da representação, é equivalente a dizer que as duas possuem um

mesmo modus operandi144

, a saber, tanto as palavras quanto os princípios gerais

produzem efeitos físicos observáveis.145

Palavras influenciam a nossa conduta, não de

forma reativa, mas de forma lógica; princípios gerais operam de forma tal a influenciar

a conduta do objeto que governam. Um princípio geral que governa a conduta de um

objeto recebe o nome de lei. “Uma lei é, em si mesma, nada além de uma fórmula geral

ou símbolo.”146

Uma lei difere completamente dos objetos que a incorpora. Os objetos

são reativos e imediatos147

e como tais não são terceiros ou mediatos. A lei só pode

operar em objetos, ou seja, só pode influenciar a conduta de objetos.148

Por outro lado,

nenhuma coleção de objetos esgota uma lei, pois uma lei, como um geral, está voltada

para o futuro, e, assim, transcende qualquer incorporação, permanecendo sempre um

141

Voltaremos a isso no tópico sobre Sinequismo e Continuidade. 142

Peirce nota que “a definição de geral é „geral é aquilo que está naturalmente apto a ser dito de muitos‟

e isso consiste em reconhecer que a sua natureza é essencialmente predicativa e assim da natureza de um

representamen.” EP 2.183. 143

EP 2.183. 144

Expressão latina que significa modo de operar. 145

Isso é uma aplicação de um corolário do pragmatismo, considerado como regra lógica, segundo o qual,

dois conceitos que produzam o mesmo efeito prático devem ser considerados sinônimos. 146

EP 2.184. 147

Veremos a sua característica quando tratarmos da realidade da segundidade. 148

Convém lembrar, para que não ocorram maus entendidos, que o termo “objeto” em Peirce não deve ser

reduzido ao conceito de “coisa”. Objeto se refere a qualquer coisa que chegue a mente em qualquer

sentido. Ver, por exemplo, SANTAELLA, 2004a, p. 33.

53

geral. Isso deve ser considerado como o aspecto ontológico da irredutibilidade das

categorias. Assim, esse princípio ontológico irredutível e realmente operante na

natureza e representado fenomenologicamente pela terceiridade deve ser denominado

Lei.

2.3.2 A realidade da Primeiridade

Aquilo que fenomenologicamente é descrito pela primeira categoria age

realmente na Natureza? Essa é a pergunta que deve ser respondida. E, se for respondida

com um “sim”, em seguida devemos explicar “como”. Peirce começa o texto dizendo

que os físicos e metafísicos de seus dias não aceitam que as qualidades ajam

efetivamente na Natureza e os primeiros parágrafos do texto são dedicados a explicar as

variáveis de tal posição, cujo ponto comum é tomar as qualidades como meras ilusões.

Peirce propõe, assim, considerarmos a questão de um ponto de vista lógico, para

descobrirmos, com tal ponto de vista, que tomar as qualidades como meras ilusões que

não possuem participação no universo real, se mostra como uma posição

particularmente infundada.149

Peirce, então, vai fazer o seguinte processo de pensamento: resumirá a sua

concepção da relação entre as três Ciências Normativas e depois se deterá na

caracterização daquilo que ele chamou de percepto e julgamento perceptual.150

Como já

abordamos as Ciências Normativas, iremos supor isso como já conhecido e começar a

exposição a partir da afirmação de que “a distinção entre a bondade e a maldade lógica

deve começar aonde o controle do processo de cognição começa.” 151

Isso se deve ao

fato de, como também vimos, uma operação cognitiva consistir em um processo

inferencial autocontrolado. Surge a pergunta: Onde começa, no processo de cognição, a

149

EP 2.188. 150

A teoria da percepção em Peirce é também objeto de grande polêmica entre os comentadores. Não

pretendemos tomar parte nessa polêmica, mas apenas seguir o movimento do texto. Para o leitor

interessando sugerimos SANTAELLA, 1998. 151

EP 2.191.

54

possibilidade de controle? Peirce responde: “não antes de o percepto ser formado” 152

e

continua logo abaixo:

Mesmo depois de o percepto ser formado há uma operação que, a meu

ver, é completamente incontrolável. Refiro-me ao fato de julgar o que é

isso que uma pessoa percebe. Um julgamento é um ato de formação de

uma proposição mental combinada com a adoção ou ato de aprová-la.

Um percepto, por outro lado, é uma imagem ou uma imagem em

movimento ou algum outro tipo de exibição.153

Segundo Peirce, a relação entre o percepto e o julgamento perceptual é apenas

de semelhança. Criticar um julgamento perceptual só pode consistir em tornar a

submeter o objeto aos sentidos e, assim, dar origem a um novo percepto com outro

julgamento perceptual, que pode coincidir com o primeiro ou não. A distinção entre

dois perceptos só pode ser dada por comparação. Assim, Peirce completa:

“conseqüentemente, até eu ser convencido do contrário, considerarei o julgamento

perceptual como completamente fora de controle.”154

Notemos que o julgamento

perceptual é também um tipo de inferência, mas um tipo de inferência não sujeita a

crítica por ser incontrolável. Os julgamentos perceptuais são, então, as primeiras

premissas do raciocínio.155

Todos os outros tipos de julgamentos são processos

inferenciais que advém dos julgamentos perceptuais. Dessa forma, a base anti-cartesiana

da sua teoria do conhecimento, cuja origem remonta aos textos da série cognitiva, de

1867-68156

, é mantida, ou seja, o julgamento perceptual não é uma intuição direta

conhecida por uma capacidade de introspecção.

152

EP 2.191. Quando Peirce fala de „percepto formado‟ ele está a falar do fato perceptivo, ou seja, da

percepção, pelo que devemos esclarecer melhor este ponto. Segundo Santaella “o percepto em si

corresponde ao elemento não racional que bate à porta dos nossos sentidos [...] Assim, o percepto é algo

que está fora de nós e fora do nosso controle. É ele que determina a percepção. Embora determine a

percepção, só pode ser conhecido pela mediação do juízo perceptivo. Para que esse conhecimento se dê, o

percepto deve, de algum modo, estar representado no juízo de percepção [...] Nada podemos dizer sobre

aquilo que aparece, senão pela mediação de um juízo de percepção que é dado em uma interpretação.

Como poderíamos interpretar algo externo a nós, qualquer coisa que seja, sem um juízo de percepção que

nos diga o que é afinal que estamos percebendo?” SANTAELLA, 2008. 153

Ibidem, 191. 154

Ibidem, 191. 155

Alhures Peirce diz: “Nossas primeiras premissas, os juízos perceptivos, devem ser considerados como

casos extremos de inferências abdutivas.” (CP. 5.181). Para detalhes sobre a relação entre abdução e

juízos perceptivos, consultar IBRI, 2006 e SANTAELLLA, 1994. 156

Questões concernentes a certas capacidades ditas humanas; Algumas consequências de quatro

incapacidade e Graus de validade das leis da Lógica. EP 1. 11-82.

55

Ora, os julgamentos perceptuais são exatamente as qualidades de sentimento que

os físicos e metafísicos que não reconhecem a realidade da primeira categoria dizem

que não passam de ilusões.157

Por exemplo, olho para a mesa em que estou escrevendo e

digo que ela é cinza. Quando digo que ela é cinza estou emitindo um julgamento

perceptivo do qual não tenho controle; não posso evitar chamar de cinza aquilo que se

me aparece qualitativamente como cinza. A pergunta é: as qualidades dependem do que

pensamos sobre elas ou não? No caso de respondermos que sim, teríamos que aceitar a

teoria de que não passam de ilusões. Mas a filosofia peirciana manterá que as

qualidades são independentes do que pensamos sobre elas. Como Peirce espera provar

isso? Os seus argumentos, nesse texto, consistem em descrições de diversas ocasiões em

que as experiências qualitativas de duas ou mais mentes acerca de um mesmo objeto

resultam no mesmo julgamento perceptivo. Isso seria uma prova de que a qualidade em

questão seria algo independente das representações levadas a cabo por tais mentes, de

uma maneira parecida com a qual os fatos gerais da terceiridade foram demonstrados

anteriormente.

A sequência argumentativa começa se referindo ao fato de que existe

considerável evidência de que as cores e os sons possuem os mesmos caracteres para

toda a humanidade. Quanto a uma possível objeção de que não há evidência de que o

que parece vermelho aos olhos de uma pessoa também pareça vermelho aos olhos de

outra, Peirce responde que ligeiras diferenças podem existir, mas que, de forma geral, as

qualidades são similares aos olhos de diferentes pessoas. Vejamos a sequência da

argumentação nas palavras do próprio Peirce:

Estou confiante de que o touro e eu sentimos de forma muito parecida a

visão de um pano vermelho. Quanto aos sentidos de meu cão, devo

confessar que eles parecem ser bem diferentes dos meus, mas quando eu

reflito sobre o pequeno grau em que ele pensa através de imagens

visuais, e de como o cheiro exerce um papel importante em seus

pensamentos e imaginação, análogo ao papel exercido pela visão sobre

os meus, cesso de ficar surpreso de que os perfumes de rosas ou de

flores de laranjas não atraiam a sua atenção de nenhuma maneira e que

são, para ele, simplesmente desagradáveis, ao passo que os eflúvios,

157

“Mas os julgamentos perceptuais declaram que uma coisa é azul e outra amarela, que uma coisa parece

ser A e outra U e outra ainda I. Estas são as qualidades de sentimentos que os físicos dizem ser meras

ilusões porque não há lugar para elas em suas teorias.” EP 2.191.

56

para mim imperceptíveis, o atraem muito mais... Vocês nunca me

convencerão de que meu cavalo e eu não nos simpatizamos ou de que o

canário que experimenta imenso prazer em brincar comigo não sente

que está comigo e eu com ele. E esta minha confidência instintiva, é

disso que se trata, é, para mim, evidência de que isso é realmente

assim.158

Assim, o que Peirce pretende mostrar é simplesmente que, apesar das pequenas

diferenças, no principal há bastante evidência de que as qualidades são comuns a todas

as formas de vida cujos sentidos são suficientemente desenvolvidos. E isso, por sua vez,

configura uma prova de que as qualidades não dependem do que pensamos sobre elas,

mas que são o que são, independentemente do que pensamos e, portanto, não são meras

ilusões. O movimento que vai dessa passagem até ao final do tópico é, aliás, muito

bonito é merece citação quase integral, com pausas para breves comentários:

Eu ouço vocês dizerem “tudo isso não é fato, é poesia”. Isso não faz

sentido! Má poesia é falsa, eu concordo; mas não há nada mais

verdadeiro do que poesia verdadeira. E deixe-me dizer aos homens de

ciência que os artistas são muito mais finos e argutos observadores do

que eles são, exceto das minúcias que os homens de ciência

procuram.159

Peirce faz, assim, uma belíssima descrição de como as qualidades que

fenomenologicamente aparecem como qualidades de sentimentos, livres e primeiras,

devem ser tomadas como reais e operantes na natureza. Mas isso ainda não é tudo. O

texto continua:

Assim, se vocês me perguntarem sobre o papel que as qualidades

exercem na economia do Universo, respondo que o Universo é um vasto

representâmen, um grande símbolo dos propósitos de Deus,

transformando suas conclusões em realidades vivas.160

Em outras palavras, o universo possui uma dinâmica análoga à da razão humana,

contendo elementos análogos aos constituintes da forma humana de representação, por

158

EP 2.193. 159

Ibidem, 193. 160

Idem, 193.

57

exemplo, ícones, índices e símbolos161

, e pode ser caracterizado como sendo um

resultado dos propósitos de Deus.162

A parte concernente às qualidades nessa dinâmica

universal é, portanto, análoga à do ícone em um argumento, e surge como julgamento

perceptivo, como se pode depreender da continuação da passagem: “nossos julgamentos

perceptivos são as premissas, para nós, e esses julgamentos perceptuais possuem ícones

como seus predicados, ícones nos quais as qualidades estão imediatamente

presentes.”163

No entanto, não devemos pensar que Peirce é um antropomorfista que

caracteriza o universo somente em relação às formas de representação humanas, na

verdade, o elemento antropomórfico existe e tem apoio na experiência, mas Peirce vai

muito além de um antropomorfismo, em direção a um cosmomorfismo164

que vai

heuristicamente explicar a origem dessa partilha entre o Universo e o homem.165

Tanto

não devemos nos ater somente ao elemento análogo ao humano que Peirce continua

“Mas aquilo que é primeiro para nós não é primeiro para a natureza. As premissas

próprias da natureza são todos os elementos independentes e sem causa dos fatos que

vão constituir a variedade da natureza.166

Essas premissas da natureza não são fatos

perceptuais, porém a eles se assemelham de tal forma que “só podemos imaginar o que

elas são comparando-as com aquilo que são premissas para nós.”167

Sintetizando, premissas para nós são qualidades de sentimento, premissas da

natureza são os elementos independentes responsáveis pela variedade da natureza. Ora,

tanto as qualidades de sentimentos como os elementos independentes que aparecem

como variedades na Natureza, foram descritos, do ponto de vista fenomenológico, pela

primeiridade. Isso equivale a dizer que há uma relação entre a primeiridade e um

princípio atuante na natureza, da mesma forma que havia entre a terceiridade e o fato

geral. Em outras palavras, a primeiridade é ontologizada como um princípio operativo e

161

As noções de representamen, índice, ícone e símbolo se tornarão mais claras no tópico dedicado à

Semiótica Geral. 162

Deve-se tomar o cuidado de não supor o conceito „Deus‟ como um pressuposto da metafísica científica

peirciana. Isto, em definitivo, não ocorre. Porém, a concepção de Deus em Peirce, de uma forma a ser

desenvolvida com mais detalhes em pesquisa futura de doutorado, exerce um papel importante em sua

filosofia. Voltaremos a esse ponto no último capítulo deste trabalho. 163

EP 2.194. Para um aprofundamento do conceito de juízos perceptivos, consultar IBRI, 2006. 164

Conforme comenta Ibri: “O antropomorfismo constatado é genuinamente decorrente e não uma

premissa distante de ter apoio na experiência [...] É lícito, assim, pelo que acabamos de ver, substituir o

termo Antropomorfismo, que tanto choca leitores desavisados de sua obra, atribuindo-lhe talvez, uma

ingenuidade mítica similar às das teorias de Hesíodo, por Cosmomorfismo, querendo, com isto, reverter o

eixo de leitura do humano para sua matriz, o Cosmos. IBRI, 1992, p. 87-88. (itálicos do autor) 165

Esse ponto é explicado em detalhes em IBRI, 1992, cap. 5. 166

EP 2.194. 167

Idem, 194.

58

atuante na Natureza. Esse princípio recebe, no interior da filosofia de Peirce, um nome

especial: trata-se do Acaso. O Acaso funciona, então, como o princípio de distribuição

fortuita operante na natureza e responsável por todas as formas como a primeiridade

aparece fenomenologicamente para nós. Peirce chama de Tiquismo, do grego tu/xh

(Acaso), a doutrina metafísica que professa ser o Acaso um princípio real do

Universo.168

2.3.3 A realidade da Segundidade

As experiências de reação e esforço descritas fenomenologicamente pela

categoria de segundidade são como as de primeiridade e terceiridade, realmente

operantes na Natureza? Essa é a pergunta que Peirce vai responder nos últimos

parágrafos do seu texto. Para isso Peirce coloca uma possível objeção a ser feita quanto

à realidade da segundidade, para depois refutá-la.

A objeção consiste em manter que sentimentos e leis de sucessão de sentimentos

são reais, ou seja, primeiridade e terceiridade são reais, mas que sustentar que uma coisa

age sobre a outra é meramente dizer que há certa lei de sucessão de sentimentos e,

assim, nega-se a realidade da segundidade. Seria um caso especial de um dos sete

sistemas de metafísica apresentados por Peirce no começo do texto, a saber, aquele que

foi caracterizado de berkeleyanismo. Peirce toma essa objeção como a única realmente

“formidável”.169

Como Peirce responde a essa objeção? Vamos acompanhar a argumentação:

Todos nós admitimos que a experiência é nossa grande mestra... A

experiência invariavelmente ensina por meio de surpresas. Agora,

quando um homem está surpreso ele sabe que está surpreso. Então,

168

Para um aprofundamento desse tópico queira o leitor consultar IBRI, 1992, cap. 3. 169

EP 2.194.

59

temos um dilema: ele sabe que está surpreso por percepção direta ou por

inferência? 170

Peirce analisa primeiro a hipótese da inferência. Ter consciência de se estar

surpreso por inferência significa que, primeiro, uma pessoa (suposto já ter idade

suficiente para possuir autoconsciência) se torna consciente de uma peculiar qualidade

de sentimento que pertence a toda experiência de surpresa e, segundo, é levada, em

seguida e por alguma razão indutiva, a atribuir este sentimento a um si mesmo. O que

decorre disso? Decorre que, primeiro, a pessoa deveria pronunciar um objeto

surpreendente como sendo, por exemplo, um objeto maravilhoso e, após reflexão,

convencer a si mesma de que tal objeto só é maravilhoso no sentido de que ela está

surpresa com ele, em outros termos, ela o toma como tal. Ora, segundo Peirce, isso está

em conflito com os fatos. Acontece o contrário, a pessoa não conclui que ela deve estar

surpresa porque ela toma o objeto como qualitativamente maravilhoso, mas sim porque

o objeto se apresenta, em sua alteridade, como tal e, só então, a pessoa é levada por um

processo de generalização a uma concepção do objeto como possuindo a qualidade de

ser maravilhoso.

Esse ponto é sutil e devemos tomar cuidado para não interpretarmos

superficialmente o que Peirce quis dizer e sermos levados a acusá-lo de inconsistência.

Peirce não está negando que haja o processo inferencial na experiência de segundidade,

mas esse processo inferencial só ocorre diante da experiência de estar diante de uma

alteridade. A inferência se dá após a experiência de alteridade. Ou seja, o fator

predominante na experiência de segundidade é a clara noção de alteridade, de dualidade

que se força contra a expectativa da pessoa, anteriormente a qualquer espécie de

aproximação cognitiva para com o objeto. Assim Peirce pode completar:

[...] um homem mais ou menos placidamente espera por um certo

resultado e, de repente, encontra algo que contrasta com essa

expectativa, forçando o seu reconhecimento. Uma dualidade é assim

forçada sobre ele: de um lado, sua expectativa, a qual vinha atribuindo à

natureza, mas que agora é compelido a atribuir a algum mero mundo

interior, e, de outro lado, um forte fenômeno que vai de encontro com

sua expectativa e ocupa o seu lugar. A antiga expectativa, com a qual

170

EP 2.195.

60

ele estava familiarizado, é o seu mundo interior ou Eu. O novo

fenômeno, o estranho, provém do mundo exterior ou não-eu.171

Em seguida, Peirce passa a considerar a hipótese da percepção direta. Estar

consciente do fenômeno surpreendente por percepção direta é estar consciente dele

através de um julgamento perceptual. Ou seja, um homem simplesmente sabe que está

surpreso. Peirce pontua que o julgamento perceptual certamente não representa que a

pessoa tenha efetuado uma espécie de engodo sobre si mesma. Ou seja, apesar de o

julgamento perceptual também ser em última instância, como vimos, uma inferência,

com a diferença de ser fora de qualquer controle, esse julgamento perceptual, dizíamos,

não significa manipulação do objeto, como se ele não fosse nada além da minha

representação inferencial incontrolável.172

Qual é, então, o papel do julgamento

perceptual nas experiências de segundidade? Só pode ser o de reconhecer que os objetos

das experiências de segundidade são um não-eu, ou seja, algo outro que o eu. Dessa

forma, o julgamento perceptual tem o papel de apresentar o eu e o não-eu de forma

direta.

Peirce sintetiza a resposta da seguinte forma:

Agora, como eu disse antes, é inócuo e na verdade realmente impossível

criticar fatos perceptuais como falsos. Podemos somente criticar suas

interpretações. Assim, tão logo vocês admitam que a percepção

realmente represente dois objetos para nós, um eu e um não-eu, - um eu

passado que se torna em um mero eu e um eu que possui a esperança da

verdade num futuro, - tão logo vocês admitem que isso é representado

pelo fato perceptual, isso é um ponto final. Nada resta se não aceitar

isso como uma experiência.173

Assim, a resposta para a pergunta “como nos tornamos conscientes de um

fenômeno surpreendente?” é que é por percepção direta e não por inferência, embora a

inferência, posteriormente, exerça o seu papel no processo de generalização com o qual

conhecemos qualquer objeto. Ora, a experiência de dualidade e reação é algo que se

171

EP 2.195. 172

O objeto aparece de forma peculiar para nós na forma de percepto. O percepto é,

epistemologicamente, uma interpretação do objeto real, mas também é constrangido por esse objeto. De

modo que, epistemologicamente somos co-autores do processo de semiose. No entanto, ontologicamente,

o objeto real é completamente independente dos nossos processos cognitivos. Ver ROSENTHAL, 1994,

cap. 2. 173

EP 2.195.

61

força sobre nós, ou seja, é independente do que possamos pensar sobre ela. E é

exatamente por isso que a experiência é a nossa maior mestra. Com ela aprendemos a

reconhecer que as coisas não são como queremos que sejam. Há o outro, há a alteridade.

Resta ainda estabelecer de que forma a segundidade é ontologizada, tornando-se,

assim, não mais apenas uma questão de Fenomenologia, mas também de Metafísica.

Ibri esclarece esse ponto, primeiro citando Peirce e depois explicando a argumentação,

vejamos:

Embora em toda experiência direta de reação, um ego, alguma coisa

interna, seja um membro do par, atribuímos, ainda, reações a objetos

fora de nós. Quando dizemos que uma coisa „existe‟ queremos

significar que ela reage sobre outras coisas. Evidencia-se que estamos

transferindo para ela nossa experiência direta de reação, ao dizermos

que uma coisa age sobre outra. Esta é a hipótese para explicar os

fenômenos – hipótese na qual, à semelhança das hipóteses de trabalho

de uma investigação científica, podemos crer como não sendo

absolutamente verdadeira, mas que é útil por nos tornar aptos a

conceber o que o ocorre. [E também em:] E esta noção, de ser tal qual

as outras coisas nos moldam, é algo de tal modo proeminente em nossas

vidas que concebemos que as outras coisas existem em virtude de suas

reações umas com as outras.174

Significa: reconhecer que algo seja independente do nosso eu, ou seja, que se

trata de um não-eu, equivale a dar um passo metafísico. Em que consiste esse passo?

Trata-se da concepção de existência: transferimos nossas experiências de reação

(objeção) às coisas fora de nós, dizendo que, de maneira análoga, elas reagem entre si e

que, por isso, existem. Assim, a categoria de segundidade vista ontologicamente é

conceituada como Existência. Peirce, então, pode dizer: “O que quer que exista, ex sists,

isto é, realmente age sobre outros existentes, obtém-se, assim uma auto-identidade e é

definidamente individual.” 175

174

Apud IBRI, 1992. p. 27. 175

Apud IBRI, 1992, p. 28.

62

2.3.4 O Realismo

Acabamos de ver que as três categorias fenomenológicas, primeiridade,

segundidade e terceiridade, representam três princípios ativos e operantes na natureza, a

saber, Acaso, Existência e Lei, respectivamente, e que esses mesmos princípios são

reconhecidos como sendo reais. Dissemos no começo deste tópico que entenderíamos

em que consiste o conceito radical de Realidade em Peirce na medida em que

verificássemos em que consiste o que há de comum na descrição da realidade das três

categorias. Então, perguntemos: o que há de comum nas três categorias tomadas,

ontologicamente, como princípios ativos e operantes na natureza? A resposta é clara: os

três princípios ativos na natureza possuem como característica comum o fato de serem

completamente independentes do que possamos pensar sobre eles. E nisso consiste o

conceito de Realidade em Peirce, que, como Ibri explica, fora tirado do escolástico

Duns Scotus.176

Em outras palavras, o real é aquilo que tem uma existência totalmente

independente do que qualquer mente, tanto individual como coletiva, possa dele pensar.

