Felismina Mendes Rg2

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sociologia

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  • Acta Sci. Health Sci. Maring, v. 28, n. 1, p. 1-11, 2006

    A gesto quotidiana da herana indesejadaA gesto quotidiana da herana indesejadaA gesto quotidiana da herana indesejadaA gesto quotidiana da herana indesejada:::: um um um um estudo sociolgico estudo sociolgico estudo sociolgico estudo sociolgico

    sobre o risco gentico de cncer hereditriosobre o risco gentico de cncer hereditriosobre o risco gentico de cncer hereditriosobre o risco gentico de cncer hereditrio

    Felismina Rosa Parreira Mendes

    Escola Superior de Enfermagem, Universidade de vora, Largo Sra. da Pobreza, vora, Portugal. e-mail: [email protected]

    RESUMO. Neste artigo, apresentam-se alguns dos dados obtidos em um estudo qualitativo sobre o quotidiano dos sujeitos em risco gentico de cncer hereditrio do clon. A perspectiva analtica, que possvel esboar a partir da anlise dos relatos desses indivduos remete para a importncia das condies-limite de aceitao positiva do risco e que, actualmente, se exprime na tendncia de diferentes projectos tecnolgicos de que a gentica um exemplo apelarem aos desejos individuais e colectivos de um futuro melhor. Outro dos traos estruturantes da gesto quotidiana do risco gentico centra-se na experincia familiar do cncer, que permite accionar prticas preventivas indispensveis ao controlo da doena. Esse saber acumulado e transmitido de gerao em gerao, por vezes oralmente, outras vezes atravs da experincia quotidiana com o sofrimento e a morte, ou na partilha das alegrias inerentes ao triunfo sobre o cncer configura-se como um dos pilares na gesto quotidiana da herana, indesejada. Palavras-chave: cncer, cncer hereditrio, risco gentico, herana gentica.

    ABSTRACT. Quotidian management of an undesired inheritance: a sociological

    study on genetic risk of hereditary cancer. This study presents some results obtained on a qualitative study about the everyday life of the individuals in genetic risk of hereditary cancer. The analytical perspective, which can be outlined on the basis of an analysis of the individuals reports, points out the importance of the limiting conditions of risk acceptance. This is presently expressed in the tendency for the different technological projects including genetics to appeal to both individual and collective wishes for a better future. Another conclusion is that the daily management of genetic risk is centred on the family experience of cancer, which allows preventives practices, indispensable to control the disease, to be put into action. This knowledge, sometimes accumulated and transmitted orally from generation to generation, and other times obtained from experiencing pain and death on a daily basis, or even by sharing in the joy of triumphing over cancer represents one of the pillars of the daily management of an unwelcome inheritance. Key words: cancer, hereditary cancer, genetic risk, genetic inheritance.

    IntroduoIntroduoIntroduoIntroduo

    A esperana de se conseguir predizer o futuro gentico dos indivduos no tem parado de crescer. No entanto, essa esperana coloca importantes questes quanto identidade e diferena. E por isso pergunta-se se o projecto Genoma Humano e a tecnologia gentica no iro criar novas categorias de inferioridade humana, gerar uma subjugao terica das pessoas geneticamente atpicas, nascidas e por nascer, diferenciando-as como doentes ou deficientes, ou classificar a diferena como uma caracterstica indesejvel e justificar a sua erradicao. Assim, no se pode deixar de salientar a sua importncia para a interpretao da sade, doena, normalidade e diferena.

    De acordo com Duster (1990), o rumo imparvel

    que os novos conhecimentos genticos e moleculares tm seguido ao longo dos ltimos anos possibilitou que a anlise da transmisso de traos fsicos do ADN (cido Desoxirribonucleico) se expandisse rapidamente a todos os domnios do quotidiano. Para este autor, as vozes de que a doena, as diferenas sexuais, a inteligncia ou o alcoolismo esto nos nossos genes oferecem ao discurso fortalecido da biologia molecular e da gentica a oportunidade para reafirmar a biologia como destino e gera, no imaginrio dos indivduos, a noo de que tudo possvel.

    Perante o anncio de um diagnstico gentico, aquilo que se transmite aos indivduos que a doena est em si prprio e, independentemente da aco dos fatores ambientais, ela ir desenvolver-se/manifestar-se. Essa revelao assume, contudo,

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    outras especificidades. Em muitos casos, os indivduos so confrontados com o resultado de um teste gentico, com um diagnstico, em um momento de seu trajeto de vida em que no esto doentes. Surge assim uma nova categoria mdica sancionada pelo resultado do teste gentico os indivduos em risco gentico hereditrio.

    Mas, no seu quotidiano, no so apenas confrontados com o anncio de que eles sero futuros doentes. No momento da revelao do teste eles so, simultaneamente, confrontados com essa sua herana familiar indesejada. A doena perde o seu carter individual para se transformar em uma doena familiar, em uma doena transmitida e transmissvel ao longo das geraes. No se trata apenas do choque de se saber que transporta em si o agente causal da doena, trata-se de saber que este lhe foi transmitido pelos seus progenitores e que, tambm ele, o transmitir aos seus descendentes e que a medicina no dispe de meios teraputicos capazes de elimin-lo. A nica forma para deter a mutao gentica no ter descendncia.

    Se se pode dizer que a doena, no geral, interfere sempre no quotidiano do indivduo, parece inegvel que a doena gentica hereditria, pelas suas especificidades, se consubstancia em um momento decisivo, no apenas do quotidiano mas, essencialmente, do seu projeto de vida. Ainda no tem a doena, nem sabe quando que ela se ir manifestar, no entanto, desde o anncio do diagnstico, pede-se-lhe (recomenda-se-lhe, exige-se-lhe) que, quotidianamente, se comporte como doente. Que cumpra as prescries mdicas, que seja vigiado e controlado medicamente com regularidade e que se mantenha atento ao seu corpo. No sendo doente o indivduo tem, todavia, desempenhar todos os papis inerentes ao estatuto de doente. A noo risco e de doena gentica no s se aprestam a revolucionar a medicina, como tendem a exercer uma tutela quotidiana sobre nossos comportamentos, atravs da noo de normalidade.

