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FOUCAULT, M. "A Governamentalidade". In: Segurança, Território, População. SP: Martins Fontes, 2008. Aula de 1º de fevereiro de 1978: p. 117-154. Para Foucault, os textos sobre as artes de governar que aparecem do século XVI ao século XVIII não são manuais de conselhos ao príncipe ou tratados de política e sim possibilidades de governo dos outros e de si próprio. Para Foucault, a melhor maneira de estudar a importância dessas chamadas “artes de governar” consiste em situá-las em oposição ao livro “O Príncipe” Maquiavel. Maquiavel entende que os modelos de rei justo e bom não servem para seu tempo. O bom rei medieval paternalista logo será substituído pelo bom administrador. Neste novo cenário, o rei precisa ter conhecimentos seu território, cuidar da economia e do exército. O soberano será bom se for capaz de se manter no poder, promovendo a estabilidade do Estado. Para Foucault, no entanto, o problema central para Maquiavel não é exatamente a conservação do Estado, mas sim o poder do Príncipe sobre sua população. Maquiavel diz que a moral deve restringir-se à esfera da vida privada, e que a política permite ações e decisões proibidas até mesmo pela moral. Foucault observa que no período que vai do elogio ao pensamento de Maquiavel (século XVI) e sua reavaliação no século XIX, surgiram muitas obras “anti-Maquiavel”. Para ilustrar, Foucault usa o livro Le miroir politique, de Guillaume La Perrière. Ao contrário de Maquiavel, para La Perrière, o termo “governante” designa uma pluralidade de agentes. Quando se utiliza o verbo

FICHAMENTOS Foucault- Deleuze- Pelbárt

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FOUCAULT, M. "A Governamentalidade". In: Segurança, Território,

População. SP: Martins Fontes, 2008. Aula de 1º de fevereiro de 1978: p. 117-154.

Para Foucault, os textos sobre as artes de governar que aparecem do século XVI ao século

XVIII não são manuais de conselhos ao príncipe ou tratados de política e sim possibilidades de

governo dos outros e de si próprio. Para Foucault, a melhor maneira de estudar a importância dessas

chamadas “artes de governar” consiste em situá-las em oposição ao livro “O Príncipe” Maquiavel.

Maquiavel entende que os modelos de rei justo e bom não servem para seu tempo. O bom

rei medieval paternalista logo será substituído pelo bom administrador. Neste novo cenário, o rei

precisa ter conhecimentos seu território, cuidar da economia e do exército. O soberano será bom se

for capaz de se manter no poder, promovendo a estabilidade do Estado.

Para Foucault, no entanto, o problema central para Maquiavel não é exatamente a

conservação do Estado, mas sim o poder do Príncipe sobre sua população.

Maquiavel diz que a moral deve restringir-se à esfera da vida privada, e que a política permite ações

e decisões proibidas até mesmo pela moral.

Foucault observa que no período que vai do elogio ao pensamento de Maquiavel (século

XVI) e sua reavaliação no século XIX, surgiram muitas obras “anti-Maquiavel”. Para ilustrar,

Foucault usa o livro Le miroir politique, de Guillaume La Perrière. Ao contrário de Maquiavel, para

La Perrière, o termo “governante” designa uma pluralidade de agentes. Quando se utiliza o verbo

“governar”, entende-se por isso o governo do lar, das almas, das crianças, de uma província, de uma

ordem religiosa ou o governo de si mesmo. Essas formas de entender a arte de governar foram

usadas por Foucault para propor uma “genealogia da governamentalidade” em oposição a uma

“teoria da soberania”.

“É no interior do Estado que o pai de família vai governar sua família, que o

superior do convento vai governar seu convento, etc. Há, pois, ao mesmo tempo,

pluralidade das formas de governo e imanência das práticas de governo em relação

ao Estado, multiplicidade e imanência dessa atividade que a opõe radicalmente à

singularidade transcendente do Príncipe de Maquiavel” (Foucault, 2008 p. 124).

