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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ERIKA SURUAGY ASSIS DE FIGUEIREDO AS AÇÕES AFIRMATIVAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: POLÍTICA DE INCLUSÃO À LÓGICA DO CAPITAL NITERÓI 2008

FigueiredoE.AsAesAfirmativasNaEducaoSuperiorPolticaDeInclusoALgicaDoCapital

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Figueiredo E. As Ações Afirmativas Na Educao Superior Poltica De Incluso A Lgica Do Capital

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    ERIKA SURUAGY ASSIS DE FIGUEIREDO

    AS AES AFIRMATIVAS NA EDUCAO SUPERIOR: POLTICA DE INCLUSO LGICA DO CAPITAL

    NITERI 2008

  • ERIKA SURUAGY ASSIS DE FIGUEIREDO

    AS AES AFIRMATIVAS NA EDUCAO SUPERIOR: POLTICA DE INCLUSO LGICA DO CAPITAL

    Orientadora: Prof. Dr. Angela Carvalho de Siqueira Co-orientadora: Prof. Dr. Celi Nelza Zulke Taffarel

    Niteri 2008

    Dissertao apresentada ao Curso dePs-graduao em Educao daUniversidade Federal Fluminense,como requisito parcial para obtenodo Grau de Mestre. Campo deConfluncia: Trabalho-Educao.

  • Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    F475 Figueiredo, Erika Suruagy Assis de. As aes afirmativas na educao superior: poltica de incluso lgica do capital / rika Suruagy Assis de Figueiredo. 2008.

    196 f. Orientador: ngela de Carvalho Siqueira. Co-orientador: Celi Nelza Zulke Taffarel. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educao, 2008. Bibliografia: f. 112-120.

    1. Ensino superior Brasil. 2. Reforma universitria - Brasil. 3. Programa de ao afirmativa. 4. Incluso social. I. Siqueira, ngela Carvalho de. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educao. III. Ttulo. CDD 378.81

  • ERIKA SURUAGY ASSIS DE FIGUEIREDO

    AS AES AFIRMATIVAS NA EDUCAO SUPERIOR: POLTICA DE INCLUSO LGICA DO CAPITAL

    Aprovada em 31de maro de 2008.

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Angela Carvalho de Siqueira - Orientadora

    UFF

    ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Celi Nelza Zulke Taffarel Co-orientadora

    UFBA

    ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Ktia Regina de Souza Lima

    UFF

    ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Gaudncio Frigotto

    Uerj

    Niteri 2008

    Dissertao apresentada ao Curso dePs-graduao em Educao daUniversidade Federal Fluminense,como requisito parcial para obtenodo Grau de Mestre. Campo deConfluncia: Trabalho-Educao.

  • DEDICATRIA

    A minha Minha pelo amor e pelos esforos para me dar tudo o que podia de melhor, representando os trabalhadores do mundo e os seus filhos que, em sua maioria, no tem acesso educao. Aos que com o suor do seu rosto sustentaram minha formao. A memria de Anderson Luiz, presidente do Sintrafrios-RJ, em nome de todos os negros, trabalhadores que tombaram na luta contra o latifndio e o capital. Meu camarada da IV Internacional, que mesmo tendo sido covardemente assassinado no dia 10/04/2006, no dia em que cheguei ao Rio de Janeiro para cursar o mestrado, se fez to presente nesta caminhada pelo seu exemplo, sua luta contra o racismo e a explorao. Anderson Luiz, presente!

  • AGRADECIMENTOS

    A minha Minha por suportar a distncia, compreender as longas ausncias e sempre ser um ponto de apoio para todas as minhas iniciativas.

    Aos meus familiares de sangue e corao pelo carinho, torcida e por sempre acreditarem em mim.

    Ao Movimento Estudantil, por ser ter sido a minha grande escola. Nessa luta chorei, sorri, fiz grandes amigos, cresci e me politizei, tomei partido na luta de classes.

    Aos camaradas da IV Internacional por manterem viva a chama da revoluo!

    A Celi Taffarel, nordestina por opo de corao, pelo exemplo de vida, coragem, carinho e pelos preciosos ensinamentos que nos fazem sempre lembrar, mesmo nos momentos mais difceis, que a luta pra vencer!

    A Angela Siqueira por ter aceitado o desafio da orientao e pela confiana.

    Aos professores Ktia Lima e Gaudncio Frigotto pelas importantes contribuies na qualificao que me acompanharam ao longo da elaborao do trabalho.

    As Florzinhas do Diretrio Acadmico da Esef, Ana Paula Chica, Aniele, urea, Giselle, Janine, Joanna e Magna, pelos anos de amizade e carinho incondicional. Vocs so sempre presentes na minha vida!

    camarada e amiga Christiane Granha e famlia pelo apoio indispensvel para realizao desse trabalho.

    Aos amigos Ben e Tita, Mona e Raquel, Mauro e Adri por toda a fora, debates e crticas para realizao desse trabalho e tantos outros.

    Aos companheiros da Lepel, em especial, Tina, Gil, Silvana, Mel e Jomar (nesse ltimo ano, companheiros de morada) sempre aprendendo pacincia histrica e trabalho coletivo. Juntos, somos mais fortes!

    Aos sempre queridos: Ftima e Leon, Carolzinha, Rose, Jnior, Salviano e Adri Albuquerque.

    A Themis, Ninna e Bruno, as pessoas que me deram a mo nos momentos mais difceis da minha passagem pelo Rio de Janeiro.

    s amigas que ganhei de presente nesse mestrado, Amlia e Mrcia, pelo companheirismo, pelas aprendizagens, angstias e alegrias compartilhadas.

    Aos professores, em especial, Cludia Alves, Maria Ciavatta, Lia Tiriba e Giovanni Semeraro, e funcionrios do Programa de Ps-graduao da UFF por toda a contribuio para o desenvolvimento do trabalho. A Capes pelo fomento para a realizao da pesquisa.

    Obrigada por existirem e fazerem parte da minha histria.

  • Hoje em dia os mocinhos estudam ainda em livros custa do sacrifcio dos explorados, exercitam-se em peridicos e criam novas tendncias. Mas, quando uma revolta se produz seriamente, em seguida, descobrem que a arte se encontra nas cabanas, nos buracos mais recnditos, onde fazem ninho os cupins. preciso derrubar a burguesia porque ela quem fecha o caminho cultura. A nova arte no s desnudar a vida, mas lhe arrancar a pele. Amar a vida com o afeto superficial do diletante no muito mrito. Amar a vida com os olhos abertos, com um sentido crtico cabal, sem iluses, tal como nos aparece com o que oferece, essa a proeza. A proeza tambm realizar um apaixonado esforo por sacudir aqueles que esto entorpecidos pela rotina, obrig-los a abrir os olhos e fazer-lhes ver o que se aproxima.

    Leon Trotsky - O Grande Sonho - fevereiro de 1917.

  • RESUMO A investigao insere-se no contexto em que os ajustes estruturais no modo de produo e as reformas na organizao do Estado encontram-se articulados com uma srie de reformas educacionais, com centralidade na reforma da educao superior. No Brasil, as aes afirmativas com a implantao do sistema de reserva de vagas/cotas nas universidades pblicas ganham destaque, sendo apresentadas como promotoras da democratizao do acesso e permanncia na educao superior. Tal poltica objeto de muitas controvrsias e polmicas que reduzem a questo a uma viso simplista e maniquesta, de contra ou a favor. Este trabalho buscou sair dessa polarizao, visando apreender o processo de transformaes na educao, a partir da relao trabalho-educao, compreendendo que o modo de produo engloba todos os aspectos de como a vida se produz e reproduz, e que, portanto, considera que exista uma relao dialtica entre as transformaes e ajustes na economia e a forma como o Estado organiza a educao. Com base nessa perspectiva, esta pesquisa questiona se a poltica de reserva de vagas/cotas realmente contribui para a democratizao do acesso e da permanncia na educao superior. Para responder a essa problemtica, realizamos uma pesquisa documental, na qual o materialismo histrico e dialtico, suas categorias e conceitos, com foco no Estado, Luta de Classes e Democracia, encontrados na obra de Marx, Engels e Lenin, fornecem a base terica e metodolgica. Foram analisados: (1) Documentos e textos oficiais de organismos internacionais e do governo brasileiro, correlacionando as exigncias de ajuste estrutural na economia e reformas no Estado com as novas propostas para educao; (2) Documentos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), campo emprico de pesquisa, para verificar a aplicao destas polticas concretamente. O confronto dos dados empricos com a teoria levou concluso de que as aspiraes legtimas por incluso na educao dos mais explorados pelo capitalismo so incorporadas de forma subordinada para legitimar o modelo privado de educao, baseado no mercado, e contribuir para destruio, privatizao da universidade pblica, como lcus de produo do conhecimento que articula ensino-pesquisa-extenso. Portanto, trata-se de uma incluso excludente que, ao mesmo tempo em que incorpora a reivindicao dos negros, trabalhadores por educao, nega a possibilidade de que tenham acesso a uma educao pblica de qualidade (histrico-social e cientfico-tecnolgica), e a garantia de permanncia na universidade.

    Palavras-chave: poltica pblica reforma da educao superior aes afirmativas reserva de vagas/cotas.

