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Revista dos Estudantes da Faculdade de Direito da UFC (on-line). a. 3, v. 7, jan./jun. 2009 19 A QUESTÃO DA DESAPROPRIAÇÃO POR ZONA PARA FINS DE REVENDA (ART. 4º, DECRETO-LEI 3.365/41) FACE ÀS FINALIDADES DO ESTADO BRASILEIRO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 FELIPE ROCHA PINHEIRO BASTOS * Resumo: Existe, no ordenamento pátrio, mais precisamente no art. 4º do Decreto-lei nº. 3.365/41, um dispositivo que autoriza a desapropriação, para posterior revenda, de imóveis que, em virtude da obra pública realizada, sofram uma valorização considerável. É bem verdade que tal disciplina visa a impedir o enriquecimento ilícito do particular que em nada contribuiu, a mais do que o custo repartido com toda a sociedade, para merecer dado acréscimo em seu patrimônio. A forma como se impedirá é que não mais coaduna com o tratamento conferido pela Constituição Federal ao Direito de Propriedade e às prerrogativas por ela conferidas ao Estado. É inadmissível que a administração pública utilize-se de uma medida como a desapropriação, que é de caráter excepcional, para, praticamente desconsiderando o cidadão proprietário do imóvel, imitir-se na propriedade do imóvel com o fito de auferir lucro. Tal prática não corresponde ao Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988. Principalmente pelo fato de existir, dentro do texto da própria Carta Política, expressa previsão de um instituto para cumprir esse mesmo desiderato de forma, em virtude das normas traçadas pelo próprio legislador constituinte, mais coerente com os atuais preceitos constitucionais: a Contribuição de Melhoria. Palavras-Chave: Novo Estado Constitucional Brasileiro. Jus Imperii. Atividade Econômica Abstract: Does exists, in the national laws, more precisely in the 4º article of the Decree-Law number 3.365/41, a rule that authorizes the expropriation, to posterior resale, of realty that, because a public construction, suffers a considerable valorization. It is true that this discipline aspires to impede the illicit enrichment of the citizen that didn’t contributed, more than the cost divided with all the society, to deserve such addition in his patrimony. The way to impede it is that no more fits with the treatment given by the Federal Constitution to the Writ of Propriety and with the prerogatives given by it to the State. It is unacceptable that the public administration uses a measure like the expropriation, that has an exceptional character, to, practically disesteeming the citizen owner of the realty, insert itself in the property of the realty with the objective of profiting. This practice doesn’t fit with the Democratic Legal State established by the 1988 Constitution. Mainly by the fact of exists, inside the text of the Political Letter itself, express prediction of an institute to execute this same desideratum in a way, because of the rules established by the constituent legislator himself, more coherent with the nowadays constitutionals precepts: the Betterment Tax. Keywords: New Brazilian Constitutional State. Jus Imperii. Economic Activity

Felipe Rocha Pinheiro Bastos. A questão da desapropriação por zona para fins de revenda

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A QUESTÃO DA DESAPROPRIAÇÃO POR ZONA PARA FINS DE REVENDA (ART. 4º, DECRETO-LEI 3.365/41) FACE ÀS

FINALIDADES DO ESTADO BRASILEIRO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

