Fetiche da tecnologia

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    o FETICHE DA TECNOLOGIATHE FETISH OF TECHNOLOGY

    o fetiche da tecnologia

    Henrique NOVAESlRenato DAGNINCY

    RESUMO: o intuito deste artigo mostrar que artefatos tecnolgicos que nosparecem no dia-a-dia neutros, intrinsecamente bons, produzidos to somente pararesolver problemas prticos, contm relaes sociais rustoricamente determinadas eobscurecem o contedo de classe das escolhas tecnolgicas. Para dar sustentao aesta idia, parte-se do conceito de Fetiche da Mercadoria em Marx e da sua expansopara o campo da tecnologia realizado por Feenberg, e o debate recente da esquerdano campo da tecnologia. O artigo conclui expondo as possibilidades de transformaoda tecnologia capitalista no sentido de adequ-l a empreendimentosa u to ges tionrios.PALAVRAS-CHAVE: fetichismo da tecnologia; autogesto; foras produtivas.

    INTRODUO A questo tecnolgica no vem sendo suficientementetratada pela Economia Solidria (ES). Por no dar a devida ateno aotema da tecnologia, a literatura da ES vislumbra, na melhor das hipteses,uma fmelhor utilizao" da tecnologia convencional (DAGNINO;NOVAES, 2004), no reconhecendo as barreiras tcnicas que existempara adaptao de uma tecnologia heterogestionria para osempreendimentos autogestionrios.3

    No se questiona neste artigo a imprescindvel necessidadede reorganizao da diviso do trabalho, mas porcura-se salientar queao centrar sua anlise nas possibilidades de reorganizao do processode trabalho, a ES minimiza ou ignora os entraves tcnicos para se atingira autogesto.

    Longe de acreditar que a tecnologia est dada e sempreinserida para aumentar a produtividade com vistas a maiorI Mestrando e membro do Grupo de Anlise de Poltica de Inovao (GAPI), [email protected] Professor Titular da Unicamp e Coordenador do GAPI. [email protected] (1984) nos lembra que muitas mquinas so projetadas pensando-se numarelao de subordinao e hierarquia.ORG & DEMO, v.5,n.2, p.189-2JO,2004 189

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    rentabilidade do capital, h um debate recente realizado por autores emgrande parte marxistas, que buscam mostrar o Fetiche da Tecnologia, oconflito em torno da tcnica e seu indeterminismo (NOBLE, 1989;FEENBERG, 2002), as caractersticas trans-histricas da tecnologia(MSZROS, 2002) e a impossibilidade de proclamao da autogestomesmo com a tomada do poder ou da posse dos meios de produo peloproletariado (BETTELHEIM, 1979a).o FETIGIE DA MERCADORIA E DA TECNOLOGIA

    Karl Marx, pensador social do sculo XIX, utilizou o conceitode fetiche da mercadoria para desvendar o contedo de classe daproduo no capitalismo de sua poca. Para David Ricardo e AdamSmith, a produo de mercadorias no era uma especificidade docapitalismo, mas sn uma fonna de produo eterna, natural queperpassaria toda a histria da humanidade.

    Para Marx, o fetiche da mercadoria resultava doentendimento das leis econrnicas como sendo naturais, independentesda histria. Uma construo histrica socialmente determinada - amercadoria - era apresentada como perene e intransponvel,obscurecendo-se, assim, que a determinao do seu valor tinha carterde classe.

    Sua crtica ao fetichismo da mercadoria vincula-se aodesvelamento do segredo da acumulao de capital e das origens da m a i s ~ valia. A travs dela, Marx nos mostra que o capitalismo, ao invs de serurna relao eterna que perpassa todos os povos, naes e fases histricas, um modo de produo historicamente constitudo e que a mercadoria um.a forma especfica de relao entre as classes sociais que nasce com ocapitalismo.

    Uma passagem do capital nos parece esclarecedora paradescobrir oI/carter enigmtico do produto do trabalho to logo eleassume a forma de mercadoria".o misterioso da forma mercadoria consiste simplesmente nofato de que ela reflete aos homens as caractersticas sociais do

    seu prprio trabalho como caractersticas objetivas dosprodutos do trabalho, como propriedades naturais sociaisdessas coisas e, por isso, tambm reflete a relao socialexistente fora deles, entre objetos. (MARX, 1996, p.198)

    O fetiche da rnercadoria denota uma especfica relao socialentre os prprios homens que para eles assume a forma190 ORG & DEMO, v 5, n.2, p.189-210, 2004

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    o fetiche da tecnologia"fantasmagrica de uma relao entre coisas" (MARX, 1996, p.198). Destamaneira, o atributo fetichista do mundo das mercadorias provm docarter social do trabalho. Ao se produzir mercadorias, produz-se tanlbmmais-valia. Esta surge em. funo da caracterstica peculiar da fora detrabalho, uma vez que ela produz um valor excedente ao valor que otrabalhador recebe ao vender sua fora de trabalho. O sobretrabalho nopago - a mais valia - a parte do valor da mercadoria apropriada pelocapital. Ele igual diferena entre o valor da mercadoria e o valor dafora de trabalho efetivamente pago pelo capital.

    Da Inesma forma que a mercadoria encobre uma relao declasses de uma poca histrica determinada, a tecnologia entendidacom.o um meio para se atingir fins, como "cincia aplicada" emequipamentos para aumentar a eficcia na produo de bens e servios.

    Andrew Feenberg, autor de filiao Inarxista, utiliza oconceito de Fetiche da Tecnologia para nos mostrar que a tecnologia quenos apresentada como politicamente neutra, eterna, a-histrica, sujeitaa valores estritamente tcnicos e, portanto, no permeada pela luta declasses, uma construo histrico-social. E, assim. como a Inercadoria,tende a obscurecer as relaes de classe diluindo-as no contedoaparentemente no especfico da tcnica.