  • ABSTRACT This research is inserted in a context in which the structural adjustments in the way of production and the reforms in the organization of the State are articulated to a range of educational reforms with emphasis in the high education. In Brazil, affirmative actions with highlight in preferred admission/quotas in state-owned universities are being implemented as able to promote democratization of access and permanency in higher education. Controversies about this policy usually reduce the question to a simplistic against or in favor point-of-views. We tried, in this work, go beyond this dichotomy seizing the transformation process in education. The starting point is the relation between work and education, that is derivate of the understanding that the way of production covers all ways that life is produced or reproduced, so, considers the dialectical relationship between the changes and adjustments in economy and the way education is organized by the State. This made us point the question whether or not the preferred admission really promotes democratization in the access and permanency in the University. In order to face this question, we have done a documental research, analyzing them with the historical and dialectical materialism theory and method, using State, Democracy and Class Struggle conceptions present in Marx, Engels and Lenin works. During the present work, the following documents have been analyzed: (1) Official texts and documents of International Organisms and Brazilian Government to correlate the exigencies of the structural adjustments in economy with the new education proposals; (2) Documents of UFBA (Universidad Federal da Bahia), our empirical object of research, in order to demonstrate how this policies are applied in a real context. The study of all this material when confronted to theory, lead us to conclude that the fair inclusion aspirations of the most discriminated ones are incorporated to these educational reforms subordinated to the legitimation of a market-based and private education model, which contributes to the disorganization of the relation teaching-research-continuing education in state-owned university, destroying the basis of the knowledge production. That is why, it is an "excluding inclusion" that incorporate the black and poor workers claims, denying them the access to a public, high scientific and technological quality education and a real permanency in University. Key-words: public policy - high education reform - affirmative actions - preferred admissions/quotas

  • SUMRIO

    DEDICATRIA, p.4

    AGRADECIMENTOS, p.5

    EPGRAFE, p.6

    RESUMO, p.7

    ABSTRACT, p.8

    LISTA DE SIGLAS, p.10

    1. INTRODUO, p.11

    1.1. Referencial terico- metodolgico, p.18

    2. ESTADO, LUTA DE CLASSES E DEMOCRACIA NAS POLTICAS PBLICAS

    PARA A EDUCAO SUPERIOR, p.23

    2.1. Reforma do Estado e da educao superior: desdobramentos na universidade pblica

    brasileira, p.38

    3. EDUCAO SUPERIOR E AES AFIRMATIVAS: ESTRATGIA DE

    INCLUSO/EXCLUSO SUBORDINADA SOCIEDADE DE CLASSES, p.46

    3.1. Trabalho, educao superior e aes afirmativas, p.50

    3.2. Aes afirmativas na educao superior e organismos internacionais, p.53

    3.3. Aes afirmativas no Brasil, p.63

    3.4. Aes afirmativas na poltica educacional do governo e na universidade brasileira, p.73

    4. DEMOCRATIZAO DO ACESSO E PERMANNCIA NA EDUCAO

    SUPERIOR: AS LIES DA EXPERINCIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA

    BAHIA, p.82

    5. CONCLUSO: SEM PONTO FINAL, p.104

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS, p.111

    7. APNDICE A, p.120

    8. APNDICE B, p.143

    9. ANEXO, p.186

  • LISTA DE SIGLAS

    Abong Associao Brasileira de Organizaes No-governamentais Andes Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior Andifes Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino Superior BM Banco Mundial Capes Fundao Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico Consepe Conselho de Ensino Pesquisa e Extenso Consuni Conselho Universitrio Creduc Crdito Educativo CSVU Conselho Social de Vida Universitria FHC Fernando Henrique Cardoso Fies Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior FMI Fundo Monetrio Internacional GTI Grupo de Trabalho Interministerial Ibase Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IES Instituies de Ensino Superior Ifes Instituies Federais de Ensino Superior Inep Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional Mare Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado MEC Ministrio da Educao ONG Organizao No-governamental ONU Organizao das Naes Unidas PDI Plano de Desenvolvimento Institucional PNE Plano Nacional de Educao PPP Parcerias Pblico-Privadas Prouni Programa Universidade para Todos PT Partido dos Trabalhadores Seppir Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial Sinaes Sistema Nacional de Avaliao da Educao Superior Reuni Plano de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais UAB Universidade Aberta do Brasil Uenf Universidade Estadual do Norte Fluminense Uerj Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFBA Universidade Federal da Bahia UFF Universidade Federal Fluminense UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UnB Universidade de Braslia Unesco Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura Uniafro - Programa de Aes Afirmativas para a Populao Negra nas Instituies Pblicas de Educao Superior Usaid Agncia para o Desenvolvimento Internacional do Departamento de Estado dos Estados Unidos da Amrica

  • 1. INTRODUO

    A opo por este tema de pesquisa surge no meio de inmeros questionamentos sobre

    os rumos que vem tomando a reforma da educao superior no Brasil. Durante a graduao,

    atuando no movimento estudantil, tivemos a oportunidade de participar de vrios debates

    sobre a Reforma Universitria, nos quais percebemos que, quando a questo das aes

    afirmativas, especialmente da reserva de vagas/cotas nas universidades pblicas era pautada,

    se tornava praticamente impossvel discutir qualquer outro dos demais pontos da reforma:

    financiamento, assistncia estudantil, autonomia, etc. Aspectos da reforma que julgamos

    essenciais para podermos viabilizar a to propagada democratizao do acesso educao

    superior e permanncia nela.

    No queremos com isso dizer que a questo menos relevante que as demais, mas est

    estreitamente imbricada com as outras. A fragmentao e a polarizao da discusso que se

    constituem num equvoco. Consideramos, portanto, uma questo de extrema relevncia, tanto

    que nos dispusemos a pesquis-la, no sendo possvel desprezar a dimenso da mobilizao

    na sociedade para discutir, seja expressando posicionamentos favorveis ou contrrios, e os

    desdobramentos nas polticas pblicas, nos movimentos sociais, nas relaes institucionais e

    humanas.

    Identificamos assim, desde o princpio que o tema da pesquisa bastante polmico e

    delicado, como disse o reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Naomar de Almeida

    Filho, quando nem ameaas de greves nem as agruras da governana pareciam mais capazes

    de mobilizar vontades, eis que surge um assunto quente(ALMEIDA FILHO, 2007, p. 101).

    Tal fato gerou inmeros conflitos antes da delimitao do objeto de estudo e estruturao do

    projeto, tendo em vista os limites tericos da prpria pesquisadora e das pesquisas que

    vinham/vm sendo desenvolvidas, como constatamos no levantamento dos resumos das

    dissertaes e teses da Fundao Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel

  • 12

    Superior (Capes)1, que em sua grande maioria no abordavam as bases materiais que

    sustentavam este tipo de poltica.

    Aproveitamos para esclarecer a nossa opo por no adentrar no debate sobre as

    questes antropolgicas, sobre a histria do negro, do ndio, da mulher na sociedade e na

    educao brasileira etc., j que vrios estudos vm se debruando sobre estas questes

    importantes e que neste momento ganham flego. Correria o risco de no limite de uma

    dissertao com o enfoque que est sendo dado, de fazer uma anlise superficial. Tambm

    porque partimos do pressuposto de que todos os brasileiros (negros, ndios, afrodescendentes,

    ndios-descendentes, quilombolas, deficientes, mulheres, etc.) merecem o direito educao.

    Consideramos ainda que principalmente a luta dos negros, que so duplamente explorados,

    por serem negros e trabalhadores (FERNANDES, 1978), por educao e todos os direitos

    sociais justssima e urgente.

    Por isso, tentamos ao longo da pesquisa no reduzir nossa argumentao cientfica a

    uma viso simplista e maniquesta de defesa ou reprovao da poltica de aes afirmativas,

    particularmente da reserva de vagas/cotas nas universidades pblicas. O que no quer dizer

    que comungamos com a concepo de neutralidade da cincia, temos uma posio, mas que

    no nos impede de tentar explicar o fenmeno na sua totalidade e nas suas contradies. J

    que no se tratar de uma questo moral ou da posio dos indivduos, mas de procurar

    compreender: como esta poltica se insere no contexto social brasileiro? Quais os seus

    fundamentos? Por que se tornam centrais? Que interesses esto em disputa? A quem serve?

    Estas questes apresentam-se dentro de um contexto histrico e poltico, no qual, nas

    ltimas dcadas, pudemos constatar que a universidade pblica brasileira vem sofrendo um

    processo de destruio da sua funo enquanto instituio social (CHAU, 1999). Os dados

    demonstram o acelerado processo de privatizao da educao superior (Censo do IBGE da

    Educao Superior 2006), inclusive interna2 as instituies pblicas, entendendo esta, como a

    entrada desenfreada de recursos privados para manter as atividades prprias (ensino, pesquisa

    e extenso) das universidades pblicas.

    Tal processo de privatizao ganha flego com a implementao das polticas

    neoliberais, fundamentadas no liberalismo, doutrina que traz idias aparentemente libertrias

    e democratizantes, que, na sua origem, se contrapunham ao absolutismo, mas se baseiam na

    1 Este banco de dados foi escolhido por ser tratar do maior e mais organizado acervo de uma agncia pblica de fomento pesquisa. Capturado em www.capes.org.br, no ms dezembro de 2006. 2 Com a multiplicao das fundaes privadas de apoio, venda de servios, cursos pagos, cobrana de taxas aos estudantes para manter suas atividades essenciais, bem como para a complementao salarial dos docentes e funcionrios.

  • 13

    defesa da propriedade privada, mercado soberano, liberdade e direitos somente para alguns,

    os proprietrios.

    A necessidade de radicalizar a defesa da propriedade privada e dos interesses do

    mercado surge a partir de um processo de modificaes do capitalismo, que, em crise,

    estabelece novos mecanismos de organizao e dominao. A crise do capital estabelecida a

    partir dos anos de 1970 (crise da poltica de bem-estar social e do modelo fordista-taylorista

    de produo) desencadeou a reforma das instituies sociais no sentido de adaptarem-se ao

    processo de mudana da estrutura capitalista (CATANI & OLIVEIRA, 2002).

    Nesse momento, o neoliberalismo ganha espao, aprofundando as contradies do

    liberalismo clssico, contrariando at algumas de suas teses iniciais3. Portanto, o

    neoliberalismo no supera os rumos dessas contradies, embora o prefixo neo possa

    sugerir isso, at porque nunca foi essa a sua proposio. Sua funo dar sustentabilidade

    poltico-ideolgica ao capital.

    Com o fim da chamada era de ouro do capitalismo (HOBSBAWM, 1995), pelo

    esgotamento das possibilidades de expanso do capital, surge um novo modelo de

    organizao produtiva, pautada na acumulao flexvel, com o uso intensivo da informtica,

    microeletrnica, velocidade de informao e a financeirizao global4, atribuindo maiores

    poderes aos bancos, s empresas multinacionais e aos organismos internacionais provedores e

    mantenedores do imperialismo (LENIN, 2007).