    Com efeito, o risco entendido como uma das mais heterogneas estratgias governamentais do poder disciplinar, pelas quais as populaes e os indivduos so vigiados e geridos at se atingirem os objetivos do humanismo democrtico. Ser designado como estando em risco ser posicionado em um conjunto de esboos concebidos a partir da observao dos outros (Lupton, 1999).

    Na aproximao ao risco, sobretudo ao risco gentico, o privilgio de no tomar uma deciso ou de no fazer uma escolha abolido. Essa responsabilidade para agir, geneticamente imposta, pode tambm ser concebida como um processo de

    resistncia s tentativas de imposio de uma identidade unificada e, neste sentido, constituir-se como um processo de transformao e diferenciao, sempre pautado por uma imensido de escolhas ativas, nomeadamente ao nvel do envolvimento com o seu corpo e com a medicina. Assim, a escolha e a deciso, face aos riscos de sade, podem ser equacionadas como modelos voluntaristas de ao, que podem ser usados negativamente na recusa ou resistncia, tal como positivamente na afirmao e colaborao (Nelkin e Tancredi, 1994; Sfez, 1997).

    Quando se enuncia que, potencialmente, quase todas as doenas e comportamentos podem ser geneticamente determinados, e que deter o conhecimento dos nossos prprios genes equivale a conhecermo-nos a ns prprios, no s se est em presena de um reducionismo que identifica a condio humana com a investigao gentica, como tambm se abrem as portas para uma era de genofobia medicamente mediada e para a imposio de prticas preventivas coercivas.

    Essas questes impem perspectiva sociolgica, inevitavelmente, um questionamento constante da gentica e da biologia, no apenas pelo lugar estratgico que tm ocupado na construo de novas categorias mdicas, a par da medicina, como pelas implicaes prticas desses novos saberes, graas aos quais as prticas eugnicas parecem ter abandonado as brumas do passado para pairarem sobre o presente e assombrarem os horizontes do futuro.

    Material e Material e Material e Material e mtodosmtodosmtodosmtodos

    Nesta pesquisa, o quotidiano de risco gentico, tal como percepcionado e experienciado pelos indivduos, ocupou um lugar central. Foi valorizada a experincia subjetiva imediata, como base do conhecimento sociolgico do cncer hereditrio e os fenmenos so estudados a partir dos pontos de vista e das prticas dos sujeitos. Deste modo, todo o trabalho foi orientado para o conhecimento da forma como experienciam e interpretam o cncer hereditrio e os novos saberes que o decifram, quais as prticas que accionam e quais os meios que utilizam para darem sentido a essas prticas.

    Foram entrevistados 15 indivduos com teste gentico positivo para o cncer do clon hereditrio, especificamente para Polipose Adenomatosa Faniliar (PAF) e o Sndrome de Lynch (SL)1, seguidos na

    1A PAF um tipo de cncer hereditrio do clon que se caracteriza pela existncia de centenas ou milhares de plipos no clon, com dimenses que podem ir de 1 mm a 2 ou 3 cm, podendo em casos extremos ser to grandes que provocam obstruo. Ocorre em 1 a 2% dos casos de cncr do clon e surge em mdia por volta dos 39 anos. Atinge igualmente homens e mulheres. As medidas profilticas so a remoo dos plipos e do clon, com vigilncia clica posterior.

    O SL outro tipo de cncer hereditrio do clon, sem polipose, que surge em 5 a 6% dos casos de cncer de clon, a idade mdia de desenvolvimento do cncer

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    Consulta de Risco Familiar de Gastreentorologia (CRFG) de um Hospital Pblico de Lisboa. A opo por essa consulta, como contexto social de observao, foi pensada no sentido de, por um lado, se dispor de um cenrio privilegiado, no qual o recurso s tecnologias genticas diagnsticas emerge cada vez mais como um recurso complementar e indispensvel do trabalho mdico e, por outro lado, pela facilidade de acesso aos indivduos.

    A autorizao da Comisso de tica para a realizao do estudo foi mediada por uma reunio com a investigadora, na qual esta foi chamada a clarificar alguns aspectos do projeto, especificamente a forma como pretendia estabelecer contato com os indivduos em risco.

    Tal como refere Carapinheiro (1993), a anlise da informao foi-se fazendo simultaneamente a sua recolha e foram-se reformulando, enriquecendo e reorganizando as dimenses analticas previamente selecionadas. Assim, mais do que em qualquer outro mtodo, no possvel conceber a pesquisa de terreno como uma estrutura cronologicamente organizada de procedimentos metodolgicos infalivelmente dispostos em uma sequncia de operaes, em que cada uma tenha como condio de realizao a finalizao de uma operao prvia.

    Inicialmente, foi feita uma recolha de informao na CRFG, a partir dos processos clnicos das famlias. A informao a obtida, quer em termos clnicos, quer ao nvel do genograma, propiciou acesso ao trajeto da doena e ao proband2 de cada famlia.

    Pela leitura do genograma fica-se, desde logo, com a informao relativas as mortes ocorridas na famlia, por PAF e SL, sobre os elementos que apresentam a doena e sobre os que esto, ou no, em risco de vir a desenvolv-la. Por meio do contato com essa pgina, fica-se a saber at que ponto aquela famlia foi afetada pela doena e como foi transmitido o gene ao longo das diferentes geraes.