    Feenberg compara o fetiche da mercadoria e da tecnologiaafirmando que

    No uso marxiano, o fetichismo das mercadorias no aatrao pelo consumo, mas a crena prtica na realidade dospreos colocados nas mercadorias pelo mercado. Comodestaca Marx, o preo no , de fato, um atributo "real"(fsico) das mercadorias, mas a cristalizao de uma relaoentre os fabricantes e os consumidores. No entanto, omovimento das mercadorias do vendedor para o comprador determinado pelo preo como se ele fosse real. Do mesmomodo, o que se mascara na percepo fetichista da tecnologia seu carter relacional, justamente porque ela aparece comouma instncia no-social de pura racionalidade tcnica.(FEENBERG, 1999, p. 25)

    Feenberg (1999) explica a persistncia do conceito reificadoda tecnologia na estrutura social de uma sociedade capitalistatecnologicamente desenvolvida, afirmando que tal estruhlra lnodela tantoas relaes prticas quanto subjetivas dos seres humanos com atecnologia. Nos assuntos prticos do dia-a-dia, a tecnologia nos apresentada, primeiro e acima de tudo, por sua funo. Ns a entendemoscomo essencialmente orientada para o uso.ORG & DEMO, v.5,n.2. p.189-2JO, 2004 191

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    A crtica s vises determinista e positivista da tecnologiasugerida por Feenberg (1992) permite entender melhor seu fetiche. Paramuitos autores que analisam o campo da Cincia e Tecnologia (C&T),inclusive marxistas, a viso mecanicista e unilinear do progresso cientficoe tecnolgico ainda permanece. Considerando a tecnologia como sendouma forma de controle social da natureza ou ainda como uma coleo dedispositivos isentos de valores, estas correntes entendem o projeto e aescolha da tecnologia como sendo resultado de uma deciso estritamentetcnica.

    Para Feenberg (2002), a filosofia da tecnologia esqueceu quea tecnologia nada mais que um artefato scio-cultural e que, por isso,no est livre de influncias histricas, polticas, culturais. Em ltimaanlise, que est sujeita luta de classes.

    Para a viso do determinismo tecnolgico, todas ascivilizaes tenderiam a alcanar padres tecnolgicos sempre maisavanados. O progresso tcnico entendido como fosse um bonde emcima de trilhos previamente colocados por algum, que segue um caminhoprprio, onde todas as naes deveriam embarcar; umas antes (asavanadas) outras depois (as retardatrias). Partindo de uma anliseindependente do mundo social, os deterministas se apiam no supostode que as tecnologias tm uma lgica funcional autnoma que pode serexplicada sem referncia sociedade (FEENBERG, 1991).

    Para algumas correntes, de raiz histrica iluminista, aproduo de C&T seria nica e universal. Estas avanariam contnua einexoravelmente, seguindo um caminho prprio e um desenvolvimentolinear. Todos os conhecimentos criados pela civilizao poderiam entoser utilizados de qualquer forma em qualquer poca histrica, poisnecessariamente estariam conduzindo os povos para o bem-estar e oprogresso econmico e social.4 Disso se conclui que no existiriampossibilidades de mudana dos rumos da C&T e nem mesmo necessidadede inovaes adaptativas ou incrementais caso um contexto scio-polticodiferente emergisse. O progresso tcnico segue um caminho linear, 'T .]uma pista fixa de configuraes menos avanadas para mais avanadas"(FEENBERG, 1992, p.3).

    Para a viso instrumental, o objeto tecnolgico em si neutro,o que faz a diferena o emprego que dele se faz. Como exemplo bastantesimples, podemos citar a utilizao de uma faca em dois4 Um amplo debate sobre as vises neutra, determinista e socialmente construda datecnologia pode se r visto em Dagnino (2002b)192 ORG & DEMO, v.5, 11.2, p.189-210, 2004

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    o fetiche da tecnologiacontextos diferenciados. Nas mos de um cirurgio, um objeto cortantetoma-se um eficiente instrumento de trabalho uma vez que este podeoperar e salvar uma vida. Nas mos de um degolador, Uln objeto cortantetoma-se prejudicial sociedade.

    De acordo com Feenberg (1991 e 2002), devemos fazer umacrtica recontextualizante que traga os objetos-artefatos para os ambientesscio-culturais-histricos nos quais estes foram concebidos e assimdesvendar o seu fetiche. nesse sentido que ele prope como umanecessidade da ordem do dia uma 1/ [ ] crtica holstica da tecnologia euma teoria de suas potencialidades democrticas" (FEENBERG, 2002,p.22).

    A partir de uma viso histrica, Feenberg afirma que atecnologia no intrinsecamente boa nem veio ao mundo para libertar ahUlnanidade da atividade tormentosa de trabalho. Tambn1 critica a visotriunfalista, pois acredita que as novas tecnologias so 1/[ ..] tcnicas deconquista, uma vez que pretendem uma autonomia sem precedentes ondesuas fontes e efeitos sociais esto ocultos" (FEENBERG, 2002, p.36). Porconsiderar que a atual configurao da tcnica uma dentre tantas outraspossibilidades, conclui que possvel cOInpatibilizar a tecnologia e ademocracia, inclusive na esfera do trabalho.

    Ao avaliar a histria social da tecnologia no modo deproduo capitalista, o autor afirma que sua configurao no foiconstruda democraticamente. A idia de que a vitria das elitescapitalistas (e tambm do socialismo real) desprezou e vem desprezandoa participao de muitos grupos sociais na definio do desenhotecnolgico o leva a afirmar que diferentes contextos sociais podem levara configuraes tcnicas diferenciadas.

    Para Feenberg (2002), a tecnologia no neutra porqueincorpora valores da sociedade industrial; especialmente os daquelaselites capazes de incorporar (ou traduzir) seus valores (ou reivindicaes)na tcnica. Justamente por envolver questes polticas, um importanteveculo para dominao cultural, controle social e concentrao do poderindustrial. Assim, a racionalidade tcnica seria tambm racionalidadepoltica: os valores de um sistema social especfico e os interesses daclasse dominante se instalam no desenho das mquinas e em outrossupostos procedimentos racionais.