Significa: dado o mundo de particulares, descritos fenomenologicamente pela categoria

de segundidade, mas que implicam as qualidades, descritas pela categoria de

primeiridade, supõe-se heurísticamente que esses particulares não somente existem, mas

que estão em relação, e, embora possamos representar essa relação, ela nada tem a ver,

ontologicamente, com tal representação. Assim, como a Metafísica é a ciência da

Realidade177

, e Realidade é relação entre particulares, pode-se dizer que a Metafísica, de

forma geral, toma os seus objetos segundo o modo de ser da terceiridade, dado que

relação, como vimos, é apanágio da terceiridade.

Podemos resumir dizendo que, a Metafísica peirciana mantém a realidade das

três categorias e, portanto, tomando o diagrama dos sete sistemas de metafísica, ele

professaria o sétimo sistema de uma forma distintivamente radical, sob o nome de

realismo escolástico, dado o papel que o Real possui, em sua filosofia, na economia do

Universo. O Realismo assim caracterizado está espraiado por toda a filosofia peirciana,

em todos os seus aspectos, permeando desde as mais fundamentais experiências da vida

comum até a complexidade de uma teoria científica. Em Peirce, sempre haverá a

176

IBRI, 1992, p. 25. 177

Ibidem, p. 21.

63

necessidade de olhar para as condições restritivas de qualquer conhecimento e qualquer

experiência. Ibri explica o quão fundamental é o papel da segundidade, implicado em

toda a concepção de realidade de Peirce178

e logo após cita duas passagens que,

unificadas, deixam isso muito claro:

Na idéia de realidade, a Segundidade é predominante; pois realidade é

aquilo que insiste, forçando seu modo de ser à recognição como alguma

outra coisa que não a criação da mente, [e] o que é realidade? Não

haveria tal coisa chamada verdade a menos que existisse alguma outra

coisa que é como é, independentemente de como possamos pensar que

seja. Isso é a realidade, e temos de investigar o que é a sua natureza.

Falamos de fatos duros. Desejamos que nosso conhecimento se

conforme aos fatos duros. Contudo, a „dureza‟ do fato reside em sua

insistência sobre o percepto, sua insistência inteiramente irracional – o

elemento de segundidade nele presente. Este é um fator muito

importante da realidade.179

2.3.5 Síntese da Classificação Geral das Ciências

Terminando a caracterização da Metafísica peirciana, chegamos também ao final

da classificação geral das ciências. Esperamos ter explicitado, mesmo que de forma bem

sucinta, o caráter orgânico, ou seja, de dependência entre todas as ciências que

compõem a filosofia. Vale dizer, no entanto, que o mesmo raciocínio se aplica às outras

ciências da classificação geral, com as quais a filosofia também se relaciona. Assim, as

ciências da Revisão dependem das Ciências da descoberta como material de trabalho

classificatório. As Ciências Práticas dependem dos resultados consolidados das Ciências

da Revisão e das Ciências da Descoberta para viabilizar o fim prático para o qual estão

unicamente voltadas. Dentro das Ciências da Descoberta, a “Matemática é a mais geral

de todas as Ciências” 180

e não depende de nenhuma outra ciência. A Filosofia depende

178

IBRI, 1992, p. 26-27. 179

Apud IBRI, 1992, p. 26. 180

CP 1.53. Peirce continua: “Que isso é assim, tem sido manifesto em nossos dias; porque todos os

matemáticos agora veem claramente que a matemática somente se ocupa como questões puramente

64

da Matemática, enquanto ciência mais geral, como auxílio para a realização de seus

raciocínios, posto estes serem da natureza do raciocínio diagramático e este, por sua

vez, ser apanágio da Matemática. Dentro da Filosofia, a Fenomenologia foi

caracterizada como abordando os seus objetos segundo o modo de ser da primeiridade;

as Ciências Normativas abordando os seus segundo o modo de ser da segundidade e,

por fim, a Metafísica, fazendo suas hipóteses explicativas sobre a realidade segundo o

modo de ser da terceiridade. Dentro da Fenomenologia, temos a própria relação entre as

três categorias, pilares de toda a filosofia de Peirce. No interior das Ciências

Normativas, observamos o mesmo processo de dependência regado pelas categorias;

assim, vimos que a Lógica (terceiridade) depende da Ética (segundidade), que por sua

vez depende da Estética (primeiridade). Quanto à Metafísica, também dividida

triadicamente observou-se que a sua forma mais geral é a ontologia, da qual nos

ocupamos detidamente; dependendo dessa ontologia estão a metafísica religiosa e a

metafísica física, posto que as duas vão fundar as suas hipóteses pressupondo o mundo

de relações reais tal qual descrito pela primeira. Saindo da filosofia, e considerando,

ainda dentro das Ciências da Descoberta, as Ciências Especiais, é notório a dependência

que elas mantêm para com a Matemática e a Filosofia na construção de seus raciocínios

e na necessidade de uma descrição de um mundo fenomênico/ontológico anterior a toda

investida particular sobre os objetos do mundo. Dentro delas, a mesma relação de

dependência da mais particular para a mais geral se mantém.

Fechado o círculo classificatório, esperamos ter deixado claro que a filosofia de

Peirce exibe um notório caráter arquitetônico que não pode ser ignorado. Porém, essa

arquitetura não pára na Classificação Geral das Ciências. Ainda temos de estudar em

separado duas outras doutrinas essenciais para a totalidade do pensamento arquitetônico

de Peirce, a saber, o Idealismo Objetivo e o Contínuo. Na verdade, essas são doutrinas

metafísicas, estando supostas na caracterização que fizemos da metafísica geral, mas,

devido à complexidade das suas descrições, mesmo que explicitadas em linhas gerais,

achamos por bem descrevê-las separadamente. Depois disso teremos de abordar o

pragmatismo e a Semiótica.

hipotéticas. E, quanto ao que a verdade da existência possa ser os matemáticos, enquanto matemáticos,

não se importam nem um pouquinho.”

65

3. O IDEALISMO OBJETIVO

Acompanhamos Ibri na posição de que o Idealismo objetivo deve ser

considerado como uma doutrina absolutamente correlata do Realismo e já anunciada na

Fenomenologia, uma vez que as categorias descritas por essa ciência se aplicavam

homogeneamente, tanto ao mundo interior quanto ao mundo exterior.181

Realismo e

Idealismo, juntos com a doutrina do Contínuo, tema do nosso próximo capítulo,

assentados na Fenomenologia, formam a base da Metafísica Científica de Peirce.

Portanto, devemos esclarecer em que consiste o Idealismo Objetivo e qual o seu papel

na arquitetura filosófica peirciana, que vimos tentando ilustrar.

O texto no qual Peirce estabelece a sua posição favorável ao Idealismo objetivo

é relativamente curto, transcrevamo-lo na íntegra:

A antiga noção dualista de mente e matéria, tão proeminente no

cartesianismo, como dois tipos radicalmente diferentes de substância,

dificilmente encontrará defensores nos dias atuais. Rejeitando essa

doutrina, chegaremos a um tipo de hilozoísmo também chamado de

monismo. Então surge a questão de saber se, de um lado, as leis físicas

ou, de outro lado, as leis psíquicas devem ser tomadas: a) como

independentes, uma doutrina usualmente chamada de Monismo, mas

que eu chamarei de Neutralismo; b) a lei psíquica como derivada e

181

Ver IBRI, 1992. Cap. 4 e IBRI, 2000 c. Nossa posição tem o caráter de uma premissa da qual

partimos. Não está em questão, nesse trabalho, provar tal premissa contra as outras opiniões acerca do

mesmo assunto. No entanto, devemos constatar que existe uma considerável controvérsia acerca desse

ponto entre os comentadores de Peirce, que defendem as mais diversas opiniões. Citemos apenas alguns

exemplos: Robert Meyers, em MEYERS, 1985, considera que Peirce “progrediu” de um Idealismo em

direção a um realismo escolástico, mas, no entanto, não chegou a abandoná-lo totalmente até o final da

sua vida; porém a forma como Peirce manteve esse idealismo não foi como uma doutrina metafísica, essa

seria incompatível com seu realismo, mas sim como uma espécie de crença metodológica. Carl Hausman,

em HAUSMAN, 1993, defende que a arquitetônica construída por Peirce indica uma forma de realismo

único que deve ser distinguido do idealismo objetivo e, portanto, essas não são doutrinas correlatas.

Recentemente foi publicado na revista Cognitio número 2, ano 2010, um artigo de Thomas Short,

SHORT, 2010, no qual é defendida a tese de que o Idealismo Objetivo foi apenas uma fase na carreira de

Peirce, que durou entre 1891-1893, tendo sido abandonada por Peirce logo após a última data, devido a

sua incompatibilidade com outras doutrinas principais. Claudine Tiercelin, em TIERCELIN, 1998,

defende que Realismo e Idealismo Objetivo são doutrinas que devem ser mantidas juntas, sem

contradição, apesar de essa relação ser um tanto problemática, devendo passar por esclarecimentos

epistemológicos. Para encerrar nossos exemplos, citemos Sandra Rosenthal, em ROSENTHAL, 1994,

que recusa que Peirce seja ou um mero Idealista Objetivo ou um mero Realista, defendo que o atributo

correto seria o de um “pluralista pragmático”, termo esse que representaria a inadequação de rótulos

redutores aplicados à Peirce. Enfim, longe está o acordo acerca dessa questão.

66

especial, a lei física sendo, sozinha, primordial, o que é Materialismo;

ou, c) a lei física como derivada e especial, sendo a lei psíquica,

sozinha, primordial, o que é Idealismo. A doutrina materialista parece,

para mim, tão repugnante para uma lógica científica quanto para o senso

comum; uma vez que ela exige de nós que suponhamos que uma

espécie de mecanicismo sempre se faria sentir, o que seria uma hipótese

absolutamente irredutível à razão, em última instância, uma

regularidade inexplicável; ao passo que a única justificativa de qualquer

teoria é tornar as coisas claras e razoáveis. O neutralismo é

suficientemente condenado pela máxima lógica conhecida como a

navalha de Ockham, a saber, que não devemos supor mais elementos

independentes do que o necessário. Ao colocar os aspectos internos e

externos da substância em pé de igualdade, essa doutrina parece manter

que as duas são primordiais. A única teoria inteligível do Universo é

aquela do Idealismo Objetivo, que a matéria é mente esgotada, hábitos

arraigados se tornando leis físicas.182

A primeira coisa a ser notada nessa passagem é o fato de Peirce rejeitar a

dualidade mente e matéria, sujeito e objeto, característica do cartesianismo. Para Peirce,

essa seria uma posição nominalista que faria todo o peso da inteligibilidade recair sobre

a subjetividade, o que contraditaria o seu realismo. Em outras palavras, para as

filosofias nominalistas a ordem, que permite a mediação e a inteligibilidade, não estaria

em algo independente de nós, mas sim apenas em nossa subjetividade, ou seja, a ordem

é constituída pelo sujeito. Rejeitado o dualismo, a pergunta inevitável é: qual tipo de

monismo é lógico abraçar? Sobram três opções: o neutralismo, o materialismo e o

idealismo. Peirce descarta o neutralismo por este supor mais elementos do que o

necessário, contrariando a navalha de Ockham, o que equivaleria a dizer que mente e

matéria seriam ambas primordiais. Na verdade, esse argumento depende do fato de

Peirce admitir a raiz de tudo como sendo o Uno183

, portanto, não caberia dissolver esse

Uno em nenhuma espécie de dualidade ou pluralidade substancial. Sobram, então,

materialismo e idealismo. O materialismo toma a lei física como sendo primordial e a

lei psíquica como derivada. A lei física, à luz dos defensores do materialismo, seria uma

lei determinada e absoluta, caracterizada por uma exatidão, que, se ainda não

perfeitamente conhecida, se deve apenas a uma questão de tempo. Ou seja, à luz dessa

182

CP 6.24-25. 183

CP 1.487.

67

doutrina, o homem será capaz de, mais cedo ou mais tarde, chegar ao complexo total de

leis físicas que atuam no universo. Isso leva ao determinismo184

, a doutrina que mantém

que tudo tem uma causa determinada, embora nem todas sejam ainda conhecidas, na

qual não há nenhum espaço para o acaso e a liberdade. O Universo seria, assim, um

mecanismo, com todas as suas partes ligadas por uma necessidade absolutamente rígida.

Peirce não olhava com bons olhos tal descrição do universo, e isso já se fazia explícito

desde a Fenomenologia, que reservou, sob a categoria de primeiridade, um espaço

primordial para as experiências caracterizadas pela liberdade e sem relação com nada

mais, ou seja, sem causalidade necessária e, portanto, relacionadas ao Acaso como

princípio ativo no mundo. Assim, Peirce rejeita em absoluto a postura materialista.185

Sobra, por fim, o Idealismo, que Peirce caracteriza como a única teoria aceitável

sobre o universo. Essa teoria consiste em tomar a lei psíquica como primordial e a lei

física como derivada da lei psíquica.186

A lei psíquica se refere à mente, a lei física se

refere à matéria, mas ambas não são estranhas entre si, em outras palavras, não devem

ser pensadas como separadas. Trata-se de um tipo de monismo (como é o neutralismo e

o materialismo). Mas que tipo de monismo? Um monismo mente-matéria187

. Peirce

mantém, então, que ambas são conaturais, pois advém de um mesmo substrato

eidético188

, identificado com a mente e, por isso essa deve ser considerada como

primordial e a matéria como derivada.

Torna-se evidente que para tornar isso um pouco mais claro, dentro dos limites

desse trabalho, devemos primeiro verificar como Peirce identifica eidos com mente.

Eidos é inteligibilidade do real. Então, o que é a mente? A mente, para Peirce, não está

resumida à consciência humana, muito menos é sinônimo de cérebro. Mesmo se a

considerarmos meramente sobre o prisma humano, a mente estaria mais fora do que

184

Ibri esclarece a posição contrária de Peirce quanto ao determinismo de forma detalhada em IBRI,

1992. Cap. 3. Peirce assumiria, então, um indeterminismo ontológico e cognitivo, ligado a um

Evolucionismo, que toma lei e representação da lei como em contínuo crescimento. Indeterminismo e

Evolucionismo pretendem responder à pergunta: de onde vieram as leis? E isso, por sua vez, além de abrir

as portas para a cosmologia peirciana, da qual não trataremos aqui, leva diretamente à questão do

Idealismo Objetivo, conforme estamos verificando. 185

Claudine Tiercelin desenvolve a argumentação peirciana acerca da rejeição do materialismo,

resultando no determinismo, em TIERCELIN, 1998. P. 12. 186

Ibri demonstra que há no Idealismo Objetivo de Peirce uma grande influência do romantismo alemão,

em especial de Schelling. Consultar IBRI, 2010a; IBRI, 2010b; IBRI, 2009 e IBRI, 2008. 187

IBRI, 2010b, p. 6. 188

Ibri explica que devemos tomar o termo “eidético” em sentido platônico, ou seja, como designando a

estrutura do Real e sua inteligibilidade. Conferir IBRI, 1992, p. 55.

68

dentro de nós.189

Vista de forma ampla, a mente deve ser considerada como pervasiva.

Assim, podemos observá-la atuando em muitos lugares. Peirce diz que ela “aparece no

trabalho das abelhas, dos cristais, e em todo o mundo puramente físico. Ninguém pode

negar que ela se encontra realmente ali, mais do que as cores, as formas, etc. dos objetos

realmente se encontram.”190

Peter Skagestad sugere que, para entendermos corretamente

a concepção de mente em Peirce, deviríamos tomá-la como sendo virtual.191

Significa: a

mente está aonde nós podemos procurar por ela, de acordo com o que ela apresenta

como resultado sensível. Bem ao espírito do pragmatismo, segundo veremos. A

característica principal da mente é a tendência à aquisição de hábitos.192

Adquirir

hábitos é uma tendência pervasiva que consiste no crescimento da terceiridade, ou seja,

no crescimento da inteligibilidade. Assim, eidos e mente se tornam absolutamente

identificáveis, sendo uma e a mesma coisa. A mente é o substrato ideal, isto é, de

natureza inteligível, que pervade todo o universo.

No entanto, não podemos deixar de pontuar que, na tendência à aquisição de

hábitos podemos verificar uma espécie de dupla característica da mente. De um lado, a

mente deve ser vista como pensamento em constante crescimento e evolução, estando

com isso relacionada à terceiridade. Isso equivale a dizer que algo que é inteligível é

dotado de propósito, donde a ligação patente com o que estudamos acerca das ciências

normativas. De outro lado, porém, deve-se levar em conta que a mente também exibe

como característica a disponibilidade e abertura para aquisição de novos hábitos de

crescimento; ou seja, a mente não é fixa e rígida, pelo contrário, ela é caracterizada pela

facilidade de mudança contínua e, nesse sentido ela deve ser relacionada com o frescor

e liberdade característicos da primeiridade. Essa dupla tendência da mente resulta no

fato de que a ação mental, onde quer que virtualmente se encontre, jamais deve ser

reduzida a algum tipo de certeza, ou seja, ela jamais será absolutamente hábitos

arraigados completamente determinados. Ao contrário, a mente em crescimento flui

continuamente, adquirindo hábitos e mudando de hábitos. Em outras palavras, funciona

como se fosse uma espécie de pêndulo oscilando entre ordem e caos. Ela exibe

plasticidade e, por isso, nunca estanca em um dos extremos. Se a mente atingisse

qualquer um dos dois extremos, teríamos ou determinismo ou a ausência de qualquer

189

Ver SKAGESTAD, 1985. 190

CP 4.551. 191

SKAGESTAD, 1994. 192

Peirce desenvolve essa noção no texto A Lei da Mente, The Law of Mind, EP 1.312-333.

69

tipo de ordem, ou seja, caos. Em última instância, mesmo a matéria totalmente rígida

ainda guarda um resquício de vivacidade, ou seja, ainda possui algo de mental. Em

outras palavras, a primeira característica da mente apontada acima gera a tendência que

faz com que tal mente tenda a se tornar matéria, ou seja, mente com hábitos

extremamente arraigados, espaço onde surgem as leis físicas. Por outro lado, a segunda

característica apontada, sugere que a mente, sofrendo a influência do princípio cósmico

responsável pelos desvios na tendência à aquisição de hábitos, a saber, o acaso,

permaneça sempre virtualmente capaz de mudança, gerando, assim, um novo processo

de aprendizado e comportamento.

Ora, a mente, assim caracterizada como elemento pervasivo no universo,

consiste no substrato ontológico comum que explica a origem das leis físicas e das leis

psíquicas. Esse substrato é de natureza Ideal, ou seja, inteligível. Esse monismo

substancial mente-matéria completa, ao invés de contradizer, o realismo radical de

Peirce, que toma os princípios ontológicos do Acaso, da Existência e da Lei, como

independentes do que qualquer mente ou coleção de mentes possa deles pensar. Isso

porque ele dá conta das duas tendências de um mesmo substrato ideal, o mental, que,

tendo gerado o universo, está em constante crescimento e evolução, consistindo no

crescimento da terceiridade, mas, ao mesmo tempo, dando espaço para a liberdade do

acaso, que produz os desvios nas leis. Por outro lado, leis e desvios de leis devem ser

atualizados nas existências particulares. Isto é, lei e acaso precisam se incorporar em

particulares, ou seja, no mundo da existência, de segundidades. É também papel da

segundidade bruta oferecer ocasião para a necessidade de se mudar um hábito, ou seja, a

experiência de um fato bruto nos faz buscar por um novo estado de crença habitual.193

O

mundo real, caracterizado pela presença das três categorias deve ser então, um mundo

dinâmico, onde não cabe o determinismo rígido e nem o absoluto caos. Trata-se de um

mundo de particulares que se configura como um misto de ordem e de acaso, estes de

natureza geral, ambos independentes de qualquer mente particular ou conjunto de

mentes, mas conaturais às mesmas, posto que oriundos de uma mesma matriz, a mente

pervasiva.

A realidade é independente do pensamento, mas é pensável. A realidade é

pensável, sendo independente do pensamento, porque ela é da natureza do pensamento.

193

Ibri caracterizou isso como o “fator corretivo da experiência”. Conferir IBRI, 1992, p. 60.

70

Em outros termos, o pensamento em geral, precisa de ordem, essa ordem está no mundo

e por isso não é criação da nossa subjetividade, não obstante, essa ordem é similar ao

nosso pensamento. Podemos também inverter as posições e nada será alterado: a ordem

do nosso pensamento é correlata da ordem do mundo, por isso podemos pensá-la, o que

equivale a dizer que, no plano epistemológico, objeto e representação são também

conaturais. Significa: realidade é ordem, e, já vimos, só podemos pensar algo que possui

ordem. Não podia ser outra a consequência da negação da dualidade sujeito e objeto,

efetuada por Peirce logo de saída. Em suma, a realidade possui natureza inteligível. E é

por isso que o Idealismo de Peirce deve ser acrescentado do predicado de objetivo, se

diferenciando, assim, dos idealismos centrados no sujeito, os quais Peirce rejeita

terminantemente.194

Disso decorrem várias consequências para a arquitetura filosófica de Peirce. Em

primeiro lugar, o Idealismo Objetivo, que procurou explicitar o substrato comum que

está por detrás dos fenômenos físicos e psíquicos, se constitui como um primeiro passo

em direção a uma cosmogênese, que procurará explicitar como todas as coisas vieram a

ser.195

Em segundo lugar, a conaturalidade entre mente e matéria, representação e

objeto, que surgiu no seio do Idealismo Objetivo tem profundas consequências para a

semiótica peirciana, na qual se instaura um processo de diálogo onipresente no

universo, posto que inteligível, um diálogo permanente que não se reduz à linguagem

humana. Todo o Universo, em cada minúscula parte, está impregnado de signos.196

Em

terceiro lugar, o crescimento da terceiridade não vai redundar no determinismo, mas, ao

contrário, no indeterminismo ontológico, uma vez que o idealismo objetivo postulou

uma matriz comum ideal cujo crescimento oferece espaço para a tendência à criação e

mudança constante de hábitos. Dessa forma, não há como termos certeza absoluta de

nada; não há nada absolutamente determinado em si, e, portanto, também não há nada

que possa ser representado como tal. Assim, o conhecimento científico será sempre de

caráter aproximativo. Essa postura epistemológica também recebe um nome específico

em Peirce: trata-se do Falibilismo. Em quarto lugar, o Idealismo Objetivo se fará sentir

194

No seu já citado artigo, Claudine Tiercelin oferece um excelente panorama da diferenciação entre o

idealismo objetivo de Peirce e os outros tipos de idealismos por ele rejeitados. TIERCELIN, 1998. 195

Como já explicamos, não trataremos da cosmogênese nesse trabalho. No entanto, é necessário pontuar

o seu papel na arquitetura filosófica de Charles Peirce. Queira o leitor recorrer ao capítulo cinco,

intitulado: A Cosmologia: O fundamento ontológico das categorias; do já citado livro de Ivo Ibri, Kosmos

Noetos. 196

Iremos estudar uma pequena faceta dessa teoria dos signos no capítulo sobre semiótica. Em futura

pesquisa de doutorado, veremos como isso também tem profundas consequências para a concepção de

homem oriunda da filosofia de Peirce.