    Por fim, foi realizada uma recolha intensiva de informao junto a 15 sujeitos com teste gentico positivo3, atravs de entrevistas semi-estruturadas.

    os 42 anos e as suas mutaes genticas esto associadas ao aparecimento de tumores noutros rgos e tecidos (ovrio, endomtrio, mama, estmago, pncreas). O diagnstico gentico e clnico. As medidas profilticas so a colectomia e a vigilncia mdica atravs de colonoscopia e sigmoidoscopia peridicas, para alm da vigilncia dos outros rgo e tecidos (como por exemplo ginecolgica). 2 o elemento da famlia eleito pelos profissionais o mediador -, que tem como objectivo informar e obter a adeso dos restantes familiares realizao do teste gentico. 3Relativamente aos 15 sujeitos entrevistados, sete so homens e oito so mulheres, com uma mdia de idade de 37 anos. Em termos de habilitaes literrias, oito entrevistados tm um curso superior, trs tm o ensino secundrio, dois entrevistados tm o correspondente ao segundo ciclo actual, uma das entrevistadas tm a 4 classe e outra frequenta o 12 ano. Do total de entrevistados, quatro (com idades compreendidas entre os 20-32 anos) no so casados nem vivem maritalmente com um companheiro e no tm filhos. Duas

    Pretendia-se saber como que os indivduos experienciaram todo o processo de categorizao mdica do risco desde o momento em que foram confrontados com a necessidade de realizarem o teste gentico, at o momento da revelao do resultado do teste, s implicaes do resultado em termos das prticas sociais quotidianas, aos procedimentos mdicos inerentes vigilncia contnua a que tm que se sujeitar, ao desconforto desses procedimentos, s questes ligadas transmisso da mutao aos seus descendentes, ao seu quotidiano familiar e de trabalho e aos seus projetos futuros. No fundo, saber como gerem quotidianamente o risco4.

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    Prticas preventivas: A resposta ao medo do cncer Prticas preventivas: A resposta ao medo do cncer Prticas preventivas: A resposta ao medo do cncer Prticas preventivas: A resposta ao medo do cncer

    A presso para fazer testes e atuar com base em seus resultados tende a ser cada vez maior. Os testes genticos, como observou Nelkin e Lindee (1995), tm sido e sero cada vez mais encorajados pelas presses legais, como no caso dos processos contra mdicos que no proporcionaram s mulheres grvidas testes para a deteco de distrbios fetais. O argumento : se os testes existem, devem ser utilizados.

    Alm disso, extremamente persuasivo, por parte dos conselheiros, informar os sujeitos que eles deveriam saber adaptar-se aos processos mdicos. Uma defensora da tica escreveu: um conselheiro dever ajudar a pessoa em risco a convencer-se de que, se esperar para ser testada se esperar at os sintomas conhecidos comearem a surgir ser tarde demais, para que ela fique bem consigo mesma (Appleyard, 1999, p. 164).

    Mas a frase ficar bem consigo mesma muito ambgua. Se for detectado um risco gentico de uma doena irreversvel a um indivduo e no existir tratamento ou cura para essa doena, questiona-se de que lhe servir tomar conhecimento, j que nada poder fazer para alterar a inevitabilidade desse fato. Pode-se ainda questionar se esse indivduo iria encetar alteraes no seu quotidiano ou no seu projeto de vida. Como assinala o mesmo autor, um sim a essa pergunta anularia o significado da sua vida atual. E, por isso, nessas condies muitos optam por aquilo que consideram a melhor soluo viver em pleno e com esperana no futuro.

    mulheres so casadas mas no tm filhos. Os restantes nove so casados e tm, em mdia, dois filhos. 4A anlise do contedo das entrevistas foi feita a partir do modelo proposto por L. Bardin, Anlise de Contedo. Rio de Janeiro: Edies 70, 1977 e por J. Vala, A Anlise de Contedo. In: Santos Silva, A.; Madureira Pinto, J. (Org.) Metodologia. das Cincias Sociais. 4. ed. Porto: Afrontamento, 1990.

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    De fato, quando se apela ao ficar bem consigo mesmo, o que se est a dizer que o indivduo dever mudar algo no seu quotidiano. Se assim for, isso significa que h qualquer coisa errada na sua vida atual e se o fato de lhe dizerem que vai morrer de uma determinada doena, em uma determinada altura, o levar a mudar porque no age quotidianamente de acordo com os padres de normalidade propostos.

    Assim, mesmo que os resultados de um teste sejam normais, eles nunca so andinos, visto que o teste pode sempre revelar essa ou aquela anomalia e esse ou aquele ponto fraco do genoma. Esse tambm um dos motivos porque as esperanas e os receios dos indivduos marcam decisivamente a comunicao dos resultados de um teste gentico. Neste sentido, quando se comunica a algum que lhe foi identificada uma predisposio gentica para determinada doena, o que se lhe est a dizer, de fato, que no existe a certeza de vir a ter a doena, j que outros genes (que ainda no se descobriram) e tambm muitos outros factores, para alm da hereditariedade, entram em linha de conta no aparecimento da doena.

    Do ponto de vista clnico, nesse caso, o indivduo apenas tem um fator de risco suplementar e o fato de ser detectada essa predisposio d-lhe uma grande vantagem, porque h uma preveno possvel, porque poder ser vigiado sistematicamente atravs de exames regulares e porque os mdicos tambm estaro mais atentos e vigilantes. partida, ser mais bem vigiado do que algum que no detenha um teste de diagnstico.

    Nessa concepo, nunca se questionam os fundamentos da poltica que lhe est subjacente, da qual podero emergir potenciais atentados, quer diversidade dos indivduos, quer a sua dignidade (Shakespeare, 1999). Ao eleger como problema moral o sofrimento, essa concepo defende que a identificao dos genes das doenas libertar os homens do dilema da vida, da doena e da morte, com que quotidianamente se confrontam, como se esse dilema fosse alheio prpria condio humana.

    O que est em causa o significado da predisposio gentica. Segundo o ponto de vista mdico, trata-se de um fator de risco e no de uma certeza, e o diagnstico feito em termos de probabilidades. Sero ento acionadas as medidas de preveno especficas, tanto mais indicadas quanto mais elevado for o seu risco em relao mdia das pessoas.

    Se a biotecnologia mistura, de forma indiferenciada benefcios bvios e males sutis, como assevera Fukuyama (2002), para indivduos em risco

    gentico o determinismo estatstico e a pesagem dos mltiplos intermedirios entre o acaso e o inexorvel fazem com que, muitas vezes, se sintam vtimas de uma fatalidade ou que tenham dificuldades em percepcionar um acontecimento freqentemente equacionado como algo que s acontece aos outros, sobretudo quando a soluo que lhes apresentada pelo mdico continua a jogar apenas com probabilidades incertas e com futuros provveis.

