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, r Filgueiras Lima Minha terra, como todas as terras de legenda, te. m um livro simbólico. nele · que os guerreiros vão buscar alento e inspirações para as lutas em prol da liberdade. Tesouro de tradições e lendas heróicas, tornou-se para . os p i ntores, músicos e poetas cearenses, mais opulento de mo- tivos e de símbolos ·do que os Edas, da mitologia escandi- nava. '�, enfim, a fonte perene de beleza e entusiasmo, se . mpre . . aberta à sede secular de sonho e de heroísmo da minha terra e da minha raça. Ainda agora, ao por-me em contato com a intelectualidade paulista, com a intele· ctualidade brasileira, para as páginas desse livro sagrado se· volve·m, num enlevo, o . meu espírit o e o meu coração: Verdes ares bravios de �minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares que brilhias como lrquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias, nso.mbra- das de coqu eiros . ; Serenai, v erdes mares, e ali sai ocement e a v ag a impe- tuosa p ara que o barco aventureiro manso resvale à flor das éguas." 63

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Filgueiras Lima

Minha terra, como todas as terras de legenda, te.m um livro simbólico.

1: nele· que os guerreiros vão buscar alento e inspirações para as lutas em prol da liberdade.

Tesouro de tradições e lendas heróicas, tornou-se para. os pintores, músicos e poetas cearenses, mais opulento de mo­tivos e de símbolos ·do que os Edas, da mitologia escandi­nava.

'�, enfim, a fonte perene de beleza e entusiasmo, se.mpre . .

aberta à sede secular de sonho e de heroísmo da minha terra e da minha raça.

Ainda agora, ao por-me em contato com a intelectualidade

paulista, com a intele·ctualidade brasileira, para as páginas desse livro sagrado se· volve·m, num enlevo, o . meu espírito e o meu coração:

Verdes .mares bravios de �minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba;

Verdes mares que brilhias como lrquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias, e·nso.mbra­das de coquei r os.;

Serenai, verdes mares, e alisai ·docemente a vaga impe­tuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das

éguas."

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Este é o poema de acentos mais profundos e de emoção mais alta da literatura do Brasil de todos os tempos. Não exis­te nada de .melhor no património artfstico e mental do nosso

pafs. Há qualquer coisa de bfblico na invocação inicial do Ira-

cema. Evola-se de· suas estrofes inumeráveis o perfume inde­finfvel dos salmos de David e do Cântico dos Cânticos.

Se, pelo que tem de caracteristicamente cearense, pode ser considerado a bfblia cfvica e estética da terra da luz, por outro lado, pelo que possui de legítimamente, de entranhad�­mente brasileiro, é a verdadeira Ilíada nacional, ou ainda, na expressão de Afrânio Peixoto, o "hino brasileiro, noivado da Terra Virgem com o seu Colonizador Branco, pacto de· duas raças na abençoada terra da América, poema épico, definidor de nossas origens, histórica, étnica, sociologicamente".

José de Alencar, com o Iracema, tornou-se o nume tutelar de sua terra, espécie de santo leigo do Ceará, cuja maior glór!a hoje consiste em ser chamada a "terra de Alencar". Mas isso não impediu que o criador de O Guarani se tornasse a figura central das letras pátrias, autêntico fundador da literatura nacional.

Seu estro inspirou-se na portentosa natureza brasflica, de onde retirou a mancheias os fulgores, as tintas e os ritmos da sua obra única e imortal.

Como aqueles heróicos bandeirantes de botas de sete lé­guas, que saíram de Piratininga para dilatar o Brasil, abrindo estradas em demanda ao coração da pátria Alencar partiu da terra do sol, como um Fernão Dias Paes Leme de outro feitio, para rasgar caminhos novos à inteligência do Brasil.

Esta caminhada foi tão áspera e rude· quanto a daqueles "plantadores de cidades", de que fala a soberba epopéia bila­quiana.

E tão profundos sulcos ele cavou no solo mental da na­cionalidade, tão forteme·nte libertária foi a sua obra e tão viril­men!e criadr foi o seu espfrito que, ainda hoje, volvidos mP-is de sessenta anos do seu desaparecimento, todos os grandes movi.mentos literários falo daqueles que, inspirados em mo­tivos nossos, empolgara·m e comoveram a alma brasileira -todos esses movimentos apenas cobriram o rascunho que José

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de Alencar traçou com o seu dedo de pioneiro e de vidente. O sertanismo, o caboclismo, o regionalismo ·e outras cor­rentes literárias de fundo nacionalista, que· traze.m à sua frente figuras como Afonso Arinos, Bernardo G�uimarães, Araripe Jú· nior, Franklin Távora, Coelho Neto, encontram as suas verda­deiras origens na obra ale·ncarina, tornada assim a nutriz da nossa inteligência e da nossa cultura.

Ronald de Carvalho, co.m a agudeza de seu senso crrtico, viu no romancista ·das Minas de Prata um "precursor de estilo ne·rvoso, cheio de tumultos, cortado de acidentes, vário, cam­biantt1, meigo e violento de Euclides da Cunha."

A vossa mesma Semana de Arte Moderna, as correntes mode·rnistas de Pau-Brasil, de Ver·de-Amarelo, de Arco-e-Fiexa e de Maracajá girara:m em torno do tema proposto pelo simbo­logista de Ubirajara.

São todos movimentos revolucionários, filiados à obra do maior dos revolucionários das letras pátrias, daquele em cujas ve·ias fervia o cáU.do e generoso sangue dos primeiros brasi­leiros que sonharam com a nossa liberdade política.