    No bojo dessas mudanas, o papel do Estado passa a ser questionado. Tornam-se

    necessrias reformas para a adeso dos Estados, principalmente dos pases ditos em

    desenvolvimento e com grandes dvidas externas, s polticas de ajustes estruturais,

    compensatrias, focalizadas, de alvio pobreza, por presses do Fundo Monetrio

    Internacional (FMI), Banco Mundial (BM) e a Organizao Mundial do Comrcio (OMC),

    rgos que defendem os interesses do capital. Tais ajustes materializam-se principalmente na

    privatizao dos servios pblicos5 e no ataque s conquistas e aos direitos6 da classe

    trabalhadora, mediados de diversas formas nos diferentes pases. Essa reorganizao aponta,

    como um dos fatores prioritrios, a reduo da esfera pblica como reguladora da vida social

    3 Que reconhecido por Hayek (1998, p.52) recebeu herana das teorias do direito comum e do direito natural ( vida, segurana, entre outros). 4 Veja Braga (1998). Financeirizao global, com a internacionalizao dos bancos e empresas e a ruptura do padro ouro-dlar. 5 Temos como exemplos, no Brasil, a privatizao da Vale do Rio Doce, das empresas de telefonia, energia eltrica e gua/ saneamento, alm do sucateamento das universidades pblicas. 6 Precarizao das condies de trabalho, atravs da flexibilizao da CLT (no pagamentos das horas-extras, frias, dcimo terceiro, etc.), no abertura de concursos pblicos (utilizao de contratos temporrios). Ataques expressos, principalmente, via propostas de reforma administrativa, previdenciria, trabalhista, sindical e fiscal.

  • 14

    e a ampliao da esfera privada, e, conseqentemente, do seu poder no Estado e na sociedade

    civil7.

    Nessa perspectiva podemos observar nas propostas de acordos internacionais, como o

    da rea de Livre Comrcio das Amricas (Alca) e do Acordo Geral sobre Comrcio em

    Servio (Gats)8, a caracterizao dos direitos sociais enquanto bem de consumo, em especial a

    educao, numa perspectiva de ajust-la s reformas do Estado e s mudanas no paradigma

    produtivo, apresentando tais polticas como a sada para a crise vivida hoje pelo capital.

    Portanto, no toa que a educao se enquadra no bojo das reformas e torna-se

    central para os tratados de livre comrcio (TLC), na pauta da OMC e nos acordos bilaterais

    em curso, alm de outras mudanas no caminho da liberalizao do comrcio dos servios

    educacionais.

    No Brasil, as polticas neoliberais foram adotadas a partir da dcada de 1990, tendo

    como ponto principal a reforma do Estado9, e na rea da educao, a Lei de Diretrizes e Base

    (LDB) e o Plano Nacional de Educao (PNE)10, aprovados no governo do presidente

    Fernando Henrique Cardoso. Tais dispositivos legais apontam para a desresponsabilizao do

    Estado com relao educao pblica, ao lado da ampliao do setor privado, com abertura

    para entrada de recursos privados para a manuteno e ampliao das instituies pblicas,

    bem como a transferncia de recursos pblicos para o setor privado.

    Em decorrncia da adoo dessas polticas na educao superior, as universidades

    pblicas sofreram um desmantelamento, observado, principalmente, atravs dos seguintes

    fatores: cortes de verbas pblicas; no abertura de concursos pblicos para professores e

    funcionrios tcnico-administrativos; expanso do ensino superior privado e das matrculas

    dela decorrentes; destinao de verba pblica para as faculdades particulares; multiplicao

    das fundaes privadas nas Instituies de Ensino Superior (IES) pblicas; intensificao da

    jornada trabalho do docente, sem reposio salarial compatvel e ausncia de uma poltica

    efetiva de assistncia estudantil.

    neste contexto que, em meados da dcada de 1990, durante o primeiro mandato de

    FHC, iniciado o debate sobre as polticas de aes afirmativas no Brasil. Em 1996, 7 No comungamos com o entendimento de uma viso dicotmica entre Estado e Sociedade civil, principalmente, neste momento de organizao neoliberal do Estado. Consideramos a viso de Gramsci sobre o conceito de sociedade civil, atravs de Semeraro (1999). Porm, optamos por no utiliz-la como referencial de anlise pela necessidade de aprofundamento em seus estudos, o que no foi possvel nesta dissertao, e, tambm, pelo uso indiscriminado que tem sido feito de sua obra. 8 Veja Siqueira (2004) no artigo A regulamentao do enfoque comercial no setor educacional via OMC-Gats publicado na Revista Brasileira de Educao. 9 VejaPlano diretor da reforma do Estado Ministrio de Administrao e Reforma do Estado (Mare) 10 Veja Savianni (2004).

  • 15

    constitui-se um grupo de trabalho interministerial (GTI)11 composto pelo governo e por

    representantes dos movimentos sociais, que definiu as aes afirmativas como:

    medidas especiais e temporrias, tomadas ou determinadas pelo Estado espontnea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar [grifo nosso] desigualdades historicamente acumuladas (BRASIL, 1996).

    Na rea da educao, as aes afirmativas aparecem como uma das principais

    iniciativas, que ganhou o centro do debate com a reserva de vagas/cotas para estudantes da

    escola pblica, afrodescendentes, portadores de necessidades especiais, indgenas, ndios-

    descendentes, quilombolas nas universidades pblicas12.

    Em consonncia com o governo neoliberal de FHC, o governo de Lus Incio Lula da

    Silva vem aprofundando uma srie de reformas, inclusive educacionais, entre elas a reforma

    universitria, na qual se encontram inseridas as aes afirmativas, reserva de vagas/cotas, que

    so definidas pelo Ministrio da Educao (MEC)13 como sendo:

    aes afirmativas so medidas especiais e temporrias tomadas pelo Estado, com o objetivo de eliminar [grifo nosso]desigualdades raciais, tnicas, religiosas, de gnero e outras historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminao e marginalizao (MEC, 2006).

    Como medidas temporrias, compensatrias, tero o poder de eliminar as

    desigualdades histricas? Para elucidar a questo preciso inseri-la no contexto: 1)

    econmico (modo de produo); 2) histrico (luta de classe); 3) poltico (organizao do

    poder) e 4) educacional (formao humana), sabendo que estas dimenses so

    interdependentes.

    O contexto (1) econmico marcado pela crise estrutural do capitalismo, destruio

    das foras produtivas e da explorao atravs da acumulao flexvel, demonstra o quanto

    urgente e necessria a construo da alternativa socialista. No que concerne ao contexto (2)

    histrico, ele se caracteriza pela luta dos trabalhadores pela sobrevivncia, inclusive da

    11 Coordenado pelo Professor Doutor Hlio Costa da Universidade de Campinas (Unicamp). 12 Esclarecemos que a pesquisa no tratou as especificidades das questes afetas a cada grupo distinto, tratou a reserva de vagas/cotas de maneira geral. Contudo, devido maior produo acadmica tratar dos afrodescendentes, a anlise utilizar este material disponvel, e tambm por ser a populao mais beneficiada com estas iniciativas. 13http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=content&task=category&sectionid=12&id=95&Itemid=303. No link Incluso e Aes Afirmativas na Educao Superior. Acesso em 6 de dezembro de 2006.

  • 16

    humanidade, contra o capital, contra a propriedade privada dos meios de produo, contra a

    burguesia, e desta ltima contra os trabalhadores. J o contexto (3) poltico implica na

    organizao das classes, atravs do Estado e dos seus instrumentos de reproduo (aparelhos

    do Estado e da sociedade civil) para manter/transformar a estrutura social. Por fim, o contexto

    (4) educacional, enfatizando a necessidade de formao de um trabalhador/homem com novo

    perfil, em termos de habilidades e competncias cognitivas e atitudes de comportamento, para

    que seja possvel a consolidao deste novo modelo de acumulao do capital ou a

    construo do socialismo.

    Os desdobramentos na interveno do Estado (ajustes estruturais e reformas) para

    garantir o processo de produo e reproduo do capital so pontos que compreendemos de

    fundamental importncia e nos propomos a enfatizar nesta dissertao. Entendemos que tal

    interveno desencadeou uma srie de aes no mbito da educao, nas reas de cincia e

    tecnologia, formao de professores e pesquisadores, etc. Entre estas aes destacamos as

    polticas de aes afirmativas, em particular a reserva de vagas/cotas nas universidades

    pblicas brasileiras que aparecem no bojo das polticas de democratizao da educao

    superior brasileira. Neste sentido nos questionamos: estas polticas esto contribuindo para a

    democratizao do acesso e permanncia na educao superior no Brasil?

    Optamos por este problema, tendo em vista a centralidade que as reformas, em

    particular a da educao superior14, vem assumindo no Brasil a partir da dcada de 1990.

    Bem como, pela nfase que o atual governo, em consonncia com o anterior, vem dando s

    polticas de aes afirmativas, com a implementao da reserva de vagas/cotas em vrias

    universidades pblicas do pas.

    Partimos da hiptese15 que as polticas de aes afirmativas, em particular a reserva de

    vagas/cotas nas universidades pblicas, esto fundamentadas na compreenso de incluso

    excludente16, encontram-se articuladas as polticas para conciliao de classe necessrias ao

    14 A reforma vem ocorrendo atravs de uma srie de medidas provisrias, projetos e leis e neste momento, expressa no Projeto de Lei n 7200/06 que dizem respeito a todas as instituies de ensino superior pblicas e privadas. Nesta pesquisa vamos nos centrar na universidade pblica. 15 Definidas por Minayo (1996, p.95) como afirmaes provisrias a respeito do objeto. A autora prope a incorporao do termo, mesmo sabendo de sua origem positivista, como um mecanismo que serve de baliza para o confronto com a realidade. possvel tambm utilizar o termo: pressupostos. 16 Kuenzer (2004), estratgias de incluso nas mais diversas modalidades de ensino, no caso deste estudo na educao superior, porm com um padro de qualidade que no possibilita uma formao capaz nem sequer de atender e muito menos superar a exigncia do capitalismo. Alguns indicadores se apresentam neste sentido, o projeto Universidade Nova que foi discutido em seminrio realizado nos dias 1 e 2 de dezembro de 2006, na Universidade Federal da Bahia, com a participao do MEC e de representantes das universidades pblicas, apresentou, como propostas iniciais, o fim do vestibular e realizao de cursos bsicos de trs anos, antes do profissional (Veja site

  • 17

    processo de mundializao do capital e da educao, contribuindo, atravs da integrao das

    reivindicaes e da educao do trabalhador, para a colaborao entre as classes sociais e no

    mais para o confronto. No contribuindo nem no sentido do aumento de recursos pblicos

    para as universidades pblicas, nem do nmero de vagas e da garantia de permanncia com

    qualidade nas universidades.

    Tivemos como objetivos: a) explicar como a poltica de ao afirmativa, em especial a

    reserva de vagas/cotas, insere-se no contexto mundializao do capital e da educao; b)

    identificar nos documentos dos organismos internacionais a relao destas polticas com a

    reforma do Estado e ajustes estruturais; c) identificar nos documentos do governo federal e da

    UFBA a consonncia com as demandas da reorganizao do modelo de acumulao do

    capital.