FELIPE ROCHA PINHEIRO BASTOS *

Resumo: Existe, no ordenamento pátrio, mais precisamente no art. 4º do Decreto-lei nº. 3.365/41, um dispositivo que autoriza a desapropriação, para posterior revenda, de imóveis que, em virtude da obra pública realizada, sofram uma valorização considerável. É bem verdade que tal disciplina visa a impedir o enriquecimento ilícito do particular que em nada contribuiu, a mais do que o custo repartido com toda a sociedade, para merecer dado acréscimo em seu patrimônio. A forma como se impedirá é que não mais coaduna com o tratamento conferido pela Constituição Federal ao Direito de Propriedade e às prerrogativas por ela conferidas ao Estado. É inadmissível que a administração pública utilize-se de uma medida como a desapropriação, que é de caráter excepcional, para, praticamente desconsiderando o cidadão proprietário do imóvel, imitir-se na propriedade do imóvel com o fito de auferir lucro. Tal prática não corresponde ao Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988. Principalmente pelo fato de existir, dentro do texto da própria Carta Política, expressa previsão de um instituto para cumprir esse mesmo desiderato de forma, em virtude das normas traçadas pelo próprio legislador constituinte, mais coerente com os atuais preceitos constitucionais: a Contribuição de Melhoria. Palavras-Chave: Novo Estado Constitucional Brasileiro. Jus Imperii. Atividade Econômica Abstract: Does exists, in the national laws, more precisely in the 4º article of the Decree-Law number 3.365/41, a rule that authorizes the expropriation, to posterior resale, of realty that, because a public construction, suffers a considerable valorization. It is true that this discipline aspires to impede the illicit enrichment of the citizen that didn’t contributed, more than the cost divided with all the society, to deserve such addition in his patrimony. The way to impede it is that no more fits with the treatment given by the Federal Constitution to the Writ of Propriety and with the prerogatives given by it to the State. It is unacceptable that the public administration uses a measure like the expropriation, that has an exceptional character, to, practically disesteeming the citizen owner of the realty, insert itself in the property of the realty with the objective of profiting. This practice doesn’t fit with the Democratic Legal State established by the 1988 Constitution. Mainly by the fact of exists, inside the text of the Political Letter itself, express prediction of an institute to execute this same desideratum in a way, because of the rules established by the constituent legislator himself, more coherent with the nowadays constitutionals precepts: the Betterment Tax. Keywords: New Brazilian Constitutional State. Jus Imperii. Economic Activity

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1 INTRODUÇÃO

Ao nos depararmos com a atual constituição brasileira, percebemos que, naquele

arcabouço jurídico-político de normas, fizemos escolhas, enquanto sociedade, que alteraram

profundamente, até mesmo, nossa própria concepção de Estado.

Em nossa história institucional, sempre vagamos entre o Liberalismo e o

Intervencionismo (normalmente patriarcalista). Na Constituinte de 88, contudo, foi feita uma

escolha mais coerente e acertada à realidade social pátria. Optamos pela via da liberdade de

iniciativa, mas não o puro laissez faire. Uma liberdade condicionada, por assim dizer; onde os

atores privados se restringem a determinadas balizas erigidas pela constituição como forma de

dirigir parte da força criativa própria da iniciativa privada em prol dos mais necessitadas (art.

170, caput, CF).

Adotamos, pois, baseados parcialmente no modelo americano, a figura de um Estado

eminentemente Regulador, o qual deve cuidar de estabelecer os parâmetros de atuação do

particular, conformando sua atividade às finalidades sociais estabelecidas pelo constituinte,

conforme se extrai do exame conjunto dos arts. 173 e 174, CF/88. Em consonância com o

texto constitucional, somente caberia ao Estado atuar como agente econômico em casos

extremos (segurança nacional e relevante interesse coletivo) e, neste último, da forma que

dispor a lei; ressalvados os casos previstos expressamente na própria Constituição Federal.

Nesse contexto, cabe ao jurista o questionamento, que tão parcamente é feito em

nossos manuais de Direito Administrativo e tribunais, acerca da recepção, pela CF/88, do

mecanismo previsto no final do art. 4º do Dec.-lei 3.365/41, qual seja: a Desapropriação por

Zona para fins de revenda. Estaria o Estado atuando como agente econômico fora das

hipóteses e dos parâmetros previstos no texto constitucional? E ainda mais grave: estaria, para

tanto, se utilizando de seu jus imperii, poder que põe o particular em um patamar de completa

subordinação aos ditames da Administração e só deve ser utilizado nas situações

expressamente autorizadas em nossa Lex Mater?

É nessa problemática que iremos nos pautar no presente trabalho; contrapondo, ainda,

o mencionado instituto à Contribuição de Melhoria, tributo autorizado pela Constituição de

1988 no intuito de cumprir o mesmo desiderato que essa modalidade desapropriatória cumpria

anteriormente.