Co.mo sabeis, José de Alencar descende de Bárbara de Alencar, a grande· heroína cearense, e de Tristão de Alencar Araripe, mártir da Independência no Norte, como o foi Tira­dentes no Sul.

ALENCAR E A LfNG·UA PORTUGUESA

Até o advento de Alencar, a literatura brasileira jungia-se se-rvilmente aos cânones rígidos do classicismo lusitano. Não do classicismo ·enérgico e puro de Ca:mões, mas do pior, do classicismo gongórico, de·cadente, filho legítimo do eufuismo britânico e do preciosismo gaulês.

Por tudo isso, pode-se dizer que o poeta de Iracema, com o seu estilo .mágico, ensinou o Brasil a escrever ...

Rompendo com as normas da monótona ·e afetada esté­tica de além-.mar, Ale·ncar abeberou-se das fontes nacionais, criando formas novas de expressão, imagens, palavras e sím­bolos, que, afinal, caracterizaram a fisionomia mental da Pá­tria.

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Não foi um iconoclasta da trngua-,mãe, destruindo pelo simples prazer de destruir. Nem tampouco foi um apedeuta que se utilizasse do cha�mado "dialeto brasileiro" como "sur­rão amplo, onde cabem à larga, como diz Rui Barbosaf todas as escórias da preguiça, da ignorância e do mau gosto.''

Aliás, o autor da Réplica previne a citação do glorioso· romancista ce·arense como justificativa para os desmazelas ver­náculos dos escritores de fancaria. E o faz com o esplendor da sua pompa verbal: "Depois então que se inventou, apadri­nhado com o nome insigne de· Alencar e outros menores, o dialeto brasileiro, todas as mazelas e corrutelas do idioma que os nossos pais nos herdaram cabem na indulgência plená­ria dessa forma da relaxação e· do desprezo da gramática e do gosto."

Sobre o .mesmo assunto aqui está o depoimento valioso de Machado de Assis: "A língua (refere-se à de Alencar), já nu­

merosa, fez-se rica pelo tempo adiante. Censurado por detur­pá-la, é certo que a estudava nos grandes mestres, mas pe·r­sistiu em algumas formas ·e construções, a título de naciona­lidade."

Eis como o próprio autor de· O Guarani trata da questão nas suas célebres cartas sobre a Confederação dos Tamoio·s, de Gonç3lves de Magalhães: "O velho estilo clássico destoa no meio dessas florestas seculares, dessas catadupas formidáve·is, desses prodígios da natureza virgem que não podem sentir

as .musas ge·ntis do Tejo e do Mondego." E, com o desassom­bro de Ajax invectivando os deuses, exclama ainda no prefá­cio de Diva: "Censurem, piquem ou cale.m-se, como lhes aprou­ve-r. Não alcançarão jamais que eu escreva neste meu Brasil coisa que pareça vinda em conserva da outra banda, como fruta que nos mandam ·em lata."

Foi isso o bastante para que, um ano inteiro, de 1871 a 1872, gramatiquelhos e criticastros arremetessem, furiosa.men­te, contra o inexpugnável reduto alencarino. Não há notícia, em nossa história literária, de outra agressão mais violenta e mais torpe.

Não serei eu quem vá recordar, neste fúlgido momento, a triste· e inócua campanha do tamborileiro mercenário que pre­tendeu vãmente destruir a figura ho.mérica do romancista pa-

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trfclo. Sabeis, decerto, que me refiro ao ho.mem que Ale·ncar, num instante ·de cólera oHmpica, classificou de "gralha imun­da" ao medíocre· José Feliciano de Castilho, cujo único valor literário consistia em ser o guia de um cego ilustre: o notável escritor português Castilho (Antônio .. . ) .

Tudo porque Alencar, com intuição genial, notou e· com­preendeu no seu tempo o fenô�meno de assimilação das duas Hnguas, a aborígine e a lusa, que· o sociólogo Gilberto Freyre estudaria, meio século depois, nas páginas de Casa Grande e Senzala.

Ainda hoje na nossa toponímia ge·ográfica os termos au­tóctones sobrepujam de muito os lusitanos, porque· o desco­brimento e conquista dos sertões verificou-se na fase de pre­domínio do tupi como língua popular.

Só mais tarde o idioma português conse·guiu dominá-lo, mas o "colonizador já estava i:mpregnado de agreste influên­cia indígena, já o seu português perdera o ranço ou a dureza do reinei; amolece·ra-se num português sem rr nem ss; infan­tilizara-se quase em fala de menino, sob a influência do en­sino jesuítico, de colaboração com os columins".

Emancipa·do assim da vernaculidade lusitana, aspirando aquele perfume de liberdade que sentia nas flores de nossos campos, integrado no seu �meio e na sua raça, Alencar bem me­rece o epíteto de "príncipe· da literatura pràpriamente chama­da brasileira", com que o classifica Eugênio de Castro ·em li­vro recente e notáve·l sobre a nossa geografia lingüística e a nossa cultura.

Se a obra do gênio, como observ? G�oethe, não é a que assenta sobre o "gosto", mas a que se firma no "caráter" do povo, Alencar fez uma obra verda·deiramente genial, porque moldada na índole da sua ge·nte, no caráter da sua raça.

ALENCAR E O INDIANISMO

O indianismo foi a arma que Alencar e�mpunhou para diri­gir a grande e vitoriosa batalha pela independência mental da sua pátria, continuando gloriosamente a abra de se·us herói­cos aerendentes que deram o sangue pela nossa liberdade· po-

Utica e social.

