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PODER EXECUTIVO MINISTRIO DA EDUCAO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS FACULDADE DE INFORMAO E COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA COMUNICAO
ALICE REGINA PAC DE SOUZA
FILHOS DO ENCANTADO:
ESTUDO SOBRE O FENMENO DO BOTO EM NOVO AIRO (AM) A PARTIR
DO OLHAR ECOSSISTMICO
MANAUS
2018
PODER EXECUTIVO MINISTRIO DA EDUCAO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS FACULDADE DE INFORMAO E COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA COMUNICAO
ALICE REGINA PAC DE SOUZA
FILHOS DO ENCANTADO:
ESTUDO SOBRE O FENMENO DO BOTO EM NOVO AIRO (AM) A PARTIR
DO OLHAR ECOSSISTMICO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao, rea de concentrao: Ecossistemas Comunicacionais, linha de pesquisa 02: Linguagens, Representaes e Estticas Comunicacionais.
Orientador: Prof. Dr. Wilson de Souza Nogueira
MANAUS
2018
ALICE REGINA PAC DE SOUZA
FILHOS DO ENCANTADO:
ESTUDO SOBRE O FENMENO DO BOTO EM NOVO AIRO (AM) A PARTIR
DO OLHAR ECOSSISTMICO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao, rea de concentrao: Ecossistemas Comunicacionais, linha de pesquisa 02: Linguagens, Representaes e Estticas Comunicacionais.
Manaus, ________ de abril de 2018
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Wilson de Souza Nogueira UFAM (Presidente)
Profa. Dra. Mirna Feitoza Pereira UFAM (Titular 1)
Prof. Dr. Srgio Augusto Freire de Souza UFAM (Titular 2)
Prof. Dr. Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto UFAM (Suplente 1)
Prof. Dr. Renan Albuquerque Rodrigues UFAM (Suplente 2)
Todos os direitos desta dissertao so reservados a sua autora e ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). recomendado que este material seja reproduzido para fins acadmicos ou cientficos.
Catalogao na Fonte
Ficha Catalogrfica elaborada pelo Bibliotecrio Jean Charles Racene dos Santos Martins, CRB 11/719
S729f Souza, Alice Regina Pac de
Filhos do Encantado: estudo sobre o fenmeno do boto
em Novo Airo (AM) a partir do olhar ecossistmico / Alice
Regina Pac de Souza. Manaus: UFAM, 2018.
130 p. : il. ; 27 cm.
Dissertao de Mestrado em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas.
Orientador: Prof. Dr. Wilson de Souza Nogueira.
1. Comunicao - Ecossistemas. 2. Ecossistemas Comunicacionais. 3. Tecnologias do Imaginrio. 4. Imaginrio Amaznico. 5. Boto Vermelho. I. Titulo.
CDD 23.ed. 302.2098112
DEDICATRIA
Dedico este trabalho s minhas sementes de ViDa:
Ao meu Vincius, meu menino cheiro de alecrim que sempre esteve presente ao meu
lado com seus projetos. Quanta fora tu me deste, meu menino!
Ao meu Davi, meu beb sorriso, que me acompanhou nesta jornada em longas
madrugadas. Teus sorrisos me renovavam quando eu achava que no podia mais...
Dedico tambm Dona Ftima Santana que me acompanhou em tantas conversas
na Pousada Cabocla, contando suas histrias, desde a chegada em Novo Airo, sua
carreira como educadora, at sua participao na criao do Festival do Peixe-boi.
AGRADECIMENTOS
Deus que te faz entender toda a poesia.
Rosa de Saron, O sol da meia noite.
Primeiramente, a Deus, porque Ele que nos faz entender toda a poesia,
porque se no fosse Sua mo me guiando desde o instante em que decidi fazer a
seleo para o programa de mestrado, nada disso teria sido possvel. Estudei para
fazer a prova com uma criana de um ano ao meu lado, consegui todos os livros e li
o mximo que pude. Como o pensamento complexo me atormentou! No desespero
eu dizia que o pensamento complexo era complexo mesmo. Deus me ajudou a
compreender Morin e o olhar ecossistmico, certamente.
Passei em primeiro lugar na seleo de 2015! Seria apenas inacreditvel se
no houvesse a f! Com muita f e ajudas, segui as disciplinas e qualifiquei. Mas no
sem antes viver o meu caos intelectual, que fora tratado nos encontros caticos graas
amorosidade cientfica Cardinale, o maior HD externo acadmico-potico que eu
poderia conhecer e a ser humana mais literariamente ousada dessa vida. A ela revelei
minha dificuldade em contar essa histria, era preciso alinhar as ideias. Ela detectou
que eu havia cado em uma armadilha cartesiana. Alice estava perdida! Do Pas das
Maravilhas veio a soluo: When in doubt, remain silent; na dvida, permaneci em
silncio. Deixei o texto dormir e ruminei minhas ideias. Cardinalicamente, escrevi para
tirar de dentro de mim e comecei a percorrer a minha trilha.
Mas no segui sozinha! Fui guiada pelo mais humano dos orientadores, que
me permitiu viver aproximaes com meu tema e apontou diversos cenrios e
caminhos, alm de curar ressacas de leitura e encorajar quando me faltavam palavras
e foras. Ele, muitas vezes no me deixou ser apenas racional... Jamais esquecerei
da orientao do dia 27 de julho de 2017, vspera do nascimento do meu Davi, quando
na energia dos acontecimentos, meu orientador, professor Wilson Nogueira,
embalou minha alma de tal forma que suas palavras foram um alento. nas
adversidades que podemos sentir com mais intensidade a presena das pessoas em
nossas vidas. Passei a gravidez e o ps-parto recebendo orientaes em uma relao
de autonomia e confiana. Tem gente que te abraa com palavras. Wilson Nogueira
desses...
Agradeo ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao pela
oportunidade de debater e participar de discusses acadmicas, pelos professores
que nos acompanharam e enriqueceram nossas ideias, em especial, ao professor
Gilson Monteiro, pelo acalento acadmico e encorajamento. Agradeo tambm pelos
amigos que ganhei, destaque para minha amiga-irm, Flvia Moura, ser humana
valente e forte com quem tive o prazer de dividir as alegrias e angstias dessa jornada.
Enquanto eu corria, meus filhos aproveitavam o tempo a mais com os avs! E
aqui quero agradecer a ser humana-flor da minha vida, minha me, Regina Pac, a
vov azul! Sem seu apoio, oraes, torcida, caldos de macaxeira e mais apoio de
novo, este trabalho jamais estaria finalizado. Ao meu pai, Srgio Souza, por
acompanhar minha trajetria acadmica e sempre fazer questo de ler meus trabalhos
da escola e da faculdade. Posso dizer com todas as letras que isso fez e faz toda a
diferena na minha vida! E ao meu gigante irmo Srgio Jr. que sempre deu todo o
suporte e a quem o gigantismo no est apenas na altura(!), e sim na gentileza de
seus atos.
Agradeo tambm aos membros da minha banca de qualificao, Srgio
Freire e Mirna Feitoza, que aceitaram o convite e trouxeram grandes contribuies
para este estudo. Meu desejo que mais professores pudessem ser contagiados pelo
comprometimento, competncia e entusiasmo de profissionais como eles. O respeito
e admirao pelo trabalho que desenvolvem tamanho que a dupla se repete na
defesa desta pesquisa.
Aproveito para agradecer tambm ao secretrio do Programa, Rhangel Souza,
que sempre me atendeu prontamente at nos momentos de desespero.
Sou grata tambm pelo cuidado e incentivo da minha amiga Alcirene Cursino,
sempre com palavras de carinho e f.
Agradeo pelo olhar atento e pela amizade constante de Vanessa Marruche,
que, mesmo distante, foi uma das amigas mais presentes em todo esse processo de
construo do texto.
E, por fim, agradecer aos meninos da minha vida, meu casulo, minha famlia!
Meus passarinhos Vincius e Davi, que carregam em seus olhos a esperana de dias
melhores e mais tranquilos. Quanto amor brota de vocs! amor umbilical. Ter filhos
agiganta o nosso corao e nos enche de sonhos. E por falar em sonho, esse eu
divido com meu guardio, com o ser humano do abrao que embrulha e acolhe, que
desejou e planejou junto comigo essa meta e me incentivou/aguentou/apoiou at o
ltimo instante. Ao meu Ricardo, meu abrigo, meu amigo, meu amor. As pequenas
coisas da vida valem o dobro para o corao: obrigada por cada copo de gua, cada
massagem nos ombros, cada abrao e, principalmente, por todas as vezes que tu
disseste: mais longe j esteve, acalmando minha alma e me trazendo paz!
Escrevo esses agradecimentos vibrando e lembrando dos desejos por tucum
nas madrugadas. Das contraes e pulsaes do nascimento, meu texto me viu brotar
e engendrar... Passou por trilhas musicais que foram de Boi Bumb a Yamandu Costa
e Sebastio Salgado. O exerccio de autoria intenso; exigiu-me diversos canteiros
de ideias e, principalmente, me ensinou que romper com a ignorncia requer
sacrifcios. Minha opo por participar do Programa de Ps-Graduao em Cincias
da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas e realizar este estudo
perpassa um desejo de encontrar os entrelaos da minha prpria histria de vida, com
minha trajetria acadmica e minha paixo por esta terra. Nesse perodo, aprendi a
olhar com muito mais empatia para os povos da floresta, os que, verdadeiramente,
sabem interagir com ela.
uma alegria imensa chegar ao final desta jornada. Principalmente porque tive
muita dificuldade em dar um ponto final (Seria coisa de bicho visagento? Panema?!
No sei!). Estes agradecimentos foram o ltimo texto a ser escrito neste trabalho e
embalam os ecos para a banca de defesa. E, embora a linguagem blica no me
agrade, sigo adiante com o desejo de defender minhas ideias e meus olhares.
Aos seres do encantado, do fundo do rio, da floresta e aos moradores de Novo
Airo meu respeito e minha gratido!
Termino com um poema de minha autoria chamado Amaznida, como forma
de agradecer e reverenciar a todos que contriburam para que este estudo se
realizasse.
Amaznida
Em teus olhos, os traos de ndios
Uma beleza que brota qual raiz de Samama...
Em tua pele, o encontro de vrios povos...
Uma mistura de encantos, de encontros, de cantos e contos...
Somos curumins e cunhants!
Somos CABOCLOS! Somos poesia!
Do mundo, a magia. Da vida, o mistrio. Do encanto, o esplendor.
