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PODER EXECUTIVO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS FACULDADE DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO ALICE REGINA PACÓ DE SOUZA FILHOS DO ENCANTADO: ESTUDO SOBRE O FENÔMENO DO BOTO EM NOVO AIRÃO (AM) A PARTIR DO OLHAR ECOSSISTÊMICO MANAUS 2018

FILHOS DO ENCANTADO: ESTUDO SOBRE O FENÔMENO …§ão_Alice... · Ao meu Davi, meu bebê sorriso, que me acompanhou nesta jornada em longas ... tirar de dentro de mim e comecei a

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  • PODER EXECUTIVO MINISTRIO DA EDUCAO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS FACULDADE DE INFORMAO E COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA COMUNICAO

    ALICE REGINA PAC DE SOUZA

    FILHOS DO ENCANTADO:

    ESTUDO SOBRE O FENMENO DO BOTO EM NOVO AIRO (AM) A PARTIR

    DO OLHAR ECOSSISTMICO

    MANAUS

    2018

  • PODER EXECUTIVO MINISTRIO DA EDUCAO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS FACULDADE DE INFORMAO E COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA COMUNICAO

    ALICE REGINA PAC DE SOUZA

    FILHOS DO ENCANTADO:

    ESTUDO SOBRE O FENMENO DO BOTO EM NOVO AIRO (AM) A PARTIR

    DO OLHAR ECOSSISTMICO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao, rea de concentrao: Ecossistemas Comunicacionais, linha de pesquisa 02: Linguagens, Representaes e Estticas Comunicacionais.

    Orientador: Prof. Dr. Wilson de Souza Nogueira

    MANAUS

    2018

  • ALICE REGINA PAC DE SOUZA

    FILHOS DO ENCANTADO:

    ESTUDO SOBRE O FENMENO DO BOTO EM NOVO AIRO (AM) A PARTIR

    DO OLHAR ECOSSISTMICO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Comunicao, rea de concentrao: Ecossistemas Comunicacionais, linha de pesquisa 02: Linguagens, Representaes e Estticas Comunicacionais.

    Manaus, ________ de abril de 2018

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Wilson de Souza Nogueira UFAM (Presidente)

    Profa. Dra. Mirna Feitoza Pereira UFAM (Titular 1)

    Prof. Dr. Srgio Augusto Freire de Souza UFAM (Titular 2)

    Prof. Dr. Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto UFAM (Suplente 1)

    Prof. Dr. Renan Albuquerque Rodrigues UFAM (Suplente 2)

  • Todos os direitos desta dissertao so reservados a sua autora e ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). recomendado que este material seja reproduzido para fins acadmicos ou cientficos.

  • Catalogao na Fonte

    Ficha Catalogrfica elaborada pelo Bibliotecrio Jean Charles Racene dos Santos Martins, CRB 11/719

    S729f Souza, Alice Regina Pac de

    Filhos do Encantado: estudo sobre o fenmeno do boto

    em Novo Airo (AM) a partir do olhar ecossistmico / Alice

    Regina Pac de Souza. Manaus: UFAM, 2018.

    130 p. : il. ; 27 cm.

    Dissertao de Mestrado em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas.

    Orientador: Prof. Dr. Wilson de Souza Nogueira.

    1. Comunicao - Ecossistemas. 2. Ecossistemas Comunicacionais. 3. Tecnologias do Imaginrio. 4. Imaginrio Amaznico. 5. Boto Vermelho. I. Titulo.

    CDD 23.ed. 302.2098112

  • DEDICATRIA

    Dedico este trabalho s minhas sementes de ViDa:

    Ao meu Vincius, meu menino cheiro de alecrim que sempre esteve presente ao meu

    lado com seus projetos. Quanta fora tu me deste, meu menino!

    Ao meu Davi, meu beb sorriso, que me acompanhou nesta jornada em longas

    madrugadas. Teus sorrisos me renovavam quando eu achava que no podia mais...

    Dedico tambm Dona Ftima Santana que me acompanhou em tantas conversas

    na Pousada Cabocla, contando suas histrias, desde a chegada em Novo Airo, sua

    carreira como educadora, at sua participao na criao do Festival do Peixe-boi.

  • AGRADECIMENTOS

    Deus que te faz entender toda a poesia.

    Rosa de Saron, O sol da meia noite.

    Primeiramente, a Deus, porque Ele que nos faz entender toda a poesia,

    porque se no fosse Sua mo me guiando desde o instante em que decidi fazer a

    seleo para o programa de mestrado, nada disso teria sido possvel. Estudei para

    fazer a prova com uma criana de um ano ao meu lado, consegui todos os livros e li

    o mximo que pude. Como o pensamento complexo me atormentou! No desespero

    eu dizia que o pensamento complexo era complexo mesmo. Deus me ajudou a

    compreender Morin e o olhar ecossistmico, certamente.

    Passei em primeiro lugar na seleo de 2015! Seria apenas inacreditvel se

    no houvesse a f! Com muita f e ajudas, segui as disciplinas e qualifiquei. Mas no

    sem antes viver o meu caos intelectual, que fora tratado nos encontros caticos graas

    amorosidade cientfica Cardinale, o maior HD externo acadmico-potico que eu

    poderia conhecer e a ser humana mais literariamente ousada dessa vida. A ela revelei

    minha dificuldade em contar essa histria, era preciso alinhar as ideias. Ela detectou

    que eu havia cado em uma armadilha cartesiana. Alice estava perdida! Do Pas das

    Maravilhas veio a soluo: When in doubt, remain silent; na dvida, permaneci em

    silncio. Deixei o texto dormir e ruminei minhas ideias. Cardinalicamente, escrevi para

    tirar de dentro de mim e comecei a percorrer a minha trilha.

    Mas no segui sozinha! Fui guiada pelo mais humano dos orientadores, que

    me permitiu viver aproximaes com meu tema e apontou diversos cenrios e

    caminhos, alm de curar ressacas de leitura e encorajar quando me faltavam palavras

    e foras. Ele, muitas vezes no me deixou ser apenas racional... Jamais esquecerei

    da orientao do dia 27 de julho de 2017, vspera do nascimento do meu Davi, quando

    na energia dos acontecimentos, meu orientador, professor Wilson Nogueira,

    embalou minha alma de tal forma que suas palavras foram um alento. nas

    adversidades que podemos sentir com mais intensidade a presena das pessoas em

    nossas vidas. Passei a gravidez e o ps-parto recebendo orientaes em uma relao

    de autonomia e confiana. Tem gente que te abraa com palavras. Wilson Nogueira

    desses...

  • Agradeo ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao pela

    oportunidade de debater e participar de discusses acadmicas, pelos professores

    que nos acompanharam e enriqueceram nossas ideias, em especial, ao professor

    Gilson Monteiro, pelo acalento acadmico e encorajamento. Agradeo tambm pelos

    amigos que ganhei, destaque para minha amiga-irm, Flvia Moura, ser humana

    valente e forte com quem tive o prazer de dividir as alegrias e angstias dessa jornada.

    Enquanto eu corria, meus filhos aproveitavam o tempo a mais com os avs! E

    aqui quero agradecer a ser humana-flor da minha vida, minha me, Regina Pac, a

    vov azul! Sem seu apoio, oraes, torcida, caldos de macaxeira e mais apoio de

    novo, este trabalho jamais estaria finalizado. Ao meu pai, Srgio Souza, por

    acompanhar minha trajetria acadmica e sempre fazer questo de ler meus trabalhos

    da escola e da faculdade. Posso dizer com todas as letras que isso fez e faz toda a

    diferena na minha vida! E ao meu gigante irmo Srgio Jr. que sempre deu todo o

    suporte e a quem o gigantismo no est apenas na altura(!), e sim na gentileza de

    seus atos.

    Agradeo tambm aos membros da minha banca de qualificao, Srgio

    Freire e Mirna Feitoza, que aceitaram o convite e trouxeram grandes contribuies

    para este estudo. Meu desejo que mais professores pudessem ser contagiados pelo

    comprometimento, competncia e entusiasmo de profissionais como eles. O respeito

    e admirao pelo trabalho que desenvolvem tamanho que a dupla se repete na

    defesa desta pesquisa.

    Aproveito para agradecer tambm ao secretrio do Programa, Rhangel Souza,

    que sempre me atendeu prontamente at nos momentos de desespero.

    Sou grata tambm pelo cuidado e incentivo da minha amiga Alcirene Cursino,

    sempre com palavras de carinho e f.

    Agradeo pelo olhar atento e pela amizade constante de Vanessa Marruche,

    que, mesmo distante, foi uma das amigas mais presentes em todo esse processo de

    construo do texto.