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·� José Verfssi.mo quem, insuspeitamente, o afirma: "José

de Alencar teve, mais que nenhum escritor brasileiro, a von­tade firme, o propósito resoluto de fazer a lite-ratura nacionaL''

o fndio foi o material, o �meio, o instrumento de que se serviu no infcio, porque Ale·ncar não se encerrou no india­nismo, como ainda observa o autor da História da Literatura

Brasileira, pois explorou mais tarde outros motivos nacionais, com o fito de emancipar-nos intelectualmente da pátria de Ca­mões.

Noc; seus selvagens não há, como os inimigos de sua gfó­ria quiseram ver, pe·rfeita semelhança co.mo os tipos exóticos de Chateaubriand. O romancista de Ata/a pôs na boca de seus índios uma linguagem que era o reflexo de idéias some·nte· possíveis de serem elaboradas pela maturidade espiritual de povos cultos.

Também não colhe a pecha de imitador servil de Coope·r, que era uma espécie de historiador literário, ao passo que Alencar é um escritor genial, pela frescura e garradice do es­tilo, pelo inédito e cós.mico da inspiração.

Apenas Alencar serviu-se do aborígine, como Cooper dos peles-vc�rmelhas. O fenômeno social e político é o mesmo: aqui, a liberação intelectual de Portugal; na América do Norte,. a separação espiritual da Inglaterra.

Disse rnuito bem Araripe Júnior: "O indianismo ou, por ou­tra, o senti-me·nto da legenda indígena, entranhado no coração crioulo pela reação romântica, só teve u.m representante sé­rio no Brasil, como só u.m teve também na América do Norte: - José de Alencar e Coop·er."

·

Mas entre· os dois espíritos é remoto o parentesco. As mi­núcias ·e certas vulgaridades do O/timo Moicano estão aquém da grandeza épica do Iracema e do Guarani.

Não há nos romances indianistas de José de Alencar so­mente ficção. Tecla por demais batida, esta, ainda guarda so­noridades inéditas. Os que vêem nos seus tipos indígenas mero produto da imaginação esquecem-se das pacientes pes­quisas bibliográficas, das beneditinas sondagens coloniais a que se entre·gou, durante a sua vida acadêmica, o futuro can­tor de Peri e Ceci, com o objetivo único de descobrir e reco­lher o material do verdadeiro romance brasileiro que já lhe ar·

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dia e palpitava no cérebro, num delfrio genésico de expressão. "Devorando as páginas dos alfarrábios de notrcias colo­

niais buscava com sofreguidão, confessa ele·, um tema para meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena e uma época."

Os velhos cronistas que viram a pátria na infância, soltan­do os primeiros vagidos e ensaiando os primeiros passos, for­neceram-lhe assim o barro em que ele esculpiu figuras dignas do mármore e do bronze e·m que as fundiu a posteridade.

A beleza sedutora e enleiante do corpo jovem de lrace·ma é a mesma daqueles "corpos tam nmpos, tam gordos e· tam fremosos, que nem pode mais ser", descobertos em 1500 pelos olhos e·nfeitiçados de Pera Vaz Caminha no esplendor tropical da Terra de Santa Cruz.

Ainda o banho da virgem indiana, página de rara beleza, assenta na pura verdade histórica .. Lery e Gabriel Soares refe­rem nas suas velhas crônicas que um dos melhores diverti­me·ntos para os índios era o banho de rio. O pastor protestante, que tanto se e.mpolgou com a carnação maravilhosa das ne­reidas selvagens, chegou a afirmar que as índias, nuas, na graça natural de suas formas, nada fcavam a dever às moças civilizadas, em sedução e· beleza ...

A própria língua que Alencar põe na boca de seus índios, doce, Urica, melodiosa e rica de imagens, não é senão a que Anchieta, poeta e filólogo a um tempo, ouviu e aprendeu dire­tamente· dos lábios dos selvagens: "Sua língua é delicada, co­piosa e e·legante, tem muitas composições e síncopas, mais que os gregos." Fernando Cardim também se refere à opu­lência e beleza da língua geral: "'i: fácil, e elegante, e suave, e copiosa, a dificuldade dela está em ter muitas composições."

Foi essa Ungua nume·rosa e sonora que Alencar traduziu num português "sem o ranço reinei" de que fala Gilberto Freyre, �mas bastante aproximado da língua que, segundo a ob­servação pitoresca de Gabriel G·andavo, o amigo de Camões, "carece de três letras, convém a saber não se acha nela nem F, nem L, ne.m R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei" . ..

"Mas nessa tradução, escreve Alencar, está a grande difi­culdade; é preciso que a Ungua civilizada se molde quanto

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possa à singeleza primitiva da lfngua bárbara e· não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e fra­ses que ao leitor pareçam naturais na boca dos selvagens."

Por isso Alencar trabalhou tenazmente por desvendar os mistérios do idioma cujo conhecimento considerava o "me·lhor critério para a nacionalidade da literatura", pois nos dá, "não

só o estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos. de seu espírito e· as menores particularidades da sua vida."

A força assombrosa do índio, que em O Guarani simboliza a raça indígena, já foi levada a ridículo por críticos desavisado3 e incultos. Entretanto, Peri, que para muitos não passa ·de um he·rói mitológico, espécie de Hércules de tanga ou Ajax de arco e flexa, enquadra-se no depoimento dos antigos cronistas, a não ser naquilo e�m que· o gênio plástico de Alencar completa ou engrande·ce a realidade.