Ser Amaznida...
sentir o sangue Ykamiaba, Ajuricaba, negro, nordestino, europeu...
fazer um retorno origem, um reencontro com a lua, ao mito da criao...
enxergar no espelho da lua: um muiraquit, o amuleto, smbolo de coragem.
descortinar as matas, singrar os rios...
percorrer os caminhos, a histria, os mitos e as lendas...
nunca deixar de olhar para trs...
E se orgulhar de ser Amaznida!
Alice Souza
No tenho um caminho novo.
O que eu tenho de novo um jeito de caminhar.
Thiago de Mello
preciso esquecer a fim de lembrar.
preciso desaprender a fim de aprender.
Fernando Pessoa
RESUMO
Este estudo prope uma compreenso ecossistmica comunicacional do imaginrio em Novo Airo (AM) a partir do fenmeno do boto vermelho, que ora se apresenta como animal de atrao turstica, ora como ente encantado. Este estudo tem abrigo no Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao (PPGCCOM) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que tem como rea de concentrao os Ecossistemas Comunicacionais, sob o vis da linha de pesquisa 2: Linguagens, Representaes e Estticas Comunicacionais. A base terica est construda na perspectiva ecossistmica (CAPRA, 2006; MATURANA e VARELA, 2007; MONTEIRO, 2011; PEREIRA, 2011; COLFERAI, 2014) em articulao com as teorias do pensamento complexo (MORIN, 2005; SANTOS, 2010) das tecnologias do imaginrio (SILVA, 2006) e dos estudos do imaginrio amaznico (GALVO, 1976; SLATER, 2001; NOGUEIRA, 2014; PAES LOUREIRO, 2015). Como resultado, apresento uma narrativa ensastica que entrelaa os fenmenos ecossocioculturais de Novo Airo (AM), por meio de relaes comunicacionais entre o local e o global, que alimentam o fenmeno do boto vermelho como fenmeno imaginrio e real da mdia contempornea. Palavras-chave: Ecossistemas Comunicacionais. Imaginrio Amaznico. Boto Vermelho. Novo Airo. Tecnologias do Imaginrio.
ABSTRACT
This study proposes a communicational ecosystemic understanding of the imaginary in Novo Airo (AM) of the red dolphin (most commonly known as pink dolphin) phenomenon, which presents itself as an animal for touristic attraction at times and also as an enchanted being at others. The theoretical basis is built on the ecosystemic perspective (Capra, 2006; Maturana e Varela 2007; Monteiro 2011; Pereira 2011; Colferai 2014) in articulation with complex thinking theory (Morin, 2005; Santos, 2010) of the imaginary technology (Silva, 2006) and the studies of the amazonic imaginary (Galvo, 1976; Slater, 2001; Nogueira, 2014; Paes Loureiro, 2015). Thus, I present a narrative that entwines the ecosystemic, social, and cultural phenomenon in Novo Airo (AM), by communicational relationships between the local and the global, which feed the pink dolphin phenomenon as a real and imaginary phenomenon of the contemporary media. Keywords: Communicational Ecosystems. Amazonic Imaginary. Pink Dolphin. Novo Airo. Imaginary Technology.
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Mapa da Regio Metropolitana de Manaus ............................................................... 28
Figura 2 Mapa de Novo Airo (AM) ............................................................................................. 29
Figura 3 Dados gerais IBGE Municpio de Novo Airo ......................................................... 30
Figura 4 Esttua do dinossauro na praa de Novo Airo ........................................................ 31
Figura 5 Centro de Atendimento ao Turista de Novo Airo (CAT) ......................................... 32
Figura 6 Monumento na entrada de Novo Airo (AM) ............................................................. 34
Figura 7 Placa da Prefeitura de Novo Airo .............................................................................. 35
Figura 8 Matria Portal Uol ........................................................................................................... 36
Figura 9 Descobrindo o Amazonas ............................................................................................. 36
Figura 10 Portal Brasil ................................................................................................................... 37
Figura 11 Flutuante dos Botos ..................................................................................................... 73
Figura 12 Pgina Ama Boto.......................................................................................................... 75
Figura 13 Formulrio de controle e monitoramento de visitantes do flutuante .................... 76
Figura 14 Pgina Oficial do Festival dos Botos do Sair ......................................................... 80
Figura 15 Campanha Alerta Vermelho na Praia da Ponta Negra .......................................... 88
Figura 16 Frame da matria que foi ao ar pela Rede TV ........................................................ 89
Figura 17 Revezamento da tocha olmpica pelo Amazonas ................................................... 90
Figura 18 Fotograma do documentrio com cena da caa ao peixe-boi .............................. 92
Figura 19 Castanho, peixe-boi no tanque do CPPMA ............................................................. 93
Figura 20 Filha da Marilda alimentando os botos ..................................................................... 96
CAMINHOS A PERCORRER
UMA NOVA VISO DE MUNDO... ........................................................................... 15
1 ACENDENDO A PORONGA ................................................................................. 18
2 A PARTIDA: ABRINDO CAMINHOS... ................................................................. 27
2.1 AIRO VELHO .................................................................................................... 38
3 ENTRONCAMENTOS E ATRAVESSAMENTOS: PERCORRENDO A TRILHA
INVESTIGATIVA ....................................................................................................... 45
3.1 A COMUNICAO COMO CINCIA ................................................................... 50
3.2 A COMPLEXIDADE DO OLHAR ECOSSISTMICO ........................................... 55
3.3 O IMAGINRIO AMAZNICO NA CONSTRUO DA REALIDADE .................. 60
4 FILHOS DO ENCANTADO .................................................................................... 71
4.1 CONEXES E ENTRELAOS: O DESAFIO ECOSSISTMICO ........................ 93
5 SINGRANDO OS RIOS.......................................................................................... 97
6 UM PONTO DE CHEGADA, UMA NOVA PARTIDA ........................................... 104
REFERNCIAS ....................................................................................................... 110
15
UMA NOVA VISO DE MUNDO...
A apresentao deste estudo que trata da compreenso do fenmeno
ecossociocultural do boto vermelho1 em Novo Airo (AM) se faz necessria por trs
razes. A primeira delas se prope a convid-lo a participar de uma viagem: uma
busca de caminhos para uma pesquisa cientfica na Amaznia. E quando falo desse
territrio/espao emblemtico, no me refiro apenas s suas dimenses reais ou aos
superlativos que lhe so atribudos. Refiro-me, principalmente, Amaznia que se
manifesta de uma maneira muito peculiar, como nos movimentos de subida e descida
dos rios, na cadncia dos ciclos naturais que, de certa forma, ditam o ritmo da vida,
entre elas a dos seres humanos (TOCANTINS, 1973). Esse ambiente complexo no
qual estamos imersos nos permite enxergar os fenmenos da natureza e da cultura
por meio de um olhar tambm de dentro, certamente, um olhar mais amaznico.
Imbuda por uma viso de mundo inclusiva que acolhe a diversidade da vida e
suas relaes com o ambiente, busquei aprofundar os conhecimentos sobre a
Amaznia me descobrindo enquanto pesquisadora em formao e como amaznida,
por estar convencida de que o olhar ecossistmico existe porque tudo est
entrelaado.
O segundo ponto que destaco sobre a escolha das denominaes que
organizam este estudo e funcionam como rota desta viagem. Uma vez que se trata de
um estudo a partir da compreenso ecossistmica, optei por utilizar uma proposta de
Caminhos a Percorrer como Sumrio, por entender que essa pesquisa no est
engessada, ela continua se delineando e se construindo para acompanhar os fluxos
que este estudo pode oferecer.
Na introduo, renomeada como Acendendo a Poronga, fao referncia aos
ribeirinhos, pescadores e seringueiros que amarram lamparinas na cabea com o
intuito de iluminar os caminhos dos rios e da floresta nas madrugadas. Essa referncia
no se d ao acaso. Ao acompanhar o movimento dos pesquisadores na Amaznia,
percebo que a comunicao sempre foi realizada por meio de caminhos, rios,
florestas, igaps. E esses caminhos geralmente so trilhados com o uso da poronga2,
1 Na Amaznia existem dois tipos de botos de gua doce: o boto Vermelho, visto como ser encantado; e o boto Tucuxi, acinzentado, menor e conhecido por ajudar os pescadores. 2 A poronga tambm pode ser vista neste trabalho como uma metfora dos conhecimentos e saberes locais.
16
instrumento de alumiar usado na caa e na pesca, que foi largamente utilizado pelos
seringueiros no processo de extrao do ltex. A partir desse raciocnio, iniciei o
captulo A Partida: abrindo caminhos..., apresentando a temtica deste trabalho. Sigo
contextualizando os estudos desvelando histrias sobre o Airo Velho. Em
Entroncamentos e Atravessamentos: percorrendo a trilha investigativa, invoquei os
aliados tericos que acompanharam esse trajeto. O captulo tambm prenuncia
reflexes acerca da comunicao como cincia, da complexidade do olhar
ecossistmico e das tecnologias do imaginrio. Filhos do encantado aborda os
entranhamentos (des)cobertos ao longo desta pesquisa. Na seo Singrando os rios,
procuro clarear as escolhas metodolgicas que delinearam este estudo. Ela buscou
acompanhar, assim como o serpentear dos rios, a cadncia que surgiu no trabalho de
campo, por entender que os rios so caminhos naturais e culturais da Amaznia, so
nossas estradas reais e imaginrias, bifurcaes lquidas e slidas ao mesmo tempo,
que acompanham o ritmo dinmico da vida. Por fim, o ltimo tpico trar Um ponto de
chegada, uma nova partida, com consideraes e recomendaes acerca do tema.
Acredito que, assim, seja possvel entrelaar os ns que envolvem este estudo a partir
das ideias que nos contextualizam.
O terceiro ponto para explicar a escolha pelo tom ensastico. O verbo
ensaiar carrega consigo a ideia de exercitar, experimentar algo, sem alcanar a
pretenso de ser definitivo, de trazer um contedo acabado. O ensaio permite a
valorizao das percepes e do ponto de vista do autor a partir de questionamentos
lcidos e crticos. Montaigne j usava o ensaio como gnero textual para expressar
seus pensamentos e ideias, mas sem se descuidar do rigor e da agudeza de anlise.
Para Adorno (1994), o ensaio uma forma de expor o pensamento, evocando
liberdade de esprito. Hoje o ensaio se configura como uma nova possibilidade textual,
a ser utilizado no somente na crtica literria e artstica, como, tambm, na filosofia e
nas cincias. Paviani (2009, p. 05) refora que o ensaio a escolha dos que preferem
a liberdade de expresso, pois, para ele, este gnero textual,
ao contrrio do tratado e do artigo cientfico, desenvolve os argumentos ensaisticamente, isto , experimentando, questionando, refletindo, criticando o prprio objeto de estudo. um gnero textual essencialmente crtico e interpretativo. Esquiva-se da descrio e da explicao para eliminar qualquer trao de ingenuidade e de doutrina. Sua funo mostrar as mediaes.