71

na doutrina do Pragmatismo, onde como um reflexo da conaturalidade entre mundo

interior e exterior, será exigido dos conceitos que seus predicados apareçam pelo lado

exterior, o que configurará o critério de significado a eles aplicado.197

Podemos chamar essas consequências de cosmológica, semiótica,

epistemológica e pragmática, respectivamente. Muitos de seus aspectos já estavam

presentes em todos os temas que trabalhamos anteriormente, o que mostra que o

Idealismo Objetivo é uma doutrina necessária para a filosofia peirciana, considerada

como uma arquitetura filosófica. O texto em que a doutrina foi enunciada pela primeira

vez data de 1891198

, como bem apontado por Short em seu recente artigo What was

Peirce‟s Objective Idealism?199

Mas isso não significa que não haja nenhum sinal do

seu processo de construção em textos anteriores a essa data e muito menos que ela não

tenha continuado como um dos pilares da filosofia de Peirce após 1893, como defende

este autor. Ao contrário, entendemos que sinais da sua paulatina construção já

apontavam desde os textos sobre a cognição200

, datados de 1868, onde Peirce rompe

com o dualismo e intuicionismo cartesianos. Quanto a sua permanência como um dos

pilares da arquitetura filosófica peirciana após 1893, deve-se reconhecer que, até onde

pudemos mapear Peirce não usa o termo Idealismo Objetivo após essa data. Porém, a

doutrina do Sinequismo exige assumir o Idealismo Objetivo e, uma vez que a doutrina

do Contínuo permanece como um dos pontos centrais da arquitetura filosófica peirciana

pelo resto de sua vida, pode-se inferir, ao menos indiretamente, que o mesmo ocorre

com o Idealismo Objetivo. Dessa forma, basta citar o próprio Peirce:

Em particular, o sinequista não admitirá que fenômenos físicos e

psíquicos sejam inteiramente distintos, tanto pertencendo a diferentes

categorias de substância como sendo dois lados totalmente separados de

uma entidade, mas insistirá que todos os fenômenos são de um mesmo

caráter, embora alguns sejam mais mentais e espontâneos, e outros mais

materiais e regulares. Ainda, os dois juntos mostram a mistura de

197

IBRI, 1992, cap. 6. 198

No texto The Architeture of Theories, EP 1.285. 199

SHORT, 2010. 200

Por exemplo, os textos Questões concernentes a certas faculdades ditas humanas e Algumas

conseqüências de quatro incapacidades, EP 1.11-55.

72

liberdade e coação, que permite que sejam, ou melhor, faz com que

sejam teleológicos, ou dotados de propósito.201

Ou seja, embora esse texto seja de 1893, o que em princípio daria razão ao

argumento de Thomas Short, o requisito de ter de assumir o Idealismo Objetivo para se

manter a doutrina do Sinequismo, como dissemos, perdurará até 1914, ano da morte de

Peirce. Assim, isso servirá como uma ponte para adentrarmos no próximo capítulo.

4. SINEQUISMO E CONTINUIDADE

Chegou o momento de abordar a última das doutrinas metafísicas centrais para a

arquitetura filosófica de Peirce: o Sinequismo. O próprio Peirce chamou essa doutrina

de “pedra angular do arco”202

, significando com isso que todo o seu edifício filosófico

dela depende, de forma tal que, entender essa doutrina é de fundamental importância. O

Sinequismo envolve o conceito de Continuidade. Fugiria à nossa competência abordar

em toda a sua complexidade o conceito de Continuidade, o que implicaria enveredar

pelo seu desenvolvimento histórico, a partir de sua origem e ao longo da carreira

filosófica de Peirce, bem como a sua relação com a Matemática, Geometria e

Topologia.203

Assim, abordaremos os conceitos de sinequismo e continuidade apenas

em seus elementos essenciais, com o intuito de torná-los inteligíveis dentro do escopo

desse trabalho e mostrar de que forma eles realmente envolvem e completam tudo o que

abordamos até aqui.

O que é Sinequismo?204

Peirce diz: “O Sinequismo é aquela tendência do

pensamento filosófico que insiste na idéia de continuidade como de prima importância

na filosofia e, em particular, sobre a necessidade de hipóteses envolvendo o verdadeiro

201

EP 2.2 202

CP 8.257. 203

O leitor que tiver interesse em acompanhar o desenvolvimento minucioso do conceito de Continuidade

na obra de Peirce, deve consultar o excelente livro de Antônio Machuco Rosa, O conceito de

Continuidade em Charles S. Peirce, ROSA, 2003. Nesse livro, o autor expõe sistematicamente o percurso

da teoria do Contínuo, desde 1868 até os últimos textos de Peirce, relacionado-o com os principais

momentos de sua carreira filosófica, com especial atenção à hipótese cosmológica. Consultar também

MURPHY, 1993 e MOORE, 2007. 204

O próprio Peirce esclarece a origem da palavra na seguinte passagem: “A palavra synechism

(sinequismo é a forma portuguesa) é a forma inglesa do grego sunexismov de sunexhv, continuidade.”

EP 2.1. Conferir IBRI, 1992, p. 62.

73

contínuo.”205

Sinequismo é a doutrina de que tudo o que é, é contínuo. Essa doutrina

pode ser tomada como a principal doutrina metafísica da arquitetura filosófica de

Peirce, pois ela subsume tudo o que foi explicitado até aqui. Entender o que significa

Sinequismo é entender o que significa o conceito de Continuidade, pois, em última

instância, o Sinequismo é a extensão do que se entende por Continuidade à totalidade do

Universo. Assim, o sinequismo é a doutrina que diz que “devemos tomar as coisas

como contínuas na medida em que podemos.”206

4.1 O conceito de Continuidade

O que vem a ser continuidade para Peirce? Como Potter e Shields comentaram, as

definições técnicas sobre o conceito de continuidade, oferecidas por Peirce ao longo de

toda a sua obra sofreram muitas mudanças, na medida mesma em que o seu pensamento

sobre o tema também evoluiu.207

Não é necessário, para os objetivos deste trabalho,

especificar uma a uma essas mudanças. Vamos nos deter apenas naquilo que de forma

geral perdurou ao longo de todas as tentativas peircianas de definir a continuidade.

Ibri demonstrou que o conceito de continuidade é definido por Peirce através de

uma reunião das concepções kantiana e aristotélica sobre o que consistiria dizer que

algo é contínuo.208

Desta forma, para Peirce, Kant teria confundido continuidade com

infinita divisibilidade, dizendo que o caráter essencial de uma série contínua é que entre

dois de seus membros quaisquer, um terceiro pode sempre ser encontrado. Aristóteles,

de outro lado, definiu continuidade como alguma coisa cujas partes têm um limite

comum.209

Assim, Ibri completa:

Peirce considera que a reunião das concepções kantiana e aristotélica

pode produzir uma definição completa daquele conceito, eliminando-se

a possibilidade de se encontrar elementos de uma classe que não

estejam subsumidos à continuidade. Assim, a definição peirciana seria:

205

CP 6.169. 206

CP 6.277. 207

POTTER, V. G. , SHIELDS, S. J. , SHIELDS P. B, 1977. Neste artigo, os autores mostram a evolução

do pensamento peirciano sobre o conceito de continuidade dividindo-o em quatro principais períodos: o

período pré-cantoriano: até 1884, o período cantoriano: 1884-1894, o período kantiano: 1895-1908 e o

período pós-cantoriano: 1908-1911. 208

IBRI, 1992, p.66. 209

Ibidem, p. 65-66.

74

continuum é alguma coisa infinitamente divisível cujas partes têm um

limite comum.210

Peirce entendia a continuidade como algo de potencial ou possível. Por exemplo,

seja uma linha que represente a continuidade. Se a linha for tomada como sendo

composta por uma coleção infinitamente divisível de pontos definidos, não teremos o

contínuo peirciano, mas sim aquilo que Peirce entendia ser a definição de Cantor e

Dedekind sobre o contínuo, onde o contínuo seria constituído por indivíduos.211

Para

que esta linha represente o contínuo peirciano, seus pontos infinitamente divisíveis não

podem ser definidos, mas passíveis de determinação. Assim, no modelo peirciano, a

linha é contínua na medida em que permite a atualização de qualquer número de pontos,

pois os pontos já estão todos inseridos enquanto possibilidades inesgotáveis. Em outros

termos, trata-se de pontos possíveis e não de pontos que constituem partes últimas.

Deste modo o contínuo peirciano designa uma entidade geral, que consiste na

possibilidade inesgotável de determinar um número de indivíduos maior que qualquer

número já dado. Por isso Peirce pode dizer que “um verdadeiro continuum é algo cujas

possibilidades de determinação nenhuma multidão de individuais pode exaurir.”212

Ou

seja, apesar de o conceito de „partes‟ se encontrar presente na definição peirciana de

contínuo, este não pode nunca ser esgotado por suas partes, não importa quantas sejam.

Isto porque a continuidade é a conexão ininterrupta entre as partes e não um conjunto de

partes que configuram uma pluralidade. Melhor seria dizer que o que constitui um

continuum é o modo de conexão entre as partes: “E isto é dizer que o tipo de partes

conectadas é que é ininterrupto no continuum.”213

Em outros termos, o contínuo é a

relação, a conexão das partes com o todo de modo que “os indivíduos cessam de possuir

existência individual e ficam fundidos.”214

Este estar fundido é uma forma de unidade e

generalidade.

Por outro lado, deve-se sublinhar que o continuum é algo sobre o qual ocorrem

descontinuidades. Uma descontinuidade é uma determinação. No exemplo da linha,

quebra-se a sua continuidade definindo um ponto:

210

Ibidem, p.66. 211

ROSA, 2003, p. 210-211. “O contínuo de Cantor-Dedekind é composto por indivíduos, pois o limite

em R de uma sucessão infinita define um número em relação ao qual uma certa propriedade é

universalmente verdadeira ou universalmente falsa.” 212

CP 6.170. 213

HAUSMAN, 1993, p.185. 214

ROSA, 2003, p.223.

75

No momento em que ocorre uma descontinuidade o continuum deixa de ser

perfeito, posto que “um continuum, onde ele é contínuo e ininterrupto, não contém

partes definidas, essas partes são criadas no ato de defini-las, e as suas definições

precisamente quebram a continuidade.”215

No entanto, o contínuo é exatamente a

possibilidade dessas descontinuidades. Reforça-se, então, mais propriamente a

generalidade do contínuo peirciano como contexto ininterrupto que abarca

possibilidades inesgotáveis de descontinuidades:

Aquilo que é possível é, nessa medida, geral, e, enquanto geral, deixa de

ser individual. Assim, recordando que a palavra „potencial‟ significa

indeterminado mas passível de determinação em cada caso específico,

pode haver um agregado potencial de todas as possibilidades que são

consistentes com certas condições gerais; e isto pode ser tal que, dado

um qualquer conjunto de indivíduos distintos, um conjunto de maior

multitude que o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse

agregado potencial. Portanto, o agregado potencial é, estritamente,

maior em multitude do que qualquer conjunto de indivíduos. Mas, visto

ser apenas um agregado potencial, ele não é composto por qualquer

número de indivíduos. Ele apenas contém condições gerais que

permitem a determinação de indivíduos.216

Assim, a doutrina do sinequismo consiste em pregar a realidade dos continua,

estendendo-a, na medida em o possamos, a todas as coisas. Cabe agora relacionar o

princípio da continuidade com os outros aspectos da filosofia peirciana, mostrando em

215

CP 6.168. 216

Apud, ROSA, 2003, p. 224.

Quebra da continuidade: Definição de um ponto

Contínuo

76

que sentido ela deve ser tomada como a “pedra angular”217

do arco, ou seja, em que

sentido ela subsume todas as doutrinas e teorias da arquitetura filosófica peirciana.”

4.2 Continuidade e senso-comum

Embora o conceito de continuidade rigorosamente falando envolva complexas

teorias matemáticas, o seu sentido pode ser encontrado também no senso-comum. Não

poderia ser diferente, dado o caráter científico da metafísica peirciana. É a partir do

contínuo fenomenológico que se deve procurar construir uma teoria do contínuo. No

nosso dia-a-dia vivemos fazendo planos, por exemplo, quando alguém diz: “amanhã

acordarei bem cedo, farei minha caminhada matinal e, logo após irei ao mercado fazer a

compra mensal”. Em um exemplo banal como esse, podemos perceber que em nenhum

momento nos surpreendemos duvidando de que o estado de coisas de hoje se encontrará

mais ou menos da mesma forma amanhã. Ou seja, está implicada em qualquer plano ou

projeto futuro a noção de que as coisas estão conexas e fazemos nossos planos baseados

nessas conexões. Planejar é utilizar mediações disponíveis ou construir uma nova

mediação. Mediar é estabelecer conceitos. Conceitos são sempre gerais, e isso vale tanto

quando estamos tratando de filosofia como quando das situações mais corriqueiras.

4.3 Continuidade e Terceiridade

Quando abordamos a Fenomenologia, vimos que a experiência de mediação,

caracterizada pela categoria de terceiridade, envolve a noção de permanência das coisas,

de regularidade, de repetição, de ordem. Sendo isso o que nos permite fazer

generalizações. Vimos também que terceiridade é generalidade. Dessa forma, podemos

verificar que existe uma ligação muito forte entre continuidade e generalidade. Assim

217

CP 8.257.

77

Peirce pode dizer que “continuidade é nada mais que perfeita generalidade de uma lei da

relação.”218

A continuidade é a garantia de todo o conhecimento. Significa: sem

continuidade não há conhecimento possível. Todo o conhecimento, já o vimos, é

direcionado para o futuro. Em outras palavras, o que afirmamos, afirmamos para o

futuro. Isso depende e está fundado na Continuidade, dado que o conceito precisa de

repetição uma vez que com apenas um fato não é possível construir conceitos. Por outro

lado, uma vez que a continuidade deve ser associada com a terceiridade em seu aspecto

de regras gerais que subsumem os particulares que estão sobre essa regra, segue-se que

nesse âmbito a continuidade também deve ser associada à necessidade. Veja bem que

essa necessidade não é absoluta, ou seja, o conhecimento preditivo é necessário no

sentido de que se baseia em regras gerais e reais que possuem permanência. Esse é o

sentido de esse in futuro que estudamos sucintamente na caracterização fenomenológica

da terceiridade e veremos também, por outro viés, quando estudarmos o Pragmatismo.

O conceito que subsume todos esses aspectos é o conceito de Lei. Uma Lei é uma

fórmula que representa a continuidade necessária de predicados reais no mundo. A Lei é

um contínuo real.

A característica do continuum como generalidade inesgotável por nenhum tipo

de pluralidade já tinha sido evidenciada desde a Fenomenologia. Esta nos ensinou que a

categoria de terceiridade não se reduz à de segundidade, o que é o mesmo que dizer que

algo que é geral não se esgota em suas ocorrências individuais. Ou seja, o geral não se

reduz a uma pluralidade de particulares, embora sempre se incorpore em um individual.

Esse ensinamento da fenomenologia está intimamente ligado com a noção de

continuidade. Assim, segundo Ibri: “a generalidade de um continuum é absolutamente

indefinida na sua referência a qualquer individual que lhe seja afeito.”219

Por exemplo: a

síndrome do pânico, que é um geral, não se reduz a um indivíduo com tal síndrome.

Tanto que dizemos para cada indivíduo que ele é “portador” da síndrome do pânico.

Pode-se dizer, assim, que a terceiridade é uma categoria do contínuo, ou seja,

representa as experiências e o modo de ser onde a continuidade está presente. O

218

CP 6.172 219

IBRI, 1992, p. 65.

78

Contínuo Real é o fundamento ontológico das experiências caracterizadas pela

terceiridade.

4.4 Continuidade e Segundidade

A unidade de um continuum só pode ser quebrada por algo descontínuo, esse

algo descontínuo é o surgimento das determinações particulares. O particular foi

descrito na fenomenologia como o âmbito da segundidade. A segundidade surge no

momento em que ocorre uma determinação, ou seja, no momento em que algo discreto

quebra o continuum antes ininterrupto, que, dessa forma deixa de ser um verdadeiro

continuum. A segundidade, tomada como um modo de ser, é caracterizada pelo conceito

de existência. Um existente é um individual. Um individual não é contínuo, mas sim

completa determinação. Um conjunto de determinações é o que constitui uma

pluralidade. Porém, mesmo havendo uma pluralidade de determinações, o contínuo não

é esgotado. Isso é o mesmo que dizer que o contínuo permanece após uma determinação

em forma de um contínuo que exatamente contém as infinitas possibilidades de

determinações.220

Dito de outro modo, o contínuo verdadeiro, enquanto uno, faz

desaparecer o particular; porém o particular está no continuum virtualmente. Significa:

tudo o que é continuum contém as possibilidades de determinações.

Um exemplo instrutivo seria a relação entre um indivíduo do mundo animal e

sua espécie. Assim, existem várias espécies de formigas com os mais diversos hábitos.

Tomemos uma espécie qualquer, por exemplo, a conhecidíssima espécie que gosta de

fazer seus ninhos nos azulejos das casas, a chamada formiga-fantasma: a espécie será

descrita por características gerais mais ou menos partilhadas por cada formiga

individual que constitui a espécie como um todo, características tais como: tamanho,

cor, e hábitos gerais como o de andar em zigue-zague, fazer trilhas irregulares, mudar de

lugar constantemente, etc. Ora, toda essa descrição é geral, por isso está sob a categoria

da terceiridade, o nome da espécie constitui um conceito e seus predicados devem ser

tomados como contínuos, ou seja, eles não mudarão amanhã, apesar de os mesmos

estarem sujeito à evolução ditada pelas novas formações de hábitos bem como suas

descobertas. Agora, a Espécie formiga-fantasma contém todas as formigas-fantasmas

220

Isso é uma reafirmação da irredutibilidade das categorias.

79

possíveis. No entanto, cada formiga particular dessa espécie é um individual: é essa

formiga e não aquela outra.

Assim, embora a continuidade se relacione com a segundidade, está não é uma

categoria do contínuo, mas sim do descontínuo. De que maneira a continuidade está

relacionada com a segundidade? Uma segundidade está contida no contínuo da terceira

categoria. Isso condiz, convém lembrar, com o fato de a segundidade ser uma categoria

da reação em seu caráter imediato. Ocorrer uma determinação é fator fundamental da

realidade, pois só podemos conhecer o geral examinando a conduta do particular. Daí a

já acentuada importância da segundidade na experiência.

4.5 Continuidade e Primeiridade

Recordemos brevemente: na fenomenologia vimos que a primeiridade é a

categoria daquilo que não tem relação com nada mais, daquilo que é primeiro, livre e

espontâneo. Ou seja, a primeiridade, considerada em si, não é caracterizada por

nenhuma mediação e, portanto, não exige fluxo de tempo nem repetição, sendo, assim,

uma categoria do imediato, decorrendo daí a impossibilidade da primeiridade constituir

conceitos. Outra importante característica a ser lembrada é que, embora enquanto

qualidade, a primeiridade deva aparecer incorporada em um existente particular, ela se

constitui como totalmente independente desse individual, ou seja, desse outro que não

ela mesma. Na Metafísica, essa categoria foi ontologizada, ou seja, verificamos que ela

representa um princípio ativo no Universo, a saber, o Acaso. O Acaso foi caracterizado

como o princípio responsável pela diversidade e espontaneidade do mundo e, ao mesmo

tempo, vimos que essa diversidade se constituía no lado de fora do aparecimento da

primeiridade no mundo.

Todas essas características confluem, num primeiro momento, para dizer que a

primeiridade não se constitui como uma categoria do contínuo. Seria ela uma categoria

do descontínuo? Obviamente não, pois isso implicaria em dizer que a primeiridade

representa existentes particulares, sendo caracterizada por determinações e isso é uma

flagrante contradição com a essência da primeiridade, tal qual abordamos. A relação

entre primeiridade e continuidade constitui, assim, um problema.

80

Para resolvermos esse problema, devemos levar em consideração duas

características da primeiridade que também já tinham sido abordadas nos capítulos

sobre a fenomenologia e a metafísica, a saber, o seu modo lógico caracterizado como

possibilidade e a sua unidade do lado interior.

A primeiridade é a categoria do universal possível. Significa: deixando de lado o

a experiência de sentir os fenômenos de primeiridade, só podemos conhecer tais

fenômenos quando eles aparecem na forma de um conceito universal, sendo essa a única

forma de acessá-los logicamente. Mas essa universalidade não se constitui como

universalidade necessária, como na terceiridade, mas sim como universalidade possível.

A possibilidade lógica é um princípio e enquanto tal deve ser considerado geral.221

Ora,

vimos que o continuum é idêntico à generalidade. Não há interrupções nas infinitas

possibilidades caracterizadas pela primeiridade. Só haverá uma interrupção se o

possível se atualizar em um individual, ou seja, se o possível se determinar de algum

modo, se aparecer uma segundidade.

Por outro viés, a primeiridade pode ser sentida numa experiência de

contemplação, onde ocorre uma unidade entre mundo interior e exterior, que foi

clarificado com o idealismo objetivo, constituindo assim a base para a ruptura com o

dualismo sujeito-objeto. Unidade é outra característica do continuum.

Objetar-se-ia que a relação entre primeiridade e continuidade não pode ser

apenas lógica. O princípio ativo na natureza associado à primeiridade, ou seja, o acaso,

também deve ser contínuo, da mesma forma que as leis, associadas à terceiridade são

contínuas. A objeção está correta. No entanto, ela só ocorreria em alguém que separa a

Lógica da vida, coisa que não acontece na filosofia de Peirce, o que esperamos ter

mostrado no estudo das Ciências Normativas. Disso decorre que o conceito de

possibilidade é a representação modal de algo que no Universo se manifesta

continuamente. Ou seja, o Acaso perfaz o seu papel ininterruptamente no Universo,

violando as leis da natureza e, exatamente por isso, sendo o princípio responsável pela

diversidade no Universo.222

221

Conferir IBRI, 1992, p. 66. 222

Salatiel esclarece muito bem este ponto em seu artigo „O que Peirce quer dizer por violação das leis da

natureza pelo Acaso?‟: “O Acaso viola as leis da natureza por ser um contínuo de possibilidades que

impede a predição exata dos fenômenos sob os auspícios de leis naturais e também por ser fonte de

criatividade e heterogeidade.” SALATIEL, 2009, p.116.

81

Assim, podemos tomar a primeiridade como sendo, junto com a terceiridade,

uma categoria do continuum. Temos num comentário de Ibri uma síntese do que

tratamos sobre a relação entre continuidade e fenomenologia:

[...] cremos ser possível afirmar que a continuidade da lei e do acaso

confluem para o caráter descontínuo da existência, desenhando um

vetor lógico do indefinido geral para o definido individual. Este é um

ponto central em que as categorias podem ser identificadas logicamente

como possibilidade, determinação e necessidade, nesta ordem, e onde o

primeiro e o terceiro modos são cobertos pela generalidade de um

continuum.223

4.6 Continuidade e Realismo

O conceito de continuidade é dado na percepção direta, ou seja, percebemos o

contínuo e, portanto, ele não está sujeito à crítica lógica anterior. Significa: o contínuo é

anterior ao pensamento simbólico. Podemos dar como exemplos de contínuos

diretamente percepcionados, a noção de sucessão espacial e o tempo. Assim, segundo

Machuco Rosa:

O conceito de sucessão forma-se sem o raciocínio crítico; o juízo

perceptivo „A segue-se B‟ não depende de um processo logicamente

controlado. Sublinhamos o argumento usado por Peirce: a própria

relação de sucessão não pode ter sido logicamente derivada de

premissas anteriores, pois, nessas premissas, a mesma relação estaria

ainda presente. Logo, essa relação tem de ser dada diretamente no que

me aparece. „Direto‟ e „percepção direta‟ significa algo que não foi

derivado logicamente de certas premissas [...] pelo que os juízos da

lógica têm a sua origem na percepção. Em suma, a sucessão é a forma

dada em que a lógica se funda.224

A sucessão está ligada à permanência da forma ordenada e isso é um aspecto da

continuidade. Assim, a relação de sucessão aparece diretamente no tempo ordenado.

223

IBRI, 1992, p. 67. 224

ROSA, 2003, p. 355.

82

Machuco Rosa esclarece: “O tempo é um contínuo dado fenomenologicamente, que não

é ainda o contínuo matemático, mas a partir do qual se pode inferir a verdadeira

continuidade.” 225

Que a continuidade é dada diretamente na percepção constitui um forte

argumento a favor da idéia de que a continuidade, ou melhor, o sinequismo, exige

assumir o realismo peculiar de Peirce.226

A realidade da terceiridade é justificada pelo

contínuo, pois a terceiridade, enquanto generalidade é dada na percepção, e essa para

apreender o fluxo do geral, depende do contínuo espaço-temporal.227

Mesmo que um

nominalista argumentasse que apenas “parece” haver terceiridade na experiência, essa

sua própria asserção depende da continuidade real e assim a prova, pois como Peirce

argumenta: “como poderiam os sentidos ter o poder de criá-la?”228

Assim, toda e qualquer teoria deve ter a forma da continuidade. A realidade da

terceiridade implica a realidade da segundidade e da primeiridade. Sinequismo e

Realismo estão intimamente ligados.