Diz Anchieta, falando dos ín·dios: "Nos campos e florestas andam e rompem como bichos", "são tão destros que não lhes escapa passarinho que não mate�m, e· a frechadas matam o peixe n'água". E Lery, segundo o autor de Sobrados e Mocam­

bos, salienta nos indígenas a sua grande força física, abate·ndo a machado árvores enormes e transportando-as aos navios franceses sobre o dorso nu.

Quando se refe·re ao caráter dos silvícolas, depõe o Após­tolo das Selvas na sua minuciosa Informação da Província do

Brasil. "Não são demandões, mas benfazejos e caritativos, to­dos os que lhes entram em casa comem com eles sem lhes dizer nada."

Pergunto-vos agora: existiu ou não a cabana de Araquém - símbolo brasileiro da hospitalidade?

No Ce·ará, pelo menos, quando se quer significar a um visitante carinho e apreço especiais, são as palavras amigas do velho pajé que logo borbulha�m e cantam em nossos lábios:

- "Bem-vindo seja o estrangeiro à cabana de· Araquém."

Para os conterrâneos de Alencar as figuras que ele criou são tão vivas e reais como as que· aparecem nos versos belos e fortes deste soneto do grande poeta cearense Júlio Maciel sobre o idílio do "guerreiro branco" com a "virgem dos lábios de mel":

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Rebelde e forte, aqui, outrora se i.mplantava A taba indiana aqui, onde a alma lua cheia, Pródiga, a derra·mar em cachões a luz flava '

- Agora a estes casais a fachada clareia.

Quanta vez trom de inúbia, ·entrechocar de clava Não vibrou pelo azul que sobre mi�m se arqueia! Praia! o tropel da tribo em correria brava Quanta ve·z não sentiste a sacudir-te a areia!

E embora tu, Passado, a lenda antiga escondas, Eu sei que o amor também floriu aqui: no treno Da aragem, no marulho eloqüente das ondas.

Parece-me in·da escuto, em meio à noite clara, O selvagem rumor dos beijos de Moreno E as falas de paixão da �meiga tabajara!

ALENCAR E MACHADO DE ASSIS

Agora que, pe-lo Brasil todo, se forma u�m concerto de me­recidos aplausos à personalidade de Machado de Assis, é bom que não esqueçamos o quanto deve o romancista de� D. Cas­

murro ao ronmancista de O Guarani.

Em mais de uma página, em trechos de crítica, num dis­curso célebre, eim várias crônicas ·e re·miniscências, Machado de Assis põe e.m re·levo a poderosa influência que Alencar exerceu sobre seu espírito e a sua formação literária, chegan­do mesmo a chamá-lo de, "chefe dos chefes".

E qu&, compulsar com vagar e com amor, porque sen1 amor não há comprensão, a obra alencarina, lá descobrirá, por se�m dúvida, a nascente do veio cristalino da estética macha­diana. O mesmo ceticismo do psicólogo de Quincas Borba me­lancolizou e e·noiteceu os últimos livros do prosador cearense. A técnica literária dos contrastes, tão característica de Ma­chade, como acentuaram os seus inúmeros críticos, já fora &pontada co.mo peculiar ao dramaturgo de Verso e Reverso pelo senso crftico de Araripe Júnior, em livro que o próprio Ma-

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chado chamou de "estudo imparcial e co�mpleto" sobre o es­cultor intelectual de Peri e Ceci.

Profundamente ligado às fontes literárias da Europa, com um re�speito quase supersticioso pela gramática lusitana, mas dotado de altíssimos dons de análise, Machado terminou com mão de mestre o romance psicológico que Alencar, no seu as­sombroso polimorfismo, tentara realizar também em Diva, Lu­

elo/a e Senhora.

Notável, talvez único, pela revelação de mundos interio­res, paisagens introspe�ctivas, pelo cômico amargo de seu hu­mor, Machado de Assis, entretanto, não podia ser jamais um verdadeiro discípulo ·de Alencar. Faltou-lhe o ímpeto criador, a força imaginativa, a música verbal, a re·ceptividade patriótica do soberbo poeta de Iracema.

Há provas que, iniludivelmente, evidenciam o excepcionar conceito em que o artista da Mosca Azul tinha o paisagista mi­guelangelesco das ·Cheias do Paquequer. Lembro-vos, de pas­sagem, que o nome solar do prosador cearense�, enquanto vivo foi Machado de Assis, que o escolhera para seu patrono, ful­giu como um brazão de ouro no pórtico da cadeira presidencial da Academia Brasileira de Letras.

Ainda agora, num pequeno volume de "páginas esqueci­

das" do psicólogo de D. Casmurro, o ilustre crítico brasileiro contemporâneo Elói Pontes, estudando as influências literárias sofridas por Machado de Assis, ·escreve o seguinte: "O roman­cista de Iracema foi que.m mais vivas influências teve no seu de�stino literário, sem dúvida alguma. Os traços dessa influência

ficaram indeléveis. Machado de Assis recordava-os sempre com desvanecimento."

No admirável estudo sobre o teatro de Alencar, Machado� com aquela sua finura crítica, analisa, uma por uma, as peças do dramaturgo e· comediógrafo de Asas de um Anjo, Verso e·

Reverso, Demônio Familiar e Mãe peça que ·ele classifica de "obra verdadeiramente· dramática, profundamente humana, oem concebida, bem executada, bem concluída", afirmando, final­mente, que "estava acostu:mado a ver no Sr. José de Alencar o chefe da nossa literatura dramática".

