Ficção Científica - Utopia ou Distopia. Felicidade, Angústia e Prazer na Pós-Modernidade

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    Fico cientfica: utopia

    ou distopia? Felicidade,angstia e prazer naps-modernidadeCarlos Alberto Machado

    Doutor pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro e docente na Unicentro,

    departamento de Educao.

    E-mail: [email protected]

    Resumo: A proposta do artigo est base-ada no interesse em aprofundar estudosde fico cientfica, e em procurar fazerum paralelo dos problemas existenciaisdo mundo contemporneo, mormentea angstia, citados principalmente pelosautores Richard Sennett, Russsell Jacoby eZygmunt Bauman, considerados por algunscomo ps-modernos. Vrios exemplos socitados para corroborar as observaesapontadas no texto. Conceitos comofelicidade e liberdade so colocados prova e a fico cientfica usada comoexemplo, mostrando o vcio tecnolgico e adesnaturalizao da sociedade. Conclui-seque a imagem da realidade evidenciadaem filmes de fico cientfica pode auxiliarna reflexo de nossos atos e, dessa forma,tentar contribuir para atitudes futuras.

    Palavras-chave: Angstia. Fico cientfica. Ps--modernidade. Educomunicao. Sociedade.

    Abstract: The aim of this paper is basedon the interest in further studies of sci-ence fiction, and seek to draw a paral-lel between the existential problems ofthe contemporary world, especially theanxiety, mainly cited by Richard Sennett,Russsell Jacoby and Zygmunt Bauman, con-sidered by some as postmodern authors.Several examples are cited to support thecomments made in the paper. Conceptssuch as happiness and freedom are putto the test, while science fiction is usedas an example, emphasising the technol-ogy addiction and the denaturalizationof society. It is ultimately a reflectionthat the reality seen in science fictionmovies may help in the reflection of ouractions and thus, trying to contribute tofuture actions.

    Keywords:Anguish; Science Fiction; Post-modernity; Educommunication; Society.

    POR QUE ESCOLHEMOS A FICO CIENTFICA (FC)?Inicialmente porque na contemporaneidade esse gnero de filme o mais

    procurado pela populao em geral. Essa busca consequncia, por um lado,

    da avanada tecnologia que Hollywood vem utilizando cada vez mais em seus

    produtos cinematogrficos e televisivos e, por outro, da forte atrao que nar-

    rativas sobre o futuro exercem, principalmente, sobre os jovens.

    Recebido: 22/03/2012

    Aprovado: 7/05/2012

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    So os filmes de FC que costumam ter mais sucesso na bilheteria ou uma

    audincia maior, e so tambm os mais comentados pela mdia, devido, em

    grande parte, aos efeitos especiais.

    A to almejada felicidade, que constantemente buscada pelo ser humanocontemporneo, em todas as suas aes, acaba se tornando utpica. A alegria

    do dia a dia, constantemente confundida com felicidade por alguns, nada mais

    do que um pr-requisito desta.

    A ideologia cartesiana ou v iso reacionria, que vem carregada nas costas

    da cincia, demonstra que o homem recortado ou lido como um livro, algo

    que se pode perceber em Gattaca1, um filme de fico cientfica que analisa

    uma possibilidade assustadora de seletividade: voc s ser aquilo que seu gene

    diz que voc pode ser. Seus sentimentos no contam em absoluto. Roteiro que

    lembra muito a ideia original de Huxley, em sua utopia Admirvel Mundo Novo.

    1. Gattaca (1997), EUA,de Andrew Niccol.

    2. Metrpolis (1927), deFritz Lang.

    3. SENNETT, R. A cor-roso do carter: con-sequncias pessoais dotrabalho no novo capita-lismo. 9. ed. Rio de Janei-ro: Record, 2005, p. 50.

    Gattaca, 1997: filme de fico cientfica que mostra uma possibilidade assustadora de seletividade.