    Eu achava que era muito cedo para mim... eu s tinha 33 anos, era muito nova... eu sabia que tambm devia ter esses genes mas, mesmo assim, pensei que ainda era muito nova. Agora j passou e no noto diferena nenhuma...quer dizer... mudou um bocadinho porque, a est o problema... que eu agora vou mais vezes casa de banho... pronto s isso. Mas depois, ns habituamos e j no faz diferena (Ent.5F).

    A herana anunciada, porm inesperada, acaba sempre por surpreender os indivduos, que insistem e se recusam a deix-la comandar o seu quotidiano. Apesar da inevitabilidade de sua presena e da impossibilidade de se libertarem da herana maldita, estes indivduos tentam manter o controle de seu quotidiano. Aceitam-na como parte integrante das suas estratgias de vida, mas tentam, arduamente, impedi-la de controlar a esperana e de ditar o futuro. Lutar sempre e nunca se entregar a frase que parece comandar o seu dia a dia a partir do momento do diagnstico. Assim, embora aceitem os argumentos e mantenham as expectativas da medicina preventiva, os indivduos questionam a sua sorte5. Ter conhecimento de que se portador do risco gentico de cncer hereditrio traduz-se sempre em um estado de choque e em uma ruptura, ainda que temporria do seu quotidiano.

    No incio foi difcil... mas como j sabia que havia essa doena na famlia, estava mais ou menos preparada... mas custou e foi difcil aceitar quando soube os resultados... quando eu recebi a notcia, chorei, chorei... mas depois pensei no exemplo da minha irm, na fora dela e, prontos, c estou a fazer a minha vida (Ent.5F).

    Essa ruptura no se traduziu em um reequacionar de suas trajectrias ou de seu estilo de vida, mas levou-os a entrarem em um perodo de gesto da vida marcado pela vigilncia de sade e pela capitalizao da espera. Para esses indivduos, e

    5Porm, ao contrrio do que refere L. Sfez, A Sade Perfeita. Crticas de uma Utopia. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, os sujeitos entrevistados, no questionam aqueles (mdicos e peritos) que, face a probabilidades incertas, teimam em traar rumos certos.

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    ao contrrio do que pontuam Herzlich e Pierret (1991)6, a partir do momento do diagnstico ou identificao da mutao gentica , apenas interessou saber o que fazer para evitar que a doena se manifestasse.

    precisamente essa vigilncia regular dos parmetros biolgicos que marca a entrada do risco no universo da medicina. A relao com a medicina e com o universo dos cuidados e da tecnologia mdica contribui para objetivar a doena e para fazer com que aqueles que recusam definir-se como doentes venham a emergir como indivduos que esto a ser tratados. Nessa concepo defendida pelas mesmas autoras, os sujeitos transformam-se em doentes no momento em que entram no sistema reticular de controlo mdico, para vigiarem o risco de que so portadores. Assim, se a ameaa est presente, torna-se imperioso conhecer e acionar, imediatamente, todas as estratgias protetoras em relao ao risco, que impeam que a doena se revele.

    A vigilncia fundamental para ns. ela que permite detectar a malignizao de algum plipo e, por isso, eu nunca falto a um exame. Se h esta possibilidade de controlo, ns devemos aproveit-la. Com estes exames sabemos se est tudo a correr bem e isso muito importante para ns. Estamos a lidar com o cncer e isso no brincadeira nenhuma (Ent.7M).

    Por isso, a maioria deles j se sujeitou, sem questionar, a uma colectomia total (remoo do clon) e nunca colocou a hiptese de no comparecer a um exame de vigilncia colonoscopia. Apesar da complexidade cirrgica da primeira e do desconforto fsico e psicolgico da segunda, a confiana nas capacidades preventivas da medicina inquestionvel e, por isso, eles submetem-se docilmente a todas as intervenes propostas.

    Nunca me passou pela cabea no fazer a vigilncia. Ora se eu fui fazer o teste e quis saber o que se passava... claro que agora cumpro tudo. Fao o que me disseram para fazer, sempre para evitar o piorEstes exames so importantssimos para ns e por isso no faz sentido no os fazer (Ent.15M).

    O medo face doena modela a gesto quotidiana do risco gentico e conduz, muitas vezes, esses indivduos a modificaes de seus comportamentos/hbitos, que passam pela adoo de um estilo de vida saudvel em que se incluem, por

    6Estas autoras consideram que para os sujeitos em risco, a partir do momento do diagnstico, apenas lhes interessa saber quando e como que a doena se vai manifestar.

    exemplo, a diminuio do consumo de lcool e do tabaco e o recurso alimentao equilibrada. Essas modificaes no quotidiano, apesar de poderem evocar uma temtica prxima do dever de sade, surgem aqui como uma defesa contra a ameaa que representa a doena (Herzlich e Pierret, 1991).

    ... e o que acontece que isto provoca alteraes no organismo e eu, que antes da cirurgia nunca tinha problemas, agora tenho problemas quer com a digesto quer com a qualidade de alimentos. A nvel da alimentao tenho que ter muitos cuidados e at j tinha antes porque como tenho uma famlia muito metida nesta doena e que sempre teve muito cuidado com a alimentao que muito base de vegetais e muito mais limitada, mais peixe do que carne. De facto sempre estar mais limitado e tambm em termos de fritos h uma reaco desagradvel do organismo... (Ent.10M).

    Alm disso, a gesto do risco traduz-se em uma ateno minuciosa e quase quotidiana ao corpo e a seus sinais (Greco, 1993; Sapolsky, 1994). Todos os sujeitos entrevistados se referiram a esse estado de alerta permanente que o risco de cncer introduziu em seu quotidiano. Nenhum sinal suspeito, que possa de uma forma ou de outra ser associado patologia intestinal, passa despercebido. Essa vigilncia constante, no se centra apenas sobre o seu corpo, mas alarga-se ao dos familiares mais prximos e, por vezes, aos prprios amigos e colegas.

    Tambm h outra coisa... agora, quando sinto assim uma dorzinha que fora do normal, j estou preocupada... ser que h outra coisa? Ser que por detrs desta h outra, noutros stios? Uma pessoa fica sempre com essas ideias na cabea. Mas mesmo assim, eu acho que me adaptei muito bem... s estarmos mais atentos, s isso (Ent. 5F).