    E, por fim, agradecer aos meninos da minha vida, meu casulo, minha famlia!

    Meus passarinhos Vincius e Davi, que carregam em seus olhos a esperana de dias

    melhores e mais tranquilos. Quanto amor brota de vocs! amor umbilical. Ter filhos

    agiganta o nosso corao e nos enche de sonhos. E por falar em sonho, esse eu

    divido com meu guardio, com o ser humano do abrao que embrulha e acolhe, que

  • desejou e planejou junto comigo essa meta e me incentivou/aguentou/apoiou at o

    ltimo instante. Ao meu Ricardo, meu abrigo, meu amigo, meu amor. As pequenas

    coisas da vida valem o dobro para o corao: obrigada por cada copo de gua, cada

    massagem nos ombros, cada abrao e, principalmente, por todas as vezes que tu

    disseste: mais longe j esteve, acalmando minha alma e me trazendo paz!

    Escrevo esses agradecimentos vibrando e lembrando dos desejos por tucum

    nas madrugadas. Das contraes e pulsaes do nascimento, meu texto me viu brotar

    e engendrar... Passou por trilhas musicais que foram de Boi Bumb a Yamandu Costa

    e Sebastio Salgado. O exerccio de autoria intenso; exigiu-me diversos canteiros

    de ideias e, principalmente, me ensinou que romper com a ignorncia requer

    sacrifcios. Minha opo por participar do Programa de Ps-Graduao em Cincias

    da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas e realizar este estudo

    perpassa um desejo de encontrar os entrelaos da minha prpria histria de vida, com

    minha trajetria acadmica e minha paixo por esta terra. Nesse perodo, aprendi a

    olhar com muito mais empatia para os povos da floresta, os que, verdadeiramente,

    sabem interagir com ela.

    uma alegria imensa chegar ao final desta jornada. Principalmente porque tive

    muita dificuldade em dar um ponto final (Seria coisa de bicho visagento? Panema?!

    No sei!). Estes agradecimentos foram o ltimo texto a ser escrito neste trabalho e

    embalam os ecos para a banca de defesa. E, embora a linguagem blica no me

    agrade, sigo adiante com o desejo de defender minhas ideias e meus olhares.

    Aos seres do encantado, do fundo do rio, da floresta e aos moradores de Novo

    Airo meu respeito e minha gratido!

    Termino com um poema de minha autoria chamado Amaznida, como forma

    de agradecer e reverenciar a todos que contriburam para que este estudo se

    realizasse.

  • Amaznida

    Em teus olhos, os traos de ndios

    Uma beleza que brota qual raiz de Samama...

    Em tua pele, o encontro de vrios povos...

    Uma mistura de encantos, de encontros, de cantos e contos...

    Somos curumins e cunhants!

    Somos CABOCLOS! Somos poesia!

    Do mundo, a magia. Da vida, o mistrio. Do encanto, o esplendor.

    Ser Amaznida...

    sentir o sangue Ykamiaba, Ajuricaba, negro, nordestino, europeu...

    fazer um retorno origem, um reencontro com a lua, ao mito da criao...

    enxergar no espelho da lua: um muiraquit, o amuleto, smbolo de coragem.

    descortinar as matas, singrar os rios...

    percorrer os caminhos, a histria, os mitos e as lendas...

    nunca deixar de olhar para trs...

    E se orgulhar de ser Amaznida!

    Alice Souza

  • No tenho um caminho novo.

    O que eu tenho de novo um jeito de caminhar.

    Thiago de Mello

    preciso esquecer a fim de lembrar.

    preciso desaprender a fim de aprender.

    Fernando Pessoa

  • RESUMO

    Este estudo prope uma compreenso ecossistmica comunicacional do imaginrio em Novo Airo (AM) a partir do fenmeno do boto vermelho, que ora se apresenta como animal de atrao turstica, ora como ente encantado. Este estudo tem abrigo no Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao (PPGCCOM) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que tem como rea de concentrao os Ecossistemas Comunicacionais, sob o vis da linha de pesquisa 2: Linguagens, Representaes e Estticas Comunicacionais. A base terica est construda na perspectiva ecossistmica (CAPRA, 2006; MATURANA e VARELA, 2007; MONTEIRO, 2011; PEREIRA, 2011; COLFERAI, 2014) em articulao com as teorias do pensamento complexo (MORIN, 2005; SANTOS, 2010) das tecnologias do imaginrio (SILVA, 2006) e dos estudos do imaginrio amaznico (GALVO, 1976; SLATER, 2001; NOGUEIRA, 2014; PAES LOUREIRO, 2015). Como resultado, apresento uma narrativa ensastica que entrelaa os fenmenos ecossocioculturais de Novo Airo (AM), por meio de relaes comunicacionais entre o local e o global, que alimentam o fenmeno do boto vermelho como fenmeno imaginrio e real da mdia contempornea. Palavras-chave: Ecossistemas Comunicacionais. Imaginrio Amaznico. Boto Vermelho. Novo Airo. Tecnologias do Imaginrio.

  • ABSTRACT

    This study proposes a communicational ecosystemic understanding of the imaginary in Novo Airo (AM) of the red dolphin (most commonly known as pink dolphin) phenomenon, which presents itself as an animal for touristic attraction at times and also as an enchanted being at others. The theoretical basis is built on the ecosystemic perspective (Capra, 2006; Maturana e Varela 2007; Monteiro 2011; Pereira 2011; Colferai 2014) in articulation with complex thinking theory (Morin, 2005; Santos, 2010) of the imaginary technology (Silva, 2006) and the studies of the amazonic imaginary (Galvo, 1976; Slater, 2001; Nogueira, 2014; Paes Loureiro, 2015). Thus, I present a narrative that entwines the ecosystemic, social, and cultural phenomenon in Novo Airo (AM), by communicational relationships between the local and the global, which feed the pink dolphin phenomenon as a real and imaginary phenomenon of the contemporary media. Keywords: Communicational Ecosystems. Amazonic Imaginary. Pink Dolphin. Novo Airo. Imaginary Technology.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Mapa da Regio Metropolitana de Manaus ............................................................... 28

    Figura 2 Mapa de Novo Airo (AM) ............................................................................................. 29

    Figura 3 Dados gerais IBGE Municpio de Novo Airo ......................................................... 30

    Figura 4 Esttua do dinossauro na praa de Novo Airo ........................................................ 31

    Figura 5 Centro de Atendimento ao Turista de Novo Airo (CAT) ......................................... 32

    Figura 6 Monumento na entrada de Novo Airo (AM) ............................................................. 34

    Figura 7 Placa da Prefeitura de Novo Airo .............................................................................. 35

    Figura 8 Matria Portal Uol ........................................................................................................... 36

    Figura 9 Descobrindo o Amazonas ............................................................................................. 36

    Figura 10 Portal Brasil ................................................................................................................... 37

    Figura 11 Flutuante dos Botos ..................................................................................................... 73

    Figura 12 Pgina Ama Boto.......................................................................................................... 75

    Figura 13 Formulrio de controle e monitoramento de visitantes do flutuante .................... 76

    Figura 14 Pgina Oficial do Festival dos Botos do Sair ......................................................... 80

    Figura 15 Campanha Alerta Vermelho na Praia da Ponta Negra .......................................... 88

    Figura 16 Frame da matria que foi ao ar pela Rede TV ........................................................ 89

    Figura 17 Revezamento da tocha olmpica pelo Amazonas ................................................... 90

    Figura 18 Fotograma do documentrio com cena da caa ao peixe-boi .............................. 92

    Figura 19 Castanho, peixe-boi no tanque do CPPMA ............................................................. 93

    Figura 20 Filha da Marilda alimentando os botos ..................................................................... 96

  • CAMINHOS A PERCORRER

    UMA NOVA VISO DE MUNDO... ........................................................................... 15

    1 ACENDENDO A PORONGA ................................................................................. 18

    2 A PARTIDA: ABRINDO CAMINHOS... ................................................................. 27

    2.1 AIRO VELHO .................................................................................................... 38

    3 ENTRONCAMENTOS E ATRAVESSAMENTOS: PERCORRENDO A TRILHA

    INVESTIGATIVA ....................................................................................................... 45

    3.1 A COMUNICAO COMO CINCIA ................................................................... 50

    3.2 A COMPLEXIDADE DO OLHAR ECOSSISTMICO ........................................... 55

    3.3 O IMAGINRIO AMAZNICO NA CONSTRUO DA REALIDADE .................. 60

    4 FILHOS DO ENCANTADO .................................................................................... 71

    4.1 CONEXES E ENTRELAOS: O DESAFIO ECOSSISTMICO ........................ 93

    5 SINGRANDO OS RIOS.......................................................................................... 97

    6 UM PONTO DE CHEGADA, UMA NOVA PARTIDA ........................................... 104

    REFERNCIAS ....................................................................................................... 110

  • 15

    UMA NOVA VISO DE MUNDO...