    Para desenvolver o trabalho, optamos pela UFBA como campo emprico, situada no

    Estado brasileiro bero da educao superior no pas. Atualmente esta instituio, atravs do

    seu reitor, Naomar de Almeida Filho, direciona as polticas para a reforma das universidades

    pblicas, includas as aes afirmativas, juntamente com o tambm reitor, Thimothy

    Mulholland, da Universidade de Braslia (UnB). Segundo o Centro de Estudos Afro-Orientais

    (Ceao) da UFBA, a primeira universidade federal a iniciar a discusso e uma das primeiras a

    implementar a reserva de vagas, servindo de modelo para o Projeto de Lei sobre o assunto,

    enviado pelo MEC17 para o Congresso Nacional (Ceao, 2005, p. 4).

    Ainda, porque a UFBA est localizada no Estado brasileiro onde, segundo dados do

    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), encontra-se a maior presena de negros

    no Brasil (73,2%)18, a parcela da populao mais beneficiada19 pelas polticas de reserva de

    vagas/cotas. A escolha tambm se justifica porque a UFBA possui um Programa de Aes

    Afirmativas que comeou a ser discutido no ano de 2002 e aprovado em 2004, com nfase na

    poltica de reserva de vagas/cotas, que foi fruto de uma grande demanda da sociedade civil

    organizada para a implementao dessas polticas, com a constituio de um comit

    denominado Pr-cotas, citado nos documentos da instituio.

    www.estadao.com.br/educacao/noticias/2006/dez/01/310.htm, acessado em 4/12/2006). Alm de programas de bolsas para estudantes cotistas executarem tarefas nas universidades, como tambm no Ministrio da Sade. 17 Encaminhado pelo na poca ministro da Educao Tarso Genro, em 28 de abril de 2004. 18 Autodeclarao de pretos e pardos. Fonte: IBGE. Censo demogrfico 1940-2000. 19 Colocamos entre aspas para destacar que no um privilgio ter acesso educao superior, mas um direito de todos e um dever do Estado. Porm, pela via da reserva de vagas/cotas tambm no um benefcio, tendo em vista as suas implicaes polticas e sociais.

  • 18

    1.1. Referencial terico-metodolgico

    Para a realizao da pesquisa utilizamos o materialismo histrico dialtico enquanto

    mtodo e teoria do conhecimento, buscando compreender o movimento do real concreto

    (prtica social) na sua totalidade com mltiplas relaes, articulaes, nexos e determinaes,

    entendendo a ao humana como uma construo histrica, desenvolvendo instrumentos do

    pensamento, leis e categorias para a apreenso da realidade (KOSIK, 2002; CHEPTULIN,

    2004).

    Entendemos o mtodo dialtico de explicao da realidade, da prtica social, como

    alerta Kosik (2002):

    [...] apresenta o desenvolvimento da coisa como transformao necessria do abstrato em concreto. A ignorncia do mtodo da explicitao dialtica (fundada sobre a concepo da realidade como totalidade concreta) conduz subsuno do concreto sob o abstrato, ou a omisso dos termos intermdios e construo de abstraes foradas. A dialtica materialista como mtodo de explicitao cientifica da realidade humano-social no significa, por conseguinte, pesquisa do ncleo terreno das configuraes espirituais, no significa emparelhamento dos fenmenos de cultura a equivalentes econmicos, nem reduo da cultura a fator econmico. A dialtica no o mtodo da reduo: o mtodo da reproduo espiritual e intelectual da realidade, o mtodo do desenvolvimento e da explicitao dos fenmenos culturais partindo da atividade prtica objetiva do homem histrico (ibid., p. 32).

    Ainda segundo Kosik (ibid.), as coisas no se mostram diretamente ao homem tal qual so. preciso fazer um dtour, pois o misticismo justamente a impacincia do homem

    em conhecer a verdade. Com o intuito de fazer este movimento, apresentamos a seguir os

    caminhos escolhidos para a pesquisa:

    1. Natureza da pesquisa: Devido caracterizao do problema, que tratou de aspectos no

    mbito da educao, de natureza eminentemente social, consideramos o sujeito-pesquisador

    como parte integrante do processo de construo do conhecimento e da interpretao dos

    fenmenos, atribuindo-lhes significados, a partir das leis gerais da dialtica materialista.

    Realizamos uma pesquisa documental, que, segundo Gil (1991), vale-se de materiais

    que no receberam ainda um tratamento analtico, ou que ainda podem ser reelaborados de

    acordo com o objeto da pesquisa. Desta forma, utilizamos os documentos da UFBA, do

    governo federal e dos organismos internacionais.

  • 19

    2. Organizao e tratamento dos dados: Os caminhos percorridos foram semelhantes aos de

    uma pesquisa bibliogrfica, a partir da explorao das fontes, leitura do material, elaborao e

    anlise das fichas, e concluso. Primeiramente determinamos os objetivos da pesquisa, depois

    escolhemos os documentos. Diante do grande volume de material acessado, foi necessrio

    priorizar alguns documentos. Em relao aos organismos internacionais procedemos da

    seguinte forma: 1) Definimos quais os organismos internacionais com que iramos trabalhar,

    foram escolhidos o Banco Mundial (BM) e a Organizao das Naes Unidas para Educao,

    Cincia e Cultura (Unesco) e 2) Delimitamos os documentos publicados por tais organismos

    a serem analisados. Os critrios para seleo foram: a) importncia, influncia na rea da

    educao superior no Brasil, tendo em vista a citao em textos cientficos e projetos e b) o

    textos que tratavam mais especificamente do tema e das categorias utilizadas para a anlise

    do objeto.

    O acesso aos documentos ocorreu da seguinte forma: 1) Por via de ofcio expedido

    para diversos rgos da UFBA, junto com a carta de apresentao da orientadora, expondo os

    objetivos da pesquisa e solicitando todo material disponvel sobre as aes afirmativas,

    reserva de vagas/cotas implementadas na instituio; 2) Por via de material fornecido pela

    disciplina Organismos Internacionais e Educao, ministrada pela professora Angela

    Siqueira, orientadora da pesquisa; 3) Por meio de acesso a Internet, especialmente o acesso

    ao Banco de Teses e Dissertaes da Capes.

    De posse de todo material, passamos a elaborar fichas, snteses e quadros analticos,

    para posterior anlise dos dados coletados.

    Em relao aos documentos da UFBA e aos resumos do Banco de Teses de

    Dissertaes da Capes, elaboramos uma catalogao, identificando o documento ou a

    tese/dissertao, o autor, a origem, os conceitos que pudessem existir e uma sntese do

    contedo, que organizamos em forma de apndice da dissertao com o intuito de facilitar o

    desenvolvimento de futuras pesquisas sobre o tema.

    3. Fontes de pesquisa: No primeiro momento ocorreu a explorao das fontes, sendo elas:

    Bibliogrficas - livros, revistas, peridicos e dissertaes que possibilitaram dialogar com as

    categorias de contedo que so trabalhadas na pesquisa: Estado, Luta de Classes,

    Democracia, Reforma, Educao Superior, Universidade, Polticas de Ao Afirmativa e

    Reserva de vagas/cotas. E as categorias de mtodo: Prxis, Totalidade, Contradio e

    Mediao (KUENZER, 2002).

  • 20

    Documentais - 1) leis, medidas provisrias, projetos de lei e documentos governamentais

    relacionados ao tema; 2) documentos dos organismos internacionais (BM e Unesco); 3)

    documentos da UFBA que versem sobre o tema; 4) o Programa de Aes Afirmativas da

    Universidade Federal da Bahia (ANEXO); 5) dados estatsticos sobre a educao, a educao

    superior e o Brasil (IBGE, Inep, etc.); dados estatsticos sobre a UFBA.

    4. Anlise dos dados: A interpretao dos dados foi realizada a partir da busca da anlise de

    contedo para entender, criticamente, o sentido e o significado dos documentos. Entendendo

    esta anlise, segundo Minayo (1996, p. 199) como mais que um procedimento tcnico, a

    anlise de contedo uma histrica busca terica e prtica no campo das investigaes

    sociais. Este tipo de anlise possibilita, segundo Bardin a inferncia de conhecimentos

    relativos s condies de produo/recepo destas mensagens (BARDIN 1979 apud

    MINAYO, 1996, p.199), ou seja, dos contedos dos documentos analisados.

    Na anlise de contedo primamos pela fidedignidade na apreenso dos sentidos e

    significados, utilizando, para tanto, o recorte de trechos, pargrafos dos documentos, que

    pudessem expressar a regularidade dos fundamentos e argumentaes. Achamos relevante

    expor os procedimentos, mesmo de forma abreviada, j que optamos por no fazer um

    captulo para tratar da metodologia, para que fique claro que a escolha do mtodo e dos

    instrumentos de investigao no se deu de maneira aleatria, especulativa ou por

    convenincia.

    Todo o esforo terico para desenvolvimento de tcnicas, visa ainda que de formas diversas e contraditrias - a ultrapassar o nvel do senso comum e do subjetivismo na interpretao e alcanar uma vigilncia critica comunicao de documentos, textos literrios, biografias, entrevistas ou observao (MINAYO, 1996, p. 203).

    Neste sentido, construmos um quadro analtico dos documentos da Universidade

    Federal da Bahia, organizado por ordem cronolgica, em que constam os seguintes itens: qual

    o documento, a origem ou a procedncia, o contedo, os conceitos e as explicaes, estes

    dois ltimos itens se, por ventura, constassem no documento (APNDICE A).

    Para que fosse possvel a reconstruo do objeto, foi necessrio fazer uma delimitao

    da realidade, o que foi bastante difcil tendo em vista a sua complexidade, atualidade e os

    limites de uma investigao em nvel de mestrado, a anlise e compreenso do estgio de

    desenvolvimento do fenmeno e, por fim, a exposio. Momentos distintos do processo de

    pesquisa, mas totalmente articulados.

  • 21

    O momento da exposio, levando em considerao os limites da prpria

    pesquisadora, visa explicitar o processo de desenvolvimento do objeto, apresentando os

    nexos, relaes e determinaes. Numa tentativa de gerar um novo conhecimento sobre o

    fenmeno, partindo do conhecimento j existente, esclarecendo aspectos no perceptveis

    primeira vista. (KOSIK, 2002)

    importante este esclarecimento para que possamos entender a relao do mtodo

    cientfico (materialismo histrico dialtico), que nos deu o suporte terico necessrio para

    anlise dos dados, relao com as tcnicas e mtodo para sistematizao, anlise dos dados e

    exposio. Bem como, a relao entre o geral, a poltica pblica no contexto da sociedade

    capitalista /polticas para educao superior, o singular, a reserva de vagas/cotas na

    Universidade Federal da Bahia e o particular, as aes afirmativas nas universidades pblicas

    brasileiras (CHEPTULIN, 2004).