17
Assim, vejo o ensaio como uma proposta que se entrelaa ao pensamento
ecossistmico por poder mostrar as mediaes, considerando a complexidade dos
fenmenos e o movimento das ideias e se apresentando de uma maneira formal a
partir das exigncias do universo acadmico.
Aproveito o ensejo tambm para destacar a escolha das frases introdutrias
dos captulos com a temtica dos rios. A histria da Amaznia est diretamente
entrelaada com as nossas estradas naturais que so as vias aquticas por onde
transita a vida, quer seja do colonizador, do ribeirinho, do boto, do peixe-boi ou dos
seres mticos. Os rios norteiam nossos caminhos e devaneiam nossos pensamentos
e, sobretudo, so fonte de vida, alimento e sustento. So profundos e, ao mesmo
tempo, efmeros, so legtimos em suas nascentes e ali adiante se encontram, mas
nem todos se misturam. Alguns geram bifurcaes, outros se agigantam em igaraps,
delineiam ilhas e, por fim, desembocam, mas nunca se acabam... Essa exuberante
bacia hidrogrfica engendra elucubraes seminais feito estrela cadente. Deslumbro-
me diante de sua grandeza e, dessa forma, procurei reverenciar as marcas ancoradas
em mim. Eu rio-me.
A perspectiva ecossistmica me encorajou a olhar o mundo de uma maneira
diferente, ou seja, percebo hoje que no estou isolada do meu objeto de pesquisa, ao
invs disso, somos parte e todo da mesma rede, que gera novos conhecimentos e
novos saberes. Este estudo um caminho que almejei percorrer. Ele uma forma de
declarar minha paixo por essa terra no sentido de contribuir com os estudos da
comunicao no mbito dos ecossistemas comunicacionais por intermdio do
imaginrio amaznico.
18
1 ACENDENDO A PORONGA
Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo. Olha para trs, para toda a jornada, os cumes, as montanhas, o longo
caminho sinuoso atravs das florestas, atravs dos povoados, e v sua frente um oceano to vasto que entrar nele nada mais do
que desaparecer para sempre. Mas no h outra maneira. O rio no pode voltar. Ningum pode voltar.
Voltar impossvel na existncia. Voc pode apenas ir em frente.
O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. (O rio e o oceano, Osho.)
Pensar a pesquisa cientfica na Amaznia requer um olhar aguado de razo
e, tambm, de sensibilidade acerca de suas singularidades e universalidades. S
assim possvel reconhecermos a relao complexa e indissocivel entre a natureza,
os seres vivos e suas culturas. preciso considerar suas dimenses territoriais, sua
intensidade cultural, seu trajeto histrico e seus ecossistemas entrelaados ao planeta
e ao cosmos. Sob esse ponto de vista, este estudo prope uma compreenso
ecossistmica do imaginrio em Novo Airo (AM) a partir do fenmeno do boto, uma
figura multifacetada, que ora se apresenta como atrao para o turismo, ora como
ente encantado. Este estudo tem abrigo no Programa de Ps-Graduao em Cincias
da Comunicao (PPGCCOM) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que
tem como rea de concentrao os Ecossistemas Comunicacionais. Este trabalho se
insere no mbito da linha de pesquisa 2: Linguagens, Representaes e Estticas
Comunicacionais.
A rea de concentrao do Programa prope uma compreenso
contempornea e desafiadora em contraponto ao pensamento cientfico tradicional
acerca dos estudos das Cincias da Comunicao. Ela permite uma nova forma de
se fazer cincia, pois articula a diversidade de olhares sobre a Amaznia, no apenas
no sentido de repensar o pensamento amaznico e sua formao sociocultural, mas
de reconhecer as multiplicidades e as particularidades desse ambiente e,
principalmente, de assumir a responsabilidade que temos em discutir e disseminar o
conhecimento cientfico produzido aqui. Assim, possvel observar os fenmenos
locais e suas interconexes e, para isso, o pesquisador precisa estar disposto a
questionar conceitos canonizados em busca de evidenciar essa nova compreenso.
Evidenciar, sim! Acreditamos que a compreenso ecossistmica cria uma
abertura para uma nova perspectiva: o olhar epistmico-metodolgico sobre os
19
fenmenos socioculturais no mbito da comunicao. Essa perspectiva reconhece
que preciso sentir, cheirar, participar, viver, se entranhar e considerar que tudo ao
nosso redor comunica, se expe, se diz e se entrelaa... E esses entrelaos s se do
por meio dos fenmenos comunicativos, uma complexa e rica interao de sistemas
autopoiticos (MATURANA; VARELA, 2007). Os bilogos chilenos citados
desenvolveram a teoria da autopoiese, uma construo conceitual que observa a
autonomia dos organismos vivos por sua capacidade de reproduo, autossuficincia
e adaptao ao ambiente. essa circularidade que mantm a vida. So teias de
relaes que se estabelecem nas interaes com o ambiente. com o intuito de
compreender as redes comunicacionais que envolvem os fenmenos relacionados
linguagem e representaes que se evidencia a abordagem ecossistmica pretendida
por este estudo, por entendermos que a proposta metodolgica que emerge do
pensamento ecossistmico contextual. Ela no observa os elementos ou fenmenos
isoladamente e, sim, as relaes que se estabelecem dentro de um contexto e as
transformaes que os fenmenos desencadeiam nas realidades.
Fazer cincia na Amaznia nos desafia a assumir esse novo olhar. Ela nos
inclina a um pressuposto conceitual que nos permita conectar conhecimentos e
saberes para compreender o que acontece ao nosso redor e, por consequncia, o que
se reverbera dentro de ns. um olhar amplo e ao mesmo tempo profundo, que
permite a pluralidade de pensamentos, e no uma viso unilateral fragmentada e
desconexa do real e do virtual. um caminho em construo, pelo qual se busca
conexo com outras reas, entrelaando, assim, os estudos do pensamento
complexo.
um olhar que surge como proposta para tentar dar conta de se fazer cincia
na complexidade amaznica e que almeja no somente brotaes de pensamentos
cientficos e florescimento no cenrio da cincia com a produo de conhecimento
novo, mas que pretende interagir com os frutos dos estudos de ontem e de hoje,
produzidos na e para a Amaznia, a fim de que eles sejam polinizados3, amplamente
discutidos, desenvolvidos, amadurecidos, colhidos e disseminados. Os pesquisadores
3 A ideia de polinizao nos remete ao processo de transporte do plen entre as plantas realizado especificamente pelas abelhas. Esse processo se configura como um dos principais mecanismos de promoo e manuteno da biodiversidade. Alm disso, o termo tambm faz aluso ao mel produzido pelas abelhas a partir da diversidade do nctar das flores, tema bastante utilizado por Morin (1997) em suas explicaes sobre a diversidade da vida. Uma metfora do conhecimento que se alia ao pensamento ecossistmico.
20
que se embrenham por esses caminhos de entrecruzamentos para pesquisar essa
realidade complexa e diversificada evidenciam esse olhar porque rompem com os
parmetros e delimitaes da pesquisa fragmentada e normativista.
Propomo-nos a esse desafio certamente. E por essa razo que, ao invs de
seguir a tradio clssica de uma introduo, apresento a ao de acender a poronga,
para alumiar os conhecimentos adquiridos ao longo do perodo do curso de Mestrado,
mas sem desconsiderar o conhecimento de mundo vivenciado em ser amaznida, as
marcas pessoais e acadmicas de minha trajetria e as inquietaes que me
trouxeram at aqui. Tudo faz parte de uma rede que se tece a muitas mos, de uma
teia que vai se construindo e desconstruindo outras para formar o que somos agora
eu e o meu antes sujeito-objeto de pesquisa. E, ao perceber essas teias, pude
compreender melhor os caminhos percorridos e as escolhas feitas...
Cresci vivenciando a Amaznia. Lembro-me das viagens que fazia com meus
pais pelo interior do Estado. Algumas deixaram fortes lembranas, como o Festival do
Peixe Ornamental que acontece em Barcelos. Por l, Cardinal e Acar-Disco, os dois
peixes concorrentes, apresentam-se e disputam o ttulo de melhor do ano. Nessas
viagens de barco, cada paisagem era fotografada em minha memria. Era o meu
emaranhado de memrias se formando. Fechando os olhos ainda consigo recordar o
cheiro do mato molhado, o barulho da gua batendo no casco do barco e lembrar das
pessoas em suas janelas acenando para os passantes.
Com meu ba de lembranas da infncia aberto, vou retomando por meio da
memria o imaginrio de minhas vivncias amaznicas. Consigo recordar tambm do
cheiro de um livro da minha me, com pginas amareladas e envelhecidas, j sem
capa, mas daqueles capazes de nutrir nossa imaginao... Um livro de lendas que j
havia passado por muitas mos e habitado diversas histrias contadas aos primos.
Em nossas brincadeiras de criana, eu gostava de ler e recriar as estrias. Nelas, o
Boitat podia encontrar a Yara no fundo do rio, ou o Mapinguari se juntar ao Curupira
para formarem uma espcie de liga verde da justia. Foi assim que conheci as lendas
do Boto, da Vitria-rgia, do Guaran, da Cobra grande e da temida Mo de cabelo,
uma senhora de cabelos nas mos e que aparece para quem no quer dormir na hora
que os pais pedem. Pensar na mo de cabelo era uma realidade mais aterradora e
mais eficiente que contar carneirinhos...
21
Assim fui construindo vrios personagens e conhecendo traos de nossas
razes. Um interesse que foi crescendo ao longo dos anos e me aproximando das
manifestaes culturais do imaginrio amaznico. Aos poucos fui conhecendo as
festas populares e me encantando ao perceber como os costumes e tradies esto
organicamente presentes em nosso cotidiano e so, muitas vezes, inconscientemente
incorporados na medicina, na msica, na dana, na gastronomia e na nossa forma de
falar. Hbitos como o de dormir em redes ou o de comer farinha, que nos so to
comuns, foram herdados dos costumes indgenas, assim como boa parte dos mitos e
lendas envolvendo os seres encantados, os animais e a floresta. Lendas e mitos que
so criados para explicar a vida que no se explica em sentenas cristalizadas.
Essas expresses culturais contribuem para a formao da nossa essncia e
constroem nossas subjetividades. Assim, vamos criando nossos significados e
formando um repertrio de sentidos. A vivncia e o aprofundamento por meio da
leitura e da pesquisa permitem juntar as coisas na tentativa de compreender a vida.