E quando, por influência direta do Imperador, se fez em

torno do criador de Ubirajara aquele vácuo que tanto amargu-

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rou os se·us últimos dias neste planeta, foi Machado quem, numa carta pública, em resposta à que Alencar lhe escrevera apresentando-lhe Castro Alves, disse que· ele tinha "contra a conspiração da indiferença um aliado invencrvel: a conspira­ção da posteridade."

O astro machadiano de As Americanas vibra no mes�mo diapasão romântico e patriótico do indianismo alencarino, ain­da que sem a força expressional ·do poeta dos Filhos de Tupã.

Graça Aranha, que era um machadiano impertérrito, escre­

veu na Estética da Vida: "José de Alencar teve o privilégio de ser o primeiro escritor de síntese que surgiu no Brasil. Machado de Assis foi um imenso escritor de análise: examinou os frag­�mentos do mundo moral brasileiro, mas em ne-nhum de seus livros teve a forma de reunir estes fragmentos e dar a síntese da civilização brasile·ira; e por isso faltou a Machado de Assis esse relâmpago de gênio que teve Alencar, quando no Guarani

fixou o ciclo da formação nacional do Brasil, o encontro do português e do fndio no mundo tropical, a fusão das duas raças de que nasceu a alma brasile·ira."

O romance de Machado de Assis, à parte o sentido univer­salista que alguns de seus crfticos lhe apontaram, ficou re·strito à vida carioca, de que ele foi um intérprete amoroso, irânico e sutil.

Alencar enve·redou por caminho diverso, realizando uma obra orgânica de nacionalismo.

O que os gloriosos paulistas Alexandre de Gusmão e José Bonifácio, no terreno diplomático e político, o primeiro como inspirador e autor do Tratado de· Tordesilhas, o segundo como Patriarca da Independência fizeram pela integridade territo­rial e emancipação poHtica do Brasil fê-lo José de Alencar no setor inte·lectual, criando e fundando a genurna literatura

bras i I e i r a . Um rápido olhar sobre a sua obra poliédrica prova-nos

que ele não se limitou a encarar apenas aspectos da sociedade ou da natureza, mas a pátria inte·ira, tornando a sua obra lite­

rária, no justrssimo dizer de Gilberto Amado, "o retrato inte­gral do Brasil."

Estudou a vida aventureira dos vaqueiros do Norte no Ser­tanejo e pintou os dramas singulares dos pa·mpas do Sul no

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Gaúcho; a vida colonial nas Minas de Prata, Guerra dos Mas­

cates e Garatuja; a sociedade do te.mpo em D�·va, Pata da Ga­

zela, Luc/ola e Senhora; por fim se· escreveu o Iracema hino

ao Ceará, produziu O Guarani hino ao BrasiL Machado mesmo o reconheceu ao tratar desse ponto nas

Páginas Recolhidas: "O espírito de· Alencar percorreu as diver­sas partes da nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a mata e o pampa, fixando-os em suas páginas, compondo as­sim com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos, a uni­dade emocional da sua obra."

Daí ter podido Agripino Grieco dizer na Evolução da Prosa .. Brasileira que José de Alencar foi "uma espécie de conterrâ­

neo de todos nós." ...

O ESTILO DE ALENCAR

Sabendo como Remy de Gourmont que não há nada mais pe·recível do que o estilo que não repousa sobre a solidez de um pensamento forte Alencar jamais escreveu no vácuo, pelo só efeito da frase campanuda ·e vazia.

Caráter se·m eiva, ele não seria nunca o "dizedor de fra­ses", de Pascal.

O seu estilo, dentro da literatura brasileira, é como o canto do Uirapurü das se·lvas amazônicas. Escutá-lo é ficar, para sem­

pre, extasiado a ouvi-lo, porque as suas harmonias têm. qualquer coisa de extra-humano, de quase divino.

Disseram bem João Ribeiro e Sílvio Romero que· Alencar não precisaria assinar o que escrevesse. Em verdade·, a nota pessoalíssima de seu estilo, onde quer que vibrasse, seria; facilmente identificada, tanta é a fascinação que desprende· e irradia.

Alencar, ao reverso do que supõem críticos apressados e apriorísticos, cuidou sempre da sua forma de expressão, da sua linguagem, do se·u ·estilo, sem a tortura genesíaca de Flaubert, ·mas com a paciência amorosa de Renan.

Lêde o que ele escreveu no post scriptum de Iracema: "Minhas opiniões em matéria de gramática têm-me valido a reputação de inovador, quando não a pecha de escritor incor­reto e descuidado. Entretanto poucos darão mais, senão tanta

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importância à forma do que eu: pois e·ntendo que o estilo é também uma arte plástica, porventura ·muito superior a qual­quer das outras destinadas à revelação do belo."

O estilista das Minas de Prata tornou-se·, realmente, dono de todos os segredos dessa arte esquiva que, à semelhança das abelhas, mata os que· a dominam e fecundam ...

Ninguém conseguiu, no Brasil, antes dele e depois dele, apreendr;r tnelhor o valor plástico dsa palavras, o sentido es­cultural do verbo.

Como aquele " ·estatuário de colossos" de Castro Alves, José de Ale·ncar modelava quadros ciclópicos como esta luta entre o Amazonas e o Oceano, que tem a grandiosi·dade de uma página de Homero:

"Ele viu o grande· rio combater com o mar, no tem·po da pororoca. Os dois chefes tocam a inúbia antes da peleja, para chamar seus guerreiros.

Vêrn de· um lado as águas do mar, são os guerreiros azuis, com pe·nachos de araruna; vêm do outro as águas do rio, são guerreiros vermelhos, com penachos de nambu.