Para La Perrière, governo é a “correta disposição das coisas, das quais nos encarregamos

para conduzi-las ao fim conveniente”. Foucault interpreta “coisas” como sendo os “homens e

coisas”, ou seja, são objetos de governo os “homens” imbricados em relações com as coisas e com

as maneiras de pensar e agir. Foucault explica as razões pelas quais essas “artes de governar” foram

preteridas a favor das “teorias da soberania política”. Foucault diz que o século XVII tinha uma

configuração, com as monarquias administrativas, que impedia o funcionamento destas “artes de

governar”, pois estas “artes” só se desenvolveriam em períodos de crescimento, na ausência de

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guerras, crises econômicas e políticas, etc. No entanto, o século XVII foi marcado por diversas

guerras e crises financeiras. O mercantilismo também foi um obstáculo, pois não visava ao

crescimento do Estado, mas sim o crescimento do poder do soberano.

“O mercantilismo procurava fazer as possibilidades dadas por urna arte refletida de

governo entrar numa estrutura institucional e mental de soberania que a bloqueava.

De sorte que, durante todo o século XVII e até a grande liquidação dos temas

mercantilistas do início do século XVIII, a arte de governar ficou de certo modo

andando sem sair do lugar, pega entre duas coisas. De um lado, um quadro amplo

demais, abstrato demais, rígido demais, que era precisamente a soberania como

problema e como instituição.” (Foucault, 2008, p. 136).

O crescimento da população durante o século XVIII leva ao desenvolvimento de novas

ferramentas como por exemplo, a estatística, que permite o descobrimento de fenômenos

populacionais, tais como taxas de natalidade, mortalidade, morbidade, endemia, epidemia, trabalho

e riqueza. Quando a estatística quantifica os fenômenos específicos da população a família deixa de

ser tomada como modelo econômico. Ainda assim a família continua sendo instrumento para o

governo da população. Este agora é o objetivo do governo, melhorar a vida, a saúde, assim como

aumentar a riqueza e o bem-estar da população.

No “Discours sur l’économie politique”, Rousseau tenta definir uma forma de governo

irredutível ao modelo econômico da família. Em outra ocasião, na obra “Do Contrato social”, ele

procura por um princípio geral de governo ao invés do princípio da soberania. Ocorre que isto não

significa a substituição de um princípio pelo outro, mas sim que a soberania deixa de ser o centro da

questão quando é reinterpretada pela idéia de governo.

Foucault desdobra todas estas teorias destes autores e nos ajuda a compreender como

estrutura o seu próprio pensamento a respeito da governabilidade. Quando ele falou que a sociedade

moderna é uma sociedade disciplinar, ele não quis dizer que não existe mais uma soberania, da

mesma forma, a sociedade governamentalizada não substitui a sociedade disciplinar.

Podemos entender “governamentalidade” como a reunião de forças exercidas pelas

instituições, pelos procedimentos burocráticos, pelas análises, cálculos e outros fatores que se

organizam de forma complexa constituindo um “poder” que visa o controle da sociedade.

FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica. SP: Martins Fontes, 2008. Aula de

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14 de março de 1979: p. 297-320

Aula de 14 de março de 1979

O neoliberalismo americano. Seu contexto. Diferenças entre os neoliberalismos americano e

europeu. - 0 neoliberalismo americano como reivindicação global, foco utópico e método de

pensamento. - Aspectos desse neoliberalismo: (1) A teoria do capital humano. Os dois processos

que ela representa: (a) uma incursão da analise econômica no Interior do seu próprio campo:

critica da analise clássica do trabalho em termos de fator tempo; (b) uma extensão da análise

econômica a campos considerados ate então não-econômicos. - A mutação epistemológica

produzida pela analise neoliberal: da analise dos processos econômicos à análise da racionalidade

interna dos comportamentos humanos. - 0 trabalho como conduta econômica. - Sua decomposição

em capital-competência e renda. - A redefinição do homo oeconomicus como empreendedor de si

mesmo. - A noção de “capital humano”. Seus elementos constitutivos: (a) os elementos inatos e a

questão da melhoria do capital humano genético; (b) os elementos adquiridos e o problema da

formação do capital humano (educação, saúde, etc.). - Interesse dessas analises: retomada do

problema da inovação social e econômica (Schumpeter). Uma nova concepção da política de

crescimento.

Neste texto Foucault aborda o neoliberalismo norte-americano de forma específica,

postulando que os objetos primordiais desta forma de pensamento envolvem três elementos

contextuais, sendo eles a política keynesiana, os pactos sociais de guerra e o crescimento da

administração (e do poder) central por meio dos programas econômicos e sociais. O que chamamos

de neoliberalismo pode ser entendido como uma maneira de pensar que institui um determinado

comportamento. Esta forma de pensamento – pensamento neoliberal – determina uma forma de

relação entre os governantes e os governados que transcende uma simples “técnica de governo” e

que deve ser entendido como algo mais complexo que vai além de uma alternativa política ou de

uma ideologia e que deve ser compreendido como um estilo geral de pensamento.