    Esclarecidas estas questes, apresentaremos como organizamos a exposio da

    investigao. No Captulo 1, apresentaremos o aporte terico utilizado, centrado nas questes

    gerais afetas ao Estado, a Luta de Classes e a Democracia para analisar o objeto da

    investigao: as polticas de aes afirmativas, a reserva de vagas/cotas para democratizao

    do acesso e permanncia na educao superior no Brasil, em especial nas universidades

    federais/UFBA.

    No Captulo 2, analisaremos, a partir da relao trabalho-educao, os documentos

    dos organismos internacionais escolhidos para pesquisa (BM e Unesco) e dos governos FHC

    (1994-2001) e Lula (2002 2007), identificando as relaes estabelecidas com o processo de

    fomento e implementao das aes afirmativas no Brasil, em particular, a polticas de

    reserva de vagas/cotas nas universidades pblicas.

    No Captulo 3, trataremos da anlise dos dados empricos em relao ao acesso e

    permanncia na educao superior no Brasil, enfocando as polticas de aes

    afirmativas/reserva de vagas, em particular na UFBA.

    Nas consideraes finais, apresentaremos a sntese produzida a partir do confronto

    entre os dados empricos com a teoria. Constatamos que a incluso na educao dos mais

    explorados pelo capitalismo so incorporadas de forma subordinada para legitimar o modelo

    privado de educao, baseado no mercado e contribuir para destruio da universidade

    pblica, como lcus de produo do conhecimento que articula ensino-pesquisa-extenso, no

    aumentando o nmero de vagas oferecidas, nem dos recursos pblicos destinados s

    universidades. Portanto, trata-se de uma incluso excludente que, ao mesmo tempo em que

  • 22

    incorpora a reivindicao dos negros, trabalhadores por educao, nega a eles a

    possibilidade de terem acesso a uma educao pblica de qualidade, cientfico-tecnolgica,

    scio-histrica, e sua permanncia na universidade.

  • 23

    2. ESTADO, LUTA DE CLASSES E DEMOCRACIA NAS POLTICAS PBLICAS PARA EDUCAO SUPERIOR NO BRASIL

    Neste captulo, faremos uma breve discusso acerca das categorias Estado, Luta de

    Classes e Democracia e a articulao delas com a reforma do Estado realizada sob a gide do

    neoliberalismo, que tem privilegiado a adoo de polticas focalizadas, compensatrias, em

    detrimento das polticas universais. Por fim, apontamos os seus desdobramentos na educao,

    em especial nas universidades pblicas brasileiras.

    Partimos do entendimento de que para explicar as polticas pblicas, no caso deste

    estudo, as polticas pblicas para educao superior, sua expresso singular as aes

    afirmativas e, em particular, a poltica de reserva de vagas nas universidades pblicas

    brasileiras, faz-se necessrio compreender antes tanto o papel do Estado numa sociedade de

    classes, quanto democracia como expresso do poder poltico.

    Para tal, valemo-nos do materialismo histrico dialtico, enquanto teoria e mtodo,

    utilizando principalmente as obras de Marx, Engels e Lenin, que tratam da questo do

    Estado, da Luta de Classes e da Democracia, para compreender o fenmeno no atual contexto

    histrico. Lenin recusando-se a cair na armadilha da transio gradual do Estado burgus ao

    socialismo, escreve, logo depois das Teses de Abril, o livro O Estado e a Revoluo que

    se constitui num instrumento terico para combater o que chamou, no prefcio da 1 edio,

    de elementos de oportunismo.

    O ponto de partida do autor de que o Estado um produto do antagonismo

    inconcilivel das classes. Para tanto, faz um levantamento de vrias passagens da obra de

    Marx e Engels para que seja possvel explicitar o desenvolvimento das concepes

    fundamentais do socialismo cientfico sobre o Estado. Nessa concepo, ele compreendido

    no como algo externo sociedade, mas, sim, fruto das relaes inconciliveis das classes.

    Engels, tomando como base o pensamento de Lenin, entende que o Estado

    antes um produto da sociedade quando essa chega a um determinado grau do seu desenvolvimento; a confisso de que essa sociedade se enredou

  • 24

    numa irremedivel contradio com ela prpria e que est dividida em oposies irreconciliveis que no consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econmicos colidentes no se devorem e no consumam a sociedade numa luta estril, faz necessrio um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mant-lo dentro dos limites da ordem. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, o Estado (ENGELS, 2004, p. 176-177).

    A compreenso de que o Estado o poder para corrigir as contradies do sistema da

    propriedade privada dos meios de produo trata-se para Lenin de uma interpretao

    inescrupulosa da obra do Marx, pois para ele o Estado um rgo de dominao de classe e

    no de conciliao; um instrumento de submisso de uma classe sobre outra (LENIN, 2007,

    p. 25).

    A idia de conceber o Estado como rgo para resoluo de conflitos sociais entre as

    classes, ou grupos sociais, categoria esta mais utilizada hoje nas questes afetas s aes

    afirmativas, continua sendo propagada pelos defensores da democracia. Para Lenin

    Essa democracia pequeno-burguesa incapaz de compreender que o Estado seja o rgo de dominao de uma determinada classe que no pode conciliar-se com a sua antpoda (a classe adversa) [ibid., p. 26].

    A compreenso de que o Estado burgus um instrumento de dominao de uma

    minoria sobre uma maioria, de uma classe sobre a outra, torna-se imprescindvel para que a

    classe oprimida, a maioria, e no as minorias noo muito utilizada atualmente no que diz

    respeito s aes afirmativas , entenda que as desigualdades de classe, raa, etnia, gnero, s

    podero ser superadas com a tomada do poder pelos oprimidos e a subseqente destruio

    desse Estado. Como disse Marx na Mensagem do Comit Central liga dos Comunistas, em

    1850:

    Para ns no se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; no se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; no se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova (MARX, s/d).

    A classe dominante, para a manuteno da sua condio e do regime da propriedade

    privada, constitui, atravs do Estado, um poder coercitivo, que crescer na medida em que a

    luta de classes se agrave. Portanto, de maneira geral, o Estado est sempre a servio da classe

    que detm o poder econmico, que no abrir mo de exercer o domnio poltico para que

    possa criar novas formas de oprimir e explorar a classe dominada, utilizando a educao para

  • 25

    isso. Em resumo, o moderno Estado representativo o instrumento de que se serve o capital

    para explorar o trabalho assalariado (ENGELS, 2004, p. 178-179).

    Tal entendimento sobre o papel do Estado numa sociedade de classes base para

    explicar as disputas das polticas pblicas, em todos os mbitos, inclusive na educao e no

    poder poltico. Por certo que numa sociedade capitalista a melhor forma de estruturao desse

    poder poltico a democracia, j que os trabalhadores tm a maior possibilidade de

    organizao. Contudo, se faz necessria a derrubada dessa democracia, ou seja, do Estado

    burgus, para a instalao da democracia dos trabalhadores, a ditadura do proletariado20, ou,

    como bem disse Lenin (2007, p. 79), a indispensvel ditadura provisria da classe oprimida.

    Temos clareza, pela condio de classe da burguesia, que no poder ser por via pacfica, nem

    por via de reformas21 e, provavelmente, no se dar pela adoo de polticas pblicas de

    carter focal, compensatrio e de alvio pobreza, considerando o grau de desenvolvimento

    da luta entre as classes.

    Para compreender este processo de luta entre as classes antagnicas, faz-se necessrio

    explicitar o que entendemos por classe. Tal conceito foi de grande importncia na obra de

    Marx e possibilita um grande debate entre os marxistas, mas, vamos nos ater, tendo em vista o

    objetivo do estudo, na nfase relao que se estabelece entre a classe e a posio que os

    agentes sociais ocupam na esfera produtiva e, por conseguinte, na ideologia e na poltica. So

    duas as classes fundamentais que existem na organizao da sociedade capitalista: a dos

    proprietrios dos meios de produo da vida e a daqueles que s tm a sua fora de trabalho

    para vender, lembrando que, dentro das classes, h camadas intermedirias, estratos, grupos,

    categorias etc.

    Segundo Florestan Fernandes, o conceito de classe social est historicamente

    relacionado ao modo de produo capitalista. Para o autor

    a classe social s aparece onde o capitalismo avanou suficientemente para associar, estrutural e dinamicamente, o modo de produo capitalista ao mercado como agncia de classificao social e ordem legal que ambos requerem, fundada na universalizao da propriedade privada, na racionalizao do direito e na formao de um Estado nacional formalmente representativo (FERNANDES, 1975, p. 33).

    20 O perodo da ditadura do proletariado entendido por Lenin como o de preparao das condies que tornaro possvel a plena realizao do comunismo. 21 Que at certo ponto podem contribuir, como o caso da Reforma Agrria no Brasil. O que Lenin chamaria de reforma revolucionria (ibid., p.66).

  • 26

    A partir dos argumentos de Florestan Fernandes, Limoeiro (2005, p. 9) afirma que as

    classes sociais se organizam para preservar, fortalecer ou superar um determinado modo

    social vigente, portanto, uma sociedade divida em classes

    a explicao dos grandes movimentos e transformaes da histria encontra-se nas relaes de cooperao ou de luta entre as classes sociais. Por isso suas teorizaes [de Florestan Fernandes] sobre o capitalismo dependente nunca abstraem o sistema de classes das formaes capitalistas, quer estas sejam dependentes, autnomas ou hegemnicas (ibid., p. 9).

    Guardadas as especificidades, o sistema de classes est articulado nacional e

    internacionalmente, sendo fundamental compreender o movimento mais geral do capital, os

    motivos da heteronomia de pases como o Brasil e a conseqente necessidade de organizao

    das classes para manuteno ou superao do status quo. Por isso, o conceito de Capitalismo

    Dependente (FERNANDES, 1975), a partir de sua anlise sobre a Amrica Latina, inserido na

    luta de classes, desmascarou a dominao imperialista e da burguesia das naes latino-

    americanas que cooperam entre si para manuteno do status quo.