4.7 Continuidade e Idealismo Objetivo

Vimos que o Idealismo Objetivo afirmou a conaturalidade entre mente e matéria,

negando assim qualquer forma de dualismo substancial. A consequência disso foi a

asserção de que só é possível o conhecimento na medida que a ordem e a permanência

do Universo é da natureza do inteligível. Parece-nos inquestionável a íntima ligação que

essa doutrina mantém com a continuidade e, logo, com o sinequismo. Em outras

palavras, o sinequismo exige assumir o idealismo objetivo tal qual exposto no tópico

anterior. Isso significa que há uma relação de continuidade entre mente e matéria, para

além do fato de a mente ser primordial e a matéria derivada. Matéria é mente enrijecida

por hábitos extremamente arraigados, onde ainda assim, permanecem resquícios do

mental. A mente tem a tendência de adquirir novos hábitos e se espraiar, conectando-se

225

ROSA, 2003, p.356. 226

Ver IBRI, 2006. 227

Conferir ROSA, 2003, p. 353. 228

Ibidem, p. 358.

83

com outras idéias.229

Por outro lado, hábitos podem se tornar repetitivos e rígidos, sendo

esse o caminho para que a mente se torne matéria. A continuidade deve estar presente

em todo o Universo, posto este ser inteligível. Dizer que a idéia de continuidade é de

prima importância para o pensamento é afirmar que, em última instância, não deve

haver descontinuidades absolutas ou pontos últimos naquilo que é inteligível. A

Continuidade é a garantia da realidade exatamente por tornar possível a inteligibilidade.

Seguindo essa linha de raciocínio poderíamos até afirmar que sinequismo e idealismo

objetivo são indissociáveis.

4.8 Corolário: a relação entre Continuidade, Evolucionismo e Falibilismo

As leis estão para Peirce em constante evolução. Daí decorre o seu

evolucionismo e falibilismo. Significa: o Universo é dinâmico e não estático, por isso

diz-se que ele está sempre em evolução e em constante mudança. O epíteto de certeza

absoluta não pode ser aplicado a nada que não seja definitivo, ou seja, absolutamente

determinado. Segue-se que o Universo peirciano jamais receberá tal epíteto. Ora, isso é

o mesmo que dizer que o Universo está em um fluxo contínuo. Evolução é fluxo

contínuo. O Universo está sempre em crescimento e em processo de formação. Nós

podemos representar a ordem das coisas, esse é o papel preditivo do conhecimento. No

entanto, essa representação será sempre parcial e nunca definitiva. A própria noção de

verdade fora caracterizada como provisória no tópico sobre o bem lógico. É por isso que

podemos aprender. O aprendizado se funda na continuidade e na inteligibilidade do

Universo sempre em evolução.

Aprendemos com novas experiências que sempre envolvem a reação, ou seja, a

quebra do continuum por uma descontinuidade, uma segundidade. Essa quebra é o que

condiciona a evolução das leis.230

O Acaso, apesar de não ser uma descontinuidade,

exerce também o seu papel na evolução das leis, introduzindo a novidade no Universo.

Essa novidade é oriunda da mente em sua tendência a adquirir novos hábitos. O

229

Conferir, The Law of Mind, EP 1. 312-333. 230

Conferir HAUSMAN, 1993, p. 186.

84

contínuo potencial gera o novo que, uma vez gerado, pode se determinar de alguma

forma, tornando-se um existente, e, logo, não será mais potencial e primeiro, e sim

segundo e determinado. Em termos fenomenológicos, a primeiridade atua na

segundidade. Por outro lado, hábitos arraigados são repetições, redundâncias e esses,

por sua vez, constituem o espaço da terceiridade, ou seja, o universo das leis operativas

oriundas das relações reais entre os existentes.

Essa é a dinâmica do Universo, que é uma mistura de Acaso, Existência e Lei. A

dinâmica do Universo conflui para o crescimento da razoabilidade concreta, que, como

vimos no capítulo sobre as ciências normativas, constitui-se no bem admirável por si.

Assim, vemos que o sinequismo está também intimamente ligado ao evolucionismo e ao

falibilismo peircianos.

Pode-se concluir dizendo que o sinequismo é uma doutrina central, que unifica e

torna completo o pensamento peirciano, sendo assim a coluna sustentadora daquilo que

vimos chamando de arquitetura filosófica de Charles Peirce. Agora, isso não quer dizer

que essa doutrina deve ser tomada como absoluta. Peirce mesmo diz: “O sinequismo

não é uma suprema e absoluta doutrina metafísica; ela é um princípio regulativo de

Lógica, prescrevendo uma hipótese que está apta a ser acolhida e examinada.”231

O seu

papel é exclusivamente heurístico, como todas as hipóteses que permeiam a metafísica

científica e a cosmologia peircianas.

5. O PRAGMATISMO

Munidos com tudo o que abordamos até aqui, devemos agora direcionar nossa

atenção ao entendimento geral da máxima do pragmatismo. O pragmatismo é um

aspecto também central e regulador de toda a filosofia peirciana. É claro que essa

doutrina também se desenvolveu ao longo de sua carreira, tendo sido enunciada pela

primeira vez em 1878, no já citado artigo Como tornar as nossas idéias claras232

, da

série Ilustrações da Lógica da Ciência, embora nesse artigo não apareça o nome

231

CP 6.173 232

EP 1.124

85

pragmatismo, e continuado a evoluir paulatinamente até o final da vida de Peirce

(1914). Neste capítulo, a estratégia será a seguinte: primeiro, veremos a enunciação da

máxima de 1878 e seu significado; em seguida discorreremos sobre como Peirce, em

um texto de maturidade, a saber, de 1905, tornou a ligação da máxima com a

generalidade mais explícita; e, por fim, mostraremos como essa doutrina não deve ser

tomada como apenas uma máxima de lógica para clarificação de idéias, mas que se

encontra, de uma forma profunda, ligada a toda arquitetura filosófica de Peirce.

5.1 O pragmatismo Inicial

O pragmatismo se origina no texto „Como tornar nossas idéias claras‟, de 1878,

como um método regulador de Lógica cujo objetivo é clarificar nossas idéias para além

dos meros métodos de clareza e distinção oriundos do cartesianismo.233

Assim, ele

funcionaria como um terceiro método em ordem a tornar as idéias claras, posto ser esse,

segundo Peirce, o primeiro grande ensinamento que devemos exigir da lógica.234

Em que consiste e o quê, de modo geral, Peirce pretendeu estabelecer com a

máxima do pragmatismo tal qual enunciada em 1878? Para respondermos a essa

pergunta, temos que, primeiro, percorrer de maneira sucinta a diferenciação que Peirce

faz no artigo anterior ao „Como tornar as nossas idéias claras‟, a saber, „A fixação da

crença‟235

, entre dúvida e crença.

Nesse texto, Peirce conceitua a dúvida como sendo um estado de desconforto

causado pelo desconhecimento diante de algo. A crença, por sua vez, é simplesmente o

estado oposto à dúvida, um estado de satisfação pelo fato de termos nossas dúvidas

sanadas, mesmo que momentaneamente. Assim, lutamos para sair do estado de dúvida,

que origina a necessidade de uma investigação (inquiry), para atingirmos um estado de

233

O tradutor de toda a série Ilustrações da Lógica da Ciência para o português, Renato Rodrigues

Kinouchi, pontua que Peirce “não critica Descartes por exigir clareza e distinção das idéias. Ocorre que

clareza e distinção são critérios insuficientes, de modo que um terceiro precisa ser adicionado. Ou seja, o

cartesianismo peca por falta e não por excesso.” PEIRCE, 2008 a. p. 15. Pensamos ser importante esse

ponto porque chamar Peirce de anticartesiano sem uma leitura aprofundada dos aspectos filosóficos que

estão por detrás da posição peirciana quanto à sua oposição em relação a Descartes, pode levar, no âmbito

do pragmatismo a tomá-lo como um defensor da ausência de método, o que é uma fragrante distorção do

seu pensamento, como bem assinala o tradutor. 234

PEIRCE, 2008a, p. 64. 235

Ibidem, 2008a, p.35.

86

crença, calmo e satisfatório. A diferença entre dúvida e crença é, sobretudo, uma

diferença prática, relacionada à forma como agimos quando em estado de dúvida ou

crença. Assim, a dúvida nos faz ficar paralisados diante daquilo de que duvidamos e, ao

mesmo tempo, nos coloca basicamente de imediato, no processo de busca de eliminação

dessa dúvida. As crenças, por outro lado, “guiam nossos desejos e moldam nossas

ações.”236

Em suma, a dúvida é um estado incômodo, mas estimulador; a crença gera

hábito e nos coloca em disposição para agir de uma certa forma, quando a ocasião

surgir.237

Em seguida, Peirce descreve os quatro métodos de fixação das crenças: o

método da tenacidade, o método da autoridade, o método a priori e o método científico.

O método da tenacidade é o método da teimosia, da recusa de adentrar numa

investigação que nos leve a questionar nossos fundamentos. Segundo esse primeiro

método, o que se deve fazer é simplesmente confiar inteiramente nas nossas crenças

individuais já estabelecidas. O segundo método, o da autoridade, consiste na força que

uma organização, sociedade ou instituição opera nos indivíduos. Esse método consiste

em ser a crença a opinião da autoridade. O terceiro método, o a priori, consiste em

adotar crenças em conformidade com a razão. Nele estão inseridos todos os sistemas

metafísicos que se fundam em algum tipo de apriorismo. Esse método, para Peirce, já

representa um avanço em relação aos dois anteriores, mas acaba redundando em algo

mais ou menos parecido com a autoridade, só que agora autoridade da razão. O quarto e

último método é o científico que, segundo Peirce, é o único que dá conta de satisfazer

nossas dúvidas, exatamente por ser um método que se baseia em algo independente do

ser humano, a saber, num princípio de permanência externa, sobre o qual o nosso

pensamento não tem efeito e que, como se evidenciou no capítulo sobre a Metafísica

científica, fora conceituado como Realidade:

Para satisfazer nossas dúvidas, por conseguinte, é necessário que se

encontre um método pelo qual nossas crenças possam ser causadas por

algo em nada humano, mas por alguma permanência externa, por

alguma coisa sobre a qual nosso pensar não tenha efeito.238

236

PEIRCE 2008a, p. 43. Examinar também IBRI, 1992, p. 101. 237

WAAL, 2007, p. 32. 238

PEIRCE, 2008 a, p. 53.

87

O método científico é, assim, “oposto aos primeiros três métodos, em que o

entendimento humano estabelece os termos.”239

Ele está fundado no reconhecimento da

alteridade e da realidade das relações contínuas entre as coisas no mundo, tal qual

esboçamos nos tópicos anteriores. Em 1878, Peirce ainda não tinha formulado a versão

final do sinequismo, mas já vemos como ele se encontra presente, como uma exigência

inescapável de que precisamos da permanência para estabelecer qualquer conceito.

É depois de estabelecer esses primeiros conceitos (dúvida, crença e sua fixação

ideal, através do método científico), que Peirce se volta, no artigo „Como tornar nossas

Idéias claras‟, para aquilo que Cornelis de Waal definiu como uma teoria da

significação.240

Essa teoria da significação pretende estabelecer o almejado critério

lógico para se ter clareza das idéias. No entanto, antes de enunciar esse critério, que será

conhecido como a máxima pragmática, Peirce descreve os dois primeiros critérios de

significação que, segundo ele, são insatisfatórios, a saber, o de clareza e distinção:

Diz-se que uma idéia é clara quando ela é aprendida de maneira tal que

a reconhecemos onde quer que ela se apresente, de modo que ela nunca

será confundida com outra. Se faltar essa clareza, dir-se-á que a tal idéia

é obscura.241

Esse primeiro critério insatisfatório envolve o conceito de intuição, de tal forma

que, diante do objeto, não precisaríamos de nenhum processo inferencial para

reconhecê-lo, o mesmo sendo imediatamente reconhecido devido ao fato de possuirmos

tal capacidade inatamente e mais, não só o reconhecemos como não corremos o risco de

enganarmo-nos, dado que o distinguimos claramente em nossa intuição e, além disso,

sabemos intuitivamente que tivemos tal intuição.242

Depois de descrever esse critério de

clareza, Peirce meio que ironicamente acrescenta:

Trata-se de uma terminologia filosófica típica; todavia, já que se está

definindo o que é clareza, eu gostaria que os lógicos tivessem dado uma

definição mais clara. Jamais falhar no reconhecimento de uma idéia, e

239

WAAL, 2007, p. 36. 240

WAAL, 2007, p. 39. 241

PEIRCE, 2008 a, p. 61. 242

Esse tipo de conhecimento intuitivo fora veemente negado por Peirce, desde 1868, na já citada Série

Cognitiva, sobretudo o texto „Questões Concernentes a certas faculdades ditas humanas‟. Nessa série,

Peirce defende a tese de que toda cognição é inferencial, dado que só podemos pensar através de signos e

não temos capacidade intuitiva de distinguir se estamos tendo uma intuição.

88

não confundi-la com outra, em nenhuma circunstância, não importando

quão recôndita possa ser sua forma, na verdade implicaria em tal força e

tal clareza de intelecto, tão prodigiosas, raramente existentes neste

mundo.243

Não sendo esse um critério substancial para atingir a almejada primeira lição da

lógica, Peirce passa a descrever o segundo critério:

Diz-se que uma idéia é distinta quando ela não contém nada que não

seja claro. Trata-se também de uma linguagem técnica; por conteúdos

de uma idéia os lógicos entendem o que quer que esteja contido em sua

definição. Para eles, uma idéia é aprendida de maneira distinta quando

podemos dar uma definição precisa dela, em termos abstratos.244

Esse segundo grau de clareza envolve o uso do processo de abstração, que

define o que está contido ou não na concepção sem nenhuma menção positiva, ou seja,

sem nenhuma espécie de consideração pelo objeto em sua alteridade. É obvio que esse

critério, apesar de ser importante, não poderia consistir, para Peirce, num critério

suficiente e efetivo de clareza posto que ele, tomado isoladamente ou em conjunto com

o primeiro critério, caminha em sentido contrário ao método científico de fixação de

crenças estabelecido anteriormente. Assim, Peirce conclui fazendo uma espécie de

síntese:

Nada de novo se pode aprender analisando definições. Não obstante,

nossas crenças existentes podem ser postas em ordem por esse processo,

e a ordem é um elemento essencial da economia intelectual, assim como

de qualquer outra. Pode-se reconhecer, por conseguinte, que os livros

estão certos em estipular a familiaridade com uma noção como sendo o

primeiro passo em direção à clareza de apreensão, e a definição dessa

noção como sendo o segundo. Mas ao omitir toda a referência a

qualquer perspicácia superior do pensamento, simplesmente refletiram

uma filosofia posta por terra há cem anos. Esse admiradíssimo

“ornamento da lógica” – a doutrina da clareza e distinção – pode ser

muito bonito, mas já está mais do que na hora de relegar à sala das

243

PEIRCE, 2008a, p. 61. 244

Ibidem, 2008a, p. 62.

89

curiosidades tal jóia antiga, e passarmos a usar algo mais adaptado aos

costumes modernos.245

Qual, então, seria o critério lógico suficiente para tornar as nossas idéias claras,

primeira lição que devemos exigir da lógica? É, exatamente, o critério que mais tarde

será conhecido como a máxima pragmática, enunciada nesse texto da seguinte forma:

Considere quais efeitos, que concebivelmente poderiam ter

consequências práticas, concebemos ter o objeto de nossa concepção.

Então, a concepção destes efeitos é o todo de nossa concepção do

objeto.246

Assim, o pragmatismo nasce como uma máxima lógica, como um método para

determinar significados de conceitos. Sua vantagem é, segundo Waal, que ele “relaciona

o significado diretamente ao processo de inquirição, em vez de impô-lo de fora sobre a

inquirição, como se fosse uma definição abstrata.”247

Em 1878 Peirce equacionava consequências práticas com experiências sensíveis:

“Nossa idéia de qualquer coisa é nossa idéia de seus efeitos sensíveis.”248

Ou seja, a

estratégia para se alcançar o significado de algo que é um conceito consiste em conceber

quais são os efeitos sensíveis do objeto da nossa concepção, efeitos que fazem a

diferença em nossas expectativas sobre o objeto em questão. O exemplo do diamante

serviu para clarificar esse ponto: dizer que um objeto, tal como um diamante, tem a

propriedade de ser duro, é dizer que ele não será arranhado por outras substâncias, por

isso se aplica a ele o conceito de dureza. O efeito sensível resultado da tentativa

245

PEIRCE, 2008a, p. 64. Pensamos ser o reconhecimento da importância, embora não suficiência, dos

critérios de clareza e distinção que se pode depreender dessa citação, que levou Renato Kinouchi, em uma

nota de rodapé de sua tradução da série “Ilustrações da Lógica da Ciência” (nota na página 62), a dizer

que Peirce não deve ser chamado de anticartesiano, mas sim de paracartesiano, posto ele reconhecer os

critérios de clareza e distinção como importantes, mas insuficientes e enunciar o seu critério, a máxima

pragmática, como sendo um acréscimo a esses dois. Não cremos ser esse um caminho correto de colocar

as coisas. Peirce é sim um pensador anticatersiano, uma vez que suas idéias de base caminham

exatamente em sentido oposto ao de Descartes, mas deve-se ressalvar como o fizemos em nossa nota 240,

que no âmbito do Pragmatismo, já que o que está em cheque é o método suficiente de clareza de idéias,

anticatersianismo não deve ser tomado como ausência de método, levando ao que hoje se chama de neo-

pragmatismo relativista, cujo exemplo mais comum é Richard Rorty. Nada está mais longe do

pensamento de Peirce do que isso. 246

EP 1.132. Essa é a tradução de Ibri, 1992, p. 96. Renato Kinouchi traduz de forma um tanto diferente,

a qual se cita como forma variante: “Considere-se quais efeitos que concebivelmente teriam atuações

práticas, os quais imaginamos que o objeto de nossa concepção possua. Então, nossa concepção desses

efeitos é o conjunto de nossa concepção do objeto.” Kinouchi, 2008, p. 73. 247

WAAL, 2007, p. 41. 248

Apud HAUSMAN, 1993, p. 40.

90

experimental de riscar o objeto concebido como duro, no caso o diamante, foi que ele

permaneceu sem ser arranhado. Conclusão: dureza é um conceito que prescreve que o

efeito sensível que obteremos caso tentemos arranhar objetos tidos como tendo a

propriedade de serem duros é que eles permanecerão sem ser arranhados. E não há mais

nada, além disso, no conceito de dureza:

A concepção completa dessa qualidade, tal como a de qualquer outra,

reside em seus efeitos concebíveis. Não há absolutamente nenhuma

diferença entre uma coisa dura e uma coisa mole enquanto não forem

postas à prova.249

Devemos interpretar através desse exemplo que Peirce reduzia os significados

dos conceitos a meros experimentos, sendo associado, numa leitura apressada, com os

positivistas? Não. Na verdade, mesmo nessa primeira formulação, a noção de efeitos

sensíveis envolvida é bem mais complexa do que parece.

Deve-se notar que a referência ao aspecto geral da máxima já se encontrava

presente na enunciação de 1878. No entanto, Peirce reconheceu que, equacionar

consequências práticas com experiências sensíveis poderia ser um tanto perigoso, caso

não entendessem o ponto central que estava por detrás dessa concepção, levando um

leitor apressado a julgar que o significado da máxima pragmática deveria ser buscado

exclusivamente nas experiências particulares, dado que experiências sensíveis se

referem sempre a particulares. Isso poderia ocorrer sobremaneira num leitor que não

tivesse percebido o papel das palavras “considere”, “concebivelmente”, “concebemos” e

“concepção”, na enunciação da máxima pragmática de 1878. Ibri pontua a importância

da presença dessas palavras citando uma nota explicativa da passagem em que Peirce

descreve a máxima:

Observe que nestas três linhas encontra-se “concebivelmente”,

“conceber”, “concepção”, “concepção”, “concepção”. Percebo que há

muitas pessoas que detectam a autoria de meus escritos não assinados; e

não duvido que uma das marcas de meu estilo pela qual elas o fazem é

minha excessiva relutância em repetir uma palavra. Este emprego por

cinco vezes das derivações de concipere deve, então, ter tido algum

249

PEIRCE, 2008, p. 75.

91

propósito. Em verdade ele teve dois. Um deles foi de que eu estava

falando de significado em nenhum outro sentido senão o de significado

intelectual. O outro foi evitar todo o risco de ser entendido como

tentando explicar um conceito por perceptos, imagens, esquemas, ou

por qualquer outra coisa senão conceitos. Portanto, não quero dizer que

atos, que são mais estritamente singulares que qualquer coisa, poderiam

constituir o propósito ou a própria e adequada interpretação de qualquer

símbolo.250

E, em seguida explica: “Parece ser nítida a posição de Peirce quanto à

generalidade do significado de um conceito...”251

O pragmatismo inicial, assim, já se

mostra como absolutamente ligado à generalidade, portanto, não reduzido às

particularidades meramente experimentais, embora essas constituam estágio importante

na sua estipulação.

5.2 O pragmatismo tardio

É exatamente para tornar mais precisa essa ligação da máxima lógica do

pragmatismo com a generalidade, que Peirce levou a cabo, a partir de 1903 com as

Conferências de Harvard sobre o Pragmatismo252

, passando pelos textos de 1905-1907

sob o título geral de Pragmaticismo253

, e se estendendo até o final de sua vida, aquilo

que se pode chamar de uma concepção mais estrita sobre o que se deve entender como

sendo a sua versão do pragmatismo, o pragmaticismo. A consideração das reflexões

maduras de Peirce sobre a máxima pragmática consolidará aspectos apontados na

abordagem do pragmatismo inicial e ao mesmo nos preparará para, num último

momento, efetuar uma síntese que mostrará como o pragmatismo configura aspecto

central de toda a arquitetura filosófica peirciana.

Para explicar esse importante aspecto da filosofia peirciana, nos limites desse

trabalho, escolheu-se, dentre as muitas possibilidades, o foco em passagens de um texto

250

Apud IBRI, 1992, p. 97. 251

Ibidem, p. 97 252

Harvard Lectures on Pragmatism. EP 2.133-241. Oferecer uma prova do Pragmatismo era um dos

objetivos centrais de Peirce, que se iniciou com essas conferências e durou até o fim de sua vida. Não

adentraremos nesse trabalho na questão das provas oferecidas por Peirce, sugerimos que o leitor consulte

sobre esse assunto os artigos: HOOKWAY, 2005 e HOOKWAY, 2008. 253

Pragmaticism. EP 2.331-433.