Começa a batalha. Os guerreiros se enrolam, como a cor­rente· da cachoeira batendo no rochedo; a terra estremece com o trovão das águas.

Mas o grande rio agarra o mar pela cintura. Arranca do chão o inimigo; carrega-o nos ombros; solta o grito do triunfo."

Mas o estilo alencarino assemelha-se ao Proteu mitoló­gico, pela multiplicidade dos e·feitos, pela variedade dos tons, pela riqueza das tintas, pela exuberância dos ritmos.

A mesma cena que ele fixou nas páginas do Ubirajara, com sobriedade de palavras, para dar maior relevo às figuras, se­gundo o processo homérico, ei-la em majestosos versos brancos, nesta invocação ao Amazonas, do seu belo poema inacabado Os Filhos de Tupã:

Salve, Amazonas! Rei dos re·is das águas, Tamuy dos rios, filho do dilúvio! Gigante que o maior dos oceanos Gerou nos flancos da maior montanha!

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Pela terra que vergas com teu peso, Os mil braços, que alongas pe·las serras, abrangem tanto espaço que outros mundos Couberam ainda neste mundo novo

Feito para teu berço. Com desprezo, Aos pés o colo esmagas do oceano que .mugindo se roja pelas praias; Mas, prostrado e vencido, não vassalo O ·mar soberbo às vezes se revolta, Alçada a fronte, a juba desgre·nhada, Se eriça e raiva e ruge e rosna e troa: E a longa, imensa cauda destorcendo Te enlaça o corpo no impotente esforço.

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Dorme, ó gênio das águas! Quando ao sonho Terrível do Senhor, tu despertares, O mun·do voltará de novo ao caos."

Nos versos que acabastes -de ouvir re-ssaltam outras qua­lidades de Alencar como dominador do verbo. O prosador transmuda-se em poeta, ·m anejando o verso branco do m-esmo modo que os seus guerreiros selvagens ·manejam o arco e a flecha.

Quase não se nota a ausência da rima, em face das ima­gens e onomatopéias.

Escultor admirável da palavra, que ele era, não sobrepu­java, entretanto, o pintor em cuja paleta se misturavam todas as tintas das flore·stas tropicais, todas as luzes e todas as som­bras dos arrebóis e crepúsculos brasileiros.

Os se·us grandes quadros a óleo, como os de O Guarani, não excedem, contudo, as aquarelas delicadas em que retrata u·ma curva de céu ou um beijo de virgem: "A boca do guerreiro pousou na boca mimosa da virge.m. Ficaram assim unidos como dois frutos gêmeos do araçá, que sarram da mes·ma flor."

Observa, perspicazmente, Araripe Júnior que Alencar na sua arte não se revelou unicamente escultor e pintor, porque foi músico também.

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Muitos dos seus trechos em prosa nos dão a impressão· de poemas, aos quais falta somente o artifício da rima,

Se o ·estilo é um estado d'alma, como queria Amiel, a alma de· Alencar era uma sinfonia.

ALENCAR - POLJTICO E PATRIOTA

Refugindo ao campo prôpria.mente literário, sobre o qual n0s alongamost tanto, não o bastante para pintar-lhe a vera e.ff-

g1e, passarr.o�. a encarar o imortal cearense sob novos aspectos e novos prismas.

Vamos, em rápidos traços de ·esfuminho, estudá-lo como homem público e político. Havereis ·de· verificar que, ainda aqui, ele foi tão nobre ·e tão grande quanto os que ·mais o foram em nosso país.

Trazendo no sangue· a herança de uma família visceral­mente liga.da, desde os tempos coloniais, às questões partidá­rias do Brasil, filho de um homem que foi por duas veze·s pre­sidente de sua província natal e morreu como sena·dor do Im­pério, José de Alencar não pôde· fugir à tentação da glória afê­mera da política.

Dotado, porém, de uma sensibilidade de ·mil cordas, capaz de vibrar ao mais leve impulso, dono de um espírito re·quintado até à volúpia da perfeição· e, além de tudo, servido por uma imaginação que recobria de fascínios e encantamentos a reali­dade mais dura, o épico majestoso de Ubirajara, como Lamar­tine, seu irmão em genialidade, .m·arcou a sua passagem pelos·· céus turvos da potrtica nacional com o fulgor apote·ótico de um cometa.

Se há um aspecto da vida alencarina onde a mocidade brasileira possa encontrar à farta exemplos de rijeza moral, dignidade· de atitudes, inquebrantabilidade de caráter, espírito público, esse é certamente o político, que mais propriamente chamaremos cívico, porque a nota patriótica foi a que vibrou mais alto e·m todos os se·gundos dos 48 anos da sua fulgurante existência.

Data de 1860 o seu ingresso na potrtica,· quando se fez· eleger deputado geral pelo Ceará. Não foi ruidosa nem bri-· lhante a sua estréia oratória. Pequeno de porte, feições miúdas

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e delicadas, voz fraca e gestos sóbrios, estava longe de re­velar 0 gigante que, em breve, sob o estrmulo de· seu brio cr­vico e o incentivo de seu orgulho mental, i ria e·nfrentar e ven­cer os maiores vultos do parlamento brasileiro.

Extinta a Câmara dos Deputados em 1863, Alencar só re­tornaria à vida parlamentar em 1868, depois de haver traçado, como visão de estadista e al�ma de patriota, as céle·bres Cartas

de Erasmo, dirigidas ao Imperador. Delas disse Araripe Júnior, o mais atilado e brilhante biógrafo de· Alencar: "Há aí lampe­jes de estilo verdadeiramente admiráveis, intuições até de quem vive já em mundo de videntes."