    A luta de classes adquire no contexto atual um papel central, tendo em vista a tamanha

    desigualdade provocada pelo capitalismo, pela propriedade privada, que conseguiu produzir

    uma quantidade infinita de riquezas, porm num processo de destruio das foras

    produtivas22, em que a produo social, coletiva, e a apropriao individual, privada.

    Segundo Lenin (1979, p.40), a primeira fora produtiva de toda a humanidade o

    trabalhador. Se ele sobreviver salvaremos e restauraremos tudo. Neste sentido, o desfecho

    dessa luta decisivo para histria da humanidade.

    Diante deste contexto e para melhor analisar o papel do Estado e das polticas

    pblicas, em especial para a educao superior, uma questo foi levantada: o que devemos

    fazer para nos livrarmos do jugo do capitalismo?

    Neste momento da histria da luta de classe, para forjarmos uma sada positiva para a

    humanidade preciso, como diria Lenin (ibid.), quebrar as iluses, no desviar da essncia

    do problema, por causa de slogans que, como lobos vestidos de cordeiros, propagam a

    liberdade, a igualdade e a democracia. Slogans que, no atual contexto, significam a

    liberdade do capital, do proprietrio a obrigar o trabalhador a vender a nica mercadoria

    22 Que so os meios de produo (terra, mquinas, natureza, etc.) e a fora de trabalho: o prprio trabalhador.

  • 27

    que possui que a sua fora de trabalho, a igualdade de condies para competir no

    mercado de trabalho, e a democracia burguesa para defender seus interesses.

    Para Lenin, a essncia do problema exatamente a urgente necessidade de superao

    da sociedade de classes, a emancipao do trabalho da opresso do capital (ibid., p. 27).

    Isso s ser possvel pela revoluo, no pacfica, abolio do Estado burgus, instalao da

    ditadura do proletariado, apropriao do Estado e dos meios de produo pelos

    trabalhadores. Enfim, a constituio da democracia dos trabalhadores, at que seja

    desnecessria a existncia do Estado.

    O Marxismo, que reconhece como inevitvel a luta de classes, afirma: A Humanidade s pode atingir o Socialismo atravs da Ditadura do Proletariado. Ditadura uma palavra crua, sria, sangrenta e terrvel, e tais palavras no devem ser atiradas levianamente. Se os Socialistas lanam tal slogan porque sabem que a classe dos exploradores s ceder em resultado duma luta desesperada e sem piedade e tentar disfarar o seu domnio por meios das mais variadas palavras agradveis (ibid., p. 30).

    Os slogans que tanto Lenin combateu na poca da Revoluo Russa aparecem nos dias

    atuais propagados pelos liberais, social-democratas e at por setores socialistas, mesmo que

    com variaes, com o idntico objetivo de iludir o povo. Tais palavras de nada servem para

    os explorados se no estiverem a servio da emancipao do trabalho sobre o capital.

    Os slogans que exaltam uma assim dita democracia geral, uma democracia para todos, para toda a nao, fora das classes, mas de fato uma democracia burguesa, s podem servir aos interesses dos exploradores; enquanto subsistir a propriedade privada da terra e dos outros meios de produo, a repblica mais democrtica continuar a ser, inevitavelmente, uma ditadura burguesa, uma mquina para oprimir a imensa maioria dos trabalhadores por um punhado de capitalistas (LENIN 1919 apud FERNANDES, 1989, P.154).

    Diante do uso indiscriminado do termo democracia e da crescente negao da

    existncia de classes sociais23 e, portanto, da luta de classes, levantamos, na literatura

    acessada, algumas concepes acerca do conceito de democracia, com o intuito de melhor

    explicar quais delas permeiam as polticas de democratizao do acesso e permanncia na

    educao superior em implantao no Brasil, inseridas no rol das aes afirmativas.

    Segundo Wood (2003, p. 177), o conceito antigo de democracia surgiu na Grcia, em

    particular em Atenas, a partir de uma experincia histrica que conferiu status civil nico s 23 Quando se admite a existncia de classes na perspectiva de que elas tm de colaborar entre si e no que existam interesses conflitivos irreconciliveis.

  • 28

    classes subordinadas, criando principalmente aquela formao sem precedentes, o cidado-

    campons.

    J o conceito moderno de democracia est relacionado experincia inglesa, que

    difere da ateniense por se tratar da afirmao da independncia dos senhores em relao

    monarquia e no da libertao poltica da classe subordinada (camponesa) atravs da

    cidadania. Portanto,

    a afirmao do privilgio aristocrtico contra a invaso das monarquias produziu a tradio da soberania popular de que deriva a concepo moderna de democracia; ainda assim, o povo em questo no era o demos, mas um estrato privilegiado que constituiu uma nao poltica exclusiva situada no espao pblico entre a monarquia e multido (WOOD, ibid., p.178).

    Com o avano do capitalismo e a transferncia do poder do senhorio para a

    propriedade, os benefcios mudaram da ordem poltica para a ordem econmica, tornando

    assim possvel outra forma de democracia, que expandiu a cidadania, mas restringiu seus

    poderes. Neste contexto, gerou-se uma grande nfase no Parlamento, onde se concentra toda a

    ao poltica; e, posteriormente, no Executivo.

    As mudanas na organizao do sistema capitalista levam tambm a mudanas no

    ordenamento poltico. Sabemos, porm, que existem muitas formas de organizao do poder,

    desde os regimes autocrticos, muito vigorosos na Amrica Latina, durante a dcada de 1960,

    at outras formas mais modernas de democracia poltica.

    Neste sentido entendemos que existe uma diferena entre o exerccio do poder poltico

    de maneira democrtica ou desptica, mas a essncia dos dois poderes a mesma. Marx e

    Engels (1995), no Manifesto do Partido Comunista, nos esclarecem que o poder poltico o

    poder de organizao de uma classe para oprimir a outra, em sua essncia.

    Portanto, observamos, ao longo da histria, que a estrutura capitalista pode se articular

    com ordenamentos polticos diversos. Isto ocorre na medida em que os ordenamentos

    polticos possveis no colocam em risco o que fundamental no sistema: a propriedade

    privada dos meios de produo e, conseqente, apropriao da mais-valia24.

    Vale salientar que, diante do poder democrtico, cresce o grau de complexidade da

    estrutura de poder, tendo em vista a possibilidade dos trabalhadores se organizarem para

    24 o quantitativo de trabalho apropriado pelo capitalista e no pago, mas realizado pelo trabalhador, fruto da durao prolongada ou da intensificao do processo de trabalho. (MARX, 2002, Cap. V)

  • 29

    ampliar a sua participao nas esferas de poder. Nesse contexto estabelece-se uma contradio

    central: a ampliao na socializao da vida humana frente aos mecanismos restritos e

    restritivos para participao ativa das massas nas decises polticas.

    Na tentativa de resoluo terica de tal impasse, vale ressaltar que, no bojo de muitas

    lutas sociais, apresenta-se uma separao entre o poltico e o econmico, em que a igualdade,

    caracterstica fundamental da democracia liberal, considerada natural e estabelece-se atravs

    da lei, soluo jurdica para a questo da cidadania. Os que antes no eram considerados

    cidados por no serem proprietrios, passam a ser incorporados, tendo em vista as

    necessidades do capitalismo.

    Ilse Gomes Silva (2003), no livro Democracia e participao na reforma do

    Estado, falando sobre modelos de democracia, trata da democracia participativa, gestada na

    Europa nos anos de 1960, frente s grandes mobilizaes (sindical e popular). Para autora,

    este modelo surge face ao resultado do Leste Europeu25, na busca de uma maior participao

    nas polticas governamentais. O que deveria funcionar como uma democracia direta na base e

    de maneira representativa nos outros nveis (parlamentar, etc.), sendo assumida por alguns

    governos da dita Nova Esquerda. A autora compreende da seguinte maneira:

    A democracia participativa inova ao ampliar os espaos de atuao para alm da escolha do governo e colocar na agenda poltica formas de autogesto ou de democracia direta, mas conserva o interesse de controle. De certa forma, no rompe com a noo de que a poltica deve ser para os especialistas ou de que as classes populares somente esto aptas a participar se forem educadas de modo a no oferecer riscos ao poder das classes dominantes (SILVA, 2003, p. 22).

    Entendemos que existe uma mudana na forma, contudo o contedo permanece o

    mesmo. A democracia participativa na aparncia resolve o impasse do aumento da

    socializao da produo da vida frente s restries da participao da massa de

    trabalhadores nas decises polticas, por incorporar a reivindicao dos trabalhadores no

    que se refere participao poltica. Porm, mesmo assim, a democracia participativa

    restrita, como bem explicita Netto (1990):

    Entretanto, o que a anlise das formaes econmico-sociais capitalistas demonstra insofismavelmente que a estrutura econmica que lhes prpria pe democracia um limite absoluto: ela s se generaliza e universaliza enquanto no desborda para um ordenamento poltico que requeira uma

    25 A desvirtuao e a destruio das conquistas da revoluo de outubro. Fruto do stalinismo, da teoria do socialismo em um s pas, que levou burocratizao da antiga Unio Sovitica e, posteriormente, ao seu fim.

  • 30

    organizao societria fundada na igualdade social real, ou seja, na igualdade em faces dos meios de produo a estrutura capitalista s compatvel com a democracia-mtodo (ibid., p. 76).

    O que no quer dizer que se tenha de abrir mo da democracia enquanto mtodo, por

    entender como Oliveira (1991, p. 78) que se constroem regras atravs do conflito, do

    reconhecimento das alteridades, da relevncia dos sujeitos coletivos, que abrem espao para a

    relevncia do indivduo. Entretanto, preciso levar em considerao que se todos os

    homens tomam realmente parte na gesto do Estado, o capitalismo no pode mais manter-se

    (LENIN, 2007, p.118). E que o mtodo na democracia liberal se restringe representao,

    participao indireta, restrita, democracia de uma minoria. Netto (1990, p. 84), utilizando

    argumentos de Cerroni, parte da seguinte compreenso:

    Por democracia-mtodo deve entender-se o conjunto de medidas institucionais que, sob formas diversas (mais ou menos flexveis), numa dada sociedade, permite, por sobre a vigncia de garantias individuais, a livre expresso de opinies e opes polticas e sociais; quanto democracia-condio social, ela no um simples conjunto de institutos cvicos, organizados num dado ordenamento poltico, mas um ordenamento societrio em que todos, a par da livre expresso de opinies e opes polticas e sociais, tm iguais chances de intervir ativa e efetivamente nas decises que afetam a gesto da vida social.