    As garantias oferecidas pelas prticas preventivas face ao cncer hereditrio do clon e o conhecimento adquirido sobre o risco e a doena impuseram a esses indivduos uma rotina quotidiana, qual no parecem ter ficado indiferentes. Face informao de que dispem e ao medo que o cncer inspira, no deixam de referir que esse tipo de diagnstico permite dar a cada um novos meios para continuarem a ter esperana em seu futuro. Em um cenrio dominado pelo risco e no qual a ameaa de cncer tem que ser detectada e combatida ao menor sinal, esses indivduos (homens e mulheres), sempre vigilantes, assumem em seu quotidiano o papel de mediadores privilegiados da medicina preventiva.

    Em finais do sculo passado, a sade tornou-se uma questo de responsabilidade individual. Assume-se que um sujeito responsvel deve no

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    apenas consultar os peritos que quantificam os riscos para a sua sade e lhes fornecem informao sobre a gesto do risco, mas tambm atuar, depois desse aviso, dando passos para gerir os seus riscos (Peterson and Lupton, 1996).

    Conforme Peterson (1998), a construo da sade como um fato moral no se restringe apenas s discusses sobre os riscos de sade voluntrios, mas tambm est presente nas discusses referentes ao risco gentico. A retrica da gentica postula que os indivduos tm a responsabilidade de obter saber gentico e, subseqentemente, tentar modificar os seus riscos. Para este autor, essas concepes no so s perpetuadas pelos clnicos, mas tambm pelos indivduos em risco.

    Quer dizer... as consequncias podem ser as mesmas dos outros cncer, agora o hereditrio tem uma grande vantagem porque a pessoa pode estar prevenida e pode ser operada e pode ser tratada a tempo... antes da coisa ser fatal. Por conseguinte, eu diria que os cncer hereditrios so melhores que os outros. Porque ns estamos prevenidos e podemos atac-los (Ent.8F).

    O risco gentico acarretou tambm aos indivduos, que j foram submetidos colectomia, alteraes quotidianas difceis de confessar devido prpria localizao da doena na parte inferior do corpo e em um rgo ligado funo excretora e que simbolicamente representa o sujo/excremento. Como aponta Sontag (1981), o cncer conhecido por atacar partes do corpo que referidas com algum embarao. Ter um tumor suscita, em geral, um certo sentimento de vergonha, porm na hierarquia dos rgos, o cncer do clon ou do recto considerado mais constrangedor do que o do pulmo (rgo situado na parte superior e sempre associado nobre actividade de respirar e, portanto vida). Alm disso, apresenta importantes alteraes dos hbitos intestinais que impem aos indivduos a necessidade de encetarem estratgias de controlo de seu quotidiano, de forma a ocultarem as sequelas que so portadores.

    Talvez tenha um pouco mais de trabalho, pronto... vamos l ver... no tenho intestino grosso... antigamente era certinho a evacuar, agora evacuo quase 4 a 5 vezes. Talvez tenha mais cuidado, aceito perfeitamente o meu relgio biolgico e s vezes, se eu estou num restaurante... tento prolongar ou aguentar aquilo mais um quarto de hora porque eu j sei que a seguir...pronto... se for evacuar j tenho a tarde toda e no me chateio. Ahhh... mas no, no me d para ter frustrao porque est tudo bem, no ? (Ent. 7M).

    Os indivduos entrevistados parecem dispostos a

    percorrer o caminho traado e aceitarem os obstculos com que se iro deparar ao longo do percurso, sempre com um objetivo presente: evitarem o cncer. Em seus relatos, possvel observar que, exceo de um deles, todos se manifestam gratos por esse caminho ter sido encontrado e se dizem preparados para o trilharem com xito. A sua confiana dupla e abrange tanto aqueles que o indicaram, quanto o prprio caminho em si.

    Para mim assim... eles conhece a minha situao, conhecem toda a histria da minha famlia e portanto eu fao o que eles dizem. Eles explicaram-me que eu, se fizesse o teste e depois desse positivo, podia ser vigiada e acompanhada e que no me acontecia o mesmo que ao meu pai e ao meu av e tios e sei l... eles, naquela altura, foram seguidos por outros que no sabiam o que se passava... eram outros tempos... aqui eu sei que sou bem seguida e no s isso... eles so muito disponveis e atenciosos e sabem... a gente percebe que eles sabem o que fazem. At agora tudo tem corrido bem e por isso vou continuar a fazer o que os mdicos me dizem... no ser o mais normal? Quanto a mim . At porque no quero passar pelo que o meu pai passou... isso no! (Ent. 14F).

    A confiana nos mdicos e em suas indicaes preventivas e o medo do cncer promovem uma adeso incondicional s prticas preventivas, das que os mdicos so os mediadores privilegiados. O medo, o terror, o fatalismo e o sofrimento que essa doena inspira e que as campanhas de preveno do cncer incansavelmente tm perpetuado, desde o incio do sculo XIX, persistem no imaginrio dos sujeitos, ao mesmo tempo que se configuram como mediadores privilegiados dessa dcil adeso s medidas preventivas.

    Para aqueles (poucos) que no aderem ou contestam a racionalidade diagnstica e preventiva que a gentica disps medicina, ressaltam-se so as implicaes quotidianas dessa sentena, que os levou no mundo dos doentes quando ainda estavam isentos de sintomas. por isso que Brock et al., 1996 afirmam que, para muitos indivduos, o resultado do diagnstico gentico minar a sua prpria sensao de serem saudveis e ter graves efeitos adversos, tanto no conceito de si prprios, quanto em quotidiano.

    Se bem que apenas um dos entrevistados tenha questionado o discurso mdico e valorizado as alteraes quotidianas que se sucederam aps o diagnstico gentico, os outros admitiram que, em seu quotidiano, permanecem algumas marcas do diagnstico que lhes foram feito. A diferena essencial que, para estes, essas alteraes so o

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    preo a pagar por um futuro sem cncer. A importncia de sentirem que mantm o

    controle do risco e da doena leva esses indivduos ( exceo de um deles) a desvalorizarem as imposies que o risco fez emergir, paulatinamente, em seu quotidiano. E, assim sendo, em seus relatos evocam continuamente a possibilidade de manterem seu projeto de vida inalterado.