Foram essas cartas que o conduziram à pasta de Ministro da Justiça, do G�abinete de 16 de julho, onde infe·lizmente não encontrou cli·ma para o seu caráter altivo e o seu espírito de· eleito.

Não sabendo suportar, de cerviz baixa, as· imposiçõe·s ·e pontos de vista da Coroa, Alencar abandonou a pasta da Jus­tiça para lançar a sua candidatura a senador pe·lo Ceará. Na carta dirigida a ltaboraí, solicitando demissão, alegava que não pedira vênia a Sua Majestade o Imperador, "porque não a jul­gava necessária para exercer o seu direito de cida·dão."

Atirado nas fileiras da oposição, ele aí se· manteve até o fim de sua vida com a galhardia altiva de seus maiores diante do perigo e do infortúnio. E foi então que Alencar se revelou, em toda a plenitude, como político, estadista e patriota, con­fundindo e abatendo os mais temíveis adversários com o seu caráter inflexível como o tacape de Ubirajara e o seu verbo ágil co�mo a flecha de Iracema.

O Gabinete Rio Branco, como o anterior, de ltaboraí, re­cebeu de cheio os golpes vibrados pelo formidáve·l batalhador, golpes aos quais respondeu com aquela triste campanha difa­

matória sustentada pelos cofres públicos e dirigida, intelectu­almente, pelo mercenarismo de José Fliciano de Castilho.

Referindo esse fato diante, de seus pares, o deputado José de Alencar produziu a oração que a mocidade brasileira de­via saber de cor. Nos períodos candentes desse discurso cice­roniano está retratado, em cores eternas, o perfil moral de um homem que atravessou o pantanal poHtico se·m manchar a alma, mas ·deixando após si claridade e cintilações.

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Aludindo às crrticas estipendiadas pelo Gabinete· Rio Branco, num confronto impressionante que o engrandeceu aos olhes dcs coevos e hoje o agiganta aos olhos da posteridade, José de Alencar assim terminou essa página imortal da sua vida pública :

- "Fui ministro da Justiça, estive 18 meses nos conselhos da Coroa, e sem o menor resquício de ressentimento para com os ,,,,�us adversários, recordarei à Câmara a oposição violenta de que fui objeto. Talvez, pelo me·nos nestes últimos tempos, não haja exemplo de ministro mais agre·dido, mais chocado em seu amor próprio, mais atacado em sua dignidade do que eu fui. Pois bem, eu tinha a verba secreta à minha disposição, verba de que não dispunha�m o nobre ministro da Fazenda, ne·m o nobre ministro do Império; verba de cujo emprego não devia contas senão à minha consciência e a Deus. E contudo jamais desviei um real desta verba para minha defesa pessoal, jamais desafrontei o meu amor próprio à custa do povo que paga os impostos.

O Sr. Murta Isso honra muito a V. Excia. (Apoiados). O Sr. José Alencar E como pela continuidade do abuso

temia não ser acreditado, mandei todos os documentos à mesa e aí estão no arquivo da Câmara. Eu os conservo como um dos atos mais honrosos da minha obscura carreira política.

O Sr. Andrade· Figueira · 'É um documento muito honroso que há de servir de ·exemplo aos futuros ;ministros."

Na memorável oração de que citamos· esse grande e pe­quenino trecho, lampeja, aqui e ali, o seu ódio contra a "im­prensa clan·destina" em períodos que na carne moral de seus contendores rechinam como ferro ·em brasa:

"Em verdade, senhores, e·u tenho o que S. Excia. (refere-se ainda · a Rio Branco) chama hábitos agressivos porque é ·meu costume combater os meus adve·rsários de frente; sinto-me com coragem bastante para dizer a verdade em face. Nunca recorri a penas mercenárias (alusão a Castilho) para atirar aos me·us antagonistas o estigma que não tivesse a coragem de lançar em rosto; nunca."

E no ad·miráve·l prefácio de O Garatuja, ao mencionar o "museu arqueológico", de onde extraíra o material com que compôs essa obra-prima de humor, tão saborosa quanto os

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melhores frutos da ironia machadiana, Alencar, i·mpavidamente esclarece: *'Meu arquivo arqueológico, por cautela vou preve­nindo, não custou um ceitil aos cofres públicos, nem aspira à honra de ser comprado pelo governo do Sr. Pe·dro 11, co.mo está em voga desde a consciência até as le·is, que tudo hoje em dia se vende, por atacado ou a varejo, em códigos ou emprei­

tadas." Também na Guerra dos Mascates, retratando-se no perso­

nagem Carlos de Enéia, anagrama de José de Alencar, encar­nou Pedro 11 na figura do Governador Sebastião de Castro Cal­das "que era varão insigne, porém no posto a que o sub1ra a fortuna andava desencontrado, desgovernando tudo pela ân­

sia de muito governar". Mas a ação política do grande brasileiro, de tão claras e

nobres intenções patrióticas, melhormente se re·flete nas Cartas de Erasmo, nos dois volumes de Discursos Parlamentares e na sua extraordinária produção jornalística, ainda hoje, infeliz­mente, dispersa e para muitos de· todo desconhecida.

Tem razão Medeiros e Albuqurque, para quem Ale·ncar é, de fato, a figura máxima da nossa literatura: "Mesmo no do­mrnio da política, ele· marcou a sua passagem com a superio­ridade de um vidente."

ALENCAR E A TERRA DE IRACEMA

Alencar é um índice de seu povo, uma srntese prodigiosa de todas as virtudes morais e mentais dos filhos de Iracema.