    Divulga

    o

    Com a era da industrializao, em meados do sculo XIX, tanto Diderotquanto Voltaire acreditavam que a dominao da rotina acalmaria as pessoas.Mas, junto com a rotina, evidenciada em Metrpolis2 e em Tempos Modernos, deCharles Chaplin (Carlitos) , tambm veio o tdio com a morte espiritual e arebelio, to temida por Plato em sua utpica Repblica. De qualquer forma,mesmo Sennett concorda que um pouco de rotina no faz mal a ningum,ao contrrio: Imaginar uma vida de impulsos momentneos, de ao a curtoprazo, despida de rotinas sustentveis, uma vida sem hbitos, imaginar na

    verdade uma existncia irracional3.A era da mundializao evidencia seres humanos locais que, ao mesmo

    tempo que olham com cobia e desejo os mundos dos outros, procuram aquietar--se em seu prprio meio. Muitos procuram guias para orient-los, lanando-senuma busca frentica pelos livros de autoajuda, procurando receitas milagrosas.

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    Entretanto, as receitas no funcionam. Essa busca pode ser identificada em Oguia dos mochileiros das galxias4, que fala da necessidade de termos um guiapara transitar pelo universo. A ironia est em que, no filme, o guia, na prtica,

    no ajuda em absolutamente nada.A corroso de carter de que fala Sennett comea pela fragilidade dasrelaes entre as pessoas na contemporaneidade. A solidariedade espontnea abandonada e substituda por uma solido encontrada na tecnologia eletrnicae no consumismo exacerbado e individual. Troca-se uma forma de submissode poder por outra, a da carne pela da eletrnica. A legimitividade emocionalno mais encontrada, pois foi substituda pela clara operacionalidade. Apesardisso, o reconhecimento necessrio, como nos recorda Jacoby, a dialogia uma necessidade humana vital, sem ela no sobrevivemos. Essa necessidade deconexo com o outro evidenciada por David Cronenberg com o filme eXistenZ(1999), onde jogadores de uma espcie de video game penetram no jogo deforma total, sentimental e corprea (mente e corpo). O fio de conexo com o

    jogo ligado diretamente na medula espinhal, e os estmulos audiov isuais soinseridos diretamente no crtex cerebral.

    4. O guia dos mochilei-ros das galxias (2005),EUA, de Garth Jennings.

    O guia dos mochileiros das galxias (2005) fala da necessidade de se ter um guia para

    transitar pelo universo.

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    No mundo real, a noo de futuro, to cara FC moderna, parece ter

    desaparecido. O presente forte e constante. No h longo prazo. Esse presente

    realista, que di tambm, pode ser evidenciado na FC ps -moderna. O alto nvel

    tecnolgico e o baixo nvel social so espelhados nos contos e roteiros atuais,transbordando realidades que espantam ou assustam os mais desavisados. Sua

    similaridade com nossa realidade tanta, que, em alguns casos, o termo fico

    pode at ser revisto.Dcadas atrs, filmes de fico cientfica como Zardoz5 ou Logans Run6

    previam o predicamento ps-moderno de hoje: o grupo isolado vivendo uma

    vida asctica, numa rea restrita, anseia pela experincia do mundo real, de

    barro material.At o ps-modernismo, a utopia era uma tentativa de romper com o real do

    tempo histrico e entrar no Outro atemporal. Com a sobreposio ps-moderna

    do fim da histria pela total disponibilidade do passado em memria digital,

    nesta poca em que vivemos a utopia atemporal como a experincia ideolgicado dia a dia, a utopia se torna o anseio pela Realidade da prpria Histria,

    pela memria, pelos traos do passado real, numa tentativa de sair da cpula

    fechada e sentir o cheiro da deteriorizao da crua realidade7.

    Matrix8 acentua isso, porque combina utopia com distopia, nossa realida-

    de apresentada como uma realidade virtual criada por um computador, de

    maneira que nos restringimos a baterias humanas para a Matriz.

    SEGURANA NO FUTUROEm tempos remotos, estudar e economizar faziam parte de uma garantia

    de futuro, mesmo que isso estivesse diretamente relacionado com a escravidodo salrio. De qualquer forma, hoje essas atitudes j no garantem o futuro,

    mas apenas um presente momentneo, repleto de angstias: Numa sociedade

    dinmica, as pessoas passivas murcham9.