2 O ESTADO COMO ATOR ECONÔMICO NA CF/88

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O art. 173, caput, da Carta Magna é cristalino ao afirmar que o Estado não pode

exercer atividade econômica de forma livre; mas, tão somente, nos casos expressamente

excepcionados na própria Carta da República.

José dos Santos Carvalho Filho divide essa exploração em “Direta” e “Indireta”, ao

passo que seja realizada, respectivamente, por entes da administração direta ou indireta. Aduz

o mencionado professor, contudo, que, na forma Direita,

[...] pela especial natureza de tais situações, a atividade econômica acaba confundindo-se com a própria prestação de serviços públicos, já que O ESTADO TEM OBJETIVOS SOCIAIS E NÃO PERSEGUE O LUCRO. (grifo e caixa alta nossos).1

Atuando indiretamente, temos as empresas públicas exploradoras de atividade

econômica e as sociedades de economia mista, entes da administração indireta com natureza

jurídica mais apropriada às atividades mercantis.

Cumpre destacar, todavia, que, mesmo quando autorizado a tal exercício, o Estado

deve obedecer a uma série de princípios e regras, consubstanciados principalmente nos

parágrafos do art. 173 e no art. 170, CF. Tanto o é, que é possível traçar uma clara linha

divisória entre as prerrogativas estatais enquanto prestador de serviços públicos e travestido

de agente econômico.

Quando se concebeu como seria a empresa pública (lato sensu) pós-88, cercou-se ela

de um regime jurídico híbrido. Nem todas as suas contratações são realizadas mediante

procedimento licitatório (que é, em regra, obrigatório para toda a administração2); seu quadro

de funcionários, embora ingressos mediante concurso público, é celetista, não tem um estatuto

próprio; deve ela, ademais, submeter suas contas aos Tribunais de Contas.

Como se depreende do exposto, o legislador, embora demonstrando preocupação com

alguns princípios e regras de direito público, cuidou para que esses não afetassem o caráter

eminentemente privado do ente, de forma a não lhe conferir nenhuma superioridade em

relação aos particulares; vez que estaria a empresa pública atuando em um campo que é

próprio da iniciativa privada.

Notamos, assim, que o constituinte definiu bem o Estado enquanto atuante em suas

finalidades essenciais e como agente econômico; de forma a não permitir que a Administração

1 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007, p. 795. 2 Vide art. 37, XXI, CF/88, e art. 1º, § único, L. 8.666/93.

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se utilizasse de seus poderes próprios do regime jurídico de direito público (v.g., jus imperii)

para se sobrepor economicamente aos agentes particulares.

3 O INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO E SUA MODALIDADE ZONAL PARA

FINS DE REVENDA

Para Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, pode-se conceituar o instituto da

Desapropriação, modalidade de intervenção do Estado na propriedade, como

[...] o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública, de necessidade pública, ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de justa e prévia indenização. 3

A Constituição Federal, em seu art. 5º, XXIV, autoriza tal prática, como forma a dar

maior efetividade aos incisos XXII e XXIII (função social da propriedade) do mesmo artigo, e

o Dec.-lei 3.365/41 – conhecido como Lei Geral das Desapropriações – (disciplinando a

desapropriação por utilidade pública) e a Lei 4.132/62 (disciplinando a desapropriação por

interesse social) regulamentam infra-constitucionalmente a matéria.

Não nos ateremos, entretanto, no presente estudo, às nuanças desse instituto, por não

se tratar de nosso objeto imediato. Cumpre, entretanto, destacar a modalidade zonal, prevista

no art. 4º do Dec.-lei 3.365/41, também chamada extensiva. Dentro dessa espécie,

percebemos duas subespécies, uma que objetiva “a área contígua necessária ao

desenvolvimento da obra a que se destine” e outra, “as zonas que se valorizem

extraordinariamente em conseqüência da realização do serviço”. Deter-nos-emos, dado nosso

presente objetivo de estudo, à segunda. Eis o texto do mencionado dispositivo:

A desapropriação poderá abranger a área contígua necessária ao desenvolvimento da obra a que se destina, e as zonas que se valorizarem extraordinariamente, em conseqüência da realização do serviço. Em qualquer caso, a declaração de utilidade pública deverá compreendê-las, mencionando-se quais as indispensáveis à continuação da obra e as que se destinam à revenda. (grifo nosso)

Sobre a temática, cumpre destacar lição de José dos Santos Carvalho Filho, o qual será

de essencial importância no desenvolvimento do próximo tópico, cerne do presente trabalho:

3 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 16 ed. São Paulo: Método, 2008, p. 715-716.