No lembro exatamente quando comecei a me interessar pela pesquisa. Em
meio aos meus lampejos de memria, apenas consigo relacionar a palavra
Enciclopdia Barsa. Eu era levada pela curiosidade a buscar assuntos que iam alm
das atividades escolares. Barsa e papel almao eram meus companheiros das tardes.
Eu lia por prazer, lia para sonhar. Meu pai fazia questo de ter sempre as atualizaes
dos volumes, eu era a traa da casa.
No meu mundo, tudo tinha que ter uma explicao. Nessa iluso de completude
fui construindo minhas verdades e ampliando meu conhecimento com a inteno de
entender tudo ao meu redor. Foi lendo sobre a formao do universo e o big bang que
me deparei com estudos sobre a lua. Fui alm das pesquisas sobre as fases e os
eclipses, eu queria entender a influncia da lua na vida das pessoas, no crescimento
dos cabelos, nas colheitas, nos nascimentos etc. Fui levada pelos livros s
Ykamiabas, a temida tribo de mulheres guerreiras que viveram na Amaznia e s
tinham contato com homens em perodos determinados apenas para procriao. Nas
narrativas do Frei Gaspar de Carvajal, que acompanhou Orellana em sua expedio,
no sculo XVI, podemos encontrar relatos sobre as Amazonas, como o dos ndios
Omaguas, que diziam que nas bandas do Norte, aonde iam uma vez por ano, havia
umas mulheres, e ficavam com elas dois meses, e se dessa unio tinham parido filhos,
22
os traziam consigo, e as filhas ficavam com as mes (CARVAJAL; ROJAS; ACUA,
1941, p. 111).
Segundo esses relatos, as Ykamiabas escolhiam seu parceiro e aps o ritual,
as ndias entregavam um amuleto chamado Muiraquit, uma pedra de cor verde que
era retirada do fundo de um lago e moldada em formato de sapo. O talism
representava coragem, atraa sorte e promovia a cura de doenas. A magia do
amuleto transformou-o em uma pea cobiada e cheia de mistrios (MELO, 2004). As
pesquisas me deixaram ainda mais apaixonada pela Amaznia, pela Lua e pelo mito
das mulheres guerreiras. Em uma viagem Terra Santa (PA) em 2012, comprei um
Muiraquit original, pea de colecionador que me acompanha em momentos
importantes e decisivos.
A pesquisa levou-me tambm a percorrer os bancos da academia por duas
vezes: fui acadmica dos cursos de Letras Lngua e Literatura Inglesa e de
Comunicao Social Jornalismo, talvez ainda levada pela ideia de querer entender
e explicar todas as coisas, mas principalmente pelas inmeras inquietaes que isso
me causava. Dizem por a que toda inquietao criativa. Em meus pensamentos
perturbadores, eu me perdia no mundo das ideias. Era preciso buscar mais
entendimento, partir para a abstrao.
Durante a graduao de Jornalismo, participei de alguns congressos da
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao (INTERCOM),
evento que rene alunos de graduao e ps-graduao, pesquisadores e
profissionais da rea. Apresentei artigos cientficos nos grupos de Intercom Jr., em
que acadmicos se renem para discutir suas pesquisas. Esses congressos so muito
mais que encontros de pessoas e de ideias, so momentos de valorizao do trabalho
acadmico que proporcionam uma aprendizagem efetiva por meio da troca de
diferentes olhares para compreender o mundo. Possibilitam-nos conhecer melhor o
nosso lugar por estarmos em contato com o outro. um conhecimento que
produzido para alm da cincia dos jalecos brancos, da fico cientfica ou dos
laboratrios. Essa experincia me aproximou ainda mais do universo acadmico e me
direcionou para o aprofundamento nessa rea.
Decidi participar da seleo para entrar no Programa de Ps-graduao em
Cincias da Comunicao (PPGCCOM) da UFAM em busca de mais conhecimento.
Passei e, imediatamente, tive que me debruar sobre as teorias, pois a rea de
23
concentrao do programa, Ecossistemas Comunicacionais, nica no pas e
apresenta uma abordagem desafiadora.
Durante as primeiras semanas de mestrado, vivi um verdadeiro caos
intelectual, fiquei deriva tentando acompanhar aqueles conceitos novos e percebi
que era preciso reconhecer a minha ignorncia, o meu estgio de misria intelectual.
Passei por uma espcie de desiluminismo acadmico e tive que romper com as
tradies tericas que me acompanhavam numa nica verdade. Desconstru meus
conceitos ao perceber que nada se encerra, tudo est em processo num devir
incessante. Ao observar o mundo a partir de uma nova concepo da realidade
compreendi que pesquisar tambm um caso de devir. Sob o mesmo pretexto de
transformao e num compasso de atitude autopoitica, busquei desfragmentar meus
conhecimentos e juntar as coisas. Tudo fez mais sentido assim. Depois que se
conhece o pensamento ecossistmico, voc passa a ver o mundo a partir de outra
perspectiva. Quando voc compreende a cincia como parte da rvore do
conhecimento e passa a enxergar as interaes, voc entra em um processo de
imerso total, o olhar ecossistmico permanece impregnado, voc j no olha mais
pela janela da mesma forma.
A dureza do ser metdico no mais legitimada pelas verdades irrefutveis. O
processo de aprendizagem se d enquanto aprendemos vivendo e vivemos
aprendendo. E nessa aventura de desconstruir vamos questionando o que est ao
nosso redor, o meio ambiente. A propsito, por que meio ambiente? H uma metade
homem, metade natureza? Ser que no nos misturamos? Dessa forma, dividimo-
nos? So tantas conexes que no observamos, mas que apresentam relao direta
com o sistema de vida das pessoas. Apenas ao perceber o meio ambiente por inteiro
que podemos ser capazes de enxergar as interaes. Nosso corpo, por exemplo,
capaz de produzir vitamina D, elemento importante na preveno de doenas, apenas
pelo contato com o sol; para sobreviver, todos os organismos precisam de energia,
que obtida a partir dos alimentos, numa cadncia chamada cadeia alimentar; a
cadeia de produo de alimentos comea com as rvores, que transformam a energia
do sol em energia qumica; a manuteno da vida se d tambm por meio do
movimento das guas na natureza: o ciclo hidrolgico determina a variao climtica
que interfere no funcionamento dos rios, mares e oceanos e no desenvolvimento de
plantas e animais.
24
a interdependncia da vida em que homem e natureza no podem ser
separados. Nesse contexto, a ideia de ambiente equilibrado questionada pelo novo
pensamento cientfico. Essa constante busca pela harmonia nos leva a vias
contraditrias, entropia, esta tendncia universal que nos leva da ordem
desordem. A partir desse pensamento, o equilbrio se torna acomodao.
necessrio o caos. importante que as vontades se choquem para que as ideias
avancem. O equilbrio da natureza um equilbrio dinmico, e dessa forma tambm
que devem ser compreendidos a cultura e o imaginrio.
Parafraseando Morin, estamos em processo de ampliao do conhecimento
cientfico. Assim, a cincia tem o papel fundamental de oferecer melhorias para a
sociedade, para os indivduos e para o ambiente. A partir da viso
ecolgica/ambiental/cultural dos ecossistemas comunicacionais surge a proposta de
desenvolver um conhecimento contextualizado.
Eco vem do grego e quer dizer morada/habitat, a morada do sistema
evidencia a rede, o n e o ns. Aqui, por exemplo, estamos diante de um pensamento
que entrelaa o fenmeno comunicacional e as interaes que se estabelecem a partir
dele. uma ideia em construo que permite que a sabedoria dos beirades encontre
dilogo com os tericos promovendo a cincia para o bem comum.
preciso encontrar novas formas de compreenso para a cincia e para a vida,
necessrio discutir a cincia para buscar conhecimento num movimento que possa
desfragment-lo. E, assim, criar alternativas que reposicionem o ser humano no
ambiente em vez de dissoci-los um do outro. E isso tambm vale para os estudos da
comunicao.
Como no perceber, por exemplo, a mudana no olhar da comunicao diante
do apresentador do Jornal Hoje4, Evaristo Costa, se emocionando ao vivo com o
depoimento de um pai que perdeu o filho aps ser espancado at a morte? Ou do
reprter Ari Peixoto chorando ao dar a notcia da morte do colega de trabalho
Guilherme Marques na tragdia com o avio que levava o time da Chapecoense?
difcil manter a exigncia de imparcialidade da notcia quando o jornalista est no
conflito ou sente empatia pelas pessoas envolvidas. o lado humano, real, que se
coloca no lugar do outro. Ser que esses profissionais deixaram de ser ticos por que
4 Jornal Hoje um telejornal nacional produzido pela Rede Globo que vai ao ar no incio das tardes. O programa exibido de segunda-feira a sbado e, atualmente, ancorado por Sandra Annenberg e Dony De Nuccio.
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no conseguirem conter a emoo? Ser que as pessoas que estavam assistindo
condenaram essa atitude e desligaram suas televises? Ser essa uma mudana no
fazer jornalstico? Estamos preparados para essa mudana?
As prticas jornalsticas vm se alterando ao longo dos ltimos anos, e
principalmente a revoluo tecnolgica tem aberto espao para novas formas de
fazer. As aspas continuam sendo fundamentais, mas, nos ideais de objetividade e de
imparcialidade, abrem-se brechas para narrativas que carregam emoo, afeto,
memria e sentidos. Jornalistas explicam o mundo por meio de palavras, mas no s
de palavras. As palavras so instrumentos de uma linguagem. O jornalismo um
hipertexto com falas, luz, som, gestos etc. na maneira de perceber os fatos
humanamente que aparece a sensibilidade. Cada histria, ao mesmo tempo que
particular, de todos ns, so histrias que nos representam. Nessa complexa teia
comunicacional, esses profissionais investigam situaes, fatos, problemas e
comportamentos que so percebidos por seu potencial valor comunicativo.
Repensar a comunicao subverter a lgica das verdades absolutas, dos
fatos descontextualizados e da atrofia de ideias. se aproximar das singularidades
para tornar mais preciso o nosso processo de conhecimento. Mas, para isso,
precisamos estar dispostos s novas possibilidades, criando alternativas em um
movimento que possa fluir como nossos rios.