    A FC indica alguns futuros possveis. Sugere, em seus enredos, que o de-

    sespero no justificvel, pois as respostas sero encontradas pelo prprio homo

    futurus, talvez mutantes adolescentes, oriundos de uma mutao de ideias e

    de conhecimentos, que misturados criatividade, proporcionariam alternativas

    ainda inimaginveis para a sociedade em que vivemos. Portanto, o desesperopelo futuro pode no ser justificvel, pois as novas geraes podero encontrar

    solues interessantes para os problemas de sua poca. Nosso trabalho criar

    moldando a histria de nossas prprias vidas.

    Os adolescentes de hoje se juntam por interesses comuns, seja em umclube, seja em um posto de gasolina, seja atravs de uma comunidade digital.

    Tm seus prprios grupos, suas prprias tribos, o que muitas vezes preocupa

    seus pais, como lembra Sennett, quando comenta sobre um de seus pesquisa-dos: perseguia-o o receio da falta de disciplina tica, sobretudo o temor de

    os filhos se tornarem pequenos ratos, rondando ao lu pelos estacionamentos

    5.Zardoz (1974), EUA, deJonh Boorman.

    6. Logans Run [Fugadas Estrelas] (1976), deMichael Anderson.

    7. ZIZEK, S. Matrix: ou osdois lados da perverso.

    In: IRWIN, W. Matrix:bemvindo ao deserto do real.So Paulo: Madras, 2003,p. 280.

    8. Matr ix (1999), deAndy Wachowski e LarryWachowski.

    9. SENNETT, op. cit., p. 103.

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    dos shopping centers tarde, enquanto os pais permaneciam fora de alcance

    em seus escritrios10.

    E Maturana acrescenta: a tragdia dos adolescentes que comeam a

    viver um mundo que nega os valores que lhes foram ensinados11

    . A negaodos adultos acaba sendo um problema. Hoje, os adolescentes se organizam

    tambm de outras maneiras. Ficam reunidos por um tipo de som (msica)

    que, para ns, no justifica ou que no explica. Mesmo assim um mundo de

    responsabilidades. Se eles esto nesse mundo, porque eles assim o querem

    ou h a emergncia de um novo tipo de estudante, com novas necessidades

    e novas capacidades12.

    Novas solues poderiam ser aspiradas ou exploradas pelos jovens que um

    dia sero os donos do mundo. Como educadores/as, devemos avaliar aquilo

    que j est ocorrendo em nossas salas de aula, quando os aliengenas entram

    e tomam seus assentos, esperando (im)pacientemente suas instrues sobre

    como herdar a terra13

    .

    EXISTE UM OUTRO ESTRANHO NA FICOCIENTFICA?

    A plula dourada de Jacoby, retratando o multiculturalismo da ps-mo-

    dernidade, nos recorda a plula vermelha de Matrix, como smbolo das muitas

    possibilidades do que vir a acontecer ou do que decidimos em nossas vidas.

    O filme demonstra a dualidade entre o escolher a plula azul ou a vermelha,

    entre o ficar preso a uma realidade virtual ou acordar para a verdadeira reali-

    dade, mesmo que dolorosa. A deciso difcil, mas o personagem Neo acaba

    decidindo enfrentar uma realidade ainda mais dura do que a da fico gestada

    pela Matrix, a da plula vermelha. Sem dvida, uma condio que muitas vezes

    costumamos enfrentar em nosso cotidiano.

    Apesar de Jacoby apresentar o conto de FC 1984, de George Orwell, como

    sendo uma obra utpica, alguns autores, como Bressand e Distler, apresentam-

    -no como um conto antiutpico ou distpico. No fim do sculo XX e incio

    do XXI, o discurso vigente das lideranas costumava afirmar que cmaras nas

    ruas, que geralmente passam despercebidas, so apenas para nossa segurana e

    no para o controle. Ora, controle e segurana esto intimamente relacionados,

    como nos alertava Foucault em seu Vigiar e punir. Nesse caso, onde ficaria o

    livre-arbtrio?

    O mesmo vale para os chips epidrmicos de que trata Violao de Privacida-de14. O filme, cuja histria se desenvolve em um futuro mais ou menos prximo,

    mostra a vida montona de um editor de imagens (Robin Willians) que edita

    lembranas gravadas de pessoas que deixaram de existir. Esse tipo de controle,

    criticado na trama do filme, vem existindo na prtica, onde verificamos chips

    localizadores nos cartes de crdito ou, nos recentes: chips intraepidrmicos.