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O domínio do expropriante, portanto, terá sido provisório, durando apenas o tempo necessário à revenda a terceiro, transferência essa que, aí sim, terá caráter permanente. Como o expropriante arrecada valores bem mais elevados do que os que pagou a título de indenização, tem a seu favor uma diferença pecuniária que serve para compensar, total ou parcialmente, o custo da obra. Essa estratégia, aliás, substitui a cobrança de contribuição de melhoria, espécie de tributo previsto no art. 145, III, da CF, que tem idêntico objetivo. (grifo nosso)

4 JUS IMPERII EM PROL DE OBTER LUCRO?

A modalidade de Intervenção do Estado na Propriedade denominada Desapropriação é

considerada como a mais gravosa ao patrimônio do particular; uma vez que configura uma

supressão total – ao contrário das demais, que são apenas parciais – do direito de propriedade

(jus utendi, jus fruendi e jus abutendi).

Tais intervenções são consideradas medidas excepcionais, uma vez que a regra em

nosso sistema jurídico é a liberdade (arts. 1º, IV, e 5º, caput, e II, CF) e a proteção à

propriedade (arts. 5º, caput, e XXII, e 170, II, CF), e só devem ser perpetradas se presentes os

requisitos constitucionais e legais que legitimam o interesse público naquele ato determinado.

A desapropriação, por configurar medida extrema, é restrita, além das balizas constitucionais,

a um rol taxativo presente na legislação; não cabendo alargamento das hipóteses lá previstas.

Embora terrivelmente contra tal tipo de prática, não comentaremos aqui acerca da

desapropriação indireta, figura onde o Estado atua para-legalmente, exceção, muito embora

injusta, à estrita legalidade explicitada acima.

Como se percebe do acima exposto, “a intervenção [...] revela um poder jurídico do

Estado, calcado em sua própria soberania. É verdadeiro poder de império (jus imperii), a ele

devendo sujeição os particulares”4.

Cumpre-nos reafirmar que o Estado só se reveste de suas prerrogativas e poderes

quando atuando em um regime jurídico de direito público; ou seja, enquanto exercendo

funções que lhe são próprias. Dessa forma, principalmente quando revestido dessa sua

condição mais nobre, não pode a Administração se servir do aparato e da potência estatais

para perquirir objetivos que não lhe sejam essenciais; mas tão somente aqueles adstritos a

suas finalidades estritas.

Na denominada “Desapropriação por Zona para fins de revenda”, todavia, o Estado

não atua de forma a respeitar essa vontade constitucional. Ao contrário, abusa de seu jus

imperii, desapropriando uma área que não seria necessária ao atendimento do interesse

4 CARVALHO FILHO, José Afonso, op. cit., p. 659.

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público primário (lembrando que a regra é a liberdade e a proteção à propriedade);

objetivando, com isso, lucrar com a valorização imobiliária que tal imóvel deverá sofrer com

a obra realizada pelo ente público5.

Não obstante a inércia e a subordinação da maioria dos administrativistas acerca dessa

questão – e, até mesmo, da jurisprudência dominante6 –, há de se considerar tal procedimento

como atividade econômica. Como reforço de nossa posição, trazemos à baila ensinamento de

Fran Martins, grande doutrinador cearense do Direito Comercial, afirmando que “[...] no

sentido clássico, comerciante é a pessoa, natural ou jurídica, que realiza, em caráter

profissional, atos de intermediação, com intuito de lucro”7.