    O que s ser possvel numa sociedade sem classes. No entanto, valemo-nos da

    possibilidade de ampliao das instituies democrticas, construdas pela burguesia e pela

    classe trabalhadora, que por meio das lutas sociais conquistaram, ao longo da histria, a

    expanso dos graus de representatividade e a ampliao de direitos.

    Neste sentido, no podemos nos limitar a ver a democracia, como alerta Dias (1997),

    como mero elemento ttico ou as regras do jogo. Precisamos construir a democracia dos

    trabalhadores; democracia-condio social, como objetivo-meio, na qual a socializao da

    economia e da poltica integre a formao de uma nova sociedade, o que, na tradio

    marxista, seria a transio pela ditadura do proletariado, o projeto histrico socialista.

    J a democracia liberal , no plano poltico da ordem capitalista, a forma de regulao

    da sociedade aos interesses do mercado, atravs da concorrncia desleal, acesso diferenciado

    ao poder econmico, poltico, ideolgico, como, tambm, educao, naturalizando, assim,

    as desigualdades.

  • 31

    No intuito de aprofundar a discusso, mesmo que de maneira sinttica,

    apresentaremos a compreenso de Chau (2001, p. 10-12) sobre as caractersticas da

    democracia: 1) forma geral da existncia social, que estabelece as formas de relaes na

    sociedade, a partir da definio de valores, os smbolos e o poder poltico; 2) forma

    sociopoltica caracterizada pelo princpio da isonomia e da isegoria26; 3) forma poltica em

    que o conflito necessrio, vital. No o consenso que a sustenta; 4) forma sociopoltica

    que, no enfrentamento das contradies e atravs da idia dos direitos (econmicos, sociais,

    polticos e culturais), possibilita aos desiguais conquistarem a igualdade; 5) a democracia

    pela criao de direitos apresenta-se como nico regime aberto s mudanas temporais. O

    novo inerente sua existncia; 6) nica forma sociopoltica em que as classes populares

    podem evidenciar seu poder contra a cristalizao jurdico-poltica que beneficia a classe

    dominante; 7) forma poltica em que a distino entre o poder e o governante se d pela via

    da eleio, entendida como a delegao do poder dos eleitores aos governantes,

    temporariamente, e no s por via das leis e instncias de autoridade.

    Diante dos elementos apresentados e frente realidade brasileira, em particular da

    educao pblica, torna-se fundamental entender que o avano da democracia s vir tambm

    a partir do conflito, do confronto poltico-ideolgico dos projetos antagnicos de sociedade,

    de homem e, conseqentemente, de educao. Entendemos essa ltima, enquanto direito

    social e a universalizao da educao, imprescindvel ao avano da democracia, transio

    para o socialismo, j que podemos evidenciar as dificuldades ou at a impossibilidade de

    implement-la numa sociedade dividida em classes sociais27, na sociedade capitalista.

    A legalidade, apesar do ocultamento do seu carter classista pode e deve, na sua contraditoriedade, ser um espao de luta, no qual se constroem, ou podem ser construdas as identidades de classe, os projetos de hegemonia. A democracia, mesmo a mais limitada, interessa mais aos trabalhadores do que a ditadura mais esclarecida do capital. O simples reconhecimento formal do direito de associao (ainda que na prtica esse direito seja combatido e seja tentada sua inviabilizao) facilita a interveno dos trabalhadores no seu processo de organizao e do questionamento da dominao do capital (DIAS, 1997, p. 66).

    26 Conceito de origem grega que consiste no direito de todos os cidados a falar, a expressar sua opinio poltica. 27 Para Chau (2001), um dos maiores problemas de se estabelecer a democracia, numa sociedade de classes, o de manter os princpios de liberdade e igualdade numa realidade desigual.

  • 32

    Portanto, a discusso da democracia no pode ser desvinculada da organizao

    econmica da sociedade e do projeto histrico, pois as atuais formas de organizao polticas

    se encontram inseridas no contexto das relaes capitalistas de produo da vida, que, em

    essncia, fortalecem a reproduo da desigualdade social.

    Mesmo nos apoiando na caracterizao de Chau para defender o direito educao

    pblica, no atual contexto histrico de acirramento das lutas sociais, particularmente na

    Amrica Latina, no podemos entender a democracia desvinculada do seu contedo de classe,

    sendo, portanto, necessria a sua adjetivao, no enquanto participativa, mas da democracia

    dos produtores, isto , dos trabalhadores.

    Neste sentido, o entendimento de democracia segundo Chau (1997, p. 433), como a

    sociedade verdadeiramente histrica, isto , aberta ao tempo, ao possvel, s transformaes

    e ao novo, neste momento histrico, por si s, no nos ajuda a compreender que a

    democracia tal como se configura trata-se da democracia burguesa. Esta, segundo Lenin,

    mesmo

    sendo um grande progresso histrico em comparao com a Idade Mdia, continua a ser sempre e no pode deixar de ser sob o capitalismo estreita, amputada, falsa, hipcrita, paraso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobres. (LENIN, 1986, p.22)

    Entretanto, fica fora de cogitao no defender a democracia, os direitos democrticos.

    preciso, sim, se apropriar de vrias das crticas como as de Coutinho (1984), no livro A

    democracia como valor universal, nos seus aspectos de positividade encontrados nas

    contradies. Porm, isso no suficiente, necessrio qualific-la, question-la

    permanentemente. E questionar, como faz Fernandes (1975), se possvel abrir mo da

    estratgia28 revolucionria, dentro da ordem ou fora da ordem?

    Segundo Silva (2003), existem crticas realizadas por alguns autores como

    Toledo(1994), Rieznik(1996) e Saes (1993) s idias defendidas por Coutinho (1984),

    citando-os, sintetiza da seguinte forma:

    No obstante considerarem esse regime [a democracia liberal] como a forma capitalista mais favorvel ao desenvolvimento das lutas populares, esses

    28 Para Harnecker (2003, p. 49), a estratgia entendida como caminho a seguir ou como proceder, no caso dos trabalhadores, para a construo do socialismo. E para capitalistas para manuteno do status quo. Sendo possvel a utilizao de estratgias parciais conquistar o alargamento da democracia, chegar ao poder pela via institucional como, por exemplo, a eleio de Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), porm o que no deve acontecer a perda do foco da estratgia final, como vem ocorrendo com o governo Lula por diversos motivos; entre eles, o grande arco de alianas com partidos burgueses, que no temos como analisar aqui.

  • 33

    autores insistem como j o fizera Marx no 18 de Brumrio que a democracia burguesa uma forma especfica de dominao, por meio da qual se mantm o sistema capitalista, e que as classes dominantes no hesitam em romper com as regras do jogo quando se sentem ameaadas pelos movimentos de luta das classes populares (SILVA, 2003, p. 26-27)29.

    No contexto da Amrica Latina, onde hoje se levantam as massas para a conquista do

    poder poltico, na Venezuela, Bolvia, Equador, vlido compreender que, como nos diria

    Fernandes em texto escrito em 1971

    as classes possuidoras e privilegiadas tentam reconstruir a grande faanha poltica da oligarquia tradicional, aplicando participao social ampliada das massas no poder o modelo de democracia restrita. [...] Mas no podem universalizar e fortalecer impulses igualitrias relacionadas com a distribuio de renda e do prestgio social ou com a democratizao do poder, requerida pela prpria estratificao em classes sociais (FERNANDES, 1975, p.41).

    Neste sentido, entendemos, a partir das idias de Fernandes, que, na Amrica Latina,

    devido caracterizao de seu capitalismo dependente e de suas burguesias nacionais, no foi

    possvel sequer apontar para a construo de um pluralismo democrtico vivido pelos

    pases capitalistas centrais. A questo da universalizao uma questo central, em todos os

    mbitos dos direitos sociais, incluindo a educao superior que campo deste estudo. Como

    nos alerta Wood (2005): as polticas universais so mais necessrias e urgentes do que nunca.

    No Brasil, especificamente, no final da dcada 1970, com o fracasso do milagre

    econmico propagado pela ditadura militar, inicia-se um processo de transio

    democrtica, no qual se criou uma frente contra o regime autoritrio, que

    (...) preconizava, to somente, o retorno democracia formal. Setores progressistas em grande parte integrados por fraes da classe trabalhadora e de segmentos mdios intelectualizados miravam a idia, isto , portavam a crena de que o retorno democracia formal, ou seja, a

    29 Como possvel ver em nvel mundial o desrespeito aos rgos ditos democrticos, como a Organizao das Naes Unidas (ONU), que tem vrias resolues desobedecidas por Israel, pelos Estados Unidos, etc., inclusive na recente guerra do governo George Bush contra o Iraque, utilizando a desculpa da existncia de armas qumicas, nunca encontradas, para controlar a riqueza local, o petrleo. No Brasil, podemos citar as ocupaes de terra pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e as recentes ocupaes das reitorias pelos estudantes (outubro/novembro de 2007) contra o Projeto de Reestruturao das Universidades Federais (Reuni) e por Assistncia Estudantil nos quais, em pleno governo, dito democrtico, participativo e popular do presidente Lula foram utilizados os aparatos policial e militar, de maneira violenta na defesa de interesses de classe.

  • 34

    reconstituio da cidadania formal liberal, conduziria necessariamente construo de uma democracia substantiva social-democrata (RODRIGUES, 2006, p. 421).

    O mesmo autor argumenta que os interesses da classe trabalhadora eram relegados a

    um futuro muito longe, diludos nesta frente, que tinha como perspectiva o restabelecimento

    da democracia formal liberal. Nesse sentido cumpria uma funo ideolgica, por ocultar o

    modo de produo capitalista que sustentava o regime militar.

    Pensar nos argumentos do Rodrigues (ibid.) mesmo em se tratando de fatos datados

    historicamente remete-nos ao atual momento histrico, j que tambm fruto do passado,

    para que estejamos atentos s necessrias mudanas no poder econmico, no apenas no

    poder poltico, numa relao dialtica. Alertamos que as disputas por mudanas polticas e

    ideolgicas so imprescindveis, valendo destacar que no existem etapas lineares a serem

    cumpridas, para qualquer que seja a disputa esto, na ordem do dia, as reivindicaes da

    classe trabalhadora.