    10. Ibid., p. 21.

    11. MATURANA, H. Emo-es e linguagem naeducao e na polti-ca. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2002, p. 33.

    12. GREEN, B.; BIGUM,C. Aliengenas na sala deaula. In: SILVA, T. T. (org.).Aliengenas na sala de

    aula;uma introduo aosestudos culturais em edu-cao. Petrpolis: Vozes,1995, p. 209.

    13. Id., p. 218.

    14. Violao de privaci -dade (Final CUT) (2004),EUA, de Omar Naim.

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    De certa forma, estes sistemas de rastreamento individual ofendem a li-berdade dos indivduos, expondo a ilegitimidade dessas novas formas de con-trole, mais sutis e imperceptveis. Os processos foram invertidos do pan-ptico

    de Foucault para o sinptico sugerido por Bauman: A obedincia aos padrestende a ser alcanada hoje em dia pela tentao e pela seduo e no mais pelacoero e aparece sob o disfarce do livre-arbtrio, em vez de revelar-se comofora externa15. O Grande Irmo tomou uma nova forma, mais perspicaz doque a prevista por Orwell, maior e invisvel, o manipulador das marionetes. Arepulsa rotina burocrtica e a busca da flexibilidade produziram novas estru-turas de poder e controle, em vez de criarem as condies que nos libertam16.

    Em se tratando de estranhos e de seu papel na sociedade, Bauman nosalerta para suas possveis utilidades.

    Esses poucos fatos anunciam o novo papel atribudo aos pobres na nova versoda classe baixa, ou da classe alm das classes: ela no mais o exrcito dereserva da mo de obra mas, verdadeiramente, a populao redundante. Paraque serve? Para o fornecimento de peas sobressalentes para consertar outroscorpos?17.

    Na FC a classe baixa tambm pode ser vista de forma diferente, todosos que morreram podem ser cobaias do futuro, como verificamos no filmeFree Jack18, com Mick Jagger e Anthony Hopkins onde no existe o trfico dergos para peas sobressalentes, mas, em contrapartida, existe o trfico decorpos inteiros! Espelhando-se nos estranhos de Bauman, um piloto de provas(Emilio Estevez), que historicamente j havia morrido, raptado um segundoantes de sua morte por viajantes do tempo vindos do futuro. O objetivo delesera utiliz-lo visto que historicamente estava morto como hospedeiro deuma nova mente milionria (Hopkins), que recusava aceitar sua morte, mas

    que podia pagar por toda essa operao.

    Numa sociedade sinptica de viciados em comprar/assistir, os pobres no podemdesviar os olhos; no h mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela() tanto mais irresistvel se torna o desejo de experimentar, ainda que por ummomento fugaz, o xtase da escolha19.

    Vdeo Drome20 a FC que mais se aproxima dessa realidade, mostrandoa classe baixa totalmente dependente da televiso, a ponto de os estranhosterem que frequentar clnicas pblicas especializadas no atendimento dos vi-ciados em raios catdicos.

    Ns tambm esquecemos os estranhos de Bauman, quando mergulhamosem nossa vida diria, quando caminhamos pelas ruas e evitamos certos lugares(ou no lugares), pois sabemos que ali existem os que no queremos lembrarque existem. Lamentavelmente essa imposio ps-moderna est piorando acada dia, quando, em vez de nos preocuparmos em diminuir a pobreza, ematingir sua raiz, nos preocupamos com a segurana de ns e de nossos filhos.Sempre procuramos o caminho mais fcil, o menos doloroso, o mais egosta,sem dvida, e o pior que no temos vergonha disso.

    15. Id. Modernidade l-quida. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2001,p. 101.

    16. SENNETT, op. cit., p. 54.

    17. BAUMAN, Z. O malestar da ps-modernida-de. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar Editor, 1998, p. 54.18.Free Jack(1992), EUA,de Geoff Murphy.

    19. BAUMAN, Z. Moderni-dade lquida, cit., p. 104.

    20.Vdeo Drome (1983),CANAD/EUA, de DavidCronemberg.