    De acordo com Feenberg (2002, p.lS), uma racionalidadetcnica que, numa dada sociedade, se consolida como dominante nochega a adquirir o estatuto de uma ideologia (expresso discursiva deORG & DEMO, v..5,n.2, p.189-2JO,2004 193

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    um interesse de classe), mas no pode ser assimilada a uma simplesreflexo sobre leis naturais. A racionalidade tcnica situa-se, portanto,numa interseco entre a ideologia e a tcnica em que ambas se juntampara controlar os seres humanos e recursos em. conformidade com aquiloque ele denomina "Cdigos Tcnicos". Um Cdigo Tcnico envolve amaterializao de um interesse particular no mbito de um conjunto desolues para um tipo geral de problema que seja tecnicamente coerentecom esse interesse. A noo de cdigo tcnico pressupe, ento, queexistam diferentes solues para um mesmo problema tcnico(FEENBERG, 2002, p. 21).

    Desta maneira, a Teoria Crtica de Feenberg mostra comoestes Cdigos Tcnicos invisveis atuam corno agentes de sedimentaocapazes de materializar valores e interesses em regras, procedimentos,equipamentos e artefatos que conformam as rotinas mediante as quais oexerccio do poder e da hegemonia, por parte das elites dominantes, setornam naturais (FEENBERG, 2002, p.lS).

    Sua anlise retrata a tecnologia como sendo tambmconfigurada em funo da luta de classes no capitalismo. Afirma que atecnologia est sujeita ao conflito histrico entre os detentores dos meiosde produo e a mo-de-obra assalariada. por isso que assimila a idiado parlamento de coisas de Latour (1992). No entanto, poderamos dizerque temos um parlamento desigual no processo de seleo tcnica. Se ainterpretao que fizemos de Feenberg est correta, a posse da iniciativatcnica, ou o controle das decises de natureza tcnica pelos capitalistaspossui um poder de determinao semelhante posse do capital, dandoa eles um poder maior de deciso nas escolhas dos artefatos e processosde trabalho.

    A tecnocracia no seria ento a conseqncia direta do efeitode um imperativo tecnolgico, mas da maximizao do poder de classesob as circunstncias especiais de sociedades capitalistas e da tecnologiaque engendra. Essa situao permite entender o modo especfico atravsdo qual se d o conflito social na esfera tcnica: se alternativastecnicamente comparveis possuem implicaes distintas em termos dadistribuio do poder, e se ocorre alguma disputa entre trabalhadores ecapitalistas, tende a ser escolhida aquela que favorece o controle doprocesso por estes ltimos (FEENBERG, 1999).5

    Como exemplo do conflito social e da flexibilidade em tomoda tcnica, Feenberg (1992) nos lembra a lei fabril de 1844 que propunha5 Esta argumentao foi abordada em Dagnino e Novaes (2004).194 ORG & DEMO, v 5, n.2, p.189-21 O, 2004

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    o fetiche da tecnologiaa abolio do trabalho infantil nas fbricas inglesas. Para os donos dasfbricas, as crianas eram. um imperativo das tecnologias empregadas napoca, pois o uso exclusivo da mo-de-obra adulta traria conseqnciascatastrficas para o comrcio ingls. Mas o que aconteceu com o adventoda Lei de 1844? Teve que ser empregada exclusivamente a mo-de-obraadulta, o que evidenciou a flexibilidade do sistema tcnico e o carter daluta que se travara em tomo das mquinas (FEENBERG, 1992).

    Feenberg (2002) concebe o processo de construotecnolgica como sendo am.bivalente, suspenso entre distintaspossibilidades. A escolha da tmica depende de quem detm o poder dedeciso e tambm da entrada de novos atores em cena. Podemos optar,por exemplo, ao invs de produo hierarquizada e pouco enriquecedorado saber operrio, por produo atravs de grupos semi-autnomos ouautogestionrios; os computadores podem ser desenhados para expandira comunicao, poderemos construir nosso transporte em tomo de nibuscoletivos ao invs de adotar o imperativo automobilstico.

    David Noble (1989) tambm acredita que as relaes sociaismoldam a tecnologia, que a classe social dominante traz para a tcnicaseus valores e que h um desequilbrio de poder nas decises tcnicas. Aconfigurao da tecnologia por ele entendida como um processocomplexo cujos resultados dependem da "fora relativa das partesenvolvidas" e no podem ser conhecidos a priori. Desta maneira, atecnologia duas vezes determinada pelas relaes sociais de produo:primeiro, ela concebida e materializada de acordo com a ideologia e opoder social daqueles que tomam as decises; segundo, seu uso naproduo determinado pelas lutas de classe que ocorrem no cho defbrica (NOBLE, 1989).

    Noble, assim como Feenberg, v um fetiche cultural natecnologia e afirma que este reside no foco naquilo que est na moda, namudana contnua, incessante da tecnologia, e na idia de avanoinexorvel sempre benfico. No entanto, nos esquecemos daquilo queno est mudando, isto , das relaes de dominao que continuam amoldar a sociedade e a tecnologia (NOBLE, 1984).

    No livro America by Design, Noble (1977) explora a histriadas instituies, idias e grupos sociais que escolheram as tecnologiasdo sculo XX. J no seu livro Foras de Produo, Noble (1984) mostracomo estas instituies, idias e grupos sociais, operando num contexto

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    de conflito de classes e informadas por uma 1/[ ] compulso irracionalda ideologia do progresso" (NOBLE, 1984, p.8), determ.inam o uso e odesenho das tecnologias. Negando a viso do determinismo tecnolgicoque tentaria mostrar como as potencialidades sociais foram moldadaspor constrangimentos tcnicos, ele examina como as possibilidadestcnicas tm sido delimitadas por constrangimentos sociais.