Lembrei-me de um dos encontros da Usina de Saberes Amaznicos com a
professora Dra. Maria Luiza Cardinale Baptista5, em que ela declamou o poema de
Osho, que acompanha o ttulo dessa introduo e versa sobre o encontro do rio com
o oceano. H momentos em que nos deparamos com a vastido nossa frente. So
tantas leituras, discusses e reflexes ao longo da jornada que um curso de
mestrado. Muitas vezes me vi em situaes de insnia aps dialogar com Morin,
Capra, Boaventura. Como dormir depois de conversar com Kuhn sobre a Estrutura
5 A professora Maria Luiza Cardinale Baptista possui doutorado em Cincias da Comunicao pela Universidade de So Paulo (2000). Atualmente professora e pesquisadora do Programa de Ps-graduao em Turismo e Hospitalidade e do Curso de Comunicao Social da Universidade de Caxias do Sul (UCS). tambm pesquisadora visitante snior da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde Ps-doutoranda em Sociedade e Cultura da Amaznia. Em janeiro de 2017, foi convidada a trabalhar uma disciplina no PPGCCOM, onde realizou o Projeto Usina de Saberes Amaznicos: Narrativas de Viagens Investigativas, vinculado ao Plano Estratgico de Ampliao e Qualificao da Produo Cientfica do PPGCCOM/UFAM, um movimento criativo que possibilitou aos mestrandos o desenvolvimento de seus projetos para a fase da qualificao.
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das Revolues Cientficas? Quando o rio encontra o oceano, ele treme de medo... e
no dorme. Tudo isso muito perturbador, muito perigoso.
Estamos acompanhando um grande movimento a favor da Amaznia, no s
com diversas campanhas de proteo, manuteno e preservao, mas tambm com
o envolvimento de ONGs, rgos e fundaes como Greenpeace, SOS Amaznia,
WWF Brasil e Fundao Vitria Amaznica. O tema esteve presente tambm no
horrio nobre da programao televisiva da Rede Globo6, na novela das oito, A fora
do Querer7, em que Ritinha, interpretada por Isis Valverde, era tida como filha do boto.
Na trama, a personagem nadava com os botos e afirmava at que o pai do seu filho
era o boto.
A Amaznia, esta regio universal, clama por olhares que possam contemplar
suas particularidades, que possam enxergar suas nuances. A comunicao est
aberta s novas narrativas e subjetividade. A cincia est em permanente processo
de ampliao e de mudanas. Precisamos reescrever essa histria, religando
conhecimentos, saberes e vivncias. Escrever materializar o pensamento,
oxigenar as ideias, costurar olhares. deixar o rio correr para o oceano, mas, para
isso, preciso arriscar-se... Arriscamo-nos... E, assim, acendemos a poronga para
abrir os caminhos e contemplar a construo de um novo conhecimento...
6 A Rede Globo uma rede de televiso brasileira, fundada em 1965 por Roberto Marinho, com sede no Rio de Janeiro. Transmitida em territrio nacional e internacional, a emissora tambm umas das maiores produtoras de telenovela do mundo. 7 A Fora do Querer uma telenovela brasileira que foi ao ar de abril a outubro de 2017. Produzida e exibida pela Rede Globo, a trama foi escrita por Glria Peres e abordou temas como seresmo, transexualidade e trfico de drogas. A novela atraiu a ateno da regio Norte por ter cenas gravadas em Belm, Manaus e Iranduba e por mostrar caractersticas regionais como linguajar, msicas e atores locais.
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2 A PARTIDA: ABRINDO CAMINHOS...
O vento norte Que seduz minha razo
Assobia e me banha de emoo... (Vento Norte Ariosto Braga e Jos Augusto Cardoso Boi Caprichoso, 1996).
Acredito que a inquietao o que nos move. o que move o mundo
acadmico tambm. Ela nos causa um banzeiro de sensaes e de movimentos em
direo ao desconhecido. E esses desdobramentos nos levam a percorrer caminhos
incertos. Este estudo se prope a contar a trajetria a ser percorrida em busca de
respostas e, talvez, de mais inquietaes a respeito do tema proposto.
Foi sentada beira do rio Negro, aps ministrar uma aula no municpio de Novo
Airo (AM) em 2011, que percebi meus pensamentos caminhando para essa
inquietao. Fao questo de falar sobre isso porque no consegui conviver
passivamente com essa inquietude, e foi ela que me trouxe ao Programa de Ps-
Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas,
turma de 2015.
O despertar para o tema proposto surgiu em julho de 2011, ao ministrar a
disciplina Prtica Curricular para o curso de graduao em Letras Lngua e Literatura
Inglesa pelo Plano Nacional de Formao de Professores da Educao Bsica
(PARFOR) no municpio de Novo Airo (AM). Ao trabalhar a contextualizao dos
assuntos abordados em sala de aula, experimentei traar um paralelo da realidade
dos alunos com os temas desenvolvidos na disciplina. Percebi que havia entre eles
uma preocupao relacionada imagem do municpio, que antes estava vinculada ao
peixe-boi e hoje est marcada pela figura do boto multifacetado, que se tornou uma
das atraes tursticas da cidade.
A cidade atrai muitos visitantes por suas praias de areias brancas e destaca-
se por abrigar um dos maiores arquiplagos fluviais do mundo: Anavilhanas, o qual
possui 350 mil hectares e formado por cerca de 400 ilhas (VIDAL, 2011). Tambm
chama ateno por suas histrias envolvendo o Velho Airo, a cidade fantasma que,
segundo relatos dos antigos moradores, foi invadida por formigas carnvoras, situao
que teria obrigado a populao a fugir e se restabelecer na outra margem do rio.
Rebatizada como Novo Airo (AM), a cidade est localizada na margem direita do rio
Negro, a uma distncia de 180 quilmetros de Manaus em linha reta. Novo Airo fazia
28
parte do municpio de Manaus at 1955. Atualmente, configura-se como regio
metropolitana (Figura 1) e limita-se com os municpios de Presidente Figueiredo,
Manaus, Iranduba, Manacapuru, Caapiranga, Codajs, Barcelos e Estado de
Roraima.
Figura 1 Mapa da Regio Metropolitana de Manaus
Fonte: Secretaria de Estado de Desenvolvimento da Regio Metropolitana de Manaus. Disponvel em: . Acesso em: abril de 2017.
Com a construo da ponte sobre o rio Negro em 2011, a chegada ao municpio
ficou muito mais fcil, o que ativou o turismo local nos ltimos anos. Como
antigamente era necessrio atravessar o rio em balsas, o percurso era demorado e
cansativo. Alm da opo via terrestre, pelas rodovias AM-070, a Manoel Urbano (que
faz a ligao entre Manaus e os municpios de Iranduba, Manacapuru e Novo Airo,
e depois pela AM-352 (que interliga Manacapuru e Novo Airo), tambm possvel
chegar ao municpio de barco ou lancha, a partir de Manaus.
29
Figura 2 Mapa de Novo Airo (AM)
Fonte: Portal Amaznia. Disponvel em: . Acesso em: abril de 2017.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE, 2010),
o municpio possui 14.723 habitantes com uma rea de 37.796, 238 km. Novo Airo
(AM) oferece muitas atraes para o turismo, conhecida como Paraso Ecolgico
por abrigar em seu territrio o Parque Nacional do Ja. Criado em 1980, o segundo
maior do Brasil, estrategicamente localizado na bacia do rio Ja, afluente do rio Negro.
Alm da Estao Ecolgica Anavilhanas, um dos maiores arquiplagos fluviais do
planeta, ambos fazem parte do Complexo de Conservao da Amaznia Central e
foram reconhecidos pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia
e a Cultura (UNESCO United Nation Educational, Scientific and Cultural
Organization) como Patrimnio Mundial Natural, segundo informaes do Portal
Brasil8.
8 O Portal Brasil um site do Governo Federal que rene contedos de todos os ministrios e secretarias.
http://portalamazonia.com/noticias-detalhe/turismo/cidade-dos-botos-saiba-como-chegar-em-novo-airao/?cHash=3c56e70e46eb55d4b04118272fe225e9http://portalamazonia.com/noticias-detalhe/turismo/cidade-dos-botos-saiba-como-chegar-em-novo-airao/?cHash=3c56e70e46eb55d4b04118272fe225e9http://portalamazonia.com/noticias-detalhe/turismo/cidade-dos-botos-saiba-como-chegar-em-novo-airao/?cHash=3c56e70e46eb55d4b04118272fe225e9
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Figura 3 Dados gerais IBGE Municpio de Novo Airo
Fonte: IBGE. Disponvel em: . Acesso em: abril de 2017.
O artesanato produzido na regio, com destaque para os produtos em madeira
e fibras naturais, tambm atrai os turistas. Na terra indgena Waymiri-Atroari,
localizada no municpio, so tecidas peas de cestaria, utenslios e adornos que so
comercializados pelos prprios ndios em uma loja na sede da cidade. H tambm a
Fundao Almerinda Malaquias, que trabalha em parceria com a associao dos
artesos locais, a NovArte, e oferece cursos de artesanato para a populao. Esse
trabalho ganhou repercusso nacional com a conquista do Prmio Top 100
Artesanato Brasil, organizado pelo Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE), nas edies de 2006, 2008 e 2011.
Alm do artesanato, um outro aspecto caracterstico de cidades do interior
atraiu nossa ateno: o costume dos moradores em relao praa da cidade.
Localizada na rua principal, o local uma opo de lazer e ponto de encontro dos
moradores que utilizam a academia ao ar livre, as redes de vlei, as caladas para
caminhada e recreao das crianas. H na rea central uma parte coberta, um
http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=130320&search=amazonas|novo-airao|infograficos:-dados-gerais-do-municipiohttp://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=130320&search=amazonas|novo-airao|infograficos:-dados-gerais-do-municipio
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coreto, onde geralmente so realizados ensaios de hip hop e outras danas, e onde
montado o prespio no perodo natalino. Ainda sobre a praa no poderamos deixar
de citar a famosa esttua do dinossauro que foi erguida e se tornou um playground
para as crianas e parada obrigatria para os turistas. Perguntei aos alunos: mas,
afinal, por que tem um dinossauro na praa? A primeira resposta deles est ligada ao
fato de que arquelogos teriam encontrado fsseis animais em Novo Airo; a segunda
resposta, um tanto pitoresca, refere-se a um sonho de um prefeito que, imediatamente
ao acordar, teria decidido registr-lo erguendo a esttua do dinossauro na praa.
Figura 4 Esttua do dinossauro na praa de Novo Airo
Fonte: Arquivo pessoal.
O movimento das guas proporciona cenrios diferentes aos turistas. De
novembro a abril acontece a cheia dos rios, poca em que vrias ilhas ficam
submersas e os animais se concentram em terra firme; e de maio a outubro, a seca,
momento em que possvel conhecer as inmeras praias fluviais de areias brancas
oferecendo um panorama nico em cada paisagem. Novo Airo ficou conhecida
tambm devido qualidade na fabricao de barcos para a regio. Por isso, durante
o perodo da seca, comum encontrar s margens dos rios barcos sendo construdos.