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    A IMAGEM DO ESCOLHIDO EM MATRIX

    De uma forma anloga risada enlatada (das comdias de situao na

    TV), temos aqui algo semelhante a uma dignidade enlatada, em que o Outro

    (o Escolhido) retm minha dignidade em meu lugar, ou, mais precisamente,

    em que eu retenho minha dignidade por meio do Outro. Eu posso ser redu-

    zido cruel luta pela sobrevivncia, mas a prpria percepo de que existe o

    Escolhido retm minha dignidade e permite-me manter um elo mnimo com

    a humanidade21.

    O escolhido, que pode ser a imagem do pai, do amigo ou do professor,

    muitas vezes derrubado ou desmascarado, e nesses casos a vontade de viver

    desaba, a vontade de sobreviver desaparece com ele, com o outro. Matrixapre-

    senta isso em seu primeiro filme, na imagem de Neo, o protagonista da trilogia.

    Ele mesmo tinha dvidas quanto existncia dele ser o outro, o escolhido.

    Essa dvida gera tenso entre Neo e seus companheiros, que acabam traindo-o.

    SOMOS LIVRES?

    A liberdade ameaa mais sombria [porm] atormentava o corao dosfilsofos: que as pessoas pudessem simplesmente no querer ser livres e rejei-

    tassem a perspectiva da libertao pelas dificuldades que o exerccio da liber-

    dade pode acarretar22. Matrix , sem dvida, o melhor exemplo das bnos

    mistas da liberdade que podemos encontrar na FC cinematogrfica citadas

    como exemplo na verso apcrifa da Odisseia, em que Ulisses descobre, aps

    21. IRWIN, op. cit., p. 274.

    22. BAUMAN, Z. Moder-nidade lquida, cit., p. 25.

    Matrix (1999), combina utopia com distopia.

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    libertar seus leais e decepcionados marinheiros, que preferiam continuar naforma de porcos.

    Em um momento de clmax do filme, Cypher, um dos protagonistas secun-

    drios, para surpresa do pblico, opta por continuar sendo escravo da mquina,para no perder os prazeres de sua mordomia utpica. Ele est no mundo v irtual,sentado mesa em um restaurante, em frente ao agente Smith, degustando umsaboroso fil e negociando sua liberdade e a de seus companheiros 23. A ilusofoi preferida, em detrimento da realidade nua e crua. Jacoby, parafraseandoDavid Bromwich, pergunta-se: Os intelectuais se oporiam a escravido?.

    Sair da Caverna de Plato em Matrix o mesmo que sair do controle dasmquinas que dominavam a humanidade. O problema que, apesar da eston-teante realidade demonstrar um conceito de liberdade, existiam pessoas livresque preferiam a liberdade vigiada, retornando Caverna e preferencialmente,ao contrrio de Plato, levando consigo todo o restante, para que ningum maispudesse enxergar a verdade. A liberdade aparente que temos ou a liberdadeque no queremos.

    Esforos para manter a distncia o outro, o diferente, o estranho e oestrangeiro, e a deciso de evitar a necessidade de comunicao24. Na srieAlm da Imaginao, da dcada de 1985, o episdio denominado O HomemInvisvel25retrata exatamente isso. O protagonista Cotter Smith, que feriu a leide sua cidade cometendo um crime antissocial, leva uma marca em sua testae, apesar de estar sendo visto pela populao, todos fingem no v-lo e, dessaforma, o personagem sofre as consequncias de ser um homem invisvel ou umestranho. Apenas quando retirarem sua marca, ou seja, aps ter cumprido suapena, que voltaro a falar com ele, como se tivesse retornado de uma longa

    viagem. A sequncia final brilhante: o protagonista avista uma colega com a

    tal marca, vivendo a mesma situao que ele , e tendo se tornado uma mulherinvisvel, mas cede s presses e conversa com ela. Sabia que era apenas questode tempo para que a marca no tivesse mais efeito cultural.

    Jacoby alerta para o fato de que os estadunidenses, apesar do discursomulticultural, no demonstram na prtica interesse pelas lnguas de outrasculturas. Analogamente ao filme, agem como se as outras lnguas estivessemportando a marca da invisibilidade social.