92

específico, a saber, um texto de 1905 chamado “O que é Pragmatismo”254

,

desenvolvendo-as em suas consequências gerais. Este é o texto em que Peirce

exatamente introduz o termo pragmaticismo em substituição ao termo pragmatismo,

com o objetivo de mostrar seu total afastamento em relação a outros pensadores, que

viam se chamando de pragmatistas e buscavam tornar o pragmatismo um princípio

especulativo de filosofia.255

Peirce, após explicar a atitude do experimentalista, em contraste com os

pensadores de formação livresca, diante do significado de um conceito diz:

Procurando, como qualquer outro homem desse tipo faria, formular

aquilo que ele aprovava, arquitetou a teoria segundo a qual uma

concepção, ou seja, o significado racional de uma palavra ou alguma

outra expressão se encontra, exclusivamente, na concepção da sua

influência concebível sobre a conduta da vida; assim, uma vez que é

óbvio que algo que não resulte de um experimento possa exercer

qualquer influência direta sobre a conduta, se alguém for capaz de

definir, com exatidão, todos os experimentos fenomênicos concebíveis

que a afirmação ou negação de um conceito possa implicar, teria, então,

a definição completa do conceito. 256

Essa passagem é uma reformulação da máxima pragmática anteriormente

descrita. Também aqui a palavra concebível tem importância fundamental para a correta

apreciação do significado do pragmaticismo tal qual Peirce o formulou. O que a palavra

concebível designa? Ela não designa o simples conceito, mas sim o conceito

esquematizado.257

Ou seja, designa todo um processo de esquematização que começa na

imaginação das consequências práticas de uma dada representação e se dirige, depois,

254

EP 2.331. 255

O termo “pragmatismo” só apareceu na forma impressa pela primeira vez em um ensaio de William

James intitulado “Concepções filosóficas e resultados práticos”, texto impresso de uma conferência

proferida em 26 de agosto de 1898 ante a União Filosófica da Universidade Berkeley. James usou o termo

como uma interpretação da máxima lógica formulada por Peirce em 1878. Cf. WAAL, 2007, p. 52. Foi a

partir de então que o termo foi popularizado, tendo sido usado para os propósitos mais distantes da

formulação inicial de Peirce. Vendo o termo reportado a ele em tal situação Peirce diz ironicamente no

texto: “Assim sendo, o autor, vendo o seu „pragmatismo‟ promovido a tal ponto, sentiu que é chegada a

hora de dar um beijo de adeus a esse seu filho, abandonando-o aos seus vôos mais altos; ao mesmo

tempo, para exprimir a definição original, ele anuncia o nascimento da palavra „pragmaticismo‟, a qual é

feia o bastante para estar ao abrigo de usurpadores.” EP 2. 334. O sufixo icismo na palavra pragmaticismo

significando, segundo Peirce, uma acepção mais estritamente definida de uma doutrina. Cf. EP 2.334. 256

EP 2. 332. 257

PEIRCE, 1998, nota 94, de autoria do tradutor Machuco Rosa.

93

ao mundo, buscando confirmação. Conceber é antecipar possibilidades gerais, gerando

assim mediações. O concebível está ligado, então, à experiência possível. Só pode haver

significado concebível de experiências possíveis. Esse é o caráter geral de todo o

conceito: ele é aplicável ao contínuo de possibilidades reais e não está reduzido ao caso

particular.258

Como isso se dá é o que pretendemos tornar explícito a seguir:

Um conceito só pode ser aplicado àquilo que possui ordem, e é essa ordem que

pode ser concebida, sob uma forma de terceiridade. O conceito expressa as relações de

ordem entre os objetos. Isso equivale a dizer que ele representa as regras gerais que

governam cada um dos objetos que compõem a classe total desses objetos. Assim, um

conceito representa a permanência de certos predicados. Vimos através do realismo, do

idealismo objetivo e do sinequismo, que a permanência representada no conceito está

nas coisas e não configura, assim, uma imposição da subjetividade humana aos

fenômenos, como querem os nominalistas. Assim, seria mais correto dizer que a

permanência, a ordem nos objetos é representável pelo conceito, e isso devido ao fato

de os objetos que possuem algum tipo de permanência serem inteligíveis e, portanto, de

alguma forma, conaturais à mente que os representa.

Ora, segundo a versão da máxima do pragmaticismo enunciada acima, a

representação conceitual de um objeto tem o poder de influenciar a conduta da vida. A

influência na conduta se dá porque o conceito procura sempre representar a conduta dos

objetos e representar a conduta de um objeto é sempre fazer uma previsão. Em outras

palavras, um conceito é uma forma de mediação que busca descrever o comportamento

futuro de um objeto que possui predicados permanentes. Conhece-se um objeto para que

ele deixe de nos objetar, diminuindo, assim, o seu caráter de segundidade.259

Conhecer

um objeto é conhecer o seu comportamento geral para que, sabendo como ele se

comportará no futuro, também saibamos como nos comportar diante dele. O

conhecimento que tenho sobre um objeto determina a minha conduta diante dele. Por

exemplo, se eu sei o que é um colete salva-vidas, saberei que devo colocar um sob o

meu corpo caso o navio em que esteja viajando começar a afundar.

De outro lado, saber como se comportar diante de um objeto é possuir um hábito

de conduta em relação ao objeto. Um hábito, assim, pode ser descrito como o resultado

interpretado dos significados de um conceito. O significado é um hábito260

. Do ponto de

258

Vê-se que o pragmatismo depende do sinequismo. 259

Para uma consolidação desse ponto, queira o leitor retornar ao tópico sobre as categorias. 260

Conferir ROSENTHAL, 1994, p.21.

94

vista lógico, um hábito é um processo de generalização, de natureza indutiva. Somando-

se a isso o ponto de vista pragmaticista, os hábitos podem ser conceituados como

generalizações de condutas permanentes, ou seja, de crenças estabelecidas. O hábito

tem, assim, a natureza do conceito. É por isso que pode ser dito que o significado de um

conceito aparece nos hábitos que ele origina; a conduta/hábito é como que um espelho

do conceito/crença. Em outras palavras, um conceito gera ações que, se permanecem

tornam-se hábitos; esses hábitos/ações podem ser concebidos numa descrição geral. Isso

é, grosso modo, o significado do que Peirce quis dizer ao afirmar que “o significado

racional de uma palavra ou alguma outra expressão se encontra, exclusivamente, na

concepção da sua influência concebível sobre a conduta da vida.”261

Um hábito é uma tendência para agir de certa maneira geral quando as ocasiões

surgirem. Em outras palavras, o hábito também está vinculado à idéia de futuro. Ou

seja, um significado geral se aplica à conduta humana não nesta ou naquela

circunstância, mas relacionado ao autocontrole que toda previsão contém para o futuro.

Trata-se, em suma, de um significado condicional direcionado para as possibilidades

reais do futuro. O significado de um conceito geral é uma espécie de prescrição, uma

espécie de receituário que descreve o que ocorrerá no futuro, caso sejam preenchidas

certas condições gerais. A previsão efetuada pelo conceito não requer que a atualidade

futura seja em algum sentido real agora, mas sim que as possibilidades presentes das

atualidades futuras sejam reais agora.262

O significado de um termo geral reside no futuro. Significa: o pragmaticismo

exige um “seria” (would-be) e não um “será” (will-be) ou um “têm sido” (have-been).

Ou seja, quando dizemos conhecer um objeto, não dizemos que o conhecemos apenas

como ele tem sido até agora, mas sim que o conhecemos na medida em que cremos que

os predicados com os quais o descrevemos permanecerão no futuro sendo

aproximadamente esses, salvo as possíveis mudanças em seu comportamento. Por

exemplo, saber fazer um bolo de chocolate é conhecer a sua receita, e a receita

prescreve certas ações a serem realizadas que valerão para confeccionar o bolo de

chocolate para qualquer momento no futuro, e que, se as propriedades dos ingredientes

necessários não sofrerem mudança repentina, a receita tende a funcionar no futuro.

Significa: o bolo se encontra potencialmente presente no conhecimento que tenho sobre

como fazê-lo no futuro. Em outras palavras, saber fazer um bolo não é uma atualidade,

261

EP 2.332. 262

Conferir ROSENTHAL, 1968, p.156.

95

mas uma potencialidade que tende a se atualizar no futuro, caso as condicionais

presentes na prescrição venham a se realizar. Isso quer dizer que o pragmaticismo exige

a realidade das três categorias ontológicas, conforme o realismo do autor tornou

explícito.

Por outro lado, existe, a par da generalidade, um segundo aspecto fundamental

do pragmaticismo, a saber, a necessária confirmação do conceito, nos casos particulares

que incorporam as regras gerais descritas pelo conceito. Em outros termos, o significado

geral deve ser procurado nas consequências praticas dele decorrentes, e essas devem ser

associadas ao particular.263

Para se descobrir o significado de um conceito é preciso

fazer experimentos sobre o objeto que ele descreve, como, por exemplo, o experimento

de tentar riscar o diamante do texto de 1878. Assim, vimos que o que um conceito

descreve não é meramente o comportamento particular dos objetos, mas sim, o

comportamento geral de tal classe de objetos; ora, com o experimento pretendemos

confirmar o que diz uma descrição geral, que é uma lei, nos casos particulares que a

incorporam.

Esse ponto se torna bem claro em trechos da resposta dada por Peirce à pergunta

de um hipotético interlocutor:

Questionador: ...você diz que o único significado que, para você,

qualquer asserção possui é que certo experimento resulta de certa

forma: e nada mais além do experimento entra no significado.

Pragmaticista: ... você fala de um experimento em si mesmo,

sublinhando „em si mesmo‟. Evidentemente você pensa cada

experimento como isolado de todos os outros. Não lhe ocorreu, como

podemos presumir, que, por exemplo, toda série conectada de

experimentos constitui um único experimento coletivo... Outra coisa: ao

representar o pragmaticista como fazendo o significado racional

consistir em um experimento (que você toma como sendo um evento no

passado) você claramente falha em capturar sua atitude mental. De fato,

não é em um experimento, mas no fenômeno experimental que o

significado racional consiste... E não esqueça de que a máxima

pragmaticista nada diz acerca de experimentos singulares ou fenômenos

experimentais singulares (pois aquilo que é condicionalmente

263

Conferir IBRI, 2000b, p. 31.

96

verdadeiro in futuro dificilmente pode ser singular), mas somente fala

de tipos gerais de fenômenos experimentais.264

O experimento é fundamental no processo que resulta em conhecimento. Uma

teoria visa explicar um dado fenômeno, essa teoria realmente descreve o fenômeno?

Temos que perguntar para ele. Para Peirce, a última palavra é sempre do objeto. Como

perguntamos algo para um fenômeno? Fazendo experimentos com ele. Fenômeno

experimental é o conjunto geral desses experimentos ininterruptos. Dizemos isso

porque, como vimos com o sinequismo, não se trata meramente de uma pluralidade de

experimentos, isso não configura um processo contínuo, mas sim de um processo

experiencial evolucionário, direcionado sempre para o futuro indefinido, mas cujas

instâncias são as pluralidades de experimentos particulares, que capturam as

determinações que incorporam as regras gerais, sem as esgotar. Só o fenômeno pode

dizer, através da maneira como ele reage aos experimentos que fazemos sobre ele, se a

teoria de fato prevê aproximadamente o seu comportamento ou não. Isso equivale a

dizer que uma teoria, que é uma descrição geral, deve estar submetida à realidade, ou

seja, o que ela diz deve ser confirmado no mundo, fenomenologicamente. Aqui, vemos

aparecer de novo o caráter corretivo da experiência na confirmação ou negação de um

conceito. Significa: a experiência dirá se haverá aderência entre os fatos e as teorias.265

Se houver aderência, a teoria representa parcialmente o objeto e tenderá no caminho

evolucionário a representá-lo cada vez melhor, mas nunca em sua totalidade.266

Caso

não haja aderência, é sinal de que devemos buscar por outra teoria, começando assim

um novo processo heurístico de busca pelo conhecimento.

Os resultados experimentais são os únicos resultados que podem afetar a conduta

humana267

. Assim, completa-se o significado epistemológico da máxima do seguinte

modo: o significado de um conceito deve sempre estar associado à generalidade268

;

dessa forma, uma concepção esquemática, que é o conceito concebível, equivale a uma

prescrição geral; uma prescrição geral, diz que, dadas certas circunstâncias

experimentais, tais e tais consequências aproximadamente se seguiriam (woud-be);

logo, pode-se dizer que um conceito é uma representação dos fenômenos cujo

264

EP 2.339-340. 265

Conferir IBRI, 1992, capítulo 6. 266

Dado o caráter indeterminado do próprio objeto, conforme evidenciou o indeterminismo ontológico e

o falibilismo epistemológico do autor. 267

EP 2.340. 268

Conferir IBRI, 2000b, p.31.

97

significado está totalmente contido nas consequências experimentais efetivas dele

decorrentes ou, dito de outro modo, a totalidade das concepções resultantes de

experimentos equivale à total significação do conceito. É por isso que Peirce pode na

sequência afirmar que:

[...] assim, uma vez que é óbvio que algo que não resulte de um

experimento possa exercer qualquer influência direta sobre a conduta,

se alguém for capaz de definir, com exatidão, todos os experimentos

fenomênicos concebíveis que a afirmação ou negação de um conceito

possa implicar, teria, então, a definição completa do conceito. 269

Teoria e experiência, em Peirce, não estão apartadas, mas ao contrário,

encontram-se integradas uma na outra, sendo esse um dos mais notáveis corolários da

máxima pragmática. O pragmaticismo não aceita a separação entre filosofia e vida.

O pragmaticismo, assim, pode ser lido como uma máxima lógica que prescreve

que os hábitos, que são sempre gerais, possuem consequências práticas experimentais e,

uma vez que qualquer prescrição geral só pode ser verificada nos fatos particulares, o

significado de um conceito será sempre uma relação de necessidade entre o geral e o

particular.270

Esse é um ponto delicado e devemos entender muito bem essa relação para

não sermos induzidos a erro. Ao mesmo tempo, o correto entendimento dessa relação

fará surgir o significado mais profundo do pragmaticismo numa síntese que mostrará

que esta máxima é muito mais que uma mera regra de lógica para clarificar idéias e está,

assim, estritamente ligada a toda arquitetura filosófica peirciana.

5.3 O pragmatismo e a arquitetura filosófica peirciana.

Ibri afirma: “Em verdade, o que, então suporta logicamente a máxima do

pragmatismo é a pressuposição de que deve haver uma relação de necessidade entre o

geral e o particular.”271

Depois de fazer notar que o que está por detrás dessa afirmação

269

EP 2. 332. 270

Ibidem, pg. 32. 271

IBRI, 2000b, p.32.

98

é a estrutura ontológico-categorial de Peirce272

, Ibri esclarece em que sentido deve-se

entender essa relação de necessidade entre o geral e o particular:

Mercê deste enfoque, cabe destacar que não pode haver relação de

estrita necessidade lógica entre significado e consequências práticas,

haja vista a presença sempre marcante da primeiridade no interior da

terceiridade, rompendo a estrita dedutividade na relação entre o geral e

o particular. Por conseguinte, a ação engendrada pelo conceito não

ocorre estritamente segundo o que dele possa decorrer dedutivamente.

Deve, todavia, haver um vínculo entre conceito como antecedente e

ação como consequente, de tal modo que a terceiridade da significação

seja passível de ser identificada na instância da conduta, conquanto esta

possa e deva estar permeada pela erraticidade típica dos desvios da

experiência em relação ao plano teórico.273

Essa passagem se mostra extremamente esclarecedora, apontando que a relação

de necessidade entre o geral e o particular não é de tipo causal, do tipo: dada tal ação,

segue-se, necessariamente, tal e tal efeito (tal posição levaria em última instância a um

tipo de determinismo epistemológico que contraditaria o espaço ontológico reservado

por Peirce aos fenômenos governados pelo acaso), mas trata-se, sim, de uma relação

onde o geral aparece figurado274

no particular. Ou seja, um conceito geral,

necessariamente deve aparecer concretizado na experiência particular, numa existência.

Fenomenologicamente, isso quer dizer que o significado da terceiridade é a forma como

ele aparece na segundidade.275

Isso é o que permite ao pragmaticismo identificar

consequências práticas com consequências experienciáveis.276

No entanto, esse aparecer

no particular não deve ser tomado como um fim, o que levaria à redução do significado

às instâncias particulares277

, mas sim como um meio para a evolução contínua do

272

“... as categorias se entrelaçam pela confluência da generalidade da terceiridade e da primeiridade na

particularidade da segundidade, ou, em outras palavras, pela simultânea concreção singular de

necessidade e possibilidade, como potências, em ato.” IBRI, 2000b, p.32. 273

IBRI, 2000b, p.32. 274

Ibri usou nesse artigo esse termo “não peirciano”, oriundo de Schelling, como recurso pedagógico

para auxiliar o entendimento de como ocorre a relação entre geral e particular no seio do pragmaticismo

peirciano. IBRI, 2000b, p. 32. 275

Conferir IBRI, 1992, capítulo 6. Da mesma forma, a primeiridade e a segundidade, quando tornadas

objeto de uma ciência, no caso a Lógica, também possuem significação: o significado da segundidade é a

reação numa existencialização; o significado da primeiridade é pura possibilidade. 276

Conferir IBRI, 1992, p.101. 277

Esse seria o ponto que se tornou predominante no pragmatismo divulgado erroneamente.

99

propósito racional do universo, que como vimos, consiste no único bem admirável em si

mesmo.278

Assim, Peirce pode afirmar que o traço mais patente da máxima “foi ter

reconhecido uma ligação inseparável entre a cognição racional e a finalidade

racional.”279

Na fenomenologia, assinalou-se o fato de as categorias se aplicarem

indiscriminadamente ao lado interno e externo da experiência. Ora, Peirce afirma que:

“É o mundo externo que observamos diretamente. O que se passa internamente apenas

sabemos pelo modo como ele é refletido em objetos externos.”280

As categorias, sendo

as formas gerais de toda a experiência possível, tem livre fluxo entre a interioridade e a

exterioridade. É por isso que todo conhecimento que pretenda ser um diálogo com os

objetos deve começar pela fenomenologia. Dizer que conhecemos o lado interno pela

forma exterior com a qual este aparece significa, em última instância, que somente

podemos conhecer os hábitos, as condutas permanentes dos fenômenos que se mostram

externamente de alguma maneira sob uma forma de terceiridade. Nada podemos saber

das coisas que não mostram externamente algum tipo de permanência, configurando

seus predicados. Não há coisas-em-si incognoscíveis.281

O conceito, vimos, é sempre

geral e o geral, tanto o necessário (terceiridade) quanto o possível (primeiridade) do

ponto de vista modal, nunca é observável diretamente, mas sim apenas pode ser inferido

pela forma como aparece concretizado nas suas consequências práticas. Por exemplo:

não se conhece a dureza em si, mas somente o comportamento externo dos objetos que

estão sob a classe dos objetos aos quais se aplica o conceito de dureza, a saber, que eles

não são arranhados por outras substancias. Daí a importância do experimento particular,

embora esse não esgote o significado do conceito geral, cuja potencialidade se mantém

no futuro indefinido.

Configura-se, assim, uma dimensão ontológica da máxima pragmaticista que Ibri

caracterizou magistralmente numa passagem que merece transcrição na íntegra:

Toda arquitetônica do autor, aproximando sujeito e objeto, leva-nos a

pensar que o Pragmatismo não se confina a uma regra lógica de estrito

âmbito epistêmico, mas aplica-se, também, à própria estrutura do

mundo. Na medida mesma em que a doutrina, em síntese, se traduz no

278

Ver tópico sobre as Ciências Normativas. 279

EP 2.333. 280

Apud IBRI, 1992, p.101. 281

Sobre esse ponto, conferir IBRI, 1992, p. 108.

100

vínculo lógico entre o geral e o particular, e reconhecendo-se a

generalidade na realidade da primeira e terceira categoria, pode-se dizer

que o Pragmatismo, no seu matiz metafísico, configura-se como a

relação entre a primeiridade e a terceiridade com a factualidade

existencial da segundidade. Assim, a partir destas considerações, parece

ser possível reenunciar a máxima da doutrina, não mais sob a ótica da

determinação do significado que impregna os conceitos na sua

positividade, mas, antes, sob o viés da determinação da realidade de

entidades gerais ou contínuas. Uma possibilidade de enunciação da

máxima seria: A totalidade da manifestação fenomênica de um

continuum perfaz sua realidade; duas outras formas metafísicas da

máxima poderiam, também, ser: um continuum de possibilidades ou de

necessidade perfaz sua realidade na totalidade de sua concreção

existencial, ou o ser de um continuum é dado pela totalidade de sua

manifestação fenomênica, ou seja, pela sua cognoscibilidade.282

O que Ibri assim propõe é que o Pragmatismo não é meramente uma máxima

lógica, mas também possui uma dimensão ontológico/metafísica cujo correto

entendimento exige familiaridade com todo o arcabouço teórico do autor, desde a

Fenomenologia, passando pelas Ciências Normativas, pela Metafísica, pelo

Indeterminismo Ontológico, pelo Evolucionismo, pelo Falibilismo, pelo Idealismo

Objetivo e pelo Sinequismo, sem nos esquecermos da Semiótica, ainda por ser

considerada. Essa dimensão mais profunda do pragmaticismo configura ponto central

para o entendimento da arquitetura filosófica do autor e, a nosso ver, é crucial para a

abordagem de todo e qualquer tema específico na filosofia de Peirce. Pois, qualquer

tema específico configura um conceito, logo esse conceito, que é um geral, deve

aparecer no particular, aparecer pelo lado de fora, ou seja, ele deve ser confirmado

experimentalmente no mundo atual ou ser possivelmente concebível. Assim, perguntar

em que consiste um tema específico em Peirce, equivale a perguntar se esse tema possui

significado pragmático no sentido profundo que acabamos de caracterizar.283

282

IBRI, 1992, p.110. 283

Esse aspecto crucial deve estar guardado em mente durante toda a pesquisa futura que pretendemos

levar a cabo sobre o tema a imortalidade do homem em Charles Sanders Peirce.

101

6. A SEMIÓTICA

Pretendemos com este capítulo proporcionar ao leitor um ferramental teórico

mínimo sobre semiótica, que torne possível uma futura reflexão acerca da imortalidade

da alma à luz da arquitetura filosófica peirciana. Não pretendemos efetuar uma

descrição minuciosa, posto este trabalho não ser um trabalho sobre semiótica. Dessa

forma, o vasto campo da semiótica peirciana, ainda hoje em crescimento em muitas

áreas do pensamento humano, sobretudo na área de Comunicação, não será de maneira

nenhuma esgotado. Também não pretendemos fazer uma descrição cronológica da

semiótica ao longo da obra de Peirce, posto que isso também fugiria ao escopo deste

trabalho, mas sim procuraremos tomar as descrições gerais sobre o tema que são

mantidas ao longo dos seus escritos sem prejuízo de compreensão. Assim, o que

faremos será um recorte nesse vasto arsenal de possibilidades, um recorte que como

qualquer outro é injusto para com o Todo, mas que é suficiente para os nossos

propósitos. Nosso objetivo principal é efetuar uma descrição do papel que o símbolo

exerce dentro da semiótica geral do autor, devido ao fato de este ser o seu ponto de

partida para uma reflexão sobre a imortalidade do homem. Dessa forma, o nosso

caminho será o seguinte: num primeiro momento faremos uma breve introdução ao que

se deve entender por Semiótica, Semiose e Signos em Peirce; num segundo momento

abordaremos os chamados três correlatos do processo de semiose peirciana, a saber, o

signo ou representamen, o objeto e o interpretante; o terceiro momento será o de

descrever sucintamente as três principais tricotomias de signos segundo Peirce, onde a

noção de símbolo, que pertence à segunda tricotomia, será abordada de forma geral. O

quarto e último momento será dedicado à discussão de alguns aspectos peculiares do

símbolo que culminarão na afirmação de sua possível imortalidade.

6.1 Semiótica, Semiose e Signos.

O que Peirce entendia por Semiótica? Semiótica, segundo Peirce, é:

[...] a quase-necessária, ou formal, doutrina dos signos. Descrevendo a

doutrina como “quase-necessária”, ou formal, quero dizer que

102

observamos os caracteres de tais signos e, a partir dessa observação, por

um processo a que não objetarei denominar Abstração, somos levados a

afirmações, eminentemente falíveis e por isso, num certo sentido, de

modo algum necessárias, a respeito do que devem ser os caracteres de

todos os signos utilizados por uma inteligência “científica”, isto é, por

uma inteligência capaz de aprender através da experiência.284

Vemos que Peirce, não podia ser diferente, procurou pensar a semiótica como

uma ciência positiva, ou seja, vale a pena lembrar, uma ciência que deve confirmar as

suas hipóteses, expressas por proposições de tipo categórico, no mundo fenomênico.