    Nesta direo que alertamos para o papel da teoria que pode se transformar em fora

    material (MARX, 2005). Portanto, as escolhas tericas no so neutras, muito pelo contrrio,

    expressam posies ticas e polticas que se relacionam com o entendimento do seu papel

    educativo para a compreenso e transformao da realidade ou para a manuteno do status

    quo.

    Para Marx (1993, p.126), os homens so produtos das circunstncias e da educao.

    Para a transformao do homem faz-se necessrio a modificao das circunstncias e da

    prpria educao e que estas transformaes sejam operadas pelos prprios homens. Por isso,

    o prprio educador precisa ser educado. O que para Marx s pode ser apreendida e

    compreendida racionalmente como prxis revolucionria.

    Neste sentido, encontra-se o papel da educao tambm como estratgia de

    conformao do trabalhador sociabilidade burguesa, disseminadora da ideologia dominante,

    j que, segundo Marx (ibid., p. 72), as idias da classe dominante so, em cada poca, as

    idias dominantes; isto , a classe que a fora material dominante da sociedade , ao mesmo

    tempo, sua fora espiritual dominante.

  • 35

    Ainda de acordo como Marx (ibid.), a ideologia dominante opera em dois sentidos: a)

    Atravs da universalizao das suas idias; b) Construindo um mundo fetichizado30,

    disseminando que os interesses e anseios da classe dominante possam ser acessveis a todos.

    Dessa forma, explicita-se o papel de medio da educao para a adaptao dos

    homens s novas exigncias do capital, que perpassa pela construo de consensos entre os

    dominantes e dominados. Vale destacar que esse processo no mecnico e que a explicao

    da organizao poltica no pode ser dada com um mero reflexo invarivel dos aspectos

    econmicos.

    Portanto, para a compreenso das novas estratgias do capital, preciso entender as

    conseqncias das transformaes no mundo do trabalho para o campo educacional, num

    contexto do receiturio neoliberal. Urge estabelecer nexos e relaes para a destruio da

    pseudoconcreticidade pela prxis revolucionria, estabelecendo a unidade do fenmeno e da

    essncia, compreendendo a totalidade dialeticamente, pois se a representao, a aparncia,

    coincidisse com a realidade, no seria necessrio o fazer cientfico (KOSIK, 2002). Para

    melhor compreenso do papel da educao para regulao ou transgresso da ordem social,

    fundamental compreender a relao que se estabelece entre trabalho e educao.

    Partiremos do entendimento do trabalho enquanto categoria essencial do ser humano,

    o que diferencia o homem dos outros animais. A partir do trabalho, o homem age na natureza

    para construir os meios de subsistncia. Nesta ao de transformao da natureza, criando o

    mundo humano, o homem se transforma. A educao insere-se como trabalho produtivo no-

    material (idias, valores, atitudes, etc.) no qual o produto no se separa do ato da produo

    (MARX, 1993, 2002, 2004; ENGELS, 1990).

    Na sociedade capitalista, o trabalho tem o fim em si mesmo, como trabalho abstrato,

    alienado, no qual o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,

    quanto mais a sua produo aumenta em poder e extenso (MARX, 2004, p. 80). A

    externalidade do trabalho aparece para o trabalhador como se o trabalho no fosse seu

    prprio, como se o trabalho no lhe pertencesse.

    Portanto, as relaes trabalho-educao devem ser compreendidas no duplo sentido

    que o trabalho assume. Na sua positividade, no seu sentido ontolgico, enquanto categoria

    fundante do ser humano genrico e na sua negatividade expressa na sociedade de classes, o

    trabalho estranhado, que arranca sua vida genrica, reduz sua atividade livre, a auto-atividade,

    30 Mundo da aparncia, onde os objetos, as coisas possuem propriedades, valor que lhe so conferidas como naturais, mas que, na essncia, so propriedades, atributos conferidos pelas relaes sociais dominantes (BOTTOMORE, 1988).

  • 36

    a um meio, meio de sua existncia fsica. No trabalho estranhado ou alienado, o homem se

    perde do produto do seu trabalho e na prpria atividade produtiva. O trabalhador torna-se

    servo do seu objeto. O extremo desta servido que apenas como trabalhador (pode) se

    manter como sujeito fsico e apenas como sujeito fsico ele trabalhador (MARX, ibid.,

    p.81).

    Neste contexto, a educao aparece como mediao, que pode servir para a

    manuteno do sistema capitalista, bem como para a superao deste modelo de sociedade.

    Para Mszros (2005) uma das funes da educao na sociedade capitalista produzir

    conformidade ou consenso quanto possvel, dentro da legalidade estabelecida.

    As solues educacionais formais, mesmo algumas das maiores, e mesmo quando so sacramentadas pela lei, podem ser completamente invertidas, desde que a lgica do capital permanea intacta como quadro de referncias orientador da sociedade (MSZROS, 2005, p. 45).

    A partir desta reflexo, apontamos que as polticas de aes afirmativas na educao,

    em particular a reserva de vagas/cotas, tm se configurado como uma soluo formal para o

    problema do acesso educao superior no Brasil, no sendo uma soluo essencial, por no

    questionar a lgica do capital. Mszros apresenta o exemplo da Gr-Bretanha onde o debate

    por muitos anos foi o da substituio do sistema de ingresso na escola secundria e se este

    seria seletivo ou no. Para o autor, o debate central deve ser a confrontao com todo o

    sistema de internalizao31. No possvel escapar da formidvel priso (termo de Jos

    Mart) do sistema educacional apenas reformando-o (MSZROS, 2005, p. 46-47),

    Cabe-nos, ainda, estabelecer a devida relao entre as mudanas no sistema do capital

    que provocam a necessidade de alteraes na poltica educacional, em particular na educao

    superior, que, no atual contexto, vem priorizando as aes afirmativas. Para no perder sua

    funo de regulao histrica na formao de indivduos que se adaptem aos parmetros de

    reproduo do capitalismo, o processo de internalizao de interesse do capital adota valores

    prprios e inquestionveis da sociedade do mercado e utiliza principalmente a educao

    institucionalizada para isso, porm ocorre tambm nos mais diferentes mbitos da vida

    social32. Como afirma Mszros (2005, p.27)

    31 Portanto, a educao que legitima valores e conhecimentos. 32 Principalmente atravs da mdia. O que pode ser constatado na mudana de opinio nas pesquisas sobre as cotas de 1995 e 2006. Para maiores detalhes Queiroz e Santos (2006), revista Educao e Sociedade que possui a temtica Educao: polticas pblicas afirmativas e emergentes.

  • 37

    em seus parmetros estruturais fundamentais, o capital deve permanecer sempre incontestvel, mesmo que todos os tipos de corretivos estritamente marginais sejam no s compatveis com seus preceitos, mas tambm benficos, e realmente necessrios a ele no interesse da sobrevivncia continuada do sistema. Limitar uma mudana educacional radical s margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma s vez, conscientemente ou no, o objetivo de uma transformao social qualitativa.

    Frente a esta afirmao, compreendemos que as aes afirmativas no mbito da

    educao se apresentam com uma aparncia de radicalidade, mas encontram-se no bojo das

    polticas compensatrias, focalizadas, financiadas pelo Banco Mundial e por fundaes

    ligadas ao capital33, para tentar corrigir e ajustar algumas imperfeies dentro do prprio

    sistema. Isso promove o abandono consciente, ou no, por parte de alguns intelectuais,

    movimentos e grupos sociais, do objetivo de transformao essencial e radical da sociedade

    de forma a romper com a lgica do capital.

    Podemos constatar, em grande medida, na bibliografia analisada sobre a adoo da

    poltica de aes afirmativas, que categorias como luta de classe e projeto histrico no

    aparecem na produo34. O artigo de Moehlecke (2002) que faz um levantamento histrico

    dos debates sobre a ao afirmativa no Brasil exemplo disso. Em substituio categoria

    classe social so utilizadas as expresses grupos sociais, minorias; e, em relao a

    projeto histrico, surge a defesa da democracia e da igualdade de oportunidades. No aparece

    no estudo nenhuma crtica ao sistema capitalista atual.

    Na construo da prxis revolucionria que levaria superao da

    pseudoconcreticidade necessrio se confrontar e alterar o atual sistema de internalizao,

    rompendo com a lgica do capital, entendendo a educao como transcendncia positiva da

    auto-alienao do trabalho (MSZROS, 2005). A educao enquanto um processo

    fundamental para superao do processo de alienao do trabalho no sistema capitalista.

    Portanto, a questo da democracia e a das polticas de democratizao do acesso e

    permanncia educao superior s podem ser entendidas inseridas no contexto da luta de

    classes, da reforma do Estado e do reordenamento no mundo do trabalho.

    33 A fundao Ford uma das grandes agncias financiadoras de pesquisas nessa rea, com destinao de bolsa para cursos de ps-graduao, inclusive nas universidades pblicas. Temos como exemplos a universidade da cidadania Zumbi dos Palmares, apoiada na iniciativa de uma organizao no-governamental (ONG), bem como a ps-graduao lato sensu na Faculdade de Educao da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Laboratrio de Polticas Pblicas (LPP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Este publicou com o apoio da fundao, nos ltimos anos, cerca de vinte livros relacionados, direta ou indiretamente, ao tema das aes afirmativas. 34 Como uma das raras excees, acessamos o debate no campo marxista, que pudemos acompanhar no Dossi organizado pela revista Crtica Marxista, n 24.

  • 38

    2.1. Reforma do Estado e da educao superior: desdobramentos na universidade pblica brasileira

    A reforma, dentro dos vrios contextos onde ela possa se configurar, est sempre

    acompanhada do conceito de mudana, porm ela pode ser entendida como:

    uma palavra que faz referncia mobilizao dos pblicos e s relaes de poder da definio do espao pblico, j a mudana tem um cunho menos normativo e mais "cientfico, pois o estudo da mudana social representa um esforo para entender como a tradio e as transformaes interagem atravs dos processos de produo e reproduo (MENDES apud PAIVA, 2002, p. 58).

    Nesta perspectiva, podem-se localizar as reformas numa tica de regulao social e,

    para tanto, precisamos entender que os meios de regulao, dentro do modelo social vigente,

    se expressam atravs do neoliberalismo e da globalizao35, entendidos como noes

    ideolgicas da expresso do capitalismo na sua fase imperialista36.

    O neoliberalismo37, termo que foi mais amplamente utilizado nas ltimas dcadas,

    muitas vezes no teve esclarecida a sua origem, a base material que o sustenta e a que idias

    est vinculado. Para entendermos melhor o que significa e as polticas dele decorrentes, aqui