    Ao refletir sobre a tecnologia de uma maneira nodeterminista, Noble chama a ateno para a autonomia relativa existenteno campo das possibilidades de escolha em torno da tcnica. Por ser umprocesso inerentemente social, o desenvolvimento tecnolgico tem umalarga medida de indeterminao.

    No entanto, mesmo havendo uma grande medida deindeterminao, Noble tambm reconhece o desequilibrio de poder declasses na seguinte passagem.

    Hay una guerra pero solo uno de los lados est armado: estaes la esencia de la cuestin de la tecnologa hoy. En un ladoest el capital privado, cientfico y subvencionado, mvil yglobal, y en la actualidad fuertemente armado, con un ampliocontrol militar y tecnologas de la comunicacin.[ ..] Por otrolado, los que sufren la agresin abandonan apresuradamenteel campo de batalla porque carecen de un plan, de armas oejrcito. Su propia comprensin y capacidades crticas,confundidas por una barrera cultural, los lleva a refugiarse enestrategias que oscilan entre el apaeiguamiento y el pacto, laincredulidad y la falsa ilusin, y a titubear, desesperados ydesorganizados, ante deI aparentemente inexorable ataquedel/cambio tecnolgico' (2000, p.6).

    OS MEIOS SO EM SI MESMOS OS FINSRubem Alves (1968) um dos poucos brasileiros que fez

    uma incurso no tema da no neutralidade da Cincia e Tecnologia. Oartigo Tecnologia e humanizao ajuda a decifrar a armadilha terica naqual o fetiche da tecnologia nos coloca quotidianamente. Para ele, oadvento da tecnologia conscientemente planificada no a siInplesaplicao prtica de conhecimentos tericos, como se, de repente, ohomem tivesse descoberto a forma de transformar em mquinas osconhecimentos armazenados. Apoiando-se em Macluhan para retirar ovu da neutralidade tecnolgica, afirma que os objetivos do sistema noso os produtos criados por ele, mas o bom andamento do sistema eln simesmo. Para ele, a nica forma de analisar a tecnologia enquanto196 ORG & DEMO, v.5, n.2, p, /89-210,2004

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    etiche da tecnologiasistema, justamente porque no se pode separar a natureza da tecnologiade seu uso.

    Longe de ser determinada abstratamente, a tecnologia oresultado de relaes sociais de produo dentro da sociedade. Assim, atecnologia no pode ser compreendida simplesmente como umaferramenta criada para dominar a natureza. Mais do que isso, Alvesafirma, interpretando Marx, que "[ .. ] a mquina um instrumento queperpetua um mundo em que os donos dos meios de produo exploramos deserdados" (1968, p.14).

    Para finalizar sua argurnentao, Rubem Alves destri aidia comumente disseminada pelas vozes do povo, por muitos tericosda Economia Solidria e porque no dos cientistas, de que 1/[ .] a tecnologiaem si no nem boa nem m, a maneira como ela utilizada quedetermina seu valor" (1968, p.16). Este tipo de declarao ignora anatureza do instrumento tecnolgico (ALVES, 1968) e cai naquilo queFeenberg chamou de viso instrumental.

    Segundo este autor, o problema dessa viso acima citada que pensar em tecnologia em termos de meios, isto , corno simplespossibilidade de eficcia, a ser ativada a cada momento por deciseslivres e sempre novas do homem, errado porque o que caracteriza atecnologia que os meios so, em si mesmos, os fins. o funcionamentodos meios, e no o produto o que realmente conta (ALVES, 1968).

    Um olhar para a histria do conflito em tomo da maquinarianos mostraria que as mquinas comearam a ser introduzidas no apenaspara ajudar a criar um marco dentro do qual poderia se impor umadisciplina ao trabalho, mas tambm devido a uma ao consciente porparte dos patres para contrarrestar as greves e outras formas demilitncia dos trabalhadores (MARX, 1996; DICKSON, 1978; FEENBERG,2002).A CRTICA RECENTE DAS FORAS PRODVTIVAS

    De acordo com Gorz (1974), at o incio da dcada de 1960muitos marxistas consideravam as foras produtivas, em particular acincia e a tcnica, como ideologicamente neutras e seu desenvolvimentocomo intrinsecamente positivo. O acirramento da contradio entre odesenvolvimento das foras produtivas (DFP) e relaes sociais deproduo (RSP) seria, eln resumo, a condio objetiva para a transioao socialismo.ORG & DEMO, v 5,11.2, p.J892JO, 2004 197

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    Segundo Bettelheim (1979b), na mesma linha de Gorz, o marxismo da 2ae 3a Internacionais acreditava que o DFP por si s faria desaparecer asformas capitalistas de diviso do trabalho e as outras relaes sociaisburguesas, melhor dizendo, o desaparecimento das relaes comerciais,monetrias alm da planificao socialista dependeriam nica eexclusivamente do DFP e no da revoluconarizao das relaes sociais.

    Ainda, seguindo o caminho assinalado por Bettelheim, hduas teses da poca que se tomaram recorrentes no marxismo que preciso criticar. Uma delas estabelece uma identificao mecanicista entreas formas jurdicas de propriedade e as relaes de classe. Em sntese, nocaso da URSS, pelo fato de a propriedade privada dos meios de produoe de troca ter sido praticamente extinta, afirmava-se que no havia maiscapitalistas no seio da produo e que as contradies econmicas e polticasde classes caram e desapareceram. A outra tese de grande aceitao a doprimado do DFP. Como ilustrao dessa tese, Bettelheirn (1979b) utilizauma passagem de Stlin. "Em primeiro lugar, modificam-se e sedesenvolvem as foras produtivas da sociedade; em seguida, em funoe em. conformidade com essas modificaes, transforrnam-se as relaesde produo entre os homens" (STLIN, 1938 apud BETTELHEIM, 1979b,p.31). Desse modo, a luta de classes intervm essencialmente pararomper as relaes de produo que impedem o DFP, dando origem arelaes de produo novas, de acordo com as exigncias das forasprodutivas. Talvez seja desta concepo que decorreu a afirmao doPartido Menchevique de que a URSS no tinha suas foras produtivassuficientemente desenvolvidas, e que a revoluo proletria s poderiaacontecer num pas industrializado.