Assim, apesar de o processo que origina as proposições desta ciência receber o nome de

abstrativo, essa abstração é de um tipo peculiar: “Quanto a esse processo de abstração,

ele é, em si mesmo, uma espécie de observação.”285

Esta espécie de observação é

chamada por Peirce de observação abstrativa e, na sequência do texto é explicada de

forma a não deixar dúvidas:

A faculdade que denomino de observação abstrativa é perfeitamente

reconhecível por pessoas comuns mas, por vezes, as teorias dos

filósofos dificilmente a acolhem. É experiência familiar a todo ser

humano desejar algo que está totalmente além de seus recursos

presentes, e complementar esse desejo com a pergunta “Meu desejo

dessa coisa seria o mesmo se eu dispusesse de amplos meios de realizá-

lo?” Para responder a essa pergunta, ele examina seu interior e, ao fazer

isso realiza aquilo que denomino observação abstrativa. Faz, na

imaginação, uma espécie de diagrama mínimo, um esboço sumário,

considera quais modificações o hipotético estado de coisas exigiria que

fossem efetuadas nesse quadro e a seguir examina-o, isto é, observa o

que imaginou, a fim de saber se o mesmo desejo ardente pode ali ser

discernido. Por tal processo, que no fundo se assemelha muito ao

raciocínio matemático, podemos chegar a conclusões sobre o que seria

verdadeiro a respeito dos signos em todos os casos, conquanto que fosse

científica a inteligência que deles se serviu.286

284

PEIRCE, 2008, p. 45. 285

Ibidem, p 45. (itálicos meus). 286

PEIRCE, 2008, p. 45. (itálicos do autor).

103

Em outras palavras, trata-se de olhar para o mundo e ver como se comportam os

signos e descrevê-los, tomando por base a forma como aparecem na experiência e

efetuar experimentos hipotético-abstrativos na imaginação, para, a partir daí, chegar-se

a definições que seriam válidas, mas não necessárias, acerca de todos os possíveis

signos utilizados por uma mente científica.287

Obviamente, a próxima pergunta que praticamente se coloca por si mesma é:

afinal o que é um signo? No entanto, antes de respondermos a essa pergunta,

ressaltemos um último aspecto sobre a semiótica peirciana, a saber, a ampla gama de

significação que ela pretende, enquanto ciência positiva, abarcar. A semiótica, tal qual a

entendeu Peirce, não se reduz somente a observação, descoberta e descrição da

linguagem verbal, mas também de toda e qualquer forma de linguagem, desde a mais

primitiva até a mais complexa, de forma a ser aplicável inclusive a processos naturais

que de uma forma ou de outra geram algo da natureza da significação.288

Assim, pode-

se dizer que a semiótica é a ciência geral de todas as linguagens possíveis.289

O seu

campo é o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno que produza

significação e sentido. Pretendendo tornar claro este sentido amplo de se compreender a

semiótica, Peirce, num outro momento, a definiu do seguinte modo: “Semiótica é a

doutrina da natureza essencial e variedades de semiose possível.”290

O que é semiose? Segundo Peirce, semiose é:

[...] a ação, ou influência, que é, ou envolve, a cooperação entre três

elementos, a saber, o signo, seu objeto e seu interpretante; está

influência tri-relativa, não sendo em nenhum sentido, resolvível em

ação entre pares. Shmeiwsij, em grego do período romano, próximo ao

tempo de Cícero, se eu me recordo corretamente, significava quase que

287

Ora, como este também é o escopo da lógica, Peirce pôde dizer: “Em seu sentido geral, a lógica é,

como acredito ter mostrado, apenas outro nome para semiótica.” (ibidem, p. 45) Assim, semiótica e lógica

são identificadas no interior da arquitetura filosófica peirciana. Peirce não via a lógica como reduzida à

silogística ou à lógica meramente dedutiva. Tendo contribuído de forma abundante e original no

desenvolvimento da lógica modal, lógica dos relativos, lógica matemática etc. é com esta lógica em

sentido amplo que a semiótica é identificada. 288

Tal como podemos observar no mundo animal, por exemplo, na comunicação através de sons e gestos.

João Queiros oferece no capítulo 5 de seu livro, „A semiose segundo C. S. Peirce‟, uma brilhante análise

dos processos semióticos de vocalização em macacos-verdes. Conferir QUEIROZ, 2004, cap. 5. 289

Conferir SANTAELLA, 2004. Ver também a definição de Winfried Nöth: “a ciência dos signos e

dos processos significativos (semiose) na natureza e na cultura.” NÖTH, 2003, p. 17. Nöth

ressalva, logo em seguida, que nem todas as escolas aceitam essa definição mais ampla, preferindo pensar

a ciência dos signos como aplicável somente à linguagem humana convencional. 290

CP 5.488.

104

qualquer tipo de signo; e a minha definição confere a qualquer coisa que

assim aja o título de “signo”.

Podemos concluir duas coisas a partir desta definição de semiose. A primeira

conclusão proporciona uma primeira resposta à pergunta “O que é afinal um signo?”, a

saber: Signo, em sentido amplo, é o mesmo que semiose. A segunda conclusão é que a

semiose ou Signo em sentido amplo envolve uma relação irredutivelmente triádica entre

três elementos, chamados de correlatos.291

Estes três correlatos são o signo, em seu

sentido estreito292

, o objeto e o interpretante. Sintetizando, temos outra definição

peirciana:

Um Signo é um Cognoscível que, por um lado, é determinado (i.e.,

especializado, bestimmt) por algo que não ele mesmo, denominado de

seu Objeto, enquanto, por outro lado, determina alguma Mente concreta

ou potencial, determinação esta que denomino de Interpretante criado

pelo Signo, de tal forma que essa Mente Interpretante é assim

determinada mediatamente pelo Objeto.293

O Signo em seu sentido amplo é uma relação triádica, relacional e cognoscível.

Esta relação triádica ocorre entre o signo em seu sentido estreito, que é um primeiro, o

objeto, que é um segundo e o interpretante, que é um terceiro. Certamente o que temos

aqui é uma aplicação das três categorias ao processo de classificação semiótica. Ou seja,

as descrições e divisões tricotômicas que ocorrem no interior da semiótica peirciana são

regradas pelas três categorias fenomenológicas e reais tal qual explicamos nos

respectivos capítulos.294

291

Um Signo, neste sentido amplo, envolve necessariamente uma relação entre três correlatos. No

entanto, Peirce também falou sobre signos que não chegam a exibir essa relação completamente triádica,

chamando-os de signos degenerados. Não vamos abordar aqui esses tipos de signos. Queira o leitor

recorrer, por exemplo, à PEIRCE, 2008, p. 58. 292

Peirce utiliza o termo “signo” em dois sentidos, um amplo e outro mais estreito. No sentido amplo,

signo está identificado com a semiose e, portanto, se refere a uma relação genuinamente triádica. No

sentido estreito, signo equivale ao primeiro correlato da relação. Como normalmente o sentido em que

Peirce utiliza o termo fica claro, não optamos por utilizar nenhum tipo de diferenciador. 293

PEIRCE 2008, p. 160. 294

Os capítulos 2.1 e 2.3.

105

6.2 O signo, o objeto e o interpretante

Cabe agora tratarmos, em seus aspectos essências, das funções desempenhadas

por cada correlato e suas relações de determinação.

O signo ou representamen é o primeiro correlato da relação triádica que produz

a semiose. Assim:

Um signo ou representamen, é algo que, sob um certo aspecto ou

medida, está para alguém em lugar de algo. Dirige-se a alguém, isto é,

cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo

mais desenvolvido. Este signo que ele cria, chamo de o interpretante do

primeiro signo. O signo está no lugar de algo, seu objeto. Está no lugar

desse objeto não em todos os seus aspectos, mas apenas com referência

a uma espécie de idéia, que às vezes chamei de o fundamento do

representamen.295

Em seu sentido estreito, o signo ou representamen é uma espécie de substituto

de algo. Ou seja, está sob um certo modo no lugar de algo outro e, esse estar no lugar de

algo outro tem um efeito de algum tipo para uma mente qualquer de acordo com o

modo com o qual este signo se refere ao objeto. O signo é uma representação, por isso

recebe também o nome de representamen. Ele existe para produzir um efeito através da

sua função na relação triádica. O signo tem função mediadora entre o objeto e o

interpretante. Ele está no lugar do objeto, e esse é o sentido exato de substituir, para

uma mente qualquer que o interprete como tal. Dito de outro modo:

“Minha definição de representamen é a seguinte: um representamen é o

sujeito de uma relação triádica de um segundo, chamado de seu Objeto,

para um terceiro, chamado de seu Interpretante, essa relação triádica

sendo tal que o representamen determina seu interpretante a ficar na

mesma relação triádica para com o mesmo objeto para algum

interpretante.”296

295

CP 2.228. 296

CP 1.541.

106

O signo possui três referências: primeiro, é signo sob algum aspecto ou

qualidade que o liga ao seu objeto; segundo, é signo para algum objeto com o qual

possui algum tipo de ligação em um pensamento; terceiro, é signo para algum

pensamento que o interpreta como tal. Referência ao fundamento, referência ao objeto e

referência ao interpretante. Em termos categoriais, o signo possui aspectos de

primeiridade (fundamento), segundidade (objeto) e terceiridade (interpretante).297

As

tricotomias de signos surgirão conforme cada uma destas referências e suas variações se

tornarem o foco pelo qual se considera um signo.

O objeto é o segundo correlato do processo de semiose. Tomado abstratamente,

ele é aquilo que é substituído pelo signo no processo de significação. O objeto é algo

diverso do signo. É um outro que não o signo e determina o signo. Cabe lembrar aqui

que „objeto‟ pode significar desde uma coisa material presente no mundo perceptível até

entidades mentais de tipo complexo, tais como os imaginários ou os inimagináveis num

certo sentido.298

Assim, qualquer coisa pode ser o objeto em um processo de semiose,

desde um particular até uma classe geral de coisas denotadas por um conceito e até

mesmo uma lei, na medida mesma em que esteja numa relação triádica entre o signo e o

interpretante.

Peirce distinguiu dois tipos de objetos: o objeto imediato e o objeto dinâmico.

Deve-se notar que não se trata de dois objetos diferentes, mas sim de dois aspectos de

um e mesmo objeto. O objeto imediato é o objeto tal qual representado no processo de

semiose, ou seja, numa relação de interpretação. Portanto, trata-se de um objeto inerente

ao processo de semiose. O objeto dinâmico, por outro lado, é o objeto real,

independente da semiose. Nas palavras de Peirce:

Quanto ao Objeto, pode ser o Objeto enquanto conhecido pelo Signo, e,

portanto uma Idéia, ou pode ser o Objeto tal como é,

independentemente de qualquer aspecto particular seu, o Objeto em

relações tais como seria mostrado por um estudo definitivo e ilimitado.

Ao primeiro destes denomino Objeto Imediato, ao último, Objeto

Dinâmico. Pois o último é o objeto que a ciência da Dinâmica (aquilo

que atualmente se chamaria de ciência „Objetiva‟) pode investigar.299

297

O Signo em sentido amplo, em termos categoriais, está associado à terceiridade. 298

PEIRCE, 2008, p.46. 299

PEIRCE, 2008, p. 162.

107

O objeto dinâmico está, portanto, fora do processo de semiose, e, em última

instância, ele é o objeto a que nossos pensamentos devem se conformar, ele é o objeto

real. Outro aspecto do objeto que é importante ressaltar é que o objeto nunca estará

completamente representado pelo signo. O signo só pode representar o objeto segundo

determinados aspectos. Esta é a versão semiótica do falibilismo.

O Interpretante constitui o terceiro correlato do processo de semiose e, tomado

abstratamente, consiste no seu resultado significante. Em um de seus escritos de

juventude (1866), Peirce o definiu como “uma representação mediática que representa o

relato (signo) como sendo uma representação do mesmo correlato (o objeto) que a

representação mediática ela mesma representa [...] cumpre a função de um intérprete

que diz que um estrangeiro diz a mesma coisa que ele mesmo diz”300

Note-se que esta

função pode ocorrer em qualquer processo significativo e não deve ser tomada como

sendo de caráter meramente subjetivo. Assim, não se deve confundir interpretante com

o intérprete de qualquer relação triádica. “O interpretante é uma propriedade objetiva

que o signo possui em si mesmo, haja um ato interpretativo particular que a atualize ou

não”301

. Em outros termos, o interpretante pode ser lido como o efeito virtual ou atual

da semiose.302

O interpretante é outro signo, igual ou mais evoluído que o primeiro

correlato. Isto significa que o interpretante se torna o primeiro correlato de outro

processo de semiose, acerca do mesmo objeto, e assim sucessivamente. Este aspecto do

interpretante instaura o que se chama de semiose ilimitada. Ou seja, a sequência da

semiose é sempre possível, dado que não se pode falar em „primeiro‟ nem em „último‟

signo num processo de semiose. Apenas pode haver a interrupção, mas nunca uma

finalização completa e absoluta da série de interpretantes sucessivos.

Segundo Peirce, há três tipos principais de interpretantes303

de acordo com três

tipos de efeitos que podem resultar de um processo de semiose. O primeiro é o

interpretante imediato, que pode ser descrito como as qualidades de impressões

potenciais que a semiose produzirá, ou que se espera que produzirá sem que nenhuma

espécie de reação ou reflexão se lhe acrescente para que produza tal efeito. Em outros

300

W 1.323 (itálicos meus). 301

SANTAELLA, 2004a, p. 63. 302

Vimos com o Pragmatismo que esse efeito tem o poder de afetar a conduta, gerando hábitos e

mudanças de hábitos. 303

Além desta divisão dos interpretantes em imediato, dinâmico e final, Peirce efetuou outra divisão, a

saber, interpretantes emocional, energético e lógico, associados a sentimentos, ações e mudanças de

hábitos, respectivamente. Ver CP 5.475. Essa divisão não será considerada neste trabalho.

108

termos, o interpretante imediato é a interpretabilidade peculiar de uma semiose

qualquer, sem que seja considerada uma mente que efetivamente venha a ser a instância

do efeito produzido. O segundo tipo de interpretante é o interpretante dinâmico, que

designa o efeito efetivamente produzido pela semiose numa mente qualquer. Deve ser

notado que o efeito da semiose designado pelo interpretante dinâmico se refere a um

efeito particular efetivo. Ou seja, se refere àquilo que é experimentado efetivamente

num ato de interpretação e é diferente em cada ato, do efeito que qualquer outro ato

poderia produzir em outra ou na mesma mente. Por fim, o terceiro e último tipo de

interpretante é designado como interpretante final, que consiste no efeito geral ao qual

um processo de semiose finalmente chegaria se levado longe o suficiente para fazer

surgir uma interpretação verdadeira. Em suma, o interpretante imediato é uma

possibilidade formal do signo; o interpretante dinâmico é uma atualização do

interpretante imediato em um ato particular produzido pelo signo em uma mente

particular; o interpretante final é o interpretante ideal, ao qual a semiose chegaria sob

condições favoráveis carregadas suficientemente longe.

Mediante a apresentação dos três correlatos, parece ter-se evidenciado que o

signo, o objeto e o interpretante possuem uma relação de determinação entre si. Assim,

o objeto determina o signo (relativamente ao interpretante); o signo determina o

interpretante (relativamente ao objeto) e o objeto determina o interpretante

(relativamente ao signo). A determinação do signo pelo objeto é essencial para o

realismo peirciano. Por outro lado, os signos possuem o poder de criar significado ao

determinar seus interpretantes.304

6.3 As três principais tricotomias de Signos.

Consideramos acima os correlatos do processo de semiose da forma a mais

abstrata possível. O objetivo foi apenas introduzir as suas funções no processo de

semiose de uma forma geral. A semiose genuína, no entanto, se encontra na relação

triádica irredutível, onde um signo, como primeiro correlato, traz um objeto, segundo

correlato, para uma relação com um interpretante, terceiro correlato. Agora,

304

Esta característica será essencial para, mais abaixo, se entender a natureza dos símbolos.

109

consideraremos a relação entre os correlatos do processo de semiose sob três aspectos

bem definidos, a saber:

1) O signo considerado em si mesmo.

2) O signo considerado em relação ao seu objeto dinâmico.

3) O signo em relação ao seu interpretante final.

Estes três aspectos, divididos de acordo com as variações próprias das três

categorias que ocorrem em seu interior, geram as três principais tricotomias ou nove

modalidades de signos com as quais nos ocuparemos neste trabalho e que passamos a

apresentar sucintamente:305

Considerados em si mesmos os signos podem apresentar o caráter de serem:

a) Meras qualidades

b) Existências concretas

c) Leis gerais

Considerados em relação aos seus objetos dinâmicos os signos podem estar com eles

conectados:

a) Em virtude de alguma similaridade

305

Uma divisão dos signos em tricotomias é uma apreensão abstrativa que toma os signos isoladamente

para melhor descrevê-los. A descrição do modo de ser de um signo depende, assim, do ponto de

referência que se toma. Isto quer dizer que, normalmente, os signos que podemos observar

fenomenologicamente possuem características de todas as classes de signos. Isto também quer dizer que

um signo não pertence exclusivamente a uma classe e mais ainda, um fenômeno não pertence

exclusivamente a um tipo de signo. Levaremos em consideração neste trabalho apenas aquelas que

consideramos serem as três principais tricotomias e que constituem o ferramental mínimo para a futura

reflexão acerca da imortalidade da alma. No entanto, além destes três aspectos sob os quais o signo pode

ser considerado, existem outros sete aspectos, oriundos do fato de os signos possuírem, conforme

apontado acima, dois objetos (dinâmico e imediato) e três interpretantes (imediato, dinâmico e final).

Assim, dez é o total de aspectos principais sob os quais um signo pode ser considerado. A lista completa

seria: 1) de acordo com o modo de apreensão do signo em si mesmo; 2) de acordo com o modo de

apresentação do objeto imediato; 3) de acordo com o modo de ser do objeto dinâmico; 4) de acordo com

a relação do signo com seu objeto dinâmico; 5) de acordo com o modo de apresentação do interpretante

imediato; 6) de acordo com o modo de ser do interpretante dinâmico; 7) de acordo com a relação do signo

com o interpretante dinâmico; 8) de acordo com a natureza do interpretante final; 9) de acordo com a

relação do signo com o interpretante final e 10) de acordo com a relação triádica do signo com seu

objeto. O original pode ser conferido em CP 8.344, onde a diferença é que Peirce chamou o interpretante

final, neste texto, pelo nome de interpretante normal. (Destacamos as três tricotomias com as quais nos

ocuparemos neste trabalho). Em cada um destes dez aspectos ocorrem as variações oriundas das três

categorias, gerando assim uma totalidade de 30 modalidades de semiose. Combinando as trinta

modalidades entre si, a partir de determinações possíveis entre os correlatos de cada uma, Peirce chegará

a 66 classes de signos. Peirce não trabalhou sobre todas essas classes ao longo de sua obra. Para o leitor

que se interessar em aprofundar um pouco mais a classificação sistemática dos signos em Peirce,

recomendamos: SANTAELLA 2004a; SILVEIRA 2007.

110

b) Em virtude de uma conexão existencial

c) Em virtude de uma lei ou regra geral

Considerados em relação aos seus interpretantes podem ser representados como sendo

signos de:

a) Possibilidades

b) Fatos

c) Leis

6.3.1 Qualissignos, sinsignos e legissignos.

A primeira tricotomia a ser considerada é a que considera os signos em si

mesmos, ou seja, de acordo com o caráter intrínseco ou fundamento que cada signo

possui, para funcionar como tal. De acordo com essa tricotomia, os signos são divididos

em qualissignos, sinsignos e legissignos.

Peirce define Qualissigno da seguinte forma: “Um Qualissigno é uma qualidade

que é um signo. Não pode realmente atuar como um signo até que se corporifique; mas

está corporificação nada tem a ver com seu caráter como signo.”306

O qualissigno está

associado à primeiridade. Qualissignos comunicam qualidades. Uma qualidade tomada

em si é simplesmente o que é, ou seja, é um primeiro sem relação com nada mais.

Porém, se essa qualidade se tornar objeto de uma comparação ou estiver corporificada

em algum existente concreto, e, assim, funcionar como um signo, ou seja, como um

primeiro correlato de uma relação triádica, essa qualidade terá a potencialidade de gerar

semiose. Em outras palavras, qualquer qualidade pode potencialmente representar.

Deve-se notar, por outro lado, que o caráter potencial que uma qualidade tem para

funcionar como um signo é totalmente independente de qualquer corporificação em um

existente concreto. Um exemplo: tome as rosas de um buquê, abstraindo o buquê e a

individualidade das rosas e considerando apenas o perfume das rosas funcionado como

signo de alguma coisa.

306

PEIRCE 2008, p.52.

111

Os qualissignos, sendo potencialidades para representar, estarão envolvidos em

toda semiose, conforme observa Silveira na seguinte passagem:

Não se pode deixar de notar, desde o início, que toda semiose implicará

direta ou indiretamente qualissignos. Os qualissignos conferem toda a

potencialidade aos signos [...] Toda complexificação, ulterior no

processo semiótico, nada mais será do que uma restrição à

espontaneidade livre da potencialidade, consistindo em escolhas feitas

dentre tudo o que as qualidades puderem representar.307

O Sinsigno é definido por Peirce do seguinte modo: “Um Sinsigno é uma coisa

ou evento existente e real que é um signo.”308

Um sinsigno funciona como signo na

medida direta em que existe. Um sinsigno está assim associado à segundidade, trata-se

então de um signo que se constitui como um individual, um particular. Um sinsigno só

pode funcionar como um signo através das qualidades que ele incorpora

individualmente. Dessa forma, um sinsigno envolve um ou vários qualissignos. Mas,

note-se, um sinsigno funciona como signo na medida em que as qualidades que ele

necessariamente possui o determinam como um existente com exatamente tais

qualidades, essa ocorrência individual e não aquela. As qualidades incorporadas em um

individual já não são infinitamente possíveis e livres, mas sim determinadas e, se este

individual determinado funcionar como um signo tratar-se-á de um sinsigno. Começa

aqui, conforme aponta Silveira, o processo de restrição das potencialidades

absolutamente livres que constituem os qualissignos.309

Um exemplo: voltemos ao

nosso buquê, e agora sim consideremos as rosas como existentes individuais,

incorporando certas qualidades.

O Legissigno, por sua vez, tem uma natureza mais complexa e é definido por

Peirce da seguinte forma:

Um Legissigno é uma lei que é um signo. Normalmente, esta lei é

estabelecida pelos homens. Todo signo convencional é um legissigno

(porém a recíproca não é verdadeira). Não é um objeto singular, porém

um tipo geral que, têm-se concordado, será significante. Todo

307

SILVEIRA, 2007, p. 67. 308

PEIRCE, 2008, p. 52. 309

Conferir SILVEIRA, 2007, p. 68.

112

legissigno significa através de um caso de sua aplicação, que pode ser

denominada Réplica.310

O legissigno funciona como signo na medida em que representa uma

regularidade, uma ordem, uma generalidade necessária, algo da natureza de uma lei ou

literalmente uma lei. Está associado, pois, à terceiridade. Peirce diz que normalmente as

leis representadas pelos legissignos são criadas pelos homens, tais como, por exemplo,

as convenções gramaticais. No entanto, os legissignos também se aplicam a leis naturais

que funcionam como signos.311

Um legissigno só pode funcionar como signo através de um caso de sua

aplicação, ou seja, através de um sinsigno, que Peirce chamou de réplica. Um sinsigno,

então, pode ser uma réplica de um legissigno. Quando um sinsigno deve ser considerado

uma réplica de um legissigno? Respondemos: quando for reconhecível que esses

sinsignos guardam permanência de determinadas qualidades. Assim torna-se nítido que,

por implicação, legissignos também envolvem qualissignos corporificados nos

sinsignos. Por outro lado, também se torna nítido que uma lei é expressão da

continuidade. Para dar um exemplo de legissigno voltemos ainda mais uma vez ao

nosso velho buquê de rosas: chamá-lo de buquê de rosas é nomear certos predicados que

permanecem mais ou menos em todos os buquês de rosas que se podem encontrar;

assim, a expressão „buquê de rosas‟ é um legissigno.