Quando falo dele é como se falasse de todos os ce·arenses que influíram na formação do sentimento pátrio.

·Mas, se quisesse ser explícito, poderia lembrar no mesmo· campo literário as figuras características de Domingos otr.mpi�o, Adolfo Caminha, Franklin Távora, Alfredo Ladislau, Araripe J.ú­nior, Antônio Sale-s, Rodolfo Teófilo e Gustavo Barroso, que todos fizeram, nos seus livros e romances, obra de· cristalina brasilidad·e, pelos te·mas, pelo estilo, pelos tipos humanos e pela paisagem natural. Na poesia, ao lado de Alvaro Martins, Lrvio Barreto, José Albano, AntOnio Salas e Antônio Thomás, citaria a figura legendária de Juvenal G�aleno, o grande poeta popular do Brasil.

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Na esfera da filosofia e da crrtica cientrtica, recordaria os vultos de Rocha Lima e Farias Brito, este considerado a mais completa organização filosófica de nosso pars.

Não esqueceria nesta rápida e sucinta e·numeração aquele que descobriu veios novos na história da nossa gente, sagran­do-se �me·stre de toda uma geração de historiadores e etnólo­gos. Não precisarei, certamente, dizer-vos que me refiro a Ca­pistrano de Abre·u.

Ao lado de outras figuras de grande vulto em atividades e setores diferentes, como Moura Brasil, generais Tibúrcio e Sam­

paio, destacaria a personalidade do maior jurisconsulto da América Latina, daquele que deu pe·rpetuidade ao direito bra-

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sileiro nas páginas imortais do Código Civil, deste sábio que é Clóvis Beviláqua.

Também não deixaria no olvido aquele artista de supremos requintes e alta inspiração que trouxe acentos até então desco­nhecidos à música nacional, base·ando-se nos motivos grandio­sos da natureza americana e nos poetas .mais representativos da sensibilidade tropical. Alberto Ne·pomuceno tem um lugar de honra ao lado do vosso e nosso genial Carlos Gomes.

Embora pudesse citar ainda outros cearenses que concor­reram, decisiva e diretamente, para a formação do sentime·nto pátrio, sobretudo entre a intelectualidade contemporânea da terra do sol, onde vigorosos poetas, romancistas e pensadores estão faze·ndo ·obra de profundo nacionalismo, creio que falei de todos, · falando daquele que é uma encarnação viva do Ceará.

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Na emoção deste instante e·vocativo, minha alma inquieta e nostálgica, quando busca a figura de· Alencar, depara a da própria terra natal e quando procura a da gleba nativa é para confundi-la, outra ve·z, com a do nervoso e cálido água-for­tista dos "verdes mares bravios" . ..

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A intelectualidade brasileira está vivendo, neste mome·nto, em S. Paulo, a grande hora de unificação espiritual da Pátria .

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Somos todos, na comunhão de idéias que nos irmanam e identificam neste instante, uma só força, um só ideal., um

só pensamento pelo Brasil. Mais do que sempre, fica demonstrado agora o excepcio­

nal valor da imprensa como instrumento de formação intelec­tual e cívica dos povos, porque o belo e patriótico movimento a que ora assistimos foi promovido por uma das ·mais autori­zadas vozes da imprensa brasile·ira. Quero referir-.me a A GA­ZETA, o brilhante ·e dinâmico jornal de Cáspe·r Líbero, cuj:as novas e monumentais instalações se inauguraram em meio ao regozijo nacional.

E para mim, que te·nho a subida honra de representar nesta hora, intelectualmente, o Estado do Ceará, hoje sob a direção de um homem de espírito, o eminente educador Dr. Francisco de Meneses Pimental, é particularmente grato neste primeiro encontro com a intelectualidade· paulista poder falar-lhe, como acabei de fazê-lo, sobre o maior dos cearenses que foi, como escritor, o maior dos brasile·iros.

S. Paulo! T·erra das Bande·iras! Aqui estão as raízes da Pátria. Foi sob estes céus amplos

e gasalhosos que o Brasil sentiu correr-lhe no sangue os pri­meiros arrepios de liberdade.

Berço de Alvares de Azevedo! O teu prestígio intelectual sobre o resto do País é uma fatalidade histórica. Anchieta,

apóstolo e poeta, acendeu no colégio de Piratininga a lâmpada votiva da inte·ligência nacional. E ainda hoje, quatro séculos depois, os clarões de sua chama rutilam com o esplendor dos arrebóis americanos.

�oi neste clima cívico alimentado pelo fogo da tradição, que José de Alencar se inspirou para traçar a obra imortal que ligou, indissolúvelmente, a terra heróica das Bandeiras à gleba solar da Liberdade.

Ele, sinceramente, o confessou: "Os dois anos que passei e·m São Paulo foram de contemplação e recolhimento do es­pfrito."

Os laços que hoje nos irmanam dentro de comunidade brasileira foram assim tecidos por ele, mas eternizados por Carlos Gomes, quando retirou das páginas do Guarani o mo­tivo da ópe·ra que o seu gênio incorporou à música universal.

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Pisando este glorioso e histórico solo paulista, sempre trescalante do aroma celestial do santo do Brasil, sob a pode­rosa sug�'stão do ambiente·, eu ergo os olhos para o alto e vejo, no Tabor da Pátria, Carlos Gomes e José de Alencar que, unin­do o Sul ao Norte·, se alam ao infinito, dentro do mesmo raio de luz, sobre-humanos, irreais, divinos, numa transfiguração.

(Conferência pronunciada em São Paulo, em 1929, no Auditório de

A GAZETA).

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