    Para Stlin, o programa do proletariado deve, antes de tudo,inspirar-se nas leis de produo, sendo a mudana das relaes deproduo algo que poderia ser deixado para mais tarde. Lnin descreviaesta viso como sendo eco71omicsta, justamente porque via a luta polticade classes como produto direto e imediato das contradies econmicas(BETTELHEIM,1979b).66 preciso sempre ressaltar o contexto da URSS. "So as numerosas transformaessofridas pela Rssia sovitica e o partido bolchevista entre outubro de 1917 e 1929que permitem a sustentao de concepes que identificam a construo dosocialismo com o desenvolvimento mais rpido possvel das foras produtivas"(BETTELHEIM, 1979b). Pode-se dizer que Bryan (1992) no concorda com estasjustificativas histricas dadas por Bettelheim tendo em vista os elogios de Lnin aotaylorismo.198 OR G & DEMO, 11.5, n.2, p.189-210, 2004

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    o fetiche da tecnologiaEm Luta de classes, Kautsky advoga a necessidade de reduo

    do tempo de trabalho no socialismo, no entanto, no prope qualquerreforma no desenho da tecnologia ou no processo de trabalho (FEENBERG,2002, p.47).

    Numa extensa e empolgante obra que retrata nos mnimosdetalhes a concepo de Lnin, do Partido Bolchevista e da OposioOperria sobre a aplicao dos princpios tayloristas7 no fim do sculoXIX e ao longo do sculo XX na Rssia, Bryan (1992, p.475) evidencia osequvocos terico-prticos da "variante russa do taylorismo" e a ausnciade uma anlise crtica das transformaes do processo de trabalho pelospensadores daquela poca histrica.

    Bryan aponta que existiam crticos aplicao dosprincpios tayloristas na URSS, tais corno Bogdanov (militante daProletkult), Kollontai (militante da Oposio Operria) e afirma que oSistema Taylor enlrentou resistncia, ao contrrio do que a historiografiatradicional divulga.

    Para muitos revolucionrios da poca vinculados ao cotidianodo trabalhador havia a necessidade de melhorar os mtodos de trabalhotendo em vista o aumento da produtividade do trabalho social e adiminuio da escassez de alimentos e de combustvel na URSS. Eles, "[ ..]entretanto, recusavam a idia de organizar o trabalho com. base no critrioda racionalidade da tcnica desenvolvida pelo capitalismo" (BRYAN,1992, p.475). Para alguns militantes da Oposio Operria, o aumento daprodutividade do trabalho, numa sociedade que vislumbrava o socialismo,viria no com.o conseqncia da adoo de tcnicas que se haviammostrado bem sucedidas nos pases capitalistas avanados, "[ ..] mas deuma nova organizao do trabalho fundada na criatividade e iniciativado trabalhador" (BRYAN, 1992, p. 475).

    Bogdanov, defensor de uma cultura proletria e militanteda Proletkult, julga o taylorismo inadequado para a indstria modernaporque a "[ ..] repetio constante da mesma tarefa poderia levar a umembrutecimento dos sentidos podendo ser contra-producente para asnecessidades da indstria avanada" (SOCHOR apud BRYAN, 1992,p.454).A cincia, segundo Bogdanov, um instrumento tanto da/I estru turao burguesa da vida social" como de /Idominao das classes7 O Sistema Taylor - conhecido na Rssia como sistema americano, preconizava ocontrole dos tempos e movimentos do trabalhador, a retirada de todo trabalhocerebral do cho de fbrica e baseava-se nos incentivos salariais como isca paraatrair a mo-de-obra com vistas a aumentar a produtividade do trabalho.ORG & DEMO, v.5,n.2, p.189-210, 2004 199

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    trabalhadoras". Isso leva Bryan a afirmar, interpretando Bogdanov, quepor estar "[ .. ] umbilicalmente ligada sociedade capitalista, a cinciaburguesa tambm padece de seus problemas e est, do .mesmo modo queela, fadada a ser superada por formas superiores" (BRYAN, 1992, p.459).

    Contra as vises de Kollontai e Bogdanov, a concepo queprevaleceu no Partido Bolchevista foi a possibilidade de utilizao dosprincpios cientficos de Taylor tanto no capitalismo quanto nosocialismo. De acordo com Bryan, Lnin aceita o carter cientifico dosistema Taylor e 1/[ ..]o insere no mbito do projeto de modernizao dasinstituies, que nos pases desenvolvidos da Europa foi obra docapitalismo e da burguesia, considerado por ele como premissainsubstituvel para a construo do socialismo" (1992, p.456).

    A defesa de Lnin e talnbm de Trotski da cincia, tcnica eartes produzidas na sociedade capitalista como meios para a construoda sociedade socialista, os levam a realizar um ataque a Bogdanov e aosmilitantes da Proletkult (BRYAN, 1992).

    Lembremos que para Lnin, em Tarefas imediatas do podersovitico, o socialismo podia ser entendido como 1/[ ... ]poder sovitico +ordem prussiana das ferrovias + tcnica e organizao norte-americanados trustes + instruo pblica norte-americana, etc" (LNIN, 1918, p. 23).

    Bryan acredita que o sistema Taylor no era uma propostade Lnin para um contexto adverso ou circunstancial,8 e por isso sustentaa tese de que no houve "[ .. ] mudanas fundamentais na interpretaode Lnin e que ela bastante coerente com sua concepo de socialismoe com. a sua leitura dos textos de Marx sobre o processo de trabalho"(BRYAN, 1992, p.452).