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Essas informaes tursticas esto disponveis no Centro de Atendimento ao
Turista de Novo Airo que fica logo na entrada da cidade. L tambm esto
disponveis panfletos e flderes dos restaurantes e pousadas.
Figura 5 Centro de Atendimento ao Turista de Novo Airo (CAT)
Fonte: Arquivo pessoal.
A cidade oferece muitos atrativos para os turistas, como os supracitados.
Contudo, nos ltimos anos, outra atrao tem causado fascnio entre os visitantes: o
boto vermelho. O municpio ganhou notoriedade e passou a ser conhecido como a
terra do boto cor-de-rosa9, recebendo visitantes do mundo inteiro que querem
conhecer os golfinhos de gua doce da Amaznia, como tambm so popularmente
chamados. E justamente desse quesito que emana a inquietao, a configurao
da problemtica deste estudo. Inicialmente percebo que Novo Airo (AM) uma
cidade dividida entre a representao miditica de dois smbolos: um reconhecido
pelas instituies oficiais, que o peixe-boi; e o outro, mais reconhecido pelos turistas
e visitantes e tambm por parte da populao local, que o boto multifacetado em
personagem do imaginrio dos encantados10 da Amaznia e como produto turstico.
9 No documentrio Amaznia, viagem a mil rios, Jacques Cousteau refere-se ao boto vermelho como boto cor-de-rosa. Ao ser veiculado na televiso brasileira e europeia, a expresso passou a ser largamente popularizada, tornando-se, inclusive, tema de msica infantil em 1990. 10 Os Encantados, segundo Slater (2001, p. 203), esto intimamente ligados a uma mirade de guardies da floresta. So seres que habitam os rios e igaraps e se escondem nas matas. Possuem
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Esses, possivelmente influenciados pela mdia, que neste trabalho ser tratada como
tecnologias do imaginrio, abordagem terico-metodolgica desenvolvida por Silva
(2006).
O peixe-boi se tornou emblemtico no municpio em razo da abundncia da
espcie que havia na regio. At bem pouco tempo, a caa a esse e outros animais,
como tartarugas, macacos, aves e vrias espcies silvestres, era livre na Amaznia.
O peixe-boi s passou a ser resguardado a partir de 1967 pela Lei de Proteo
Fauna. Antes disso, os animais eram capturados para o consumo da carne,
considerada uma iguaria da culinria local, inclusive, mencionada nos registros de
viagem do padre Jos de Anchieta11, em que destaca: muito bom para se comer e
mal se pode distinguir se carne ou se antes se deve considerar peixe. (VIOTTI,
1984, p. 35). J o couro do peixe-boi, por ser muito resistente, tambm era aproveitado
para fazer correias para mquinas. At a banha do animal, alm de se transformar em
graxa para maquinrio, j serviu de combustvel para as lamparinas que iluminavam
as ruas antes da energia eltrica (MAMIRAU, 2013). Em 1967, a caa foi proibida.
No entanto, a espcie est ameaada de extino.
O visitante, ao chegar em Novo Airo (AM), encontra um monumento com o
braso do municpio apoiado em dois peixes-bois.
um corpo humano e um corpo animal, suas manifestaes, ou aparies so conhecidas como encantarias e seus lugares de morada so designados como encantes. 11 Missionrio jesuta que participou de misses religiosas na Amaznia, no perodo do Brasil Colonial sculo XVII.
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Figura 6 Monumento na entrada de Novo Airo (AM)
Fonte: No Amazonas assim. Disponvel em: . Acesso em: abril, 2017.
Na dcada de 1980, havia um aqurio com chafariz e peixes-bois na praa
principal da cidade. Foi desativado por determinao do Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA) por no oferecer os cuidados
de tratamento digno de acordo com as normas do rgo para a criao de animais em
cativeiro.
H, tambm, um festival folclrico em homenagem ao peixe-boi, j em sua
vigsima segunda edio, protagonizado pelos grupos de brincantes das agremiaes
Ja e Anavilhanas, os quais disputam o ttulo de campeo do ano com apresentaes
temticas que hoje evidenciam a preservao do meio ambiente. Paradoxalmente,
esse festival surgiu para celebrar os caadores que mais capturavam peixes-bois,
como um prmio de reconhecimento pblico pelos seus feitos.
Consta na Lei orgnica do Municpio de Novo Airo, de 05 de abril de 1990, no
Artigo 39: Que sejam fixados em lei, nos termos do Art. 24, inciso VII da Constituio
da Repblica, os Stios Arqueolgicos, a localidade de Airo e o Festival do Peixe-Boi,
considerados patrimnio histrico, artstico e cultural, os quais sero protegidos pelo
Poder Pblico Municipal. E tambm h o desenho de um peixe-boi na placa indicativa
de localizao da Prefeitura de Novo Airo.
http://noamazonaseassim.com.br/novo-airao/
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Figura 7 Placa da Prefeitura de Novo Airo
Fonte: Arquivo pessoal.
notria a presena do peixe-boi enquanto smbolo de Novo Airo (AM). No
entanto, a cidade passou a ser conhecida como terra do boto cor-de-rosa certamente
por influncia da mdia na divulgao do boto domesticado por ribeirinhos da cidade.
A seguir, podemos acompanhar alguns trechos de matrias em portais e sites
que evidenciam o boto como atrao turstica. A primeira delas, do Portal Uol (Figura
8), destaca: Terra do boto cor-de-rosa, Novo Airo cercada de ilhas e belas
paisagens; no site Descobrindo o Amazonas (Figura 9), o destaque vai para a imagem
do boto interagindo com os turistas; e no Portal Brasil (Figura 10), o ttulo sugere:
Interao com botos atrao turstica em Novo Airo (AM).
36
Figura 8 Matria Portal Uol
Fonte: Uol Viagem. Disponvel em: . Acesso em: abril, 2017.
Figura 9 Descobrindo o Amazonas
Fonte: Descobrindo o Amazonas. Disponvel em: . Acesso em: abril, 2017.
http://viagem.uol.com.br/guia/brasil/manaus/roteiros/terra-do-boto-cor-de-rosa-novo-airao-e-cercada-de-ilhas-e-belas-paisagens/index.htmhttp://viagem.uol.com.br/guia/brasil/manaus/roteiros/terra-do-boto-cor-de-rosa-novo-airao-e-cercada-de-ilhas-e-belas-paisagens/index.htmhttp://descobrindooamazonas.webs.com/novoairo.htm
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Figura 10 Portal Brasil
Fonte: Portal Brasil. Disponvel em: . Acesso em: abril, 2017.
O meu interesse por esse tema surgiu desses paradoxos que geraram alguns
questionamentos. Como as narrativas que envolvem esse fenmeno relacionado
linguagem e s representaes sociais desenvolveram esse imaginrio? Como se
manifesta o imaginrio envolvendo o boto vermelho e as suas relaes com a cidade?
Ser que a relao com a mdia provocou essa mudana e reconfigurou o fenmeno
do boto encantado?
As respostas para essas perguntas devem contribuir para um novo
entendimento das relaes entre as populaes da Amaznia com as tecnologias do
imaginrio e os interesses econmicos e culturais globalizados. possvel inferir,
todavia, que o aparecimento do boto multifacetado nesse contexto pode estar
relacionado com as contradies da prpria mdia que, numa viso globalizante,
almejaria a hegemonizao das culturas. Hegemonia essa que nem sempre
conquistada em razo das foras das culturas e dos saberes locais que se articulam
tambm por meio de prprias redes e processos comunicacionais e, assim, acionam
seus valores morais, suas ticas, seus smbolos de identidade e identificao, suas
linguagens e suas estticas. importante conferir e compreender os fenmenos
http://www.brasil.gov.br/turismo/2015/01/interacao-com-botos-e-atracao-turistica-em-novo-airao-amhttp://www.brasil.gov.br/turismo/2015/01/interacao-com-botos-e-atracao-turistica-em-novo-airao-am
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socioculturais que surgem desses conflitos de vises de mundos distintos, porm
complementares, antagnicos e concorrentes (MORIN, 2005). Nesse sentido,
buscamos contextualizar as mltiplas significaes do fenmeno do boto em Novo
Airo (AM) a partir da compreenso ecossistmica e dos estudos do imaginrio. E
para compreender o contexto em que o fenmeno est inserido, convido-o a voltar no
tempo e conhecer um pouco da histria do Airo Velho.
2.1 AIRO VELHO
A primeira vez em que ouvi falar de Novo Airo instigou-me saber o porqu da
palavra novo. Se o novo remete ao antigo, ento existiu um Airo antes, que deve
ter deixado seus vestgios e pegadas. Tive vontade de conhecer as runas da cidade
original para descobrir o que havia acontecido com ela. Em pesquisas preliminares,
encontrei algumas histrias sobre o Velho Airo, mas me pareceram muito rasas e
sem confiabilidade. Acredito que para compreender melhor meu objeto de estudo
necessrio contextualiz-lo, observando as interaes que existem entre os seres
humanos, o ambiente e seu imaginrio, como eles se relacionam e se comunicam
entre si, como acentua Morin: Conhecer o humano no separ-lo do universo, mas
situ-lo nele. Todo conhecimento, para ser pertinente, deve contextualizar seu objeto.
(MORIN, 2005, p. 37).
Airo foi uma das primeiras povoaes nas margens do rio Negro, sendo mais
antiga que a primeira capital do Amazonas, Barcelos. A cidade, poca de sua
existncia, foi importante como um porto de recebimento e distribuio da borracha
em razo da sua localizao estratgica.
Atualmente conhecida como cidade fantasma, tendo vrias verses para
explicar o seu abandono. A mais pitoresca delas a mais difundida e pode ser
encontrada no Portal Amaznia (2011):
A histria da cidade comeou no final do sculo 19, com um devastador ataque de formigas. O incidente aconteceu na comunidade de Airo Velho, hoje uma cidade fantasma. A invaso dos insetos ao municpio obrigou a populao a se mudar para a outra margem do rio Negro. Airo Velho abriga hoje apenas runas de uma igreja, enquanto a nova sede se desenvolveu e lar de 15 mil habitantes.
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Alm da verso do ataque das formigas existem vrias outras, como: o relato
de que ataques dos ndios Waimiri-Atroari foram determinantes para o abandono da
cidade; ou a estagnao em virtude do uso no sustentvel dos recursos naturais e
do extrativismo exacerbado de drogas do serto e de madeiras, por exemplo; ou a
decadncia ocasionada pela queda do ciclo da borracha diante da produo da
Malsia, ou ainda a mudana da capital para Manaus, o que tirou Airo da rota
principal de navegao pelo rio Negro (LEONARDI, 2013).