“eu creio que o liberalismo americano, atualmente, não se apresenta apenas, não se

apresenta tanto como uma alternativa política, mas digamos que e uma espécie de

reivindicação global, multiforme, ambígua, com ancoragem à direita e à esquerda. É

também uma espécie de foco utópico sempre reativado. É também um método de

pensamento, uma grade de analise econômica e sociológica” (Foucault, p. 301).

Sobre o trabalho e a lógica neoliberal, Foucault diz que enquanto Marx analisou o

liberalismo clássico culpando a realidade histórica do capitalismo pela perversidade da

expropriação da mais valia, os neoliberais preferem fazer uma “análise econômica do trabalho”,

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estudando o trabalho como

“conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada por quem trabalha.

0 que e trabalhar, para quem trabalha, e a que sistema de opção, a que sistema de

racionalidade essa atividade de trabalho obedece? E, com isso, se poderá ver, a partir

dessa grade que projeta sobre a atividade de trabalho um principio de racionalidade

estratégica, em que e como as diferenças qualitativas de trabalho podem ter um

efeito de tipo econômico.” (Foucault, p. 307).

Desta forma, o trabalhador se posiciona não mais como um objeto do estudo ou objeto do capital,

mas sim como um sujeito economicamente ativo.

Ao postular sobre o “homo oeconomicus”, Foucault diz que o neoliberalismo situa o

consumidor como uma empresa produtora de satisfação para sim mesmo, onde o consumidor, visto

como um empresário, aplica seu capital para produzir a própria satisfação.

Foucault diz que o neoliberalismo norte americano usa a chamada “grade econômica” para

resolver problemas que estão fora do âmbito econômico, como é o caso dos problemas sociais.

Desta forma, ocorre uma generalização ilimitada do mercado que passa a atuar como uma chave

capaz de operar em qualquer âmbito, permitindo que se pense tanto as relações sociais quanto os

comportamentos individuais sob uma ótica economicista.

Segundo Foucault, essa generalização causa outros efeitos, pois a grade econômica permite

também testar a ação do governo, fundamentando a possibilidade de se elaborar uma crítica à

governamentalidade calcada nos termos do mercado e com base em termos econômicos. No

liberalismo clássico, o governo se “deixava-fazer” e o mercado era entendido como um princípio de

auto-limitação. Já no neoliberalismo, diferentemente, o “laissez-faire” é algo que “não deixa o

governo fazer”. O mercado define tudo e toma a posição de um “tribunal econômico permanente”

que gerencia, define e limita as ações governo. De acordo com Foucault, enquanto que no século

XIX procurou-se estabelecer

“uma espécie de jurisdição administrativa que permitisse aferir a ação do poder

público em termos de direito, temos aqui uma espécie de tribunal econômico que

pretende aferir a ação do governo em termos estritamente de economia e de

mercado” (Foucault, p. 339).

Assim, a mercantilização, por exemplo, abarca uma noção de “mercado livre”, onde as

relações entre cidadãos e experts não são organizadas por meio da obrigatoriedade, mas através de

atos de escolha. A partir de novas relações mais distanciadas de controle entre os centros políticos

de decisão e os dispositivos como escolas, hospitais ou empresas, o risco passa a ser algo

manejável. Sendo sobre essas instituições que recai, novamente, a responsabilidade acerca da saúde,

da riqueza, da felicidade, elas são constantemente submetidas a exames aparentemente flexíveis,

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mas que se convertem em estratégias eficazes para o governamento à distância.

DELEUZE, G.. Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle. In:

Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro/RJ: Ed. 34, 1992: p. 219-226

Segundo Deleuze, Foucault afirmou que as sociedades disciplinares organizaram os grandes

meios de confinamento, a saber, a família, a escola,a fábrica, o hospital, e a prisão. Foucault

analisou os meios de confinamento e mostrou como ele é visível na fábrica, também mostrou a da

brevidade deste modelo que não sobreviveu à Segunda Guerra mundial. Notadamente, estamos em

meio a uma crise dos meios de confinamento. Os governos reagem com reformas, a escola, a

indústria, o hospital, o exército, a prisão. Apesar disso,massas instituições ainda estão condenadas.