    Se queremos estar controlados, temos que ser vigiados e fazer o que for necessrio para no se repetirem fatalidades...Disso no tenho dvidas. Eu confio inteiramente no que os mdicos me dizem e tento fazer tudo o que me dizem. O que interessa estarmos bem O resto pouco importante (Ent. 2M).

    medida que se amplia o conhecimento acerca das implicaes sociais e dos perigos subjacentes ao desenvolvimento tecnolgico, estes tendem a ser modelados e apresentados como simples infortnios inerentes ao quotidiano, como o preo que inevitvel pagar para que as geraes futuras possam gozar os benefcios da tecnologia e da modernidade, como expresso no discurso de uma das entrevistadas.

    Eu estou sempre disponvel, sempre a pensar nos meus filhos. Ccheguei a ter alturas de ver mais uma uma sigmoidoscopia, era para fazer a colonoscopia mas depois era mais uma sigmide, depois mais uma... passado um tempo, era outra sigmide e eu nunca disse que no e sempre, sempre disponvel porque eu espero que atravs de mim consigam um dia fazer para outros e principalmente para os meus filhos. Isto de estar nos nossos genes... uma coisa muito sria... eles explicam-nos tudo muito direitinho e depois que ns vimos que importante... toda a gente devia saber que h muitas coisas em que os genes mandam... h sim senhor (Ent. 4F).

    A surpresa e o choque inicial perante o diagnstico gentico, as medidas preventivas acionadas, a vigilncia de sade contnua e as alteraes dos hbitos intestinais configuram-se como meros incmodos residuais, desprovidos de importncia, quando o que est em causa a ameaa de cncer para si prprios e para seus descendentes. Tudo parece ser suportvel e integrvel em seus quotidianos, menos essa doena e o sofrimento que a ela est associado, o qual, tantas vezes eles foram testemunhas impotentes.

    Esse cenrio remete, novamente, para o temor que o cncer suscita e para a herana familiar, passada incessantemente ao longo de geraes, que se configuram como dois dos marcos analticos sempre subjacentes mobilizao de recursos individuais contra a ameaa que experienciam.

    Nessa perspectiva analtica, no se pode ignorar o terceiro eixo a confiana que depositam nos mdicos e na medicina7. Ela completa esse cenrio e parece impedir os indivduos em risco de cncer gentico hereditrio de desistirem do futuro.

    Confiana na medicina e reproduo da racionalidade Confiana na medicina e reproduo da racionalidade Confiana na medicina e reproduo da racionalidade Confiana na medicina e reproduo da racionalidade

    genticagenticagenticagentica

    Rhodes e Strain (2000) assinalam que a confiana tem significao em termos intrnsecos e instrumentais. Intrinsecamente, ela define-se pelas caractersticas que do relao mdico-doente significado, importncia e substncia. Neste sentido, preservar, realar e justificar a confiana so os objetivos fundamentais da tica mdica e os objetivos mais proeminentes nos cuidados de sade (Mechanic, 1998; Rhodes e Strain, 2000).

    Como valor instrumental, a confiana essencial para os encontros teraputicos efetivos. Ela afeta um conjunto de comportamentos e atitudes importantes, incluindo a perda de interesse em receber cuidados, de revelar informao sensvel, de submeter-se ao tratamento, de participar na pesquisa, de aderir a regimes de tratamento, de permanecer com um mdico e de recomendar mdicos a outros (Parsons, 1951; Rhodes e Strain, 2000). Enquanto fator central das relaes mdico-doente, a confiana acaba por assumir o papel de mediadora dos xitos clnicos.

    Nos encontros interpessoais e mdicos, as atitudes de confiana so direcionadas mais como motivaes e intenes do que como resultados. Claro que aqueles que confiam tambm esperam, ou tm expectativas, em um bom resultado, mas a confiana tem um carter diferente, j que os indivduos acreditam que os outros agem com as suas melhores intenes. A confiana interpessoal, nesse ponto de vista, difere da confidncia ou segurana, embora cada uma delas esteja ligada predio de resultados positivos (Heimer, 2001).

    Cada vez mais os doentes enfrentam riscos que ameaam a sade e, neste sentido, sentem necessidade de confiar e acreditar que o poder dos mdicos e da medicina maior do que nunca. No obstante, mesmo as expectativas mais otimistas podem tambm dar origem a um profundo sentimento de traio quando no so alcanadas (Mechanic, 1998). Segundo este autor, um dos traos da confiana que a sua violao tende a produzir reaes morais e emocionais de indignao, em vez de um desapontamento face falncia dos

    7Os sujeitos entrevistados no denotam qualquer ambivalncia face medicina preditiva, caracterizada pelas suas competncias diagnsticas e pela sua incompetncia na cura. Para eles, o papel da medicina e do mdico, face ao risco, mantm-se intactos.

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    resultados esperados. Esses componentes morais e emocionais existem devido s suposies sobre as motivaes e intenes, e no apenas sobre habilidades e performances.

    Para Murray e Holmes (1997), a confiana uma atitude direcionada ao carter e personalidade dos mdicos e ao continuar da relao teraputica. Assim, ela pode ser efmera e sujeita a uma rpida reviso, com base nas diferentes experincias do doente. Por isso, possvel constatar que os doentes com nveis altos de confiana esquecem mais facilmente um erro mdico, desde que percebam que este se esforou bastante.

    Os doentes que iniciam uma nova relao com altos nveis de confiana experimentam mais facilmente resultados positivos e ficam com grandes expectativas em termos de relaes futuras, enquanto que um doente que se envolve em uma relao com desconfiana mais facilmente tende a encarar os resultados negativamente, o que refora a sua perspectiva inicial e perturba a sua interpretao e o tratamento subseqente, mesmo se este for perfeito (Holmes e Rempel, 1987). Nos indivduos em risco gentico de cncer hereditrio do clon, esses altos nveis de confiana esto presentes desde o momento em que iniciaram o seu percurso de controlo e gesto do risco. O conhecimento prvio dos mdicos (que j haviam seguido outros familiares), o testemunho de seu sucesso em intervenes junto desses mesmos familiares, o contato com os novos conhecimentos e tecnologias exibidas na preveno do cncer e a ateno e disponibilidade permanente da equipe para com o seu caso e de sua famlia parecem mediar, decisivamente, os seus nveis de confiana nos mdicos da CRFG e na prpria medicina.