    A apresentao deste estudo que trata da compreenso do fenmeno

    ecossociocultural do boto vermelho1 em Novo Airo (AM) se faz necessria por trs

    razes. A primeira delas se prope a convid-lo a participar de uma viagem: uma

    busca de caminhos para uma pesquisa cientfica na Amaznia. E quando falo desse

    territrio/espao emblemtico, no me refiro apenas s suas dimenses reais ou aos

    superlativos que lhe so atribudos. Refiro-me, principalmente, Amaznia que se

    manifesta de uma maneira muito peculiar, como nos movimentos de subida e descida

    dos rios, na cadncia dos ciclos naturais que, de certa forma, ditam o ritmo da vida,

    entre elas a dos seres humanos (TOCANTINS, 1973). Esse ambiente complexo no

    qual estamos imersos nos permite enxergar os fenmenos da natureza e da cultura

    por meio de um olhar tambm de dentro, certamente, um olhar mais amaznico.

    Imbuda por uma viso de mundo inclusiva que acolhe a diversidade da vida e

    suas relaes com o ambiente, busquei aprofundar os conhecimentos sobre a

    Amaznia me descobrindo enquanto pesquisadora em formao e como amaznida,

    por estar convencida de que o olhar ecossistmico existe porque tudo est

    entrelaado.

    O segundo ponto que destaco sobre a escolha das denominaes que

    organizam este estudo e funcionam como rota desta viagem. Uma vez que se trata de

    um estudo a partir da compreenso ecossistmica, optei por utilizar uma proposta de

    Caminhos a Percorrer como Sumrio, por entender que essa pesquisa no est

    engessada, ela continua se delineando e se construindo para acompanhar os fluxos

    que este estudo pode oferecer.

    Na introduo, renomeada como Acendendo a Poronga, fao referncia aos

    ribeirinhos, pescadores e seringueiros que amarram lamparinas na cabea com o

    intuito de iluminar os caminhos dos rios e da floresta nas madrugadas. Essa referncia

    no se d ao acaso. Ao acompanhar o movimento dos pesquisadores na Amaznia,

    percebo que a comunicao sempre foi realizada por meio de caminhos, rios,

    florestas, igaps. E esses caminhos geralmente so trilhados com o uso da poronga2,

    1 Na Amaznia existem dois tipos de botos de gua doce: o boto Vermelho, visto como ser encantado; e o boto Tucuxi, acinzentado, menor e conhecido por ajudar os pescadores. 2 A poronga tambm pode ser vista neste trabalho como uma metfora dos conhecimentos e saberes locais.

  • 16

    instrumento de alumiar usado na caa e na pesca, que foi largamente utilizado pelos

    seringueiros no processo de extrao do ltex. A partir desse raciocnio, iniciei o

    captulo A Partida: abrindo caminhos..., apresentando a temtica deste trabalho. Sigo

    contextualizando os estudos desvelando histrias sobre o Airo Velho. Em

    Entroncamentos e Atravessamentos: percorrendo a trilha investigativa, invoquei os

    aliados tericos que acompanharam esse trajeto. O captulo tambm prenuncia

    reflexes acerca da comunicao como cincia, da complexidade do olhar

    ecossistmico e das tecnologias do imaginrio. Filhos do encantado aborda os

    entranhamentos (des)cobertos ao longo desta pesquisa. Na seo Singrando os rios,

    procuro clarear as escolhas metodolgicas que delinearam este estudo. Ela buscou

    acompanhar, assim como o serpentear dos rios, a cadncia que surgiu no trabalho de

    campo, por entender que os rios so caminhos naturais e culturais da Amaznia, so

    nossas estradas reais e imaginrias, bifurcaes lquidas e slidas ao mesmo tempo,

    que acompanham o ritmo dinmico da vida. Por fim, o ltimo tpico trar Um ponto de

    chegada, uma nova partida, com consideraes e recomendaes acerca do tema.

    Acredito que, assim, seja possvel entrelaar os ns que envolvem este estudo a partir

    das ideias que nos contextualizam.

    O terceiro ponto para explicar a escolha pelo tom ensastico. O verbo

    ensaiar carrega consigo a ideia de exercitar, experimentar algo, sem alcanar a

    pretenso de ser definitivo, de trazer um contedo acabado. O ensaio permite a

    valorizao das percepes e do ponto de vista do autor a partir de questionamentos

    lcidos e crticos. Montaigne j usava o ensaio como gnero textual para expressar

    seus pensamentos e ideias, mas sem se descuidar do rigor e da agudeza de anlise.

    Para Adorno (1994), o ensaio uma forma de expor o pensamento, evocando

    liberdade de esprito. Hoje o ensaio se configura como uma nova possibilidade textual,

    a ser utilizado no somente na crtica literria e artstica, como, tambm, na filosofia e

    nas cincias. Paviani (2009, p. 05) refora que o ensaio a escolha dos que preferem

    a liberdade de expresso, pois, para ele, este gnero textual,

    ao contrrio do tratado e do artigo cientfico, desenvolve os argumentos ensaisticamente, isto , experimentando, questionando, refletindo, criticando o prprio objeto de estudo. um gnero textual essencialmente crtico e interpretativo. Esquiva-se da descrio e da explicao para eliminar qualquer trao de ingenuidade e de doutrina. Sua funo mostrar as mediaes.

  • 17

    Assim, vejo o ensaio como uma proposta que se entrelaa ao pensamento

    ecossistmico por poder mostrar as mediaes, considerando a complexidade dos

    fenmenos e o movimento das ideias e se apresentando de uma maneira formal a

    partir das exigncias do universo acadmico.

    Aproveito o ensejo tambm para destacar a escolha das frases introdutrias

    dos captulos com a temtica dos rios. A histria da Amaznia est diretamente

    entrelaada com as nossas estradas naturais que so as vias aquticas por onde

    transita a vida, quer seja do colonizador, do ribeirinho, do boto, do peixe-boi ou dos

    seres mticos. Os rios norteiam nossos caminhos e devaneiam nossos pensamentos

    e, sobretudo, so fonte de vida, alimento e sustento. So profundos e, ao mesmo

    tempo, efmeros, so legtimos em suas nascentes e ali adiante se encontram, mas

    nem todos se misturam. Alguns geram bifurcaes, outros se agigantam em igaraps,

    delineiam ilhas e, por fim, desembocam, mas nunca se acabam... Essa exuberante

    bacia hidrogrfica engendra elucubraes seminais feito estrela cadente. Deslumbro-

    me diante de sua grandeza e, dessa forma, procurei reverenciar as marcas ancoradas

    em mim. Eu rio-me.

    A perspectiva ecossistmica me encorajou a olhar o mundo de uma maneira

    diferente, ou seja, percebo hoje que no estou isolada do meu objeto de pesquisa, ao

    invs disso, somos parte e todo da mesma rede, que gera novos conhecimentos e

    novos saberes. Este estudo um caminho que almejei percorrer. Ele uma forma de

    declarar minha paixo por essa terra no sentido de contribuir com os estudos da

    comunicao no mbito dos ecossistemas comunicacionais por intermdio do

    imaginrio amaznico.

  • 18

    1 ACENDENDO A PORONGA

    Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo. Olha para trs, para toda a jornada, os cumes, as montanhas, o longo

    caminho sinuoso atravs das florestas, atravs dos povoados, e v sua frente um oceano to vasto que entrar nele nada mais do

    que desaparecer para sempre. Mas no h outra maneira. O rio no pode voltar. Ningum pode voltar.

    Voltar impossvel na existncia. Voc pode apenas ir em frente.

    O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. (O rio e o oceano, Osho.)

    Pensar a pesquisa cientfica na Amaznia requer um olhar aguado de razo

    e, tambm, de sensibilidade acerca de suas singularidades e universalidades. S

    assim possvel reconhecermos a relao complexa e indissocivel entre a natureza,

    os seres vivos e suas culturas. preciso considerar suas dimenses territoriais, sua

    intensidade cultural, seu trajeto histrico e seus ecossistemas entrelaados ao planeta

    e ao cosmos. Sob esse ponto de vista, este estudo prope uma compreenso

    ecossistmica do imaginrio em Novo Airo (AM) a partir do fenmeno do boto, uma

    figura multifacetada, que ora se apresenta como atrao para o turismo, ora como

    ente encantado. Este estudo tem abrigo no Programa de Ps-Graduao em Cincias

    da Comunicao (PPGCCOM) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que

    tem como rea de concentrao os Ecossistemas Comunicacionais. Este trabalho se

    insere no mbito da linha de pesquisa 2: Linguagens, Representaes e Estticas

    Comunicacionais.