    Gorz e Bettelheim, crticos do determinismo tecnolgico,afirmam que o marxismo tradicional deixou muito a desejar ao nocompreender que a tcnica de produo capitalista traz consigo a marcadas relaes capitalistas de produo e, portanto, relaes sociais deproduo distintas s poderiam consolidar-se com o concurso de umamudana radical e simultnea dos meios e tcnicas de produo (e noapenas de seu emprego).

    8 Lembremos qu e o primeiro governo proletrio da histria inicia-se marcado pelaeconomia de guerra e pela Nova Poltica Econmica (NEP).200 ORG & DEMO, v.5, n.2, p.189-210, 2004

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    Para Istvn Mszros (2002), importante autor de filiaomarxista, a tecnologia tambrn no neutra. Ao contrrio da maioria domarxismo do sculo XX, Mszros acredita que antes de herdarem asforas produtivas, os trabalhadores devem reestrutur-las radicalmente.

    Este autor tem muito a dizer sobre o tema, mas sua visono pode ser compreendida sem se observar que sua proposta demudana global tem por objetivo o fim do capitalismo e do sistemascometablico do capital. Sua teoria vai a busca das exignciasqualitativamente mais elevadas da nova forma histrica - o socialismoonde o ser humano possa desenvolver sua rica individualidade. Para esteautor, o poder liberador das foras produtivas ''[. ..] permanece como UITlrnero potencial diante das necessidades autoperpetuadoras do capital"(MSZROS, 2002, p.527). No campo mais especfico da tecnologia,Mszros chega a afirmar que sua insero estruturada com o nicopropsito de reproduo ampliada do capital a qualquer custo social.

    Na passagem que segue, ele mostra porque a tecnologia no neutra e porque ela no poder ser utilizada sem modificaessignificativas no socialismo.A tecnologia - que pode ser considerada em princpio neutra- em algwLs aspectos, is to , at que tal viso seja modificadasignifica tivamente pela fora de outras consideraesfundamentais, na realidade adquire, por meio da inserosocial necessria, o peso da inrcia superpoderosa de umfator trans-rus trico (MSZROS, 2002, p.528).

    Isso leva Mszros (2002) a afirmar que a tecnologia, porpossuir uma estrutura relativamente constante (caracterstica transhistrica), representa urn dos maiores desafios para a mudanaqualitativa. A necessidade de uma radical transformao dos meios etcnicas de produo considerada por ele como sendo "um problernaparadigmtico da transio" ou como um "fator trans-histrico" porqueas 1/condies materiais de produo, assim como sua organizaohierrquica, permanecem no dia seguinte da revoluo exatamente asmesmas que antes" (MSZROS, 2002, p. 575) .

    Mszros discorda de Lukcs a respeito da 1/[ . ] livreintercambialidade das fbricas construdas para propsitos capitalistase socialistas, cuja produo funcione sem problemas numa basematerialmente 'neutra'" (2002, p. 864) e afirma que este pensador hngarotrata de forma fetichista os conceitos de tecnologia e

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    "instrumentalidade pura" (2002, p.864). Lembremos que para Lukcs,"[ ...] uma fbrica construda para propsitos capitalistas tranqilamentepode produzir sem mudanas significativas sob o socialismo, e viceversa"(1991, p.86)9 .passagem.

    Mszros continua sua crtica de forma irnica nesta

    Este postulado da neutralidade material/instrumental tosensato quanto a idia de que o hardware de um computadorpode funcionar sem o software. E at mesmo quando se chegaa ter a iluso de que isto poderia ser feito, j que o 'sistemaoperacional' etc no precisa ser carregado separadamente deum disquete ou disco rgido, o software relevante j estavagravado no hardware. Por isso, nenhum software pode serconsiderado 'neutro' (ou indiferente) aos propsitos para osquais foi inventado.O mesmo vale para as fbricas construdas para propsitoscapitalistas, que trazem as marcas indelveis do 'sistemaoperacional' - a diviso social hierrquica do trabalho - como qual foram constitudas. Para ficar com a analogia docomputador, um sistema estruturado em torno de uma CPU bastante inadequado para um sistema operacional divisadopara Processadores Paralelos'descentralizados', e vice-versa.Portanto, um sistema produtivo que se proponha a ativar aparticipao plena dos produtores associados requer umamultiplicidade adequadamente coordenada de 'ProcessadoresParalelos', alm de um sistema operacional correspondenteque seja radicalmente diferente da alternativa centralmenteoperada, que seja a capitalista ou as famosas variedadesps-capitalistas de economias dirigidas, apresentadasenganosamente como de 'planejamento' (2002, p.865, grifosdo autor).

    A anlise de Mszros parece bastante proveitosa para umacrtica a maior parte das interpretaes sobre C&T do marxismo do sculoXX. Isso porque o problema da diviso do trabalho, da alienao, doavano das foras produtivas foi esquecido ou abordado incorretamente,colocando-se em pauta somente a tomada do poder, a propriedade estataldos meios de produo e a apropriao das foras produtivasengendradas pelo capitalismo pelo proletariado ou sua utilizao paraa construo do socialismo.