    Lake (2000) preconiza que, em geral, 90% dos doentes expressam algum nvel de confiana em seus mdicos e dois teros expressam muita confiana. Isto parece indicar que as bases da confiana nos mdicos est mais ligada a aspectos fundamentais da relao teraputica do que a mudanas sociais ou regulaes institucionais.

    Uma outra perspectiva analtica que possvel esboar a partir da anlise dos relatos desses indivduos remete para a importncia das condies-limite do clima de aceitao positiva do risco e que, atualmente, se exprime na tendncia desses diferentes projetos tecnolgicos de que a gentica um exemplo apelarem aos desejos individuais e coletivos de um futuro melhor. O prprio envolvimento dos indivduos nesses projectos parece fazer com que se tornem membros do carrocel mgico. Passam a experienciar, quotidianamente,

    aquilo que s tinham visto ou ouvido em filmes e na televiso, ou que s tinham lido em revistas ou jornais. Tornam-se protagonistas do acontecimento e dos novos desenvolvimentos tecnolgicos, adotando paulatinamente os modelos de racionalidade que subjazem a esse carrocel, e que, sempre em prol da sade e do bem comum, reduzem a importncia do presente e transformam o futuro em um imperativo moral. Assim, segundo Welsh (2000), a adeso e os desejos dos indivduos tambm detm um importante papel na seleo de prioridades nas agendas do risco gentico.

    Esse discurso de aceitao e reproduo da racionalidade gentica pode assumir outras formas e traduzir-se em uma crtica violenta queles que no o partilham ou o ignoram e, indiretamente, culpabiliz-los pela sua desateno e ignorncia ante o conhecimento gentico e os instrumentos que dispe aos indivduos. Ou, como preconiza Keller (1995), h muitos problemas associados genetizao da sade e da doena, mas talvez um dos mais insidiosos se encontre nesse convite a padres de normalidade biolgica socialmente irrealistas, ameaando no o regresso antiga eugenia, mas a apario de uma nova eugenia a eugenia da normalidade. Os conhecimentos genticos devem, ento, ser entendidos como passveis de proporcionar uma quantidade, sem precedentes, de poder para classificar os indivduos.

    ... as pessoas so pouco inteligentes...acabam por chegar aqui... acabam por no ir trabalhar, acabam por no resguardar a famlia e acabam por perder a famlia... por perder tudo. So estpidas e nada inteligentes... depois dizem que foi uma fatalidade. Portanto... as pessoas no fazem o que deviam fazer... as pessoas deviam ter um bocado de conscincia das coisas e de como elas so e pronto... prevenirem-se... S no se previne quem burro. No tenha dvidas (Ent.7M).

    De tal forma esse discurso inerente racionalidade gentica se tem difundido que atualmente freqente ouvir os indivduos explicarem um ou outro ponto fraco, dizendo est nos meus genes. A frase ecoa ao fatalismo da antiga frase est no meu destino e significa, tambm, que a idia dos genes como destino ganhou um pouco da popular fora da astrologia. O ADN parece ter-se tornado mgico e dotado de uma identidade, histria e significado prprios. Onde antes havia demnios e bruxas, e depois neuroses e traumas de juventude, h agora genes. Murphy e Luke (1995) chegam a comparar o poder preditivo da gentica antiga arte da aruspcia, ou adivinhao do futuro, atravs do exame das entranhas dos animais.

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    Sabe... na minha famlia existem estes genes e depois uma pessoa est logo espera... e no bom porque eles acabam por traar de certa forma o nosso destino... mas quanto a mim assim... at se pode dizer que tudo isto no incomoda muito... mas eles esto c e eu nada posso fazer para mudar isso, no me posso livrar deles e, se calhar, at vou pass-los aos meus filhos... acabam por determinar muita coisa na nossa vida e sempre determinaram... mas, no fundo, se ns somos o que somos, muito se deve aos nossos genes... e assim eles acabam por nos condicionar. E agora com esta novas tcnicas... so muito importantes no nosso futuro... estes testes fazem uma previso, no ? Se acontecer j estamos preparados, se no acontecer melhor (Ent. 14F).

    O tema dominante da gentica mdica tem sido a previso. Considera-se que, uma vez alcanada a compreenso de como funcionam os genes, podem-se fazer previses especficas quanto ao futuro mdico dos sujeitos. Atualmente, trata-se a doena quando ela surge. Mas a gentica, nomeadamente atravs dos testes, torna possvel uma ao preventiva especfica muito antes da manifestao dos sintomas. Ao dar a conhecer a cada um as suscetibilidades especficas do seu corpo, a gentica permite aos indivduos planearem a sua vida para terem as melhores probabilidades possveis em termos de sade e doena. A essa tese, defendida pelos defensores do dogma central, opem-se alguns, mais fatalistas, que acusam os geneticistas de destruir toda a esperana em doentes com cncer ou suposto cncer... e, ao prever que os filhos destes podero ter cncer, produzem uma indescritvel tortura mental em supostas vtimas, sem poderem ser condenados por tal feito (Proctor, 1995, p. 220).

    Essas duas posies tm-se mantido inconciliveis. Todavia, o poder desses discursos do desejo, centrado nas biotecnologias e em gentica, e nas suas implcitas promessas da engenharia perfeita, de corpos imortais e do domnio total da doena, parece irresistvel. Escudando-se sob a bandeira da dignidade humana, ele ecoa triunfantemente.

    Para seus defensores, a dignidade da condio humana exige tudo fazer para erradicar as doenas, a infelicidade e o sofrimento. Alm disso, o fato de poder conhecer e dominar melhor o seu ser biolgico, longe de o desumanizar, permitir valorizar no homem o que ele tem de especificamente humano. O que se pretende dotar os indivduos de conhecimentos (os seus prprios fatores de risco) que lhe permitam, antecipadamente, contornar os obstculos que os impediriam de viver verdadeiramente.