6.3.2 Ícones, Índices e Símbolos

A segunda tricotomia a ser considerada é a que considera os signos em relação

ao seu objeto dinâmico. Recordemos que o objeto dinâmico é o objeto real, que se

encontra fora da semiose e que determina o signo através de seus aspectos, cuja

revelação parcial se efetuará mediante a ação do signo para um interpretante, ou terceiro

correlato da tríade, que é assim determinado mediatamente pelo objeto dinâmico que

busca interpretar. Segundo esta tricotomia, os signos podem ser divididos em ícones,

310

PEIRCE 2008, p.52. 311

E este, conforme Silveira, é um dos pontos chave para a explicitação semiótica do realismo peirciano:

“Afirma-se que há leis no universo que não decorrem de convenções, ou seja, que a classe dos legissignos

não é constituída tão-somente dos signos convencionais. Subjaz a essa afirmação o realismo peirciano,

para o qual a lei e o domínio dos universais são reais, não se limitando as formas convencionais de

constituição de um discurso, cujo objeto será sempre o particular.” SILVEIRA, 2007, p. 71.

113

índices e símbolos, conforme as categorias de primeiridade, segundidade e terceiridade

respectivamente.

Peirce define Ícone da seguinte maneira:

Um Ícone é um signo que se refere ao Objeto que denota apenas em

virtude de seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui

quer um tal Objeto realmente exista ou não. É certo que, a menos que

realmente exista um tal Objeto, o Ícone não atua como signo, o que

nada tem a ver com seu caráter como signo. Qualquer coisa, seja uma

qualidade, um existente individual ou uma lei, é Ícone de qualquer

coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como

seu signo.312

O ícone, associado à primeiridade, está relacionado ao seu objeto dinâmico em

virtude de uma mera semelhança. Em outras palavras, um ícone é semelhante ao objeto

dinâmico que representa. Para que o ícone funcione como um signo, Peirce ressalva, é

preciso haver um objeto que incorpore qualidades com as quais ele possa se relacionar

comparativamente devido ao fato de possuir as mesmas qualidades que o objeto

incorpora e, assim, poder representá-lo como um signo. No entanto, a incorporação de

qualidades num objeto individual nada tem a ver com o caráter significativo do ícone.

Um ícone é um signo de possibilidades. Um exemplo de um ícone é um retrato de uma

pessoa.

O segundo signo desta segunda tricotomia é o Índice, que é assim definido:

Um Índice é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de

ser realmente afetado por esse Objeto [...] Na medida em que o Índice é

afetado pelo Objeto, tem ele necessariamente alguma qualidade em

comum com o Objeto, e é com respeito a estas qualidades que ele se

refere ao Objeto. Portanto o Índice envolve uma espécie de Ícone, um

Ícone de tipo especial; e não é a mera semelhança com seu Objeto,

mesmo que sob estes aspectos que o torna um signo, mas sim sua

efetiva modificação pelo Objeto.313

312

PEIRCE, 2008, p. 52. 313

PEIRCE, 2008, p. 52.

114

A relação do índice para com seu objeto dinâmico é caracterizada por uma real

afetação entre signo e objeto. Em outros termos, a relação se dá por uma conexão dual

e, portanto, trata-se de um signo associado à segundidade. Assim, este signo pode

indicar o objeto dinâmico exatamente por que é por ele afetado de alguma maneira e de

acordo com certas qualidades que ambos têm em comum. Dessa forma, os índices

envolvem ícones, mas não é a semelhança corporificada nos dois existentes, signo e

objeto, que é responsável pela função significativa do índice, mas sim o fato de o índice

ter uma conexão existencial com o objeto dinâmico, essa conexão existencial sendo a

afetação. Outra característica fundamental dos índices apontada por Peirce é a de que

somente através deles é que podemos distinguir mundo real de mundo fictício: “O

mundo real não pode ser distinguido do mundo fictício por nenhuma descrição. Nada,

exceto um signo indicial pode dar cabo de tal tarefa.”314

Um exemplo sugestivo de

índice: a foto de uma pessoa morta.315

O terceiro tipo de signo desta segunda tricotomia é o Símbolo. Trata-se do tipo

de signo que mais nos concerne neste trabalho.316

Assim, introduziremos, neste

momento, o símbolo de forma geral. Um pouco mais abaixo, logo após termos

caracterizado a terceira tricotomia de signos, voltaremos a ele, para considerá-lo sob

outros aspectos extremamente importantes.

Peirce define o símbolo da seguinte maneira:

Um Símbolo é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude

de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais que opera no

sentido de fazer com que o Símbolo seja interpretado como se referindo

àquele Objeto. Assim, é em si mesmo, uma lei ou tipo geral, ou seja, é

um Legissigno. Como tal, atua através de uma Réplica. Não apenas é

ele um geral, mas também o Objeto ao qual se refere é de natureza

314

CP 2.237. 315

Os índices exercerão papel muito importante para uma reflexão heurística sobre a imortalidade do

homem. Até onde pudemos mapear Peirce não associou índices à sua reflexão sobre a imortalidade da

alma, mas apenas os símbolos. No entanto, foi apontado por Cashell, em um excelente artigo chamado Ex

Post Facto: Peirce and the Living Signs of the Dead, o papel dos índices como indicadores da presença de

uma pessoa morta no mundo. Cashell, no entanto, também não associa suas reflexões ao tema da

imortalidade. Consideramos uma possível associação entre índices e a imortalidade da alma humana

como uma sugestiva linha de pensamento, que pretendemos desenvolver futuramente. 316

Veremos um pouco mais abaixo que o símbolo está diretamente ligado ao tema da imortalidade do

homem segundo Peirce. É por isso que dizemos ser ele o tipo de signo que mais nos concerne aqui. Isto,

porém, não quer dizer que os outros tipos de signos não tenham importância para se refletir sobre o tema.

Ao contrário, ícone e índices também exercerão papel importante no que diz respeito à continuidade da

alma humana após a morte, o que esperamos poder mostrar em pesquisas futuras.

115

geral. Ora, o que é geral tem seu ser nos casos que determina. Portanto,

deve haver casos existentes daquilo que o símbolo denota, embora

devamos aqui considerar „existente‟ como existente no universo

possivelmente imaginário ao qual o símbolo se refere. Através da

associação ou de uma outra lei, o Símbolo será diretamente afetado por

esses casos, e com isso o Símbolo envolverá uma espécie de Índice,

ainda que um Índice de tipo especial. No entanto, não é de modo algum

verdadeiro que o leve efeito desses casos sobre o Símbolo explica o

caráter significante do Símbolo.317

O símbolo consiste num signo que, determinado pelo seu objeto somente no

sentido de que assim será interpretado, por um lado determina seu interpretante a

interpretá-lo exatamente como um signo, ou seja, como um representamen de natureza

geral ou lei e, por outro lado e ao mesmo tempo, determina este mesmo interpretante a

interpretar o objeto ao qual se refere como sendo, também ele, um fenômeno de

natureza geral ou lei. O símbolo, assim, é um signo essencialmente triádico.

Dizer que o símbolo é um signo essencialmente triádico equivale a dizer que não

há símbolo que não seja uma relação triádica entre representamen, objeto e

interpretante. Significa: o símbolo só funciona como signo ao representar o objeto para

o seu interpretante. Sua razão de ser signo está no interpretante que ele determina.318

Por

outro lado, pode-se dizer também, que a razão de ser do interpretante de um símbolo é

veicular informação sobre o objeto dinâmico representado pelo símbolo mediante a

regra geral que está contida no próprio símbolo. Por sua vez, o objeto geral, cujos

predicados permanentes estão por força de alguma lei ou hábito conectados ao símbolo,

que assim pode representá-lo para o seu interpretante, também se constitui na razão

imediata de ser do símbolo e na razão mediata de ser do interpretante. Ou seja, a

informação veiculada pelo interpretante através da mediação do símbolo só é possível

por que o objeto assim o determinou. O símbolo é, então, um mediador.

Signo do pensamento e de objetos da natureza do pensamento, o símbolo carrega

a propriedade de representar aquilo que no objeto dinâmico de qualquer natureza possui

permanência e, portanto, pode ser explicitado na forma de um conceito ou regra geral.

Representa, portanto, aquilo que se encontra presente no mundo sob uma forma de

terceiridade. Considerado em si mesmo, o Símbolo só pode ser uma lei, ou seja, um tipo

317

PEIRCE, 2008, p. 52. 318

Conferir SANTAELLA, 2004a, p. 132.

116

geral. Desta forma todo símbolo é também um legissigno.319

Isto quer dizer também,

que um símbolo só pode atuar como tal por meio de réplicas (sinsignos). Os Sinsignos

envolvidos no símbolo são índices de tipo especial e como tais envolvem também

ícones de tipo especial (que considerados em si mesmos são qualissignos). „Tipo

especial‟ quer dizer aqui: que age para aplicar a regra geral da qual o símbolo é portador

num caso particular. Em outras palavras, um símbolo precisa estar vinculado à

experiência fenomênica de qualquer tipo, seja ela imaginária ou fatual. Isto implica que

o ser concreto dos fenômenos gerais só se consuma em alguma forma de particular,

embora não seja nunca esgotada por esta. Na verdade, como vimos, a generalidade é

terceiridade real e consiste na relação entre os particulares. Quando algo deste gênero

atua como um signo relacionado com o objeto dinâmico que pretende representar, este

signo só pode ser um símbolo.

As leis que são representadas pelos símbolos podem ser convencionais ou

naturais. No caso das leis convencionais, “o símbolo está conectado ao seu objeto por

força da idéia da mente que usa o símbolo, sem a qual a conexão não existiria”320

. Deve-

se, no entanto, tomar o cuidado de não interpretá-las como absolutamente arbitrárias. A

ordem que motiva a criação de uma lei convencional deve se encontrar de alguma forma

presente no mundo fenomênico imaginário ou fatual e revelado parcialmente pelo

objeto dinâmico. Aliás, essa é a condição da inteligibilidade das leis. Por outro lado, no

caso de o símbolo ser uma lei natural, será uma lei natural que funciona como signo de

um objeto dinâmico que não é outra coisa senão um hábito da natureza. Este ponto,

embora não caiba aprofundamento aqui, é uma demonstração das proporções cósmicas

da semiótica peirciana, que considera um erro restringir a classe de símbolos aos signos

convencionais.321

Exemplos de símbolos convencionais? Deixemos Peirce falar:

Qualquer palavra comum, como „dar‟, „pássaro‟, „casamento‟, é

exemplo de símbolo. O símbolo é aplicável a tudo o que possa

concretizar a idéia ligada à palavra; em si mesmo não identifica essas

coisas. Não nos mostra um pássaro, nem realiza diante dos nossos

319

Conferir SANTAELLA, 2004 a, p. 135. Por outro lado, nem todo legissigno é simbólico: legissignos

podem ser icônicos ou indiciais. 320

PEIRCE 2008, p. 73. 321

Para um aprofundamento acerca deste assunto, sugerimos consultar NÖTH, 2010.

117

olhos, uma doação ou um casamento, mas supõe que somos capazes de

imaginar essas coisas, e a elas associar a palavra.322

Exemplos de símbolos naturais? Veja-se o comentário de Nöth:

Todos os signos pelos quais os animais se comunicam e que não são

ícones ou índices são símbolos naturais. É verdade que os signos na

zoosemiose são muito mais do tipo indicial e icônico do que no caso

dos humanos, mas entre os signos dos grandes animais, certamente se

encontram signos que dependem de aprendizado, que é uma forma de

aquisição de hábito, e todo animal comunica por hábitos que são

disposições naturais.323

6.3.3 Rema, Dicissigno e Argumento

A terceira e última tricotomia que abordaremos aqui é a que considera os signos

em relação ao seu interpretante final. Esta relação é uma relação onde os signos

determinam os seus interpretantes finais segundo três modos, regrados pelas três

categorias. Recordemos: o interpretante é o terceiro correlato de uma relação triádica,

sendo o primeiro correlato, o signo, e o segundo correlato, o objeto. O interpretante

corresponde ao efeito virtual ou atual de um signo e cumpre a função de um intérprete.

Em última instância, consiste na interpretação potencial ou efetiva de um signo. O

Interpretante final, por sua vez, é um tipo de interpretante que consiste no efeito geral ao

qual um processo de semiose finalmente chegaria se levado longe o suficiente para fazer

surgir uma interpretação verdadeira. Esta terceira tricotomia que estamos considerando

pretende responder à pergunta “como o interpretante final interpreta a ação do signo

sobre si?324

Segundo esta terceira tricotomia, os signos podem ser divididos em Rema,

Dicissigno e Argumento.

Para Peirce, um Rema “é um signo que, para seu interpretante, é um signo de

possibilidade qualitativa, ou seja, é entendido como representando esta ou aquela

322

PEIRCE, 2008, p. 73. 323

NÖTH, 2010, p. 90. Como exemplo experimental ilustrativo deste comentário de Nöth torna-se

indispensável a consulta ao já citado capítulo 5 do livro de João Queiroz “Substratos Neurobiológicos da

Semiose”. QUEIROZ, 2004. 324

Conferir SANTAELLA, 2004a, p. 144.

118

espécie de objeto possível. Todo rema propiciará, talvez, alguma informação, mas não é

interpretado neste sentido.”325

Um rema, assim, é um signo que é interpretado por seu

interpretante final como representando uma possibilidade ou qualidade ou primeiridade,

que pode estar ou não incorporada em um existente ou existentes particulares. O rema é

um signo de ampla extensão. Ou seja, qualquer coisa pode ser interpretada como sendo

uma possibilidade qualitativa. Assim, também, todos os signos podem, na sua relação

com o interpretante final, virem a funcionar como um rema. Um exemplo de rema é

uma cor, tal como o verde, interpretada como sendo a presença de um signo

(qualissigno) que poderia estar incorporado em algum objeto.

Um Dicissigno é definido por Peirce como “um signo que, para seu

interpretante, é um signo de existência real.”326

O dicissigno, dessa forma, é interpretado

pelo seu interpretante final como proporcionando alguma informação acerca de um

existente. Um dicissigno veicula informação sobre um fenômeno determinado; algo é

determinado por ter incorporado certas qualidades e não outras igualmente possíveis.

Assim, um dicissigno envolve um tipo de rema. Mas sua interpretabilidade como ligada

a um existente não é afetada pelas qualidades representadas pelos remas. Uma

característica importante do dicissigno é que sua interpretação no interpretante final será

passível de julgamento quanto a sua verdade ou falsidade. No entanto, as noções de

verdade ou falsidade são atribuídas aos dicissignos não em virtude de alguma lei ou

razão, mas simplesmente com relação ao fato que ele interpreta.327

A citação a seguir

deixa isto bem claro:

O teste mais prontamente característico mostrando se um signo é um

dicissigno ou não, é ser um dicissigno verdadeiro ou falso, mas não

fornece diretamente razões para ser assim. Isso mostra que um

dicissigno deve professar referir-se ou relacionar-se a algo como tendo

um ser real independentemente de sua representação enquanto tal, ainda

mais, que essa referência ou relação não deve se apresentar como

racional, mas deve aparecer como uma segundidade cega.328

325

PEIRCE 2008, p. 53. 326

PEIRCE 2008, p. 53. 327

Conferir SILVEIRA, 2007, p. 82 e SANTAELLA, 2004 a, p. 146. 328

Apud, SILVEIRA, 2007, p. 82.

119

Um dicissigno deve fornecer uma informação efetiva sobre o objeto dinâmico a

que se refere e não meramente potencial como faz um rema. Esta informação efetiva

oferecida pelo dicissigno é interpretada pelo seu interpretante final como a presença de

uma identidade entre o dicissigno e um índice genuíno do objeto dinâmico. Uma última

característica a ser apontada sobre o dicissigno é que ele possui a estrutura de uma

proposição. Ou seja, um dicissigno envolve a estrutura conexa sujeito-predicado, onde o

sujeito equivale ao índice (indica o objeto dinâmico/ sinsigno) e o predicado equivale ao

ícone (qualissigno) incorporado num existente. Sujeito e predicado devem ser

interpretados pelo interpretante final como estando conexos, pois, se forem tomados

separadamente, ambos serão remas. Assim, como exemplo de um dicissigno pode-se

pensar em qualquer proposição.

Por fim, o terceiro e último signo que compõe a terceira tricotomia é o

Argumento.329

Peirce diz: “Um Argumento é um Signo que, para seu Interpretante, é

Signo de lei.”330

O Argumento é, assim, interpretado pelo seu interpretante final como

sendo um signo de lei ou regra geral que, funcionando como signo, representa algo que

possui permanência e continuidade e, assim, também é um geral. Como exemplo de

argumentos pense-se em qualquer silogismo.

6.3.4 As dez classes de Signos

Por fim, Peirce extraiu das combinações possíveis entre estas três tricotomias

aquilo que ele chamou de dez classes de signos.331

Não efetuaremos a descrição

minuciosa332

destas dez classes, visto que isto nos levaria longe demais dos propósitos

deste capítulo. Apenas forneceremos a sua lista seguida de um exemplo dado pelo

próprio Peirce:

329

Peirce dividiu os argumentos em três tipos: abdutivos, dedutivos e indutivos. Associados,

respectivamente, à primeiridade, segundidade e terceiridade. A análise destes três tipos de argumentos

fugiria aos limites deste trabalho, queira o leitor consultar os já citados: IBRI, 2006; BACHA, 2002 e

DIPERT, 2004. 330

PEIRCE 2008, p. 53. 331

Estas dez classes de signos não devem ser confundidas com as dez formas de se considerar um signo

na relação entre os três correlatos da semiose (exposto na nota 305). 332

O leitor pode encontrar esta descrição minuciosa em PEIRCE 2008, p.55. De onde, aliás, retiramos as

informações que compõem a lista apresentada em seguida.

120

1 – Qualissigno icônico remático. Ex: uma sensação de vermelho.

2 – Sinsigno icônico remático. Ex: um diagrama individual.

3 – Sinsigno indicial remático. Ex: um grito espontâneo.

4 – Sinsigno indicial dicente. Ex: um cata-vento.

5 – Legissigno icônico remático. Ex: um diagrama, à parte sua individualidade fática.

6 – Legissigno indicial remático. Ex: um pronome demonstrativo.

7 – Legissigno indicial dicente. Ex: um pregão de mascate.

8 – Legissigno simbólico remático. Ex: um substantivo comum.

9 – Legissigno simbólico dicente. Ex: uma proposição.

10 – Legissigno simbólico ou Argumento. Ex: um silogismo.

6.4 A vida do Símbolo

É hora de, para encerrar este capítulo, retornarmos ao Símbolo. Já descrevemos

acima o que é um símbolo de forma geral, onde se fez perceber o seu caráter

essencialmente triádico. Pretendemos agora descrever em breves linhas alguns aspectos

do símbolo que estão diretamente ligados ao objetivo do nosso trabalho. Estes aspectos

dizem respeito a características bem peculiares do símbolo, que culminarão em uma

notória afirmação de Peirce, a saber, de que “o símbolo necessário e verdadeiro é

imortal.”333

O símbolo pode ser metaforicamente comparado a uma criatura viva: símbolos

nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Um símbolo nasce quando o seu potencial

de gerar um interpretante é associado a um objeto qualquer, com o qual comunga o

caráter de ser geral, por meio de uma convenção ou lei habitual (ou natural). Significa: o

que determina o símbolo é a lei ou hábito por ele representado. Uma vez que o símbolo

existe, seu propósito é gerar outros interpretantes que se referem à relação que ele

mantém para com o objeto que representa, levando este interpretante a manter uma

relação mediata para com esse mesmo objeto. O interpretante assim gerado pelo

símbolo é outro símbolo que carrega a sua mensagem. Assim, pode-se dizer também

que os símbolos possuem o poder de se reproduzir. Símbolos se reproduzem na medida

333

PEIRCE, 2008, p. 311.

121

em que determinam outros símbolos a representarem seus objetos na forma de um

interpretante.

A afirmação peirciana de que “os símbolos crescem”334

está diretamente ligada a

esta propriedade „reprodutiva‟ dos símbolos. Em que consiste e como ocorre o poder de

crescimento do símbolo? Peirce fornece uma pista para se refletir sobre esta „virtude‟ do

símbolo na seguinte passagem: “Um símbolo, uma vez existindo, espalha-se entre as

pessoas. No uso e na prática, seu significado cresce. Palavras como força, lei, riqueza,

casamento veiculam-nos significados bem distintos dos veiculados para nossos

antepassados bárbaros.”335

Um símbolo adquire informação e isto é o mesmo que dizer

que um símbolo pode aprender. Em outro texto Peirce afirma: “Quanto mais não

significa hoje a palavra eletricidade do que significava na época de Franklin? Quanto

mais não significa hoje o termo planeta do que no tempo de Hiparco?”336

Significa: os

símbolos eletricidade e planeta ganharam novas dimensões, perderam outras, se

associaram a outros símbolos com os quais não estavam associados, num fluxo contínuo

que certamente perdura até hoje e perdurará indefinidamente. Assim, ao afirmar que os

símbolos crescem, Peirce quis chamar a atenção para essa propriedade que os símbolos

possuem de poder mudar de significado, se associar a outros símbolos, voltar a

significar algo que se perdeu no tempo, somar novos significados aos que já possuía etc.

Os símbolos crescem em direção ao futuro: “um símbolo é uma lei ou regularidade do

futuro indefinido.”337

O propósito que atua na ação do símbolo, a saber, a potencialidade de gerar

outros símbolos como seus interpretantes e assim crescer em significado pertence ao

símbolo e não à mente que usa o símbolo. Em outras palavras, a potencialidade de gerar

interpretantes é uma característica autônoma do símbolo. Um símbolo cresce

independentemente de qualquer mente que use este símbolo. Uma mente ou conjunto de

mentes, é claro, podem “usar” um símbolo, mas isto não passa de um fato individual. O

símbolo, enquanto um geral, não é esgotado por nenhum fato ou conjunto de fatos

particulares. Ao contrário, quando mentes particulares utilizam um símbolo, essas

mentes estão sendo constrangidas pela regra geral que o símbolo representa. Pode-se

dizer, guardando as devidas reservas, que é o símbolo que usa o intérprete.

334

PEIRCE, 2008, p. 73. 335

Ibidem p. 73-74. 336

Ibidem, p. 307. 337

Ibidem, 71.

122

O símbolo, já o dissemos, representa aquilo que no mundo é dotado de

terceiridade. Isto é, representa as relações permanentes e ordenadas segundo uma regra,

lei ou hábito que governam casos individuais. Símbolos possuem ser real. O ser real do

símbolo consiste no fato de que os individuais existentes se conformarão à regra ou

hábito por ele representado. Por outro lado, o símbolo só possui existência quando está

incorporado em uma réplica. No entanto, o símbolo não pode ser reduzido a nenhuma

instância particular ou conjunto total dos particulares que o incorporam. O que equivale

a dizer que as incorporações particulares das leis representadas pelos símbolos não

esgotam a realidade do símbolo. É por isso que o crescimento não deve ser tomado

como uma característica isolada, mas sim determinante dos símbolos. O símbolo é um

continuum.

O propósito incorporado no símbolo também pode ser associado ao

Evolucionismo e Falibilismo peircianos. Ou seja, o símbolo pode ser tomado como uma

das instâncias pelas quais o crescimento da representação das leis ocorre impulsionado

pelo crescimento das próprias leis. Vimos que o universo, segundo Peirce, é um

universo em evolução.338

Ou seja, estamos em um universo em constante crescimento e

por isso mesmo trata-se de um universo que também erra.339

Decorre desta linha de

pensamento que nenhuma representação das leis pode possuir completude absoluta.340

Significa: não há símbolo que seja completo e de caráter final. Se, por um lado, todo

símbolo possui a tendência ao crescimento, por outro lado, nunca representará o seu

objeto se não parcialmente.