Talvez a combinao de todos esses fatores tenha contribudo com o
despovoamento da regio, mas certo que, nessa poca, houve um grande desastre
demogrfico que dizimou vrios povos indgenas em razo das epidemias, pois os
ndios no estavam imunes s enfermidades trazidas pelos portugueses; alm do
processo de escravizao dos ndios para a mo de obra extrativista que gerou forte
resistncia e fuga, somado ao recrutamento forado para atividades de resgate e
escravizao de outros povos indgenas, o que ocasionou, por exemplo, o
enfrentamento com os Manas que foram trucidados porque se recusaram a participar
de tais atividades como aliados dos portugueses, o que tambm pode ser visto na
histria de resistncia envolvendo Ajuricaba.
O historiador Victor Leonardi (2013, p. 26), em sua obra Os historiadores e os
rios: natureza e runa na Amaznia brasileira, revela trechos de documentos e relatos
de viajantes demonstrando a preocupao de Portugal com os territrios amaznicos:
No incio do ano de 1693, o Conselho Ultramarino havia examinado em Lisboa, uma carta da Cmara do Par, na qual seus oficiais queixavam-se da grande falta de missionrios no distrito do rio das Amazonas. Segundo eles, a rea a ser evangelizada era imensa e nfimo o nmero de missionrios, o que prejudicava gravemente os to catlicos desejos de Sua Majestade.
Debruado na margem direita do rio Negro, o aldeamento dos ndios Tarum
deu incio ao povoado de Santo Elias do Ja em 1694, primeiramente com os
mercedrios, e de maneira mais efetiva com os carmelitanos que construram a igreja
de pedra em homenagem a Santo Elias, que ainda figura entre as runas do Velho
Airo.
O relato mais antigo de que se tem conhecimento sobre o povoado do frei
Vitoriano Pimentel acerca da viagem que fez no ano de 1702. Nesse perodo, Santo
Elias do Ja desenvolvia atividades missionrias e tinha sua economia com base no
extrativismo, as drogas do serto, mas no era considerada uma economia forte. O
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papel principal do povoado que foi crescendo lentamente era geopoltico, como
descrito por Leonardi (2013, p. 29) no trecho a seguir:
Santo Elias do Ja era uma fronteira, no fim do sculo XVII, a ponta mais avanada do processo de expanso (mercantilista) portugus pela Amaznia. Frei Vitoriano Pimentel sabia disso, pois um dos objetivos principais da sua viagem em 1702 era tentar convencer o padre Samuel Fritz jesuta a servio da Espanha, residente no Solimes da legitimidade das reivindicaes territoriais portuguesas sobre longos trechos desse rio.
Por sua posio estratgica, o povoado foi se estabelecendo e ganhando
sobrados, alm de atrair pessoas dos arredores para a festa do Divino Esprito Santo,
evento celebrado com muita pompa na igreja dedicada a Santo Elias do Ja. Aqui
cabe ressaltar a homenagem dos carmelitas ao seu inspirador espiritual, o profeta
Elias, que d nome ao povoado e que, segundo o Antigo Testamento, tinha o poder
de operar grandes milagres. Leonardi (2013, p. 239) destaca Quando Pedro, Tiago e
Joo perguntaram a Jesus, no monte da transfigurao, se Elias devia vir primeiro, o
mestre respondeu: Elias, quando vier primeiro, reformar todas as coisas. A escolha
emblemtica do nome do povoado, um dos primeiros nas margens do rio Negro, no
pode ser descartada nesta pesquisa ainda que seja uma informao bblica, pois o
pesquisador no pode desconsiderar que os padres carmelitas que ergueram a igreja
de pedra acreditavam que Elias viria primeiro para reformar todas as coisas, eles
carregavam expectativas de que o povoado traria melhorias para a regio.
Um processo de transformao aconteceu em 1759 quando o primeiro
governador da capitania de So Jos do Rio Negro, Joaquim de Melo e Pvoas, eleva
Santo Elias do Ja categoria de lugar, renomeado como Ayro, conforme descrito
por Leonardi (2013, p. 31):
Essa mudana de nome obedecia a uma poltica definida por Mendona Furtado, irmo do marqus de Pombal, em um momento em que a demarcao das fronteiras amaznicas entre espanhis e portugueses estava sendo feita tratados de Madri, de 1750, e de Santo Ildefonso, de 1777. Segundo essa geopoltica, os povoados amaznicos deveriam adotar nomes portugueses. Outros tinham, desde o incio, nomes desse tipo e assim permaneceram. A toponmia lusfona auxiliava, dessa maneira, os diplomas de Lisboa. Surgiram, assim, na Amaznia, localidades com nomes idnticos aos de vilas e cidades da metrpole: Silves, Santarm, Faro, Barcelos...
E assim, Mariu passou a se chamar Barcelos, e Santo Elias virou Ayro. O
sculo XVIII ficou marcado pela mudana de nomes dos povoados amaznicos e pela
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construo de fortalezas na regio. Cada vez mais expedies percorriam os rios
amaznidas, com destaque para o relato do brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira,
uma das mais importantes fontes histricas para se estudar o Ayro. De acordo com
Leonardi (2013, p. 32), Ferreira foi escolhido para chefiar uma expedio cientfica
pela Amaznia no final do sculo XVIII e descreveu com detalhes o que encontrou no
povoado:
[...] das casas, que, nessa poca, distribuam-se em trs linhas paralelas ao rio: a da frente tinha seis casas; a segunda nove, incluindo as residncias do reverendo vigrio e do diretor; a terceira linha, apenas duas casas. Havia ainda um armazm e uma casa de forno. Os 148 moradores existentes em 1786 somavam 20 brancos, 126 ndios aldeados e dois pretos escravos.
Segundo os relatos do viajante, com quase um sculo de existncia, no havia
nada na localidade que indicasse prosperidade econmica e, embora possusse uma
grande riqueza florestal, isso no se refletia em sobrados opulentos, o prprio
madeirame da igreja encontrava-se estragado.
Mas esse perodo de estagnao comeou a mudar quando a Europa e os
Estados Unidos aumentaram o consumo de produtos feitos a partir do ltex das
seringueiras para a fabricao de pneus, artefatos de borracha e materiais cirrgicos,
por exemplo. O Brasil, como maior produtor mundial, comeou a exportar a matria-
prima, e a regio amaznica, que possua o maior nmero de seringueiras nativas,
passou a receber os soldados da borracha12, imigrantes, principalmente nordestinos
que vieram para trabalhar nos seringais.
Sobre esse perodo, h um fato extremamente interessante e pitoresco: um
lugar chamado Caverna das Profecias, onde acontecia um ritual de entrada no Ja,
realizado pelos seringueiros para predizer a sorte:
Todos os seringueiros que cortavam seringa de machadinha nos rios Ja e Carabini tinham por obrigao parar sua canoa ou batelo, que eram movidos a remo ou a vela, para passar, um por um, por esse buraco. Aquele que entrasse na parte de baixo da caverna e sasse na parte de cima sem dificuldades ia fazer muita borracha e gozar de muita sade durante a safra, e passaria ainda estaria vivo o dia de So Joo do prximo ano. Porm, aquele que tivesse dificuldades para passar, ou por azar no pudesse sair, ia ter um pssimo fabrico de borracha e estava sujeito a adoecer e morrer ao
12 A denominao foi dada ao exrcito de imigrantes, principalmente nordestinos, que foi mobilizado durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) para servir na Amaznia. Os jovens em idade militar eram convocados pelo Estado brasileiro e precisavam escolher entre os campos de batalha, na Itlia; ou extrair o ltex da seringa, na Amaznia; os que escolheram se embrenhar pela floresta ficaram conhecidos como Soldados da Borracha.
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ser atacado pelo beribri e o impaludismo que assolavam os seringais, esta pessoa jamais passaria o dia de So Joo do prximo ano. (LEONARDI, 2013, p.160).
Essas singularidades demonstram as idiossincrasias amaznidas e revelam
caractersticas que no podem ser desconsideradas em uma pesquisa ecossistmica.
So especificidades locais e regionais que demonstram uma maneira de ver e sentir
que nica e que pode ser compartilhada pelos conhecedores das sutilezas
amaznicas. notrio que a histria do Airo est envolta em verses e apresenta
vrios elementos enigmticos, expresses da forma cabocla de ver a vida e da relao
do homem com a natureza. H uma fora mtica na histria de Santo Elias do Ja que
o colocava como local de esperana e que continua presente nas narrativas do Novo
Airo. Santo Elias ainda figura na nova Airo nomeando um bairro na cidade.
preciso encontrar as conexes, as pontes entre a natureza, o homem e a sua histria.
Sem isso, estaremos fadados a ver fontes de conhecimento sobre a vida e a histria
se transformando em runas, como bem destaca Leonardi (2013, p. 237):
E foi assim que o Velho Airo virou ruinas. Quando o ltimo morador, senhor Joo Bezerra de Vasconcelos Filho, abandonou a terra onde havia nascido, a pessoa que transportou sua mudana, senhor Carlos Gouva, retirou, pouco antes de partir do porto fluvial da velha povoao, a placa com o nome da rua principal. Esta placa est at hoje em sua casa no Novo Airo. Graas a esse senhor, ficamos hoje sabendo que a rua principal daquela pequena cidade em runas chamava-se rua Occidental. Esse nome concentra e expressa todos os paradoxos e contradies da histria regional amaznica: terra de ndios e caboclos, de sumamas gigantes e castanheiras generosas; mas, tambm, terra cujas elites sempre viveram de costas para a floresta e com os olhos voltados para Lisboa, Paris e Londres. Por isso, rua Occidental. Bela expresso literria de um fim que afinal se concretizou: os telhados das casas desabaram, a igreja de Santo Elias est em runas, no armazm do porto vivem borboletas e passarinhos, no cemitrio o mato cresceu, e uma grande ona do tamanho de uma anta disse-me o senhor Carlos Gouva, que j a viu passeia por ali, tranquila, soberana, atravessando de dia e de noite a antiga rua Occidental.
De acordo com o histrico do municpio encontrado no site do IBGE, em 1833
Airo Freguesia pertencente ao Termo de Manaus. Em 1938, transformada no
Distrito de Airo, ainda subordinada ao municpio de Manaus. Essa ligao com a
capital permanece por alguns anos, como descrito por Leonardi (2013, p. 153):
No se deve esquecer que, alm disso, enquanto no foi criado o municpio de Airo, em 1955 com sede posteriormente transferida para Novo Airo/Tauapessassu , essa localidade pertenceu ao municpio de Manaus,
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que capitaneava, assim, toda a poltica do baixo rio Negro na Repblica Velha.
