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Processos Psicológicos Básicos

Devaneio normal e devaneio mórbido

MINKOWSKI, Eugene (1927). La esquizofrenia: Psicopatología de los esquizoides e los esquizofrênicos. México: Fondo de Cultura Econômica, 2001.

Podemos dizer, de maneira algo paradoxal, que os devaneadores mórbidos não estão enfermos porque devaneiam demais, senão que devaneiam tanto porque estão enfermos. Isto equivale a dizer que existe, de acordo conosco, mais de uma diferença de grau entre o devaneio normal e o devaneio mórbido.

No devaneio normal esquecemos por um momento a realidade. Nos isolamos dela, nos dobramos sobre nós mesmos, dando livre curso a nossa imaginação, construindo nosso próprio mundo, refugiando-nos nele. Os desejos se tornam realidade, as tristezas e as penas da vida se apagam, tudo é cor de rosa e alegre. Estes estados, de uma duração mensurável mais ou menos longa, no fundo não se estendem mais que um instante ou, ainda melhor, não duram no absoluto, pois não tomam mais que o tempo que a realidade crê poder-lhes conceder. A noção da realidade jamais desaparece por completo, sempre nos espreita num segundo plano e faz do devaneio um estado essencialmente efêmero. Jamais ultrapassamos certos limites; gostamos do devaneio porque nos desprende da realidade, porém jamais fazemos dela toda nossa vida; somente a fazemos um fator dela. O devaneio está disposto em todo momento a ceder o lugar à realidade. E se, ao exagerar-se, sobretudo em forma de devaneio criador, toma por momentos um lugar preponderante em nossa vida, jamais se traduz por um déficit mental, senão por distrações e esquecimentos, mais ou menos prazerosos ou incômodos. Ademais, sempre busca, na obra consumada, uma saída para a realidade. Ali onde nos faz menosprezar os bem terrestres, o faz em nome de um valor supremo, em nome da obra que deve surgir e que sempre busca a maneira de integrar-se à realidade. Às vezes, inclusive, o devaneio e, sobretudo, a reflexão parecerão mais valiosos que todo o resto, e ainda isso não terá nada de anormal. Pensemos em Arquimedes que, no momento do saque de Siracusa, submerso em reflexões, se deixou cortar a cabeça, sem dizer nenhuma palavra. Compreendemos a escala de valores que estabelece o devaneador-criador, e que o faz ensimesmar-se por longo tempo. Por essa razão, um sentimento de piedade nos impedirá de qualificá-lo de esquizoide. Pelo contrário, pode ser sintônico num alto grau. Como Pasteur que, com entusiasmo, com suas adentes lutas, com toda sua atividade, cumpria o tipo de sábio sintônico. Ademais, ainda que facilmente desse livre curso à sua imaginação, não esquecia de aconselhar seus alunos a depositar no guarda-roupa, antes de entrar no laboratório, sua imaginação, ao mesmo tempo que seu casaco. O devaneio é muito compatível com a sintonia.

O que caracteriza então o devaneio normal não é tanto sua intensidade nem sua amplitude, senão a circunstância de que está sempre submetido ao que podemos chamar de consciência latente da realidade, com toda a intensa hierarquia de metas e valores que implica.

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Justamente é essa consciência latente da realidade a que chega faltar no devaneio do esquizofrênico. Aqui, o devaneio está situado ao lado da realidade como um fenômeno equivalente, coloca-se em seu lugar e, violentando seu papel na vida normal, se exterioriza literalmente e determina de forma direta as reações do sujeito que, devido a isso, se encontram em contradição com as exigências da vida real e adquirem formas “estranhas”, tano para nosso entendimento quanto para nossa intuição. O devaneio participa, então, da degradação geral que padece toda a personalidade do esquizofrênico. No caso de Maria B., o que nos importa acima de tudo são os sintomas clínicos, é todo o comportamento da paciente com respeito ao ambiente que, seja por razão ou por compenetração, reconhecemos como de natureza esquizofrênica. Aqui os fatores do devaneio não intervém mais que em segundo lugar, para encobrir em parte o “oco” psicológico que se aprofunda entre nós e o paciente; não são mais que uma das manifestações secundárias de seu comportamento mórbido. Assim mesmo, quando, em casos atenuados, dizemos dos esquizoides devaneadores que estão na lua, é evidente que o que caracteriza seu comportamento, é justamente “estar na lua” de uma maneira permanente, e não no devaneio. Este, em outro quadro, pode, ao contrário, levar aos céus.

Assim, não se trata unicamente de diferença de grau ou de amplitude, quanto ao conteúdo, entre o devaneio normal e o devaneio mórbido. Longe disso, o devaneio patológico do esquizofrênico é, comumente, muito mais limitado, reduzindo-se a uma ou duas ideias-desejos pobres, fixas e imóveis, que o enfermo volta a viver de uma maneira estereotipada. Às vezes até o conteúdo se reduz a nada. O paciente diz que sonha acordado, mas não é capaz de dizer com quê.

(...)

Por conseguinte, é necessário que chegue a faltar algo essencial no psiquismo do indivíduo para que o devaneio adquira esse aspecto particular e se transforme num fim em si mesmo. Aqui não poderíamos incriminar mais que à ausência de contato vital com a realidade. No fundo, é ela que determina o comportamento característico do indivíduo com respeito ao ambiente e a que condiciona depois todos os sintomas clínicos de ordem esquizofrênico, observados no indivíduo ao longo de seu desenvolvimento psicótico. O devaneio, por sua parte, não parece ser mais que uma manifestação secundária. Como “devaneio”, apresenta um fenômeno normal empobrecido pela desagregação esquizofrênica e ao qual o paciente se aferra, por meio de um esforço supremo, para não fundir-se no nada. Sendo já na vida normal uma reação de retraimento em relação ao ambiente, se presta muito bem a este papel no psiquismo do esquizofrênico. Porém, ao mesmo tempo, já não é um simples devaneio exagerado, torna-se um devaneio “mórbido”, participando por sua imobilidade, sua rigidez e sua esterilidade dos caracteres essenciais de toda manifestação esquizofrênica. Incapaz, então, de servir de base para uma noção clínica independente nem de explicar a gênese de todos os sintomas esquizofrênicos, projeta uma nova luz sobre os mecanismos de compensação que podem intervir na alma dos esquizofrênicos.