    Para os crticos dessa posio, aquilo que a biotecnologia e a gentica se aprestam a fazer, aps a

    identificao dos genes que controlam determinadas caractersticas e tm determinadas funes, reparar os seus defeitos. Para tal, inevitvel recolher, nascena, o ADN de cada indivduo, procurar alguns genes de predisposio a doenas e, depois, instituir regimes apropriados para que essas situaes no se verifiquem. Segundo essas previses, o conhecimento gentico acabar com a necessidade da medicina, tal como existe atualmente, para se dedicar apenas preveno generalizada. A cada um ser fornecida uma anlise das suas predisposies genticas e ser indicado o caminho correto/adequado para o resto das suas vidas8.

    Aparentemente, tudo se resume questo de transmisso de informao. O mdico e outras organizaes pblicas tomaro a seu cargo essa gigantesca tarefa de informar e ensinar os indivduos a gerirem racionalmente o seu capital de sade, possivelmente sempre munidos com o respectivo carto de identidade gentica, ou seja, de um guia completo de preveno patolgica pessoal. A manipulao e o controle dos indivduos insinuam-se sempre que se equacionam os futuros previstos pelas tecnologias genticas.

    So muitos aqueles que se tm pronunciado acerca das implicaes quotidianas dos testes genticos disponveis para muitas doenas hereditrias, como o cncer do clon (Nelkin e Tancredi, 1994; Shakspeare, 1999) e todos so unnimes em afirmar que o medo de se ser portador de uma doena gentica vai, certamente, generalizar-se. Da mesma forma, prevem que esse medo vai passar a dominar o quotidiano de muitos indivduos9, e que medicina e sade pblica restar o papel de mediadoras dessa genetofobia coletiva a que se ir assistir nos prximos anos. Porm, se se centrar no discurso dos entrevistados, possvel afirmar que estamos mais prximos de uma genetofilia expectante.

    A gentica e estes testes so muito importantes para todos. pena no existirem mais e para outras doenas. Eles vo ser o futuro da medicina e, quanto a mim, todos deviam faz-los. Podem prevenir-se situaes muito complicadas. Eu penso que, cada vez, vo ser mais especficos e isso, s ajuda as pessoas. Prevejo grandes desenvolvimentos nessa rea e espero que isso nos ajude cada vez mais (Ent. 15M).

    Neste caso, e como refere Wilson (1993, p. 7), o desconhecido e o prodigioso comportam-se como

    8Questiona-se se esta fase no ser seguida de uma outra, onde os genes defeituosos sero detectados e reparados numa fase precoce do embrio e a estaremos perante a substituio da medicina pela engenharia gentica. 9Espera-se que no se confirmem as crenas de Herbert Snow, que em 1885, acreditava que a depresso resultante dos medos poderia, por si s, facilitar o aparecimento do cncer.

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    drogas para a imaginao, basta prov-los para que a fome se torne insacivel.

    A gentica e os conhecimentos que dispe medicina, tal como todos os novos conhecimentos tecnolgicos, abrem-se a numerosas interpretaes e so o produto de vrias prticas e construes que subjazem, elas prprias, ao que significa viver a modernidade, em que os fluxos imparveis de informao do a cada um o direito de se definir e redefinir continuamente. Para j, no somos doentes nem temos nenhuma doena. Somos s filhos do infortnio. Amanh... ainda no sabemos (Ent.10F).

    Como assevera Appleyard (1999), quando a tecnologia toma o poder parece ser necessrio criar um espao transcendental no qual os indivduos possam refugiar-se. Porque, sem isso no haveria drama, nem envolvimento e no se estaria perante uma histria reconhecivelmente humana.

    Comentrios finaisComentrios finaisComentrios finaisComentrios finais

    Da anlise realizada, pode-se constatar que o medo do cncer o elemento estruturante das prticas e concepes dos indivduos em risco gentico. A carga simblica, desde sempre associada a essa doena, permanece em seu imaginrio e impele-os para a ao. No se trata aqui de um medo paralisante, mas de um medo que os leva a agir sem demora e a aceitarem, sem questionar a realizao do teste gentico e posteriormente as prticas de vigilncia. Essas so concebidas como o nico recurso de que dispem para ter algum controle sobre o risco e a doena, e para poderem continuar a ter expectativas otimistas face ao futuro, ou seja, acionam estratgias que lhes permitam maximizar o tempo (livres da doena).

    Assim, para os indivduos em risco gentico de cncer hereditrio do clon estar em risco, acima de tudo, deter o controle sobre a ameaa de cncer atravs do acionar das prticas preventivas e de vigilncia. Esse discurso no pode ser isolado daquilo que tm sido as mltiplas campanhas de preveno (ou de luta) contra o cncer que tiveram o seu incio nos primeiros anos do sculo XIX e em que a responsabilidade individual face ao cncer era (e continua a ser) o tema comum a todas essas campanhas.

    Se o risco gentico se projeta no futuro, nomeadamente atravs dos descendentes, a partir do passado que ele construdo. A herana familiar insinuou-se lentamente quando, durante anos, foi testemunhada, impotentemente, a morte de familiares prximos. Chegados ao presente e munidos de um saber adquirido no passado e

    reconstrudo a partir do universo mdico atual, minimiza o risco gentico no presente. Em suas representaes, o risco desprovido de qualquer poder sobre o seu quotidiano. E as alteraes que admitem poderem ser-lhe imputadas so relegadas categoria de meros incmodos, com uma funo bem precisa: evitar a doena (o cncer).

    A memria eterna prende-os no medo. Por isso suportam os desconfortos, a dor, a ansiedade e o embarao dos exames mdicos, em uma submisso absoluta ao esquema de controle proposto pelos mdicos. O medo do cncer, vindo do passado, paira sobre o presente e ameaa o futuro. Irremediavelmente, esses indivduos tm que se manter vigilantes.

    A partir dos conhecimentos genticos, configura-se uma medicina, em que a centralidade dos seus poderes e saberes se v fortemente reforada. Ao seu lado, e munidos da racionalidade gentica emergem, paulatinamente, os mediadores dessa medicina preventiva os indivduos em risco gentico de cncer hereditrio.

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