Partindo para uma análise mais detida do conceito apresentado, confrontando-o com o

instituto em questão; vemos que, embora não se configure o profissionalismo na ação estatal –

que, embora de direito público interno, é também pessoa jurídica –, o fato de ter previsão em

lei demonstra (e a própria praxis administrativa comprova) o caráter de habitualidade de tal

ato. Não queremos, assim, dizer que nosso Estado é comerciante; mas que está a praticar atos

de comércio.

Quanto à questão de ser ato de intermediação, cumpre destacar lição de José dos

Santos Carvalho Filho: “o domínio do expropriante, portanto, terá sido provisório,

durando apenas o tempo necessário à revenda a terceiro, transferência essa que, aí sim,

terá caráter permanente”8. (grifo nosso)

Sobre se tem, ou não, tal instituto o intuito de obter lucro, seguimos na lição do

supracitado mestre administrativista:

É em relação a estas últimas que a lei autoriza a revenda a terceiros, sendo permitido ao expropriante que a venda se faça por valor atualizado, ou seja, pelo valor que passou a ter o bem após a realização da obra. [...] Como o expropriante arrecada valores bem mais elevados do que os que pagou a título de indenização, tem a seu favor uma diferença pecuniária que serve para compensar, total ou parcialmente, o custo da obra9. (grifo nosso)

5 Especulação imobiliária: é a compra ou aquisição de bens imóveis com a finalidade de vendê-los ou alugá-los posteriormente, na expectativa de que seu valor de mercado aumente durante o lapso de tempo decorrido. (Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre - http://pt.wikipedia.org/wiki/Especula%C3%A7% C3%A3o imobili%C3%A1ria) 6 AI nº 42.240, Rel. Min. ALIOMAR BALEEIRO, STF. Eis a ementa: “Desapropriação – Poderá abranger

área maior do que a estritamente necessária para a obra, desde que a destine a autoridade a fim público ou de

utilidade pública” (RTJ 46/550) Eis um trecho do acórdão: “é lícito ao poder expropriante – não expropriar

para satisfazer os interesses de particulares – mas ao interesse público, sem limitações, inclusive para auferir,

da revenda de terrenos, um proveito que comporte e financie execução da obra pretendida.” 7 MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 30 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 21. 8 CARVALHO FILHO, José Afonso, op. cit., p. 710-711. 9 CARVALHO FILHO, José dos Santos, op. cit., p. 711.

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Conforme dito em seção anterior, a Constituição cuidou de conferir ao ente estatal,

enquanto exercendo atividade econômica, um regime jurídico de direito privado, em patamar

de igualdade com o particular. Tal medida visa a coibir eventuais disparidades de tratamento

entre empresas públicas (lato sensu) e privadas, bem como o abuso de poder e a concorrência

desleal.

Dessa forma, cumpre-nos lançar um olhar crítico sobre essa modalidade

desapropriatória, percebendo que ela, não bastando o fato de se utilizar de seu poder de

império para conferir, ao particular, um ônus maior que o estritamente necessário ao

atendimento do interesse público primário, estendendo-se em sua intervenção na propriedade

privada do administrado; ainda o faz com o interesse mesquinho, e nada coadunado com suas

legítimas finalidades, de, simplesmente, obter lucro.

Há, ademais, outras razões que prejudicam a aplicação desse procedimento

administrativo: uma é a Isonomia; uma vez que não se faz qualquer distinção entre os

particulares no tocante à extensão da afetação de seu patrimônio pela obra realizada; mas, tão

somente, se determina uma área na qual se pressupõe que tenha havida uma valorização para

que ocorra aí a desapropriação e a posterior revenda. Não faz diferença o quantum da plus-

valia, todos sofrerão a perda total de suas propriedades, desde que tenham sido delimitadas

pelo decreto expropriatório.

A outra é a vedação ao enriquecimento sem causa; pois, uma vez que a atividade

perpetrada pela Administração é, por natureza, especulativa, pode gerar ao Estado uma sobre-

valia superior ao despendido na realização da obra pública; tendo, ao fim, o ente público

lucrado com a realização de suas atividades essenciais, o que configura um verdadeiro

absurdo e um total contra-senso em um Estado Democrático de Direito!