    A rea de concentrao do Programa prope uma compreenso

    contempornea e desafiadora em contraponto ao pensamento cientfico tradicional

    acerca dos estudos das Cincias da Comunicao. Ela permite uma nova forma de

    se fazer cincia, pois articula a diversidade de olhares sobre a Amaznia, no apenas

    no sentido de repensar o pensamento amaznico e sua formao sociocultural, mas

    de reconhecer as multiplicidades e as particularidades desse ambiente e,

    principalmente, de assumir a responsabilidade que temos em discutir e disseminar o

    conhecimento cientfico produzido aqui. Assim, possvel observar os fenmenos

    locais e suas interconexes e, para isso, o pesquisador precisa estar disposto a

    questionar conceitos canonizados em busca de evidenciar essa nova compreenso.

    Evidenciar, sim! Acreditamos que a compreenso ecossistmica cria uma

    abertura para uma nova perspectiva: o olhar epistmico-metodolgico sobre os

  • 19

    fenmenos socioculturais no mbito da comunicao. Essa perspectiva reconhece

    que preciso sentir, cheirar, participar, viver, se entranhar e considerar que tudo ao

    nosso redor comunica, se expe, se diz e se entrelaa... E esses entrelaos s se do

    por meio dos fenmenos comunicativos, uma complexa e rica interao de sistemas

    autopoiticos (MATURANA; VARELA, 2007). Os bilogos chilenos citados

    desenvolveram a teoria da autopoiese, uma construo conceitual que observa a

    autonomia dos organismos vivos por sua capacidade de reproduo, autossuficincia

    e adaptao ao ambiente. essa circularidade que mantm a vida. So teias de

    relaes que se estabelecem nas interaes com o ambiente. com o intuito de

    compreender as redes comunicacionais que envolvem os fenmenos relacionados

    linguagem e representaes que se evidencia a abordagem ecossistmica pretendida

    por este estudo, por entendermos que a proposta metodolgica que emerge do

    pensamento ecossistmico contextual. Ela no observa os elementos ou fenmenos

    isoladamente e, sim, as relaes que se estabelecem dentro de um contexto e as

    transformaes que os fenmenos desencadeiam nas realidades.

    Fazer cincia na Amaznia nos desafia a assumir esse novo olhar. Ela nos

    inclina a um pressuposto conceitual que nos permita conectar conhecimentos e

    saberes para compreender o que acontece ao nosso redor e, por consequncia, o que

    se reverbera dentro de ns. um olhar amplo e ao mesmo tempo profundo, que

    permite a pluralidade de pensamentos, e no uma viso unilateral fragmentada e

    desconexa do real e do virtual. um caminho em construo, pelo qual se busca

    conexo com outras reas, entrelaando, assim, os estudos do pensamento

    complexo.

    um olhar que surge como proposta para tentar dar conta de se fazer cincia

    na complexidade amaznica e que almeja no somente brotaes de pensamentos

    cientficos e florescimento no cenrio da cincia com a produo de conhecimento

    novo, mas que pretende interagir com os frutos dos estudos de ontem e de hoje,

    produzidos na e para a Amaznia, a fim de que eles sejam polinizados3, amplamente

    discutidos, desenvolvidos, amadurecidos, colhidos e disseminados. Os pesquisadores

    3 A ideia de polinizao nos remete ao processo de transporte do plen entre as plantas realizado especificamente pelas abelhas. Esse processo se configura como um dos principais mecanismos de promoo e manuteno da biodiversidade. Alm disso, o termo tambm faz aluso ao mel produzido pelas abelhas a partir da diversidade do nctar das flores, tema bastante utilizado por Morin (1997) em suas explicaes sobre a diversidade da vida. Uma metfora do conhecimento que se alia ao pensamento ecossistmico.

  • 20

    que se embrenham por esses caminhos de entrecruzamentos para pesquisar essa

    realidade complexa e diversificada evidenciam esse olhar porque rompem com os

    parmetros e delimitaes da pesquisa fragmentada e normativista.

    Propomo-nos a esse desafio certamente. E por essa razo que, ao invs de

    seguir a tradio clssica de uma introduo, apresento a ao de acender a poronga,

    para alumiar os conhecimentos adquiridos ao longo do perodo do curso de Mestrado,

    mas sem desconsiderar o conhecimento de mundo vivenciado em ser amaznida, as

    marcas pessoais e acadmicas de minha trajetria e as inquietaes que me

    trouxeram at aqui. Tudo faz parte de uma rede que se tece a muitas mos, de uma

    teia que vai se construindo e desconstruindo outras para formar o que somos agora

    eu e o meu antes sujeito-objeto de pesquisa. E, ao perceber essas teias, pude

    compreender melhor os caminhos percorridos e as escolhas feitas...

    Cresci vivenciando a Amaznia. Lembro-me das viagens que fazia com meus

    pais pelo interior do Estado. Algumas deixaram fortes lembranas, como o Festival do

    Peixe Ornamental que acontece em Barcelos. Por l, Cardinal e Acar-Disco, os dois

    peixes concorrentes, apresentam-se e disputam o ttulo de melhor do ano. Nessas

    viagens de barco, cada paisagem era fotografada em minha memria. Era o meu

    emaranhado de memrias se formando. Fechando os olhos ainda consigo recordar o

    cheiro do mato molhado, o barulho da gua batendo no casco do barco e lembrar das

    pessoas em suas janelas acenando para os passantes.

    Com meu ba de lembranas da infncia aberto, vou retomando por meio da

    memria o imaginrio de minhas vivncias amaznicas. Consigo recordar tambm do

    cheiro de um livro da minha me, com pginas amareladas e envelhecidas, j sem

    capa, mas daqueles capazes de nutrir nossa imaginao... Um livro de lendas que j

    havia passado por muitas mos e habitado diversas histrias contadas aos primos.

    Em nossas brincadeiras de criana, eu gostava de ler e recriar as estrias. Nelas, o

    Boitat podia encontrar a Yara no fundo do rio, ou o Mapinguari se juntar ao Curupira

    para formarem uma espcie de liga verde da justia. Foi assim que conheci as lendas

    do Boto, da Vitria-rgia, do Guaran, da Cobra grande e da temida Mo de cabelo,

    uma senhora de cabelos nas mos e que aparece para quem no quer dormir na hora

    que os pais pedem. Pensar na mo de cabelo era uma realidade mais aterradora e

    mais eficiente que contar carneirinhos...

  • 21

    Assim fui construindo vrios personagens e conhecendo traos de nossas

    razes. Um interesse que foi crescendo ao longo dos anos e me aproximando das

    manifestaes culturais do imaginrio amaznico. Aos poucos fui conhecendo as

    festas populares e me encantando ao perceber como os costumes e tradies esto

    organicamente presentes em nosso cotidiano e so, muitas vezes, inconscientemente

    incorporados na medicina, na msica, na dana, na gastronomia e na nossa forma de

    falar. Hbitos como o de dormir em redes ou o de comer farinha, que nos so to

    comuns, foram herdados dos costumes indgenas, assim como boa parte dos mitos e

    lendas envolvendo os seres encantados, os animais e a floresta. Lendas e mitos que

    so criados para explicar a vida que no se explica em sentenas cristalizadas.

    Essas expresses culturais contribuem para a formao da nossa essncia e

    constroem nossas subjetividades. Assim, vamos criando nossos significados e

    formando um repertrio de sentidos. A vivncia e o aprofundamento por meio da

    leitura e da pesquisa permitem juntar as coisas na tentativa de compreender a vida.

    No lembro exatamente quando comecei a me interessar pela pesquisa. Em

    meio aos meus lampejos de memria, apenas consigo relacionar a palavra

    Enciclopdia Barsa. Eu era levada pela curiosidade a buscar assuntos que iam alm

    das atividades escolares. Barsa e papel almao eram meus companheiros das tardes.

    Eu lia por prazer, lia para sonhar. Meu pai fazia questo de ter sempre as atualizaes

    dos volumes, eu era a traa da casa.