    9 Mszros acredita que, ao argumentar desta forma, Lukcs abandonou a idia desuperao da diviso do trabalho.202 ORG & DEMO, v.5, 11.2, p.189-210, 2004

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    o fetiche da tecnologiaPodemos concluir, interpretando Mszros, que a

    dominao do capital sobre o trabalho de carter fundamentalmenteeconmico, e no poltico. Tudo nos leva a crer que as transformaestrans-histricas no se do como a simples mudana poltica, mas sotarefas que envolvem um longo prazo de revoluo social atravs de umtrabalho positivo de regenerao.

    nesta linha que se d a crtica de Charles Bettelheim(1979a) burocracia stalinista, bem antes do fenecimento do socialismoreal. Num contexto de crtica ao socialismo da URSS, Bettelheim (1979a)aborda a Revoluo Cultural chinesa e as implicaes que dela decorrem.Comparando-a com o que se observava na URSS - onde tivemos apenasuma /I mudana nas relaes jurdicas de propriedade" e a permannciadas relaes de produo e das foras produtivas herdadas - a RevoluoCulhlral chinesa estaria nos mostrando um verdadeiro empenho naabolio progressiva da diviso social do trabalho herdada docapitalismo, seja pela construo de uma tecnologia socialista, seja pela'eliminao progressiva da subordinao dos trabalhadores aosengenheiros e tcnicos. O

    Para Bettelheim, cuja crtica perspicaz se d bem antes deMszros, a tcnica socialmente condicionada e est permeada pelaluta de classes.

    [ .. ] a tcnica nunca 'neutra', ela no est nunca situada'acima' ou 'ao lado' da luta de classes. A luta de classes e atransformao que ela impe ao processo de produo e srelaes de produo determinam o carter especfico dasforas produtivas e de seu desenvolvimento (BETTELHEIM,1979a, p.10B).

    justamente por isso que mesmo com a tomada do poder,com. a coletivizao ou estatizao das fbricas, os trabalhadores10 Braverman realiza uma espcie de crtica ao cooperativismo parlamentarista desua poca e a subordinao eterna dos trabalhadores aos engenheiros. /I As demandasde participao e controle pelos trabalhadores escapam muito viso marxista. Oconceito de uma democracia na oficina baseada simplesmente na imposio de umaestrutura formal de parlamentarismo - eleio de diretores, votao sobre decisesreferentes produo de acordo com a organizao existente decepcionante. Semo retorno do requisito de conhecimento tcnico pela massa dos trabalhadores ereformulao da organizao do trabalho - sem, em uma palavra - um novo everdadeiramente coletivo modo de produo - a votao nas fbricas e escritriosno altera o fato de que trabalhadores continuem dependendo tanto quanto antesdos 'peritos' e s podem escolher entre eles ou votar nas alternativas apresentadaspor eles" (BRAVERMAN, 1987, p. 376).ORG & DEMO, v.5,n.2, p.189-210, 2004 203

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    continuam "separados dos meios de produo" (BETTELHEIM, 1979a,p.108) e uma minoria tem ainda a possibilidade de determinar a utilizaoe a conform.ao dos meios de produo, tal como se deu na URSS.

    Bettelheim conclui que o avano da via socialista dependeda luta do proletariado no s no campo da poltica como tambm emtorno da diviso do trabalho, no sendo, jamais, o produto direto dosimples desenvolvimento das foras produtivas.

    Interpretando Marx, Feenberg (2002) argumenta que atecnologia industrial sistematicamente subotimizada num sistema ondeos trabalhadores no tm interesse no desempenho da empresa depropriedade do patro. Enquanto que num sistema onde os trabalhadorestrabalham para seu prprio proveito, a imposio de disciplina notrabalho tomar-se-ia suprflua.

    No entanto, para atingir a sociedade emancipada onde seteria a possibilidade de auspiciar o pleno desenvolvimento humano,deveremos oferecer uma crtica interpretao tradicional da C&T pelomarxismo. Para estes, o alcance da sociedade socialista demandariapouco mais do que uma mudana formal da propriedade dos meios deproduo. Segundo Feenberg, os marxistas do mundo comunista derammuita nfase teoria da propriedade e ignoraram completamente a crticaao processo de trabalho e tecnologia. Em contraposio a esta nfase,Feenberg (2002, p.51) acredita que a herana tcnica peculiarmenteadaptada ao controle hierrquico e que os aspectos antidemocrticos datecnologia capitalista e do desenvolvimento tecnolgico devem sertransformados. Nesse sentido, observa que as mquinas desenvolvidasno sistema capitalista podem ser empregadas para 1/[ ... ] produzir umanova gerao de mquinas adaptadas para os propsitos socialistas"(FEENBERG, 2002, p.53). Mas esta mudana tecnolgica no decorreriade forma idealista, mas sim da luta de classes. Em ltima instncia, dacapacidade da classe trabalhadora de imprimir novos valores sobre aherana tecnolgica.POSSIBILIDADES DE MUDANA NA CONHGURAO TECNOLGICA

    Procurando solucionar o impasse que a crtica correta, masparalisante ao determinismo tecnolgico coloca para os interessados nasustentabilidade e viabilidade tcnica de estilos de desenvolvimentoscio-econmico e ambiental distintos do atualmente dominante,

    204 ORG & DEMO, v, 5, lJ,2, p.189-210, 2004

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    o fetiche da tecnologiaFeenberg (2002) e Lacey (1999) argumentam que a apropriao e oredesenho da Cincia e da Tecnologia por novos atores so condiesnecessrias (mas no suficientes) para a gerao de trajetrias deinovao coerentes com esses estilos alternativos.

    Ao invs de atribuir tcnica atual uma eficinciaincontestvel, Feenberg prope um radical redesenho tecnolgico queincorpore e harmonize outras variveis na configurao tecnolgica, taiscomo participao democrtica no processo de trabalho, variveisambientais, critrios de sade no trabalho, do impacto da tcnica nasade dos consumidores e desenvolvimento das potencialidadesintelectuais dos trabalhadores.

    De acordo com Feenberg (2002), necessitamos no s aampliao e a radicalizao da democracia nas instituies de mediaopoltica, rnas talnbm a extenso da dernocracia at a esfera do trabalhoe da educao. Uma compreenso mais ampla da tecnologia sugere umanoo de racionalizao muito diferente, fundada na responsabilidadeda tcnica nos contextos humanos e naturais. Esta viso representa umaalternativa tanto presente celebrao da tecnologia triunfante, como viso pessimista da viso heideggeriana de que "r .]s um deus podenos salvar da catstrofe tecno-cultural" (FEENBERG, 2002, p.21).