Como conciliar, pois, tais atividades com a vontade constitucional, lembrando, ainda,

que, para tal mister, nossa Carta Magna erigiu um tributo, denominado Contribuição de

Melhoria?

Nesse sentido, imprescindível destacar lição da professora Lucia Valle Figueiredo; a

qual, muito embora discordemos de suas presentes conclusões, terá grande valia para o

presente estudo:

[...] no passado, antes da Constituição de 1988, entendíamos que o dispositivo (art. 4º, Dec.-lei 3.365/41) não era compatível com a Constituição de 1967 e sua Emenda n. 1/69, no que tange às áreas que iriam se valorizar extraordinariamente. E assim entendíamos por um único motivo. Prevista no texto constitucional a contribuição de melhoria, considerávamos inconstitucional o Poder Público

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absorver a “plus valia” de propriedade sem ser pela forma expressada no Texto Básico, pela forma típica10. (grifo nosso)

Cremos como a principal a razão apontada acima pela eminente administrativista. Se a

própria Constituição elencou determinado instituto como o mais adequado para cumprir uma

função específica, não cabe ao administrador público fazer opção diferente, fugindo à

determinação constitucional por uma questão de mera conveniência, como bem destaca o

professor José dos Santos: “essa estratégia (a desapropriação por zona para fins de revenda),

aliás, substitui a cobrança de contribuição de melhoria, espécie de tributo previsto no art.

145, III, da CF, que tem idêntico objetivo” (grifo e parêntese nosso).

É sobre essa questão que trataremos no próximo tópico.

5 A CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA COMO INSTITUTO APROPRIADO PARA A

FUNÇÃO

Gostaríamos de iniciar a presente seção com o conceito dessa espécie tributária

formulado pelo mestre cearense Hugo de Brito Machado: “Contribuição de Melhoria. É o

tributo cuja obrigação tem como fato gerador a valorização de imóveis decorrente de obra

pública”11. Tal tributo encontra previsão específica, atualmente, em nosso ordenamento

jurídico, nos arts. 145, III, CF/88; e 5º, 81 e 82, CTN.

É importante frisar que a contribuição de melhoria, dada sua natureza de tributo,

submetido plenamente ao regime de direito público, apresenta diversas vantagens em relação

à desapropriação por zona para fins de revenda; a qual, muito embora decorra de um instituto

administrativista, encontra-se incompatibilizada com a atual concepção de Direito

Administrativo e Constitucional. Nesse sentido, e complementando o sentido do exposto no

tópico anterior, iremos demonstrar ser a contribuição de melhoria o instituto adequado à

função de restituir ao Estado parte (ou o todo) do custo da obra realizada.

Em relação ao abuso na utilização do jus imperii estatal, vemos que tal não ocorre na

contribuição de melhoria, pois o CTN, em seu art. 81, erige dois parâmetros principais para a

cobrança deste tributo; quais sejam: limite total: “a despesa realizada” pelo poder público com

a obra; limite individual: “o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel

beneficiado”.

10 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 219-220. 11 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 85.

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Vemos, dessa forma, que o Estado não onera o particular nem mais que o estritamente

necessário para o ressarcimento do valor despendido nem além do valor efetivamente

enriquecido por este. Não recai a Administração, pois, no gravíssimo erro de se utilizar de seu

poderio para perquirir objetivos não coadunados com suas finalidades.

No tocante à proteção à isonomia, o tributo em tela também se mostra evidentemente

superior; pois, como já mencionado, o art. 81, CTN, ao final, institui como limite individual à

cobrança “o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel beneficiado” (grifo

nosso). Cada proprietário será, portanto, onerado em conformidade com o que foi

efetivamente beneficiado; não cabendo generalizações como a decorrente da mera

delimitação, no decreto expropriatório, da área a ser desapropriada, em virtude de provável

sobre-valia ao final da obra.