Desta mesma linha de pensamento decorre a explicação do por que também

pode ser afirmado que um símbolo pode morrer. Um símbolo morre quando deixa de se

reproduzir em interpretantes parcialmente verdadeiros. A morte do símbolo é a sua

falsidade como representação parcial de uma lei ou hábito, de onde decorre o seu

paulatino desaparecimento.341

Por outro lado, o ponto culminante destas características peculiares dos símbolos

é que estes podem, inclusive, virem a ser imortais:

338

Ver capítulo sobre a metafísica. 339

Conferir, IBRI, 1992, p. 51. 340

Trata-se da doutrina epistemológica do Falibilismo, conforme abordamos brevemente no

capítulo sobre metafísica e cujo aprofundamento pode ser encontrado em IBRI, 1992, cap. 3. 341

O que mostrará a falsidade de um símbolo é a experiência, ou seja, o objeto dinâmico. Um símbolo

que não tem aderência, ou seja, que não representa uma terceiridade real, tende ao desaparecimento.

123

O princípio de que a essência de um símbolo é formal, e não material,

tem uma ou duas consequências importantes. Suponhamos que apague

esta palavra (seis) e escreva seis. Não se tem aqui uma segunda palavra

mas, sim, a primeira palavra novamente; elas são idênticas. Ora, pode a

identidade ser interrompida ou devemos dizer que a palavra existia

embora não estivesse escrita? Esta palavra implica em que duas vezes

três é cinco mais um. Esta é uma verdade eterna; a verdade que sempre

é e sempre será verdade; e que seria verdade embora não houvesse seis

coisas no universo que pudessem ser contadas, dado que ainda seria

verdadeiro que cinco mais um teriam sido duas vezes três. Ora, esta

verdade é a palavra, seis; se por seis entendemos não este traço de giz,

mas aquilo em que concordam seis, six, sex, e4c, sechs, zes, sei. A

verdade, diz-se, nunca deixa de ter uma testemunha; e, de fato, o

próprio fato – o estado de coisas – é um símbolo do fato geral através

dos princípios da indução; de modo que o símbolo verdadeiro possui

um interpretante na medida em que for verdadeiro. E como é idêntico a

seu interpretante, sempre existe. Assim, o símbolo necessário e

verdadeiro é imortal.342

O ser real de um símbolo consiste na permanência da sua identidade simbólica

independente de qualquer individual que o incorpore. O símbolo deve representar

adequadamente uma terceiridade real. Em outras palavras, o símbolo considerado como

se referindo a um objeto é concebido meramente para incorporar uma verdade343

; esta

verdade constitui-se na referência adequada ao seu objeto e consiste em uma imputação

no caso dos símbolos convencionais e em um hábito natural que funciona como símbolo

no caso dos símbolos naturais. Mas em ambos os casos há um estado de coisas

contínuas que permite e determina o símbolo, a saber, a generalidade real que o próprio

símbolo pretende representar.344

No exemplo oferecido por Peirce, cinco mais um e duas vezes três representam

uma mesma verdade geral, a saber, seis. Seus interpretantes equivalem. Desta forma o

símbolo seis, que é um símbolo que representa um estado de coisas contínuas (gerais e

possíveis em qualquer forma), não depende no que concerne a sua verdade, de que haja

atualmente um estado de coisas no qual existam cinco mais um ou duas vezes três

342

PEIRCE, 2008, p. 311. 343

W 1. 477. 344

Trata-se do objeto do símbolo, que é sempre de natureza geral.

124

objetos para se contar. Seis, cinco mais um e duas vezes três permanecem símbolos

verdadeiros porque representam adequadamente o estados de coisas que podem ser

representados por estes símbolos gerando, assim, a ação de produzir interpretantes que

serão sempre idênticos onde quer e como quer que as réplicas dos símbolos em questão

ocorram.

Porém, um símbolo deve estar incorporado em algum particular para que a lei

por ele representada apareça pelo lado de fora, ou seja, possua significado pragmático.

Ora, é porque em algum momento a terceiridade que o símbolo representa aparecerá de

algum modo que se pode dizer que a verdade nunca deixará de ter uma testemunha. A

verdade aparecerá incorporada num particular, exatamente por que ela é real. Quando

um símbolo cumpre o seu papel normativo, a saber, a função lógica de representar a

verdade de maneira adequada, seu significado pragmático constitui sua verdade e cada

incorporação particular que se conforma a regra ou lei geral representada pelo símbolo é

uma instância da verdade. Assim, uma verdade necessária é uma verdade representada

em sua generalidade por um símbolo que sempre se confirmará pragmaticamente, ou

seja, sempre aparecerá pelo lado de fora, em infinitas réplicas particulares que jamais

esgotarão a generalidade real da qual são instâncias.

O interpretante de um símbolo que representa uma verdade necessária será

sempre idêntico ao próprio símbolo. No exemplo que estamos seguindo, seis, cinco

mais um, duas vezes três, dez menos quatro etc. sempre gerarão um mesmo

interpretante referindo-se sempre ao mesmo possível estado de coisas: o símbolo seis.

Este símbolo seis, representando verdadeiramente o seu objeto geral existirá para

sempre em infinitas réplicas e através de seu interpretante sempre idêntico a seis.

Escreva-se „seis‟ com qualquer instrumento, em qualquer cor e em qualquer língua,

apague-se. Ainda assim, o seis permanecerá como um símbolo verdadeiro que sempre

aparecerá pragmaticamente exatamente como „seis‟. O mesmo raciocínio se aplica a

qualquer outro símbolo verdadeiro. É neste sentido que se pode dizer que o símbolo

necessário e verdadeiro é imortal.345

345

A afirmação de que um símbolo necessário e verdadeiro pode ser imortal constituirá ponto de partida

para uma futura reflexão sobre o homem e sua possível imortalidade à luz da arquitetura filosófica

peirciana. Para Peirce, o homem pode ser considerado imortal na mesma medida que um símbolo pode

ser imortal. Aliás, segundo Peirce, “a resposta genérica à pergunta „o que é o homem? ‟ é que ele é um

símbolo.” (Ibidem, 307).

125

Tudo o que for um símbolo verdadeiro e imortal, por fim, comunga do

crescimento da razoabilidade concreta do universo, que é o ideal admirável por si e em

si346

, para onde caminham todas as coisas:

Um símbolo é uma realidade embrionária dotada com o poder de

crescer até a própria verdade, a própria enteléquia da realidade. Isto

parece místico e misterioso simplesmente porque nós insistimos em

permanecer cegos ao que é claro, a saber, que não pode haver realidade

que não tenha a vida de um símbolo.347

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diagrama da classificação das ciências apresentado no primeiro capítulo

procurou representar a estrutura geral das relações entre as ciências segundo Charles

Peirce. Vimos que a linha de dependência que constitui o critério classificatório

peirciano procede das ciências mais básicas e gerais em direção as ciências mais

particulares. Foram distinguidos três tipos de ciências: as ciências da descoberta, as

ciências da revisão e as ciências práticas. Após descrevermos de forma bem geral estes

três tipos de ciências, efetuamos o recorte que, dentro das ciências da descoberta,

estabeleceu o foco na filosofia. Assim, no capítulo dois procuramos descrever as três

ciências que compõem a filosofia para o autor, a saber, a fenomenologia, as ciências

normativas e a metafísica. Em seguida, nos capítulos três e quatro, apresentamos

separadamente duas doutrinas que sustentam o complexo sistema filosófico peirciano, a

saber, o idealismo objetivo e o sinequismo. Dentro da descrição geral destas duas

doutrinas, pudemos refletir sucintamente sobre o evolucionismo e o falibilismo, que

346

Rever o capítulo sobre as Ciências Normativas. 347

EP 2. 324. Não cabe aprofundamento aqui, mas, apesar de o capítulo terminar com uma menção ao

crescimento da razoabilidade concreta do universo, o leitor não deve ser levado a interpretar isto como

sendo um índice de que para Peirce tudo tende a se tornar terceiridade, o que obrigaria a espontaneidade

da primeiridade e a particularidade da segundidade a desaparecer. Ao contrário, a nosso ver, o

crescimento da razoabilidade consiste num eterno fluxo de criação espontânea, associada à generalidade

do possível e, portanto casual e livre, que pode, no entanto, adquirir permanência e crescer tornando-se

uma generalidade associada à terceiridade, mas que pode também simplesmente desaparecer, depois de

uma fugaz incorporação num particular, como algo que nunca pôde ser capturado por um nome e nem

carecia disto. Quem entendeu bem o Realismo, o Evolucionismo, o Idealismo Objetivo e o Sinequismo

peircianos certamente não cairá nesta tentação. Suspeitamos também, que esta visão do universo é

dependente de uma concepção de Deus sui generis. Pretendemos, em futura pesquisa de doutorado,

retornar a este posto.

126

também exercem papel muito importante no pensamento do autor. No capítulo cinco

procuramos descrever o pragmatismo inicial e tardio, onde este último clarifica e

completa aspectos já presentes no primeiro. Por fim, no capítulo seis, levamos a cabo

uma breve apresentação da semiótica peirciana, introduzindo seus conceitos elementares

e apresentando aspectos relevantes sobre aquilo que se pode chamar de „vida‟ do

símbolo, chegando, por fim, a interpretação do símbolo como portador de uma possível

e peculiar imortalidade.

Buscamos seguir uma ordem de exposição que mostrasse a estrita relação de

dependência mantida entre as ciências que compõem a filosofia, gerando, assim, aquilo

que conceituamos sob o nome de arquitetura filosófica peirciana. O objetivo que guiou a

totalidade deste trabalho foi o de apresentar uma estrutura teórica e conceitual mínima

que configurasse uma propedêutica para uma futura reflexão sobre a imortalidade do

homem à luz da arquitetura filosófica peirciana. Assim, se recortarmos o diagrama da

classificação das ciências, buscando mapear o lugar onde o tema imortalidade se insere

no interior desta arquitetura filosófica, ter-se-á o seguinte diagrama:

Vemos que a imortalidade constitui tema específico de metafísica religiosa. A

linha de dependência que a imortalidade mantém para com a estrutura geral que

compõem a filosofia exige o entendimento de todas as ciências e doutrinas que

abordamos neste trabalho. Em outros termos, a imortalidade é um tema específico que

depende de todas as ciências mais gerais que lhe antecedem na Classificação geral das

127

Ciências, bem como do idealismo objetivo e, sobretudo do sinequismo. Esperamos,

assim, estar justificados quanto à necessidade desta propedêutica.

No entanto, gostaríamos de encerrar este trabalho apontando possíveis caminhos

pelos quais é possível refletir sobre a imortalidade do homem na obra de Charles Peirce.

Desta forma, a partir das considerações feitas nos capítulos anteriores sobre a

arquitetura filosófica do autor, é possível formular algumas perguntas que serão ponto

de partida para uma futura pesquisa de doutorado sobre o tema. Tais perguntas deverão

permanecer em aberto, aguardando a maturidade de pesquisa exigida para tornar

possíveis suas respostas parciais. Desejamos, aqui, apenas apontar alguns caminhos

futuros, que esperamos possam ser trilhados de forma menos tortuosa, através do

primeiro passo dado pelo presente trabalho.

No atual estado de pesquisa em que nos encontramos, sugerimos que três são as

perguntas gerais que devem nortear uma reflexão futura sobre a imortalidade do homem

à luz da arquitetura filosófica peirciana:

1) Em que sentido é possível conceituar a imortalidade do homem, partindo da

arquitetura filosófica de Peirce?

2) Qual é o sentido pragmático do conceito „imortalidade do homem‟?

3) Para onde aponta a realidade da imortalidade do homem?

Enquanto a primeira pergunta visa contextualizar o sentido estrito de

imortalidade que a metafísica científica de Peirce permite trazer à luz, a segunda explora

diretamente a forma como aparecem, no mundo fenomênico, as predições que

configuram o conceito de imortalidade do homem, e, a terceira pretende especular a

existência de aspectos relevantes decorrentes da realidade de tal conceito. O caminho

que se pretende futuramente traçar a partir destas três perguntas gerais é um caminho de

movimento duplo, onde, por um lado, engendrar-se-á um movimento de especificação,

como deve ocorrer com qualquer explicação de um conceito (escopo das perguntas um e

dois) e, de outro lado, buscar-se-á mostrar que existe também um movimento de

abertura para possíveis outros caminhos que estariam além da especificidade do

conceito de imortalidade do homem (escopo da pergunta três).

Um possível caminho para desenvolver respostas para as três perguntas

fundamentais expostas acima seria começar abordando o conceito de „homem‟. Isto

porque entendemos que, uma vez que a imortalidade que está em questão é a

128

imortalidade do homem, deve-se levar a cabo uma criteriosa investigação sobre o que

Peirce entendia por homem, para depois se direcionar a uma devida caracterização do

quê no homem pode vir a ser imortal. Assim, neste primeiro momento, o seguinte corpo

de questões pode ser sugerido:

a) Como Peirce entendia o homem dentro de sua arquitetura filosófica?

b) Em termos pragmáticos: Como o conceito „Homem‟ aparece pelo lado de fora?

c) Como se manifesta no homem a realidade das três categorias?

d) Como entender a recorrente afirmação peirciana de que o homem é um signo?

e) Que tipo de signo é o homem?

f) Como interpretar a afirmação de que a resposta geral para a pergunta „o que é o

homem?‟ é que ele é um símbolo?

g) Qual é o lugar do „eu‟ e do indivíduo diante da concepção peirciana de homem?

h) Pode-se falar em personalidade individual ou subjetividade?

i) Pode-se afirmar que a personalidade possui uma unidade? Se sim, de que tipo?

j) O que o conceito de pessoa significa e qual a sua relação com o conceito de

homem?

k) O inconsciente exerce algum papel na personalidade de uma pessoa?

l) O que significa afirmar que o homem é um feixe de hábitos?

m) Como o homem se insere, através da conduta deliberada, no crescimento da

razoabilidade concreta?

n) Qual o lugar do homem dentro de uma visão sinequista do universo?

Após ter explicitado o conceito de homem, e supondo que tal explicitação seja

pelo menos satisfatória, deve-se em seguida perguntar o quê, de forma geral, deve-se

entender por imortalidade na filosofia de Peirce e o quê, no homem, pode ser visto

como imortal. Estas perguntas podem ser desenvolvidas a partir de um segundo grupo

de questões:

a) O que é a imortalidade?

b) Há alguma ligação entre imortalidade e as três categorias?

c) Como podemos pensar o sentido pragmático da imortalidade?

d) Em que sentido pode-se dizer que o homem é imortal?

e) Como esta imortalidade do homem pode ser conhecida cientificamente?

f) Quais são os „sinais‟ (signos) da imortalidade?

129

g) Qual a ligação entre a imortalidade e a „vida‟ do símbolo?

h) Se o homem pode ser imortal, como devemos considerar a morte?

i) A morte é uma descontinuidade?

j) Se sim, de que tipo?

k) Todos os homens são imortais?

Esses dois grupos sugeridos de questões poderiam traçar um sugestivo caminho

para se responder às perguntas fundamentais um e dois. Algumas linhas de reflexão que

configuram pontos de partida para se responder a estas questões já foram expostas no

decorrer deste trabalho e outras nem sequer foram tocadas. Sem nos estendermos muito,

cabe agora fazer um breve apanhado geral sobre o que já podemos carregar conosco

acerca de como contemplar estas questões, tendo como horizonte este trabalho

propedêutico.

O símbolo verdadeiro gera infinitos interpretantes idênticos em significado a ele

mesmo. Um símbolo verdadeiro é imortal exatamente neste sentido, ou seja, ele sempre

existe enquanto incorporado em seus infinitos interpretantes determinados a manter uma

relação similar a que o símbolo mantém para com o objeto que representa, exatamente

por causa de uma lei geral que governa a realidade que aparece em cada caso particular

da verdade geral representada pelo símbolo. Neste caso, símbolo, objeto e interpretante

são os três, de natureza geral. Assim, o símbolo que representa verdadeiramente o seu

objeto para um interpretante sempre existirá, crescendo em significado na medida

mesma em que o objeto adquire novos significados, significados estes oriundos de suas

infinitas possibilidades incorporadas em casos particulares ou réplicas da mesma regra

geral, que constitui a unidade do símbolo.

Ora, para Peirce um homem é um símbolo e a sua personalidade pode ser assim

equacionada com a unidade da simbolização. Esta unidade é uma unidade da

generalização. Pessoas são símbolos complexos, vivendo e crescendo e, desta forma

pode-se dizer que o homem é um símbolo na medida em que o homem não é nada mais

que uma associação de idéias gerais, e o tipo de lei que governa o significado de um

símbolo é normalmente uma associação de idéias gerais. Assim, o homem é imortal na

mesma medida em que o símbolo é imortal, ou seja, na medida em que é vivificado pela

verdade e seus hábitos passam a influenciar o significado de qualquer número de

interpretantes.

130

Sendo a personalidade a unidade simbólica de um feixe de hábitos, o que

permanece de um homem após sua morte pode ser tomado como permanência pessoal.

Pessoas não são nada mais que feixes de hábitos coordenados que aparecem na forma

como elas agem de maneira geral. Permanece, assim, um caráter de tipo geral e

pessoal, que pode estar presente como uma influência geral para outra pessoa, para um

grupo seleto de pessoas (a família, por exemplo), para uma comunidade ou mesmo para

mundo. Em outros termos, a influência que um homem deixa a após a sua morte possui

significado pragmático, ou seja, podemos ver no mundo condutas serem influenciadas e

de certo modo determinadas pela permanência de hábitos de pensamentos e sentimento

deixados por pessoas mortas.

Do ponto de vista semiótico, os sinais desta imortalidade podem ser de diversos

tipos. O seu caráter geral pede pelo símbolo como ponto de unidade. No entanto,

lembremos que símbolos incluem necessariamente ícones e índices. Um caminho

sugestivo de pesquisa é como ícones e índices devem ser pensados em ligação com a

imortalidade. Também é interessante refletir sobre os interpretantes dos ícones, índices

e símbolos da imortalidade: haveria algo que se pode chamar de intensidade da

imortalidade?

Certamente a imortalidade, do ponto de vista fenomenológico, é um fenômeno

que está sob a categoria da terceiridade. A terceiridade inclui a primeiridade e a

segundidade. Assim, como devemos pensar a primeiridade e a segundidade nos

fenômenos da imortalidade? Com esta pergunta abre-se caminho para uma ampliação

do significado da imortalidade, contemplando também aspectos internos e externos que

complementam o sentido do conceito.

Se o homem for de alguma forma imortal, isto significa que a morte não deve

representar uma descontinuidade absoluta. Ou seja, a morte, como quer que venhamos a

pensá-la, deixa de ser uma ruptura no continnum vivo de hábitos de pensamentos e

sentimentos que configuram a personalidade. A morte certamente é a dissolução do

hábito, mas o homem (ou a essência ou alma do homem) consiste em um complexo

sistema de hábitos inter-relacionados, e este sistema está ele mesmo conectado, como

um fragmento, com um mais compreensivo modelo de relação contínua, que em

princípio pode ser associado com a sociedade como um todo ou com a cultura se quiser,

mas que, em última instância deve ser equacionado com a dinâmica de crescimento

contínuo do próprio universo.

131

Surge, então, o espaço da terceira e última pergunta fundamental, onde devemos

perguntar: a imortalidade do homem aponta para algo além da sua especificidade

temática? O estado atual de pesquisa em que nos encontramos parece apontar para uma

resposta positiva que, no entanto, exige uma reflexão mais aprofundada sobre a ligação

entre a imortalidade e os outros aspectos da metafísica religiosa peirciana. Ou seja,

apesar de a imortalidade ser um tema específico, ele não pode ser pensado

apartadamente dos outros temas de metafísica religiosa. Esta linha de reflexão deve-se

confessar, encontra-se ainda em processo de gestação e devemos ser bem cautelosos ao

sugerir sua abordagem. Mas, lancemos a hipótese sob a seguinte forma: como estariam

equacionadas as questões de Deus, da imortalidade e da liberdade?

Uma resposta a esta pergunta gerará certamente uma complexa trama conceitual

que deve ser costurada segundo um propósito, a saber, mostrar como a imortalidade do

homem pode ser um rico ponto de partida para uma abordagem que faça jus a

sistematicidade do pensamento peirciano e, ao mesmo tempo, podendo ser um lócus

privilegiado para adentrar em uma questão que, se estivermos corretos, constitui aspecto

muito importante no interior do seu pensamento: a questão de Deus.

Dentro deste horizonte, pode-se perguntar sobre uma possível ligação entre a

permanência do caráter de um homem após sua morte e as ciências normativas, visto

que estas precisamente regulam o processo de semiose dos símbolos. As influências de

um caráter podem se tornar ideais de conduta deliberada? Estaria a liberdade humana

ligada com a questão da imortalidade em algum sentido preciso?

A imortalidade do homem não deve ser interpretada como uma afirmação

metafórica. Para Peirce, o homem pode literalmente ser imortal, pois carrega em si a

essência da razoabilidade do universo. Sugerimos que esta ligação da imortalidade do

homem com o crescimento da razoabilidade concreta do universo aponta exatamente

para uma complexa e peculiar concepção de Deus, na medida em que a razoabilidade do

universo pode ser interpretada como uma espécie de instanciação de Deus.

Para evitar leituras apressadas é necessário precisar bem o que está sendo

sugerido aqui. Não estamos a dizer que o „conceito‟ de Deus constitui uma espécie de

núcleo do pensamento peirciano. Isto seria sucumbir a uma espécie de nominalismo,

assaz absurdo diante de tudo o que já fora exposto neste trabalho. Muito menos estamos

sugerindo que um Deus absolutamente transcendente seja o ponto de partida, quase que

biográfico, do sistemático projeto arquitetônico peirciano. Isto seria fundar a lógica na

metafísica, procedimento que esperamos ter mostrado ser completamente oposto à

132

abordagem peirciana. No entanto, estamos sugerindo que o pensamento peirciano como

um todo parece seguir o propósito de formular uma explicação científica daquilo que ele

entendia ser o ideal dos ideais, que se justifica por si só e para o qual toda a realidade

tende a se conformar. A isto Peirce chamou de razoabilidade concreta do universo. Se

esta razoabilidade concreta, em um contínuo processo de renovação e crescimento, que

abarca em si a realidade das três categorias, for efetivamente identificada com um Deus,

então, ao menos não é um absurdo dizer que o pensamento peirciano pode ser visto

como uma tentativa de descrição rigorosamente científica de como a realidade que

recebe o nome de „Deus‟ aparece no universo. E isto é, sim, uma espécie de panteísmo,

que precisaremos explicar adequadamente em nossa pesquisa de doutorado. No entanto,

não podemos avançar nenhuma espécie de consideração acerca deste assunto no espaço

destas considerações finais. Além do mais, muitas coisas devem se tonar claras,

exigindo uma profundidade de pesquisa que ainda estamos longe de atingir. Portanto

trata-se apenas de uma conjectura, uma hipótese. Mas temos a esperança de confirmar

ou refutar tal hipótese em tempos vindouros.

Por fim, o desenvolvimento adequado das perguntas e caminhos que traçamos

nestas considerações finais, que depende do entendimento de toda a arquitetura

filosófica peirciana, é também um processo evolutivo de conhecimento. Assim, teremos

de voltar a muitos pontos que não puderam ser tratados com a devida profundidade no

espaço deste trabalho ou mesmo repensar aspectos que por ventura possam mudar no

decorrer da pesquisa. No entanto, esperamos que através deste trabalho, tenhamos

proporcionado um sólido ponto de partida, que nos permita prosseguir nossa jornada na

busca de uma compreensão cada vez mais profunda da filosofia de Charles Peirce. Mas,

se aprendemos bem, uma das características mais instigantes desta filosofia é que,

embora possamos conhecer e tratar cientificamente de qualquer assunto, nunca se

atingirá verdades definitivas acerca de nenhum deles. As portas sempre permanecerão

abertas, vários caminhos surgirão e a jornada nunca terá fim.

133

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