    No meu mundo, tudo tinha que ter uma explicao. Nessa iluso de completude

    fui construindo minhas verdades e ampliando meu conhecimento com a inteno de

    entender tudo ao meu redor. Foi lendo sobre a formao do universo e o big bang que

    me deparei com estudos sobre a lua. Fui alm das pesquisas sobre as fases e os

    eclipses, eu queria entender a influncia da lua na vida das pessoas, no crescimento

    dos cabelos, nas colheitas, nos nascimentos etc. Fui levada pelos livros s

    Ykamiabas, a temida tribo de mulheres guerreiras que viveram na Amaznia e s

    tinham contato com homens em perodos determinados apenas para procriao. Nas

    narrativas do Frei Gaspar de Carvajal, que acompanhou Orellana em sua expedio,

    no sculo XVI, podemos encontrar relatos sobre as Amazonas, como o dos ndios

    Omaguas, que diziam que nas bandas do Norte, aonde iam uma vez por ano, havia

    umas mulheres, e ficavam com elas dois meses, e se dessa unio tinham parido filhos,

  • 22

    os traziam consigo, e as filhas ficavam com as mes (CARVAJAL; ROJAS; ACUA,

    1941, p. 111).

    Segundo esses relatos, as Ykamiabas escolhiam seu parceiro e aps o ritual,

    as ndias entregavam um amuleto chamado Muiraquit, uma pedra de cor verde que

    era retirada do fundo de um lago e moldada em formato de sapo. O talism

    representava coragem, atraa sorte e promovia a cura de doenas. A magia do

    amuleto transformou-o em uma pea cobiada e cheia de mistrios (MELO, 2004). As

    pesquisas me deixaram ainda mais apaixonada pela Amaznia, pela Lua e pelo mito

    das mulheres guerreiras. Em uma viagem Terra Santa (PA) em 2012, comprei um

    Muiraquit original, pea de colecionador que me acompanha em momentos

    importantes e decisivos.

    A pesquisa levou-me tambm a percorrer os bancos da academia por duas

    vezes: fui acadmica dos cursos de Letras Lngua e Literatura Inglesa e de

    Comunicao Social Jornalismo, talvez ainda levada pela ideia de querer entender

    e explicar todas as coisas, mas principalmente pelas inmeras inquietaes que isso

    me causava. Dizem por a que toda inquietao criativa. Em meus pensamentos

    perturbadores, eu me perdia no mundo das ideias. Era preciso buscar mais

    entendimento, partir para a abstrao.

    Durante a graduao de Jornalismo, participei de alguns congressos da

    Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao (INTERCOM),

    evento que rene alunos de graduao e ps-graduao, pesquisadores e

    profissionais da rea. Apresentei artigos cientficos nos grupos de Intercom Jr., em

    que acadmicos se renem para discutir suas pesquisas. Esses congressos so muito

    mais que encontros de pessoas e de ideias, so momentos de valorizao do trabalho

    acadmico que proporcionam uma aprendizagem efetiva por meio da troca de

    diferentes olhares para compreender o mundo. Possibilitam-nos conhecer melhor o

    nosso lugar por estarmos em contato com o outro. um conhecimento que

    produzido para alm da cincia dos jalecos brancos, da fico cientfica ou dos

    laboratrios. Essa experincia me aproximou ainda mais do universo acadmico e me

    direcionou para o aprofundamento nessa rea.

    Decidi participar da seleo para entrar no Programa de Ps-graduao em

    Cincias da Comunicao (PPGCCOM) da UFAM em busca de mais conhecimento.

    Passei e, imediatamente, tive que me debruar sobre as teorias, pois a rea de

  • 23

    concentrao do programa, Ecossistemas Comunicacionais, nica no pas e

    apresenta uma abordagem desafiadora.

    Durante as primeiras semanas de mestrado, vivi um verdadeiro caos

    intelectual, fiquei deriva tentando acompanhar aqueles conceitos novos e percebi

    que era preciso reconhecer a minha ignorncia, o meu estgio de misria intelectual.

    Passei por uma espcie de desiluminismo acadmico e tive que romper com as

    tradies tericas que me acompanhavam numa nica verdade. Desconstru meus

    conceitos ao perceber que nada se encerra, tudo est em processo num devir

    incessante. Ao observar o mundo a partir de uma nova concepo da realidade

    compreendi que pesquisar tambm um caso de devir. Sob o mesmo pretexto de

    transformao e num compasso de atitude autopoitica, busquei desfragmentar meus

    conhecimentos e juntar as coisas. Tudo fez mais sentido assim. Depois que se

    conhece o pensamento ecossistmico, voc passa a ver o mundo a partir de outra

    perspectiva. Quando voc compreende a cincia como parte da rvore do

    conhecimento e passa a enxergar as interaes, voc entra em um processo de

    imerso total, o olhar ecossistmico permanece impregnado, voc j no olha mais

    pela janela da mesma forma.

    A dureza do ser metdico no mais legitimada pelas verdades irrefutveis. O

    processo de aprendizagem se d enquanto aprendemos vivendo e vivemos

    aprendendo. E nessa aventura de desconstruir vamos questionando o que est ao

    nosso redor, o meio ambiente. A propsito, por que meio ambiente? H uma metade

    homem, metade natureza? Ser que no nos misturamos? Dessa forma, dividimo-

    nos? So tantas conexes que no observamos, mas que apresentam relao direta

    com o sistema de vida das pessoas. Apenas ao perceber o meio ambiente por inteiro

    que podemos ser capazes de enxergar as interaes. Nosso corpo, por exemplo,

    capaz de produzir vitamina D, elemento importante na preveno de doenas, apenas

    pelo contato com o sol; para sobreviver, todos os organismos precisam de energia,

    que obtida a partir dos alimentos, numa cadncia chamada cadeia alimentar; a

    cadeia de produo de alimentos comea com as rvores, que transformam a energia

    do sol em energia qumica; a manuteno da vida se d tambm por meio do

    movimento das guas na natureza: o ciclo hidrolgico determina a variao climtica

    que interfere no funcionamento dos rios, mares e oceanos e no desenvolvimento de

    plantas e animais.

  • 24

    a interdependncia da vida em que homem e natureza no podem ser

    separados. Nesse contexto, a ideia de ambiente equilibrado questionada pelo novo

    pensamento cientfico. Essa constante busca pela harmonia nos leva a vias

    contraditrias, entropia, esta tendncia universal que nos leva da ordem

    desordem. A partir desse pensamento, o equilbrio se torna acomodao.

    necessrio o caos. importante que as vontades se choquem para que as ideias

    avancem. O equilbrio da natureza um equilbrio dinmico, e dessa forma tambm

    que devem ser compreendidos a cultura e o imaginrio.

    Parafraseando Morin, estamos em processo de ampliao do conhecimento

    cientfico. Assim, a cincia tem o papel fundamental de oferecer melhorias para a

    sociedade, para os indivduos e para o ambiente. A partir da viso

    ecolgica/ambiental/cultural dos ecossistemas comunicacionais surge a proposta de

    desenvolver um conhecimento contextualizado.

    Eco vem do grego e quer dizer morada/habitat, a morada do sistema

    evidencia a rede, o n e o ns. Aqui, por exemplo, estamos diante de um pensamento

    que entrelaa o fenmeno comunicacional e as interaes que se estabelecem a partir

    dele. uma ideia em construo que permite que a sabedoria dos beirades encontre

    dilogo com os tericos promovendo a cincia para o bem comum.

    preciso encontrar novas formas de compreenso para a cincia e para a vida,

    necessrio discutir a cincia para buscar conhecimento num movimento que possa

    desfragment-lo. E, assim, criar alternativas que reposicionem o ser humano no

    ambiente em vez de dissoci-los um do outro. E isso tambm vale para os estudos da

    comunicao.

    Como no perceber, por exemplo, a mudana no olhar da comunicao diante

    do apresentador do Jornal Hoje4, Evaristo Costa, se emocionando ao vivo com o

    depoimento de um pai que perdeu o filho aps ser espancado at a morte? Ou do

    reprter Ari Peixoto chorando ao dar a notcia da morte do colega de trabalho

    Guilherme Marques na tragdia com o avio que levava o time da Chapecoense?

    difcil manter a exigncia de imparcialidade da notcia quando o jornalista est no

    conflito ou sente empatia pelas pessoas envolvidas. o lado humano, real, que se

    coloca no lugar do outro. Ser que esses profissionais deixaram de ser ticos por que

    4 Jornal Hoje um telejornal nacional produzido pela Rede Globo que vai ao ar no incio das tardes. O programa exibido de segunda-feira a sbado e, atualmente, ancorado por Sandra Annenberg e Dony De Nuccio.

  • 25

    no conseguirem conter a emoo? Ser que as pessoas que estavam assistindo

    condenaram essa atitude e desligaram suas televises? Ser essa uma mudana no

    fazer jornalstico? Estamos preparados para essa mudana?