Ampliando nossa escala de avaliação, vemos que a isonomia também resta preservada

na cobrança de determinados particulares beneficiados em detrimento da coletividade. Se tal

não ocorresse, estaria a sociedade dividindo todo o ônus (receitas provenientes dos impostos)

em prol de um bônus que seria mais adstrito a um grupo ou a uma região específica.

Outro ponto é acerca da questão do enriquecimento indevido. Com a escolha da

contribuição de melhoria como via apropriada para a função, não estaria o particular se

beneficiando extraordinariamente sem nenhuma contra-prestação individualizada; o que

certamente geraria seu enriquecimento sem causa, vez que este tributo atende perfeitamente à

função de ressarcir o Poder Público, balanceando a divisão dos encargos decorrentes da obra

pública entre seus beneficiários.

Não correria o risco, ademais, de o próprio Estado estar enriquecendo indevidamente;

pois o art. 81, CTN, limita a cobrança total da contribuição melhoria à despesa realizada com

a obra. Resta protegida, assim, a ordem jurídica e a própria vontade constitucional, que

concebeu nosso atual modelo estatal.

Por fim, cumpre-nos ressaltar, relembrando a lição, já aqui apresentada, da mestra

Lucia Valle Figueiredo, que a Constituição Federal previu expressamente a contribuição de

melhoria e sua função dentro da atividade estatal (art. 145, III, CF). É inconcebível, assim,

que um mero decreto-lei, norma de hierarquia inferior, venha a usurpar uma atribuição

determinada pela própria CF, retirando eficácia da norma constitucional.

6 CONCLUSÃO

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Gostaríamos de, nessa fase conclusiva do presente trabalho, firmar posição no sentido

de considerar a modalidade desapropriatória zonal para fins de revenda um verdadeiro

absurdo, uma subversão da Ordem Jurídica Constitucional Brasileira!

O particular (leia-se: o povo! E frise-se: principalmente os mais pobres, dada sua falta

de peso político-econômico), mais uma vez, está sendo subjugado por seu próprio Estado fora

dos parâmetros da Carta Magna. Seus direitos fundamentais de liberdade e proteção à

propriedade nada mais lhe garantem, pois a Constituição virou letra morta, servindo apenas

quando conveniente aos interesses do “Poder”, e em conformidade com as interpretações

estranhamente flexíveis dos que estão no ápice da pirâmide social.

Cumpre a nós, intérpretes do Direito, se opor, também, às diversas anomalias ainda

existentes em nosso ordenamento jurídico. Não obstante os claros avanços atingidos com a

Carta Magna de 1988 e algumas leis posteriores, que vieram a lhe conferir maior efetividade e

proximidade com os anseios sociais; ainda se percebe muitas distorções, principalmente –

infelizmente – em detrimento de nossos direitos e garantias fundamentais.

Fala-se muito em “Supremacia do Interesse Público”. Qual é, todavia, o interesse

público que merece supremacia? Será o interesse do Estado (interesse público secundário) ou

o interesse da sociedade (interesse público primário)? A própria nomenclatura nos esclarece

tal questão.

Ocorre que, aparentemente, nossos representantes (administradores e

legisladores/fiscalizadores) e magistrados, em sua maioria, ainda consideram, em inúmeras

(apenas para fins de fugir à generalização) situações, o interesse estatal como o supremo.

Majoram-se tributos exorbitantemente e o retorno, em serviços públicos, é pífio; instituem-se

diversas regalias a título de prerrogativa de função enquanto o cidadão comum não tem nem

seus direitos mais básicos respeitados; cria-se, enfim, um sistema cruel, onde o cidadão mais

se assemelha a um verdadeiro súdito, subserviente aos ditames de seus soberanos.

Esquece, todavia, o cidadão que ele próprio é o soberano, nos termos do art. 1º, §

único, CF: “Todo o poder emana do povo [...]”! Resgatemos, pois, essa consciência cidadã.

Instruamos, enquanto juristas que reconhecem seu papel em um contexto social caótico do

ponto de vista dos direitos e garantias do indivíduo, a sociedade, investindo na educação e na

conscientização para um exercício pleno de nossa cidadania.

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7 REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 2 ed. São Paulo: Método, 2008.

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