As sociedades de controle estão substituindo as sociedades disciplinares.

Os meios de confinamento dão lugar aos “controlatos”. As fábricas são substituídas por

empresas. Estas, por sua vez, se esforçam mais profundamente em impor uma modulação que

individualiza o sujeito ao retirá-lo do “corpo” uno que constituía a fábrica e atirá-lo em um

ambiente onde reina uma rivalidade que tem a função de motivar este sujeito através de um

princípio modulador chamado "salário por mérito". Desta forma, a empresa substitui a fábrica, a

formação permanente substitui a escola e o controle substitui o exame. Enquanto que as sociedades

de disciplina eram caracterizadas pelas fases bem definidas com início e fim, nas sociedades de

controle as coisas tomam um caráter de continuidade que nunca acaba. Antes Foucault podia

identificar o poder civil que se exercia sobre as massas preservando o caráter individual, porém, nas

sociedades de controle, uma cifra que marca o acesso à informação, ou a rejeição. A passagem de

um estado a outro muda completamente a forma como as pessoas são consideradas na sociedade, os

indivíduos não são mais “indivisíveis”, e sofrem uma espécie de “divisão”, pois seu estado (ora

aceito, ora recusado) depende agora do estado se sua senha. As massas agora representam as

estatísticas (não o contrário), são amostras, dados, mercados, que são continuamente processados

para que se encontrem padrões de comportamentos que poderão ser usados nesta busca incessante

do “controle”.

Hoje em dia percebemos que a tecnologia é aplicada indiscriminadamente para verificar a

ocorrência de padrões, permitindo a acumulação, processamento e manipulação de quantidades

inimagináveis de dados em prol de um novo capitalismo que surge no século XX e entra no século

XXI com uma voracidade nunca antes vista. Este novo panorama mundial, este novo capitalismo,

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são impulsionados e alimentados por esta “sociedade de controle” de forma a levar os indivíduos

que compõem esta sociedade a se tornarem escravos inconscientes de um consumismo e de formas

de pensamento delirantes que usam o marketing como instrumento de controle social. O homem

não sai da era do confinamento físico e entra na era do homem endividado.

Um problema a ser enfrentado é o fato de que o capitalismo não foi capaz de integrar toda a

humanidade nesta roda-viva da sociedade de controle e agora deverá pagar o preço de assistir e lidar

com a explosão de enormes comunidades ansiosas por participar desta “brincadeira moderna”,

sendo-lhes negado o acesso por serem pobres demais para pagar pela própria escravização. Nem por

isso deixam de ser escravos de uma utopia que é a privação da sensação de prazer que, ainda que

fugaz, é tão apreciada por esta sociedade de controle.

Pelbárt, P. P. "Biopolítica e Biopotência no coração do Império", Multitude

Web, maio de 2002.

A partir de uma analogia com a obra de Kafka sobre a muralha da China, Pelbárt chama de

império esta forma de soberania da sociedade de controle que pretende se proteger dos nômades

“com suas estratégias frustradas para proteger-se dos excluídos que ele mesmo suscita, cujo

contingente não para de aumentar no coração da capital, numa vizinhança de intimidação crescente

e num momento em que, como diria Kafka, sofre- se de enjôo marítimo mesmo em terra firme”.

Falando sobre biopolítica, Pelbárt fala da inversão do significado postulado por Foucault

“para designar uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, sobre a população

enquanto massa global afetada por processos de conjunto”, a biopolítica não significa mais o poder

sobre a vida, mas sim a potência da vida. A biopolítica agora é um termo aplicado para designar

poder exercido pelas formas de vida e, tratado socialmente, equivale à biopotência da multidão,

onde multidão deixa de ser o termo pejorativo que designa uma massa descontrolada que precisa ser

domada e dominada para ser “plural, centrífuga, refratária à unidade política. Ela não assina pactos

com o soberano, não delega a ele direitos, inclina-se a formas de democracia não representativa”.

Vivemos uma realidade em transformação e a velocidade destas transformações torna-se

força criativa que dissemina reações em nossa sociedade. Desta força deriva a biopolítica, a

biopotência que emana das multidões excluídas pelo império e que insistem em habitar o seu

coração, em uma reação poderosa e inconsciente que coloca em cheque o poder da sociedade de

controle.

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"Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a

insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais

baixo : este ponto … é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as

mais pobres e as mais exploradas ; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais

separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe ; pois tudo isso é

a vida e não a morte."