    As prticas jornalsticas vm se alterando ao longo dos ltimos anos, e

    principalmente a revoluo tecnolgica tem aberto espao para novas formas de

    fazer. As aspas continuam sendo fundamentais, mas, nos ideais de objetividade e de

    imparcialidade, abrem-se brechas para narrativas que carregam emoo, afeto,

    memria e sentidos. Jornalistas explicam o mundo por meio de palavras, mas no s

    de palavras. As palavras so instrumentos de uma linguagem. O jornalismo um

    hipertexto com falas, luz, som, gestos etc. na maneira de perceber os fatos

    humanamente que aparece a sensibilidade. Cada histria, ao mesmo tempo que

    particular, de todos ns, so histrias que nos representam. Nessa complexa teia

    comunicacional, esses profissionais investigam situaes, fatos, problemas e

    comportamentos que so percebidos por seu potencial valor comunicativo.

    Repensar a comunicao subverter a lgica das verdades absolutas, dos

    fatos descontextualizados e da atrofia de ideias. se aproximar das singularidades

    para tornar mais preciso o nosso processo de conhecimento. Mas, para isso,

    precisamos estar dispostos s novas possibilidades, criando alternativas em um

    movimento que possa fluir como nossos rios.

    Lembrei-me de um dos encontros da Usina de Saberes Amaznicos com a

    professora Dra. Maria Luiza Cardinale Baptista5, em que ela declamou o poema de

    Osho, que acompanha o ttulo dessa introduo e versa sobre o encontro do rio com

    o oceano. H momentos em que nos deparamos com a vastido nossa frente. So

    tantas leituras, discusses e reflexes ao longo da jornada que um curso de

    mestrado. Muitas vezes me vi em situaes de insnia aps dialogar com Morin,

    Capra, Boaventura. Como dormir depois de conversar com Kuhn sobre a Estrutura

    5 A professora Maria Luiza Cardinale Baptista possui doutorado em Cincias da Comunicao pela Universidade de So Paulo (2000). Atualmente professora e pesquisadora do Programa de Ps-graduao em Turismo e Hospitalidade e do Curso de Comunicao Social da Universidade de Caxias do Sul (UCS). tambm pesquisadora visitante snior da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), onde Ps-doutoranda em Sociedade e Cultura da Amaznia. Em janeiro de 2017, foi convidada a trabalhar uma disciplina no PPGCCOM, onde realizou o Projeto Usina de Saberes Amaznicos: Narrativas de Viagens Investigativas, vinculado ao Plano Estratgico de Ampliao e Qualificao da Produo Cientfica do PPGCCOM/UFAM, um movimento criativo que possibilitou aos mestrandos o desenvolvimento de seus projetos para a fase da qualificao.

  • 26

    das Revolues Cientficas? Quando o rio encontra o oceano, ele treme de medo... e

    no dorme. Tudo isso muito perturbador, muito perigoso.

    Estamos acompanhando um grande movimento a favor da Amaznia, no s

    com diversas campanhas de proteo, manuteno e preservao, mas tambm com

    o envolvimento de ONGs, rgos e fundaes como Greenpeace, SOS Amaznia,

    WWF Brasil e Fundao Vitria Amaznica. O tema esteve presente tambm no

    horrio nobre da programao televisiva da Rede Globo6, na novela das oito, A fora

    do Querer7, em que Ritinha, interpretada por Isis Valverde, era tida como filha do boto.

    Na trama, a personagem nadava com os botos e afirmava at que o pai do seu filho

    era o boto.

    A Amaznia, esta regio universal, clama por olhares que possam contemplar

    suas particularidades, que possam enxergar suas nuances. A comunicao est

    aberta s novas narrativas e subjetividade. A cincia est em permanente processo

    de ampliao e de mudanas. Precisamos reescrever essa histria, religando

    conhecimentos, saberes e vivncias. Escrever materializar o pensamento,

    oxigenar as ideias, costurar olhares. deixar o rio correr para o oceano, mas, para

    isso, preciso arriscar-se... Arriscamo-nos... E, assim, acendemos a poronga para

    abrir os caminhos e contemplar a construo de um novo conhecimento...

    6 A Rede Globo uma rede de televiso brasileira, fundada em 1965 por Roberto Marinho, com sede no Rio de Janeiro. Transmitida em territrio nacional e internacional, a emissora tambm umas das maiores produtoras de telenovela do mundo. 7 A Fora do Querer uma telenovela brasileira que foi ao ar de abril a outubro de 2017. Produzida e exibida pela Rede Globo, a trama foi escrita por Glria Peres e abordou temas como seresmo, transexualidade e trfico de drogas. A novela atraiu a ateno da regio Norte por ter cenas gravadas em Belm, Manaus e Iranduba e por mostrar caractersticas regionais como linguajar, msicas e atores locais.

  • 27

    2 A PARTIDA: ABRINDO CAMINHOS...

    O vento norte Que seduz minha razo

    Assobia e me banha de emoo... (Vento Norte Ariosto Braga e Jos Augusto Cardoso Boi Caprichoso, 1996).

    Acredito que a inquietao o que nos move. o que move o mundo

    acadmico tambm. Ela nos causa um banzeiro de sensaes e de movimentos em

    direo ao desconhecido. E esses desdobramentos nos levam a percorrer caminhos

    incertos. Este estudo se prope a contar a trajetria a ser percorrida em busca de

    respostas e, talvez, de mais inquietaes a respeito do tema proposto.

    Foi sentada beira do rio Negro, aps ministrar uma aula no municpio de Novo

    Airo (AM) em 2011, que percebi meus pensamentos caminhando para essa

    inquietao. Fao questo de falar sobre isso porque no consegui conviver

    passivamente com essa inquietude, e foi ela que me trouxe ao Programa de Ps-

    Graduao em Cincias da Comunicao da Universidade Federal do Amazonas,

    turma de 2015.

    O despertar para o tema proposto surgiu em julho de 2011, ao ministrar a

    disciplina Prtica Curricular para o curso de graduao em Letras Lngua e Literatura

    Inglesa pelo Plano Nacional de Formao de Professores da Educao Bsica

    (PARFOR) no municpio de Novo Airo (AM). Ao trabalhar a contextualizao dos

    assuntos abordados em sala de aula, experimentei traar um paralelo da realidade

    dos alunos com os temas desenvolvidos na disciplina. Percebi que havia entre eles

    uma preocupao relacionada imagem do municpio, que antes estava vinculada ao

    peixe-boi e hoje est marcada pela figura do boto multifacetado, que se tornou uma

    das atraes tursticas da cidade.

    A cidade atrai muitos visitantes por suas praias de areias brancas e destaca-

    se por abrigar um dos maiores arquiplagos fluviais do mundo: Anavilhanas, o qual

    possui 350 mil hectares e formado por cerca de 400 ilhas (VIDAL, 2011). Tambm

    chama ateno por suas histrias envolvendo o Velho Airo, a cidade fantasma que,

    segundo relatos dos antigos moradores, foi invadida por formigas carnvoras, situao

    que teria obrigado a populao a fugir e se restabelecer na outra margem do rio.

    Rebatizada como Novo Airo (AM), a cidade est localizada na margem direita do rio

    Negro, a uma distncia de 180 quilmetros de Manaus em linha reta. Novo Airo fazia

  • 28

    parte do municpio de Manaus at 1955. Atualmente, configura-se como regio

    metropolitana (Figura 1) e limita-se com os municpios de Presidente Figueiredo,

    Manaus, Iranduba, Manacapuru, Caapiranga, Codajs, Barcelos e Estado de

    Roraima.

    Figura 1 Mapa da Regio Metropolitana de Manaus

    Fonte: Secretaria de Estado de Desenvolvimento da Regio Metropolitana de Manaus. Disponvel em: . Acesso em: abril de 2017.

    Com a construo da ponte sobre o rio Negro em 2011, a chegada ao municpio

    ficou muito mais fcil, o que ativou o turismo local nos ltimos anos. Como

    antigamente era necessrio atravessar o rio em balsas, o percurso era demorado e

    cansativo. Alm da opo via terrestre, pelas rodovias AM-070, a Manoel Urbano (que

    faz a ligao entre Manaus e os municpios de Iranduba, Manacapuru e Novo Airo,

    e depois pela AM-352 (que interliga Manacapuru e Novo Airo), tambm possvel

    chegar ao municpio de barco ou lancha, a partir de Manaus.

  • 29

    Figura 2 Mapa de Novo Airo (AM)

    Fonte: Portal Amaznia. Disponvel em: . Acesso em: abril de 2017.

    Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE, 2010),

    o municpio possui 14.723 habitantes com uma rea de 37.796, 238 km. Novo Airo

    (AM) oferece muitas atraes para o turismo, conhecida como Paraso Ecolgico

    por abrigar em seu territrio o Parque Nacional do Ja. Criado em 1980, o segundo

    maior do Brasil, estrategicamente localizado na bacia do rio Ja, afluente do rio Negro.

    Alm da Estao Ecolgica Anavilhanas, um dos maiores arquiplagos fluviais do

    planeta, ambos fazem parte do Complexo de Conservao da Amaznia Central e

    foram reconhecidos pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia

    e a Cultura (UNESCO United Nation Educational, Scientific and Cultural

    Organization) como Patrimnio Mundial Natural, segundo informaes do Portal

    Brasil8.

    8 O Portal Brasil um site do Governo Federal que rene contedos de todos os ministrios e secretarias.

    http://portalamazonia.com/noticias-detalhe/turismo/cidade-dos-botos-saiba-como-chegar-em-novo-airao/?cHash=3c56e70e46eb55d4b04118272fe225e9http://portalamazonia.com/noticias-detalhe/turismo/cidade-dos-botos-saiba-como-chegar-em-novo-airao/?cHash=3c56e70e46eb55d4b04118272fe225e9http://portalamazonia.com/noticias-detalhe/turismo/cidade-dos-botos-saiba-como-chegar-em-novo-airao/?cHash=3c56e70e46eb55d4b04118272fe225e9

  • 30

    Figura 3 Dados gerais IBGE Municpio de Novo Airo

    Fonte: IBGE. Disponvel em: . Acesso em: abril de 2017.

    O artesanato produzido na regio, com destaque para os produtos em madeira

    e fibras naturais, tambm atrai os turistas. Na terra indgena Waymiri-Atroari,

    localizada no municpio, so tecidas peas de cestaria, utenslios e adornos que so

    comercializados pelos prprios ndios em uma loja na sede da cidade. H tambm a

    Fundao Almerinda Malaquias, que trabalha em parceria com a associao dos

    artesos locais, a NovArte, e oferece cursos de artesanato para a populao. Esse

    trabalho ganhou repercusso nacional com a conquista do Prmio Top 100

    Artesanato Brasil, organizado pelo Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas

    Empresas (SEBRAE), nas edies de 2006, 2008 e 2011.

    Alm do artesanato, um outro aspecto caracterstico de cidades do interior

    atraiu nossa ateno: o costume dos moradores em relao praa da cidade.

    Localizada na rua principal, o local uma opo de lazer e ponto de encontro dos

    moradores que utilizam a academia ao ar livre, as redes de vlei, as caladas para

    caminhada e recreao das crianas. H na rea central uma parte coberta, um

    http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=130320&search=amazonas|novo-airao|infograficos:-dados-gerais-do-municipiohttp://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=130320&search=amazonas|novo-airao|infograficos:-dados-gerais-do-municipio

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    coreto, onde geralmente so realizados ensaios de hip hop e outras danas, e onde

    montado o prespio no perodo natalino. Ainda sobre a praa no poderamos deixar

    de citar a famosa esttua do dinossauro que foi erguida e se tornou um playground

    para as crianas e parada obrigatria para os turistas. Perguntei aos alunos: mas,

    afinal, por que tem um dinossauro na praa? A primeira resposta deles est ligada ao

    fato de que arquelogos teriam encontrado fsseis animais em Novo Airo; a segunda

    resposta, um tanto pitoresca, refere-se a um sonho de um prefeito que, imediatamente

    ao acordar, teria decidido registr-lo erguendo a esttua do dinossauro na praa.

    Figura 4 Esttua do dinossauro na praa de Novo Airo

    Fonte: Arquivo pessoal.

    O movimento das guas proporciona cenrios diferentes aos turistas. De

    novembro a abril acontece a cheia dos rios, poca em que vrias ilhas ficam

    submersas e os animais se concentram em terra firme; e de maio a outubro, a seca,

    momento em que possvel conhecer as inmeras praias fluviais de areias brancas

    oferecendo um panorama nico em cada paisagem. Novo Airo ficou conhecida

    tambm devido qualidade na fabricao de barcos para a regio. Por isso, durante

    o perodo da seca, comum encontrar s margens dos rios barcos sendo construdos.

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    Essas informaes tursticas esto disponveis no Centro de Atendimento ao

    Turista de Novo Airo que fica logo na entrada da cidade. L tambm esto

    disponveis panfletos e flderes dos restaurantes e pousadas.

    Figura 5 Centro de Atendimento ao Turista de Novo Airo (CAT)

    Fonte: Arquivo pessoal.

    A cidade oferece muitos atrativos para os turistas, como os supracitados.

    Contudo, nos ltimos anos, outra atrao tem causado fascnio entre os visitantes: o

    boto vermelho. O municpio ganhou notoriedade e passou a ser conhecido como a

    terra do boto cor-de-rosa9, recebendo visitantes do mundo inteiro que querem

    conhecer os golfinhos de gua doce da Amaznia, como tambm so popularmente

    chamados. E justamente desse quesito que emana a inquietao, a configurao

    da problemtica deste estudo. Inicialmente percebo que Novo Airo (AM) uma

    cidade dividida entre a representao miditica de dois smbolos: um reconhecido

    pelas instituies oficiais, que o peixe-boi; e o outro, mais reconhecido pelos turistas

    e visitantes e tambm por parte da populao local, que o boto multifacetado em

    personagem do imaginrio dos encantados10 da Amaznia e como produto turstico.

    9 No documentrio Amaznia, viagem a mil rios, Jacques Cousteau refere-se ao boto vermelho como boto cor-de-rosa. Ao ser veiculado na televiso brasileira e europeia, a expresso passou a ser largamente popularizada, tornando-se, inclusive, tema de msica infantil em 1990. 10 Os Encantados, segundo Slater (2001, p. 203), esto intimamente ligados a uma mirade de guardies da floresta. So seres que habitam os rios e igaraps e se escondem nas matas. Possuem

  • 33

    Esses, possivelmente influenciados pela mdia, que neste trabalho ser tratada como

    tecnologias do imaginrio, abordagem terico-metodolgica desenvolvida por Silva

    (2006).

    O peixe-boi se tornou emblemtico no municpio em razo da abundncia da

    espcie que havia na regio. At bem pouco tempo, a caa a esse e outros animais,

    como tartarugas, macacos, aves e vrias espcies silvestres, era livre na Amaznia.

    O peixe-boi s passou a ser resguardado a partir de 1967 pela Lei de Proteo

    Fauna. Antes disso, os animais eram capturados para o consumo da carne,

    considerada uma iguaria da culinria local, inclusive, mencionada nos registros de

    viagem do padre Jos de Anchieta11, em que destaca: muito bom para se comer e

    mal se pode distinguir se carne ou se antes se deve considerar peixe. (VIOTTI,

    1984, p. 35). J o couro do peixe-boi, por ser muito resistente, tambm era aproveitado

    para fazer correias para mquinas. At a banha do animal, alm de se transformar em

    graxa para maquinrio, j serviu de combustvel para as lamparinas que iluminavam

    as ruas antes da energia eltrica (MAMIRAU, 2013). Em 1967, a caa foi proibida.

    No entanto, a espcie est ameaada de extino.

    O visitante, ao chegar em Novo Airo (AM), encontra um monumento com o

    braso do municpio apoiado em dois peixes-bois.

    um corpo humano e um corpo animal, suas manifestaes, ou aparies so conhecidas como encantarias e seus lugares de morada so designados como encantes. 11 Missionrio jesuta que participou de misses religiosas na Amaznia, no perodo do Brasil Colonial sculo XVII.

  • 34

    Figura 6 Monumento na entrada de Novo Airo (AM)

    Fonte: No Amazonas assim. Disponvel em: . Acesso em: abril, 2017.

    Na dcada de 1980, havia um aqurio com chafariz e peixes-bois na praa

    principal da cidade. Foi desativado por determinao do Instituto Brasileiro do Meio

    Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA) por no oferecer os cuidados

    de tratamento digno de acordo com as normas do rgo para a criao de animais em

    cativeiro.

    H, tambm, um festival folclrico em homenagem ao peixe-boi, j em sua

    vigsima segunda edio, protagonizado pelos grupos de brincantes das agremiaes

    Ja e Anavilhanas, os quais disputam o ttulo de campeo do ano com apresentaes

    temticas que hoje evidenciam a preservao do meio ambiente. Paradoxalmente,

    esse festival surgiu para celebrar os caadores que mais capturavam peixes-bois,

    como um prmio de reconhecimento pblico pelos seus feitos.