    Os estranhos de Bauman tambm podem ser evidenciados no filme dist-pico Blade Runner [O Caador de Androides]26, em uma histria de androidesidnticos aos seres humanos que, para escapar do trabalho nas minas do planetaMarte, fogem para a Terra, no intuito de viverem em meio s pessoas, paradessa forma passarem-se por humanos (serem livres). O policial Rick Deckard(Harrison Ford) contratado pela polcia de Los Angeles (que mais pareceuma Hong Kong em decadncia) para descobrir onde esto os androides erecaptur-los. Deckard aprofunda-se na investigao e descobre, ao final dofilme, que o fato de querer ser humano em uma sociedade decadente como aTerra era impraticvel para os androides. Tambm questiona se os estranhoseram eles, os androides, ou ns, os humanos. A prpria identidade de Deckard

    23. DANAHAY, M. A.;RIEDER, D. Matrix, Marxe a vida de uma bateria.In: IRWIN, op. cit.

    24. BAUMAN, Z. Mo -dernidade lquida, cit.,p. 126.

    25. O Homem Invisvel[To See the Invisible Man](1985), EUA, de RobertSilverberg.

    26. Blade Runner, oCaador de Andrides(1982), EUA, de RidleyScott.

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    colocada em dvida quanto a sua autenticidade humana, por um colega policialHannibal Chew (James Hong), que a certa altura do filme o trata como umestranho. Essa evidncia demonstrada na cena em que seu colega deixa, em

    frente ao elevador, uma rplica em papel de um unicrnio, imagem principalimplantada nos sonhos de Deckard. Um final para levar muitos a refletirem sobrea situao de Deckard e sobre o rumo que a humanidade pode vir a tomar.

    ALGUMA CONCLUSO?Como toda a encruzilhada evolutiva, no sabemos para onde esta nos

    levar. As classes dominantes jamais abdicam do poder, mesmo que este asleve destruio. Assim, inteligncias artificiais cada vez mais possantes serodesenvolvidas com o objetivo de serem utilizadas nesse grande xadrez mundialpelo poder, abrindo as portas, talvez, para a nossa destruio27.

    A contemporaneidade mostra uma busca pelo prazer dirio, mesmo quesuprfluo, um consumo no sentido de digerir. Literatura, cinema, jogos virtuais,comida e bebida. Tudo que esteja sendo comentado, divulgado na cultura demassa. Essa fuga pelo consumo no apazigua sua busca por si mesmo, confun-dido-se com a busca pela sociedade, pelo reconhecimento nela. A busca por sideve ser constante. A dificuldade que, no meio dessa busca, devemos mudar,e toda mudana implica no s uma perda, mas tambm aceitar a perda, eno fcil. O processo de mudana essencial, mas difcil.

    Sennet aponta para a falta de relacionamentos objetivos e durveis comouma soluo para o problema da inquietao e da angstia. Isso tambm seevidencia nos jogos virtuais de computador, que esto cada vez mais reais esedutores.

    Matrix pode servir de alerta para situaes anlogas que esto por vir? Aescola por sua vez tem que aprender a trabalhar com esse processo de cons-truo social que, alm das experincias educacionais, tambm inclui, comolembra Green e Bigum, os meios de comunicao de massa, rock, cultura dadroga e outros fatores subculturais. Eles tambm recordam que cada vezmais urgente a necessidade de pensarmos de forma diferente. Precisamosreimaginar a imaginao investigativa educacional28.

    Dessa forma, os autores concluem que:

    argumentamos que importante interagir ativamente com os novos insights eimagens proporcionados pelo ps-modernismo cultural e pela nova cincia. Comotem sido assinalado por vrios analistas [...], parece haver uma convergncia geral

    e extremamente produtiva entre a teoria social e a fico cientfica 29.

    Desse modo, explor-la no conceito educacional, como esse artigo, se tornaessencial.

    Jacoby, em seu O fim da utopia, admite que a linguagem reveladora e adiversidade determina os caminhos a serem seguidos. Os conservadores que onegam ficam beira do caminho.

    27. TORRIGO, M. Prlogoa Matrix. In: IRWIN, op.cit., p. 28.

    28. GREEN, B.; BIGUM,C. Aliengenas na sala deaula. In: SILVA, T. T. (org.).Aliengenas na sala deaula: uma introduo aosestudos culturais em edu-cao. Petrpolis: Vozes,1995, p. 211.

    29. Id.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBAUMAN, Z. O mal-estar da ps-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

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