    Esta uma maneira de interpretar as demandascontemporneas por tecnologias ambientalmente sustentveis, aplicaesda tecnologia mdica que respeitem a liberdade e dignidade humana,mtodos de produo que protejam a sade dos trabalhadores e ofereamperspectivas de desenvolvirnento das suas capacidades e habilidades(workers skills).

    necessrio ressaltar que no cabe frear, limitar odesenvolvimento cientfico e tecnolgico, voltar pra Idade Mdia ouretornar simplicidade, ta l como sugere Borgmann (1984 apudFEENBERG, 2002, p.IS). A crtica de Feenberg prope uma radicaltransformao na tecnologia que potencialize suas possibilidadesdemocrticas. Podemos ento fazer a pergunta: de que forma a tecnologiamoderna pode ser reprojetada para a construo de uma sociedadedemocrtica?

    A articulao de novos interesses e a entrada em cena dostrabalhadores e dos novos movimentos sociais supe a retiradaprogressiva da concentrao do poder industrial da mo de peritos eespecialistas. Isso possibilitaria uma reconfigurao do sistema tcnicolevando em conta uma extenso maior de necessidades e capacidadesORG & DEMO, voS,n.2, po189-2/0,2004 205

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    humanas at ento excludas. Nada mais que um desenvolvimento plenodas individualidades humanas, tal como sugere Marx (FEENBERG,2002). A melhor maneira de propiciar um uso contra-hegemnicodo conhecimento e da tecnologia conceber a sociedade e o campo dadeciso tecnolgica atravs das metforas do jogo, do campo de batalha(NOBLE, 2000; FEENBERG, 2002) ou do parlamento de coisas (LATOUR,1992). Atravs destas abordagens, os grupos dominados podero jogartendo em vista a redefinio e modificao das formas e dos propsitosdos artefatos tecnolgicos (FEENBERG, 2002). Esta autonomia de reao chamada por Feenberg pelo nome de margem de manobra.

    Vale destacar que o conceito de ambivalncia diferesubstancialmente do conceito de neutralidade tecnolgica devido aopapel que ela atribui para os valores sociais no desenho e nosimplesmente no uso dos sistemas tcnicos (FEENBERG, 2002, p.lS).Feenberg reconhece as conseqncias catastrficas do desenvolvimentotecnolgico ressaltadas pelo substantivismo (Escola de Frankfurt).Reconhece tambm que a tecnologia incorpora valores, mas, ainda assim,rejeitando o p ~ s s i m i s m o paralisante dessa viso, v na tecnologia umapromessa de liberdade.

    Desta forma, por ser a tecnologia uma construo social -um campo de batalha - historicamente determinado, sendo resultado deum processo onde intervm mltiplos atores com distintos interesses, atrajetria de inovao cientfica e tecnolgica poderia ser redirecionada,dependendo da capacidade dos atores interessados na mudana socialem interferir tanto na diviso do trabalho no cho de fbrica l l quanto noprocesso decisrio da poltica cientfica e tecnolgica.CONSIDERAES HNAIS

    As consideraes tericas expostas ao longo deste artigo seinserem no contexto de crtica explcita compreenso de que a C&Tseguem um caminho prprio e so motivadas pelas contribuies depesquisadores do campo dos estudos sobre cincia, tecnologia esociedade - CTS, cujo objetivo "[ ... ] a apresentao da C&T no comoum processo ou atividade autnoma, que segue uma lgica interna emseu funcionamento timo, mas como um processo inerentemente social,em que elementos no tcnicos (valores morais , convices religiosas,11 Este tema foi abordado com maior nfase em Novaes, Assis e Dagnino (2004).206 ORG & DEMO, v.5, 11.2, p./89-2JO, 2004

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    o fetiche da tecnologiainteresses profissionais e presses econmicas) desempenham um papeldecisivo na sua gnese e consolidao" (CEREZO, 2002, p.23).

    As abordagens de Feenberg, Mszros, Bettelheim e Noblecontestam. o argumento de que a contradio entre o DFP e as RSP noslevaria mecanicamente ao socialismo, tal como pensou grande parte domarxismo no sculo XX. E que por ser o desenvolvimento das forasprodutivas apoltico e governado por leis prprias, bastaria aoproletariado a apropriao dessas foras produtivas para que se pudesseiniciar a construo do socialismo.

    As decises e escolhas tecnolgicas no so guiadas porcritrios tcnicos, mas incorporam os valores do capitalismo e fortalecema acumulao do capital. O que nos levaria a pensar que a C&T existentesrepresentam muito mais um obstculo do que um veculo para aemancipao do ser humano.

    NOVAES, H.; DAGNINO, R. The fetish of technology. Revista ORe &DEMO (Marlia), v.5, n.2, p. 189-210,2004.ABSTRACT : the article' s intention is to show how technological artifacts that seemto be neutral, intrinsically good, produced merely to solve practical problems, containsocial relationships lstorically built and darken the class content oi technologicalchoices. To support this idea, the article uses the Marxian concept of Fetish ofMerchandise and its expansion to the field of technology accomplished by Feenberg,and the content of the debate in course among the !eft about social and poltica!implications of technology. The article concludes exploring some possibilities oftransforming capitalist techno!ogy in order to adequate i t to self-managed initiatives.KEYWORDS: fetish of technologYi self-rnanagementi productive forces.REFERNOASALVES, R. Tecnologia e humanizao. Revista Paz e Terra. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, n. 8, 1968.BRAVERMAN, H. Trabalho ecapital monopolista. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.BETTELHEIM, C. Revoluo Cultural e Organizao Industrial na China. Rio deJaneiro: Graal, 1979a.BETTELHEIM, C. A luta de classes na Unio Sovitica. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1979b.

    ORG & DEMO, v.5,n.2, p.189-210 , 2004 207

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