    Consta na Lei orgnica do Municpio de Novo Airo, de 05 de abril de 1990, no

    Artigo 39: Que sejam fixados em lei, nos termos do Art. 24, inciso VII da Constituio

    da Repblica, os Stios Arqueolgicos, a localidade de Airo e o Festival do Peixe-Boi,

    considerados patrimnio histrico, artstico e cultural, os quais sero protegidos pelo

    Poder Pblico Municipal. E tambm h o desenho de um peixe-boi na placa indicativa

    de localizao da Prefeitura de Novo Airo.

    http://noamazonaseassim.com.br/novo-airao/

  • 35

    Figura 7 Placa da Prefeitura de Novo Airo

    Fonte: Arquivo pessoal.

    notria a presena do peixe-boi enquanto smbolo de Novo Airo (AM). No

    entanto, a cidade passou a ser conhecida como terra do boto cor-de-rosa certamente

    por influncia da mdia na divulgao do boto domesticado por ribeirinhos da cidade.

    A seguir, podemos acompanhar alguns trechos de matrias em portais e sites

    que evidenciam o boto como atrao turstica. A primeira delas, do Portal Uol (Figura

    8), destaca: Terra do boto cor-de-rosa, Novo Airo cercada de ilhas e belas

    paisagens; no site Descobrindo o Amazonas (Figura 9), o destaque vai para a imagem

    do boto interagindo com os turistas; e no Portal Brasil (Figura 10), o ttulo sugere:

    Interao com botos atrao turstica em Novo Airo (AM).

  • 36

    Figura 8 Matria Portal Uol

    Fonte: Uol Viagem. Disponvel em: . Acesso em: abril, 2017.

    Figura 9 Descobrindo o Amazonas

    Fonte: Descobrindo o Amazonas. Disponvel em: . Acesso em: abril, 2017.

    http://viagem.uol.com.br/guia/brasil/manaus/roteiros/terra-do-boto-cor-de-rosa-novo-airao-e-cercada-de-ilhas-e-belas-paisagens/index.htmhttp://viagem.uol.com.br/guia/brasil/manaus/roteiros/terra-do-boto-cor-de-rosa-novo-airao-e-cercada-de-ilhas-e-belas-paisagens/index.htmhttp://descobrindooamazonas.webs.com/novoairo.htm

  • 37

    Figura 10 Portal Brasil

    Fonte: Portal Brasil. Disponvel em: . Acesso em: abril, 2017.

    O meu interesse por esse tema surgiu desses paradoxos que geraram alguns

    questionamentos. Como as narrativas que envolvem esse fenmeno relacionado

    linguagem e s representaes sociais desenvolveram esse imaginrio? Como se

    manifesta o imaginrio envolvendo o boto vermelho e as suas relaes com a cidade?

    Ser que a relao com a mdia provocou essa mudana e reconfigurou o fenmeno

    do boto encantado?

    As respostas para essas perguntas devem contribuir para um novo

    entendimento das relaes entre as populaes da Amaznia com as tecnologias do

    imaginrio e os interesses econmicos e culturais globalizados. possvel inferir,

    todavia, que o aparecimento do boto multifacetado nesse contexto pode estar

    relacionado com as contradies da prpria mdia que, numa viso globalizante,

    almejaria a hegemonizao das culturas. Hegemonia essa que nem sempre

    conquistada em razo das foras das culturas e dos saberes locais que se articulam

    tambm por meio de prprias redes e processos comunicacionais e, assim, acionam

    seus valores morais, suas ticas, seus smbolos de identidade e identificao, suas

    linguagens e suas estticas. importante conferir e compreender os fenmenos

    http://www.brasil.gov.br/turismo/2015/01/interacao-com-botos-e-atracao-turistica-em-novo-airao-amhttp://www.brasil.gov.br/turismo/2015/01/interacao-com-botos-e-atracao-turistica-em-novo-airao-am

  • 38

    socioculturais que surgem desses conflitos de vises de mundos distintos, porm

    complementares, antagnicos e concorrentes (MORIN, 2005). Nesse sentido,

    buscamos contextualizar as mltiplas significaes do fenmeno do boto em Novo

    Airo (AM) a partir da compreenso ecossistmica e dos estudos do imaginrio. E

    para compreender o contexto em que o fenmeno est inserido, convido-o a voltar no

    tempo e conhecer um pouco da histria do Airo Velho.

    2.1 AIRO VELHO

    A primeira vez em que ouvi falar de Novo Airo instigou-me saber o porqu da

    palavra novo. Se o novo remete ao antigo, ento existiu um Airo antes, que deve

    ter deixado seus vestgios e pegadas. Tive vontade de conhecer as runas da cidade

    original para descobrir o que havia acontecido com ela. Em pesquisas preliminares,

    encontrei algumas histrias sobre o Velho Airo, mas me pareceram muito rasas e

    sem confiabilidade. Acredito que para compreender melhor meu objeto de estudo

    necessrio contextualiz-lo, observando as interaes que existem entre os seres

    humanos, o ambiente e seu imaginrio, como eles se relacionam e se comunicam

    entre si, como acentua Morin: Conhecer o humano no separ-lo do universo, mas

    situ-lo nele. Todo conhecimento, para ser pertinente, deve contextualizar seu objeto.

    (MORIN, 2005, p. 37).

    Airo foi uma das primeiras povoaes nas margens do rio Negro, sendo mais

    antiga que a primeira capital do Amazonas, Barcelos. A cidade, poca de sua

    existncia, foi importante como um porto de recebimento e distribuio da borracha

    em razo da sua localizao estratgica.

    Atualmente conhecida como cidade fantasma, tendo vrias verses para

    explicar o seu abandono. A mais pitoresca delas a mais difundida e pode ser

    encontrada no Portal Amaznia (2011):

    A histria da cidade comeou no final do sculo 19, com um devastador ataque de formigas. O incidente aconteceu na comunidade de Airo Velho, hoje uma cidade fantasma. A invaso dos insetos ao municpio obrigou a populao a se mudar para a outra margem do rio Negro. Airo Velho abriga hoje apenas runas de uma igreja, enquanto a nova sede se desenvolveu e lar de 15 mil habitantes.

  • 39

    Alm da verso do ataque das formigas existem vrias outras, como: o relato

    de que ataques dos ndios Waimiri-Atroari foram determinantes para o abandono da

    cidade; ou a estagnao em virtude do uso no sustentvel dos recursos naturais e

    do extrativismo exacerbado de drogas do serto e de madeiras, por exemplo; ou a

    decadncia ocasionada pela queda do ciclo da borracha diante da produo da

    Malsia, ou ainda a mudana da capital para Manaus, o que tirou Airo da rota

    principal de navegao pelo rio Negro (LEONARDI, 2013).

    Talvez a combinao de todos esses fatores tenha contribudo com o

    despovoamento da regio, mas certo que, nessa poca, houve um grande desastre

    demogrfico que dizimou vrios povos indgenas em razo das epidemias, pois os

    ndios no estavam imunes s enfermidades trazidas pelos portugueses; alm do

    processo de escravizao dos ndios para a mo de obra extrativista que gerou forte

    resistncia e fuga, somado ao recrutamento forado para atividades de resgate e

    escravizao de outros povos indgenas, o que ocasionou, por exemplo, o

    enfrentamento com os Manas que foram trucidados porque se recusaram a participar

    de tais atividades como aliados dos portugueses, o que tambm pode ser visto na

    histria de resistncia envolvendo Ajuricaba.

    O historiador Victor Leonardi (2013, p. 26), em sua obra Os historiadores e os

    rios: natureza e runa na Amaznia brasileira, revela trechos de documentos e relatos

    de viajantes demonstrando a preocupao de Portugal com os territrios amaznicos:

    No incio do ano de 1693, o Conselho Ultramarino havia examinado em Lisboa, uma carta da Cmara do Par, na qual seus oficiais queixavam-se da grande falta de missionrios no distrito do rio das Amazonas. Segundo eles, a rea a ser evangelizada era imensa e nfimo o nmero de missionrios, o que prejudicava gravemente os to catlicos desejos de Sua Majestade.

    Debruado na margem direita do rio Negro, o aldeamento dos ndios Tarum

    deu incio ao povoado de Santo Elias do Ja em 1694, primeiramente com os

    mercedrios, e de maneira mais efetiva com os carmelitanos que construram a igreja

    de pedra em homenagem a Santo Elias, que ainda figura entre as runas do Velho

    Airo.

    O relato mais antigo de que se tem conhecimento sobre o povoado do frei

    Vitoriano Pimentel acerca da viagem