Finalmente, em 1955 o Distrito de Airo desmembrado de Manaus e, em
1956, elevado categoria de cidade. Aps a mudana da sede do municpio, os
moradores comeam a ocupar a rea da margem direita do rio, abandonando
definitivamente o antigo povoado de Santo Elias do Ja (LEONARDI, 2013, p. 20):
No caso do Velho Airo, no houve apenas crise, houve, de fato, arruinamento, de forma total e definitiva: a cidade Airo foi elevada categoria de municpio em 1955 no tem mais nenhum morador h muitos anos, nenhuma casa cujo telhado no tenha cado, nenhuma rua com algum vestgio recente de presena humana e convvio social. A prpria rua Occidental a principal rua do Airo s transitada hoje por animais silvestres. No entanto, Airo j teve escola, prefeitura, cartrio, padaria, taverna, sobrados, armazns, lojas, duas igrejas... Hoje tudo est estragado e destrudo. Arruinamento o ato ou efeito de ficar sem recursos. Foi exatamente isso o que aconteceu com o Velho Airo ao longo dos anos: ficou sem recursos, desacreditado, dia aps dia, at perder-se, para sempre.
Segundo o blog Novo Airo em foco, quando o ltimo morador deixou a cidade,
em 1985, a Marinha do Brasil passou a usar a cidade abandonada como rea para
exerccio de tiros de seus navios at que em 2005 foi tombada pelo Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN). Nesse ponto da pesquisa surgiram
indagaes sobre como foi permitido usar um lugar to cheio de memrias para testes
de tiro e mssil, um bombardeio contra nossas entranhas histricas e contra a prpria
memria beligerante dos Tarum, os guerreiros audaciosos que ocuparam
inicialmente o lugar. Em viagem ao Airo, o historiador Leonardi (2013, p. 138) deixa-
nos entrever sua percepo ao revelar que
[...] as runas do Airo suscitavam em mim uma sensao de estar diante de um enigma, quis dizer, justamente, o quanto a histria da Amaznia complexa e cheia de desigualdades: pelo Airo passavam mquinas a vapor, no sculo XIX, e passageiros a bordo daqueles barcos, e pelo Airo passavam tambm ndios Waimiri-Atroari, com seus arcos, flechas e bordunas, tentando ainda disputar, com os brancos, uma terra para sempre conquistada...
Aps anos de total abandono, em 2002 Airo Velho ganhou um guardio, um
imigrante japons chamado Shigeru Nakayama. Segundo ele, o local recebe visita de
pesquisadores, jornalistas e turistas, principalmente estrangeiros. Em entrevista para
o Portal A Crtica, no ano de 2015, o nico morador virou especialista em assuntos
http://pt.wikipedia.org/wiki/IPHAN
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sobre o Airo Velho e chama ateno ao falar sobre o descaso com a conservao
da estrutura e da histria do local. Por conta disso, o guardio cuida com muita
dedicao dos objetos encontrados por ele e revela em entrevista (AFFONSO, 2015):
Comecei a organizar um pequeno museu num dos quartos da casa onde moro com as coisas que acho [...] Para quem tem condies, fcil e rpido montar um museu, mas para quem no tem, como o meu caso, aos poucos. E tudo que acho guardo: um pedao de ferro, uma foto antiga. Mas tem tambm telhas portuguesas, uma garrafa holandesa antiga, um artefato indgena, uma espingarda do sculo passado....
Atualmente Airo Velho patrimnio histrico, est situado no Parque Estadual
Rio Negro Setor Norte e fica prximo aos Parques Nacionais de Anavilhanas e Ja.
Segundo o senhor Nakayama, o local hoje, conserva apenas nove prdios, sendo s
dois de alvenaria, alm de trs runas e um cemitrio, com lpides que datam de
meados do sculo 19. (AFFONSO, 2015).
A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentvel (SDS)
realizou uma audincia pblica em 2014, em Novo Airo, em que foi aprovada a proposta
de criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentvel (RDS) nas imediaes do Parque
Estadual Rio Negro. Segundo a secretria da SDS, Kamila Amaral, em entrevista ao Portal
G1 Amazonas (COMUNITRIOS, 2014),
a finalidade de criar a RDS a conservao da biodiversidade, proteo dos cursos dgua e conectividade biolgica dos fragmentos florestais; alm do acesso das mais de 200 famlias moradoras da regio aos recursos e polticas pblicas disponveis.
Na ocasio, tambm foi debatida a questo da conservao e proteo do
patrimnio histrico existente, especialmente as runas de Airo Velho.
Em que pese a proximidade a Manaus e a facilidade de acesso, o que se observa
que no houve movimentao aps a aprovao e a histria continua se transformando
em runas. Leonardi (2013, p. 12) ainda nos alerta: As runas do Airo ensinam que o
futuro da Amaznia requer respeito e reciprocidade com os amaznidas e sua
esplendorosa natureza. So tantos paradoxos e contradies em uma histria que nos
permeia de questes e provocaes. Airo Velho permanece to enigmtico quanto as
guas do rio Negro.
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3 ENTRONCAMENTOS E ATRAVESSAMENTOS: PERCORRENDO A TRILHA
INVESTIGATIVA
O imaginrio um rio cujas guas passam muitas vezes no mesmo lugar, sempre iguais e sempre diferentes.
(SILVA, 2006, p. 8).
A produo do conhecimento cientfico em Comunicao na Amrica Latina
muito recente, uma cincia jovem, que ainda est em construo. As investigaes
acerca dos fenmenos comunicacionais tm apenas dcadas de existncia no Brasil,
onde o primeiro curso de Jornalismo foi criado em 1947 na Faculdade Csper Lbero
(SP). A esse respeito Frana e Simes destacam que:
Em linhas gerais, pode-se dizer que a pesquisa em comunicao na Amrica Latina teve incio apenas a partir da segunda metade do sculo XX. Embora os primeiros cursos de Jornalismo datem dos anos 1930-1940, o incio do sculo registra somente trabalhos esparsos sobre a histria e a legislao do Jornalismo. A partir da, e at o final do sculo XX, podemos grosso modo, identificar trs fases: o surgimento dos primeiros estudos, sob influncia americana; a fase crtica, de denncias e proposies, por volta da dcada de 1970; o vis culturalista, a partir dos anos 1980. (FRANA; SIMES, 2016, p. 163).
Isso pode explicar o desenvolvimento e a consolidao dos centros de pesquisa
dos Estados Unidos e da Europa e a influncia que eles exerceram e ainda exercem,
por meio das suas teorias e prticas, na pesquisa em Comunicao no Brasil.
Vale ressaltar que as pesquisas em comunicao surgem na esteira das
preocupaes dos cientistas com os impactos do modo de produo capitalista o
que fez as tecnologias de um modo geral saltarem em quantidade e aperfeioamento
sobre a comunidade humana principalmente. Assim, as teorias e prticas
comunicacionais privilegiam um jeito de conceber o mundo a partir da sua matriz
ocidental e ocidentalizante. Alis, uma matriz que, embora sinalize para uma
necessidade hegemnica de entendimento do mundo, abriga uma enorme diversidade
de pensamentos13.
Evidentemente que esse processo, no campo acadmico e intelectual, est
permeado por crticas e contrapontos aos avanos e limitaes das teorias
comunicacionais e suas aplicaes. De certo modo, foi essa diversidade terica e
13 Uma panormica destas abordagens encontrada na obra Teoria do Jornalismo de Pena (2010).
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prtica que potencializou a pesquisa e os estudos da comunicao nas universidades
e em seus centros de pesquisa ao longo desses anos. No demais relembrar que
essa situao est vinculada, quase sempre, aos saltos tecnolgicos que afetam o
modo de pensar, viver e agir em partes significativas do planeta14.
O desenvolvimento das tecnologias e seus efeitos sobre a humanidade so,
portanto, resultados de um longo processo de articulao tecnolgica e cientfica, de
experincias e vivncias que contriburam para a formao de reas especializadas
nos diversos setores do pensamento, com o intuito de organizar o mundo da cincia,
da sua produo, disseminao e aplicabilidade. No geral, o pensamento ocidental
clssico/moderno desde Scrates e, mais contemporaneamente, desde Newton e
Descartes tende a se organizar de modo racional e racionalizante em disciplinas,
em fragmentos. Como j dissemos, isso tem uma lgica: a provvel hegemonia de um
modo de vida e suas variveis de interesse. No obstante, esse jeito de se pensar e
se fazer cincia esteve e est sempre fustigado por outras formas de concepes,
interpretao e viver no e para o mundo, como os conhecimentos de determinadas
filosofias, das artes, das religies, das cosmologias e cosmogonias tnicas indgenas
que, em vez de se separarem da relao (comunicao) subjetiva do conviver e viver
se mantm inter-relacionados a elas15.
Entendemos, assim, que as sociedades clssicas/modernas fundamentaram
seus conceitos nos saberes assentados a partir de cada novo paradigma, porm,
paradigmas que almejam a verdade por meio de um nico jeito de pensar: o racional,
que, desdobrado nas suas variveis de interesse, tende a se tornar racionalizante, no
sentido de que s se deve chegar verdade e a uma nica verdade por meio dos
pressupostos da razo.
Sabemos, agora de antemo, que as cincias se formulam, se fortalecem e se
estabelecem no tempo e no espao de momentos culturais, inclusive das culturas
polticas, como nos comunica Kuhn (1997), e por elas esto influenciadas (ou por que
no determinadas?!. Enquanto isso, outras formas ou contraformas de elaborao de
conhecimento no so avalizadas pelo establishment acadmico e, por isso, so
colocadas na margem desse processo. Porm, como o pensamento atitude
14 O livro A Galxia da Internet de Castells (2003) faz um apanhado histrico e crtico desses avanos. 15 Embora este tema esteja presente em outros autores, inspiramo-nos especificamente para este trabalho, nos estudos de Durand (2010) sobre a relao razo-verso-desrazo no contexto do imaginrio.
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(GEERTZ, 2001), as cincias persistem em ao e, s vezes, latentes como sementes
em busca de brechas para brotar autopoieticamente.
Por isso, seria prudente dizer que a produo de pesquisa e a construo de
conhecimento esto inseridas em um contexto de diversidade cultural e de sabedorias
mltiplas. No entanto, mesmo diante desse contexto, podemos perceber o quanto a
rigidez epistemolgica, inspirada nos moldes do mtodo cartesiano, ainda busca
alcanar a verdade cientfica absoluta. Perde-se, assim, o olhar da/e sobre a
complexidade da vida, dando nfase apenas aos resultados cientifizantes, separando
o sujeito do objeto, a razo da desrazo, a certeza da incerteza, a natureza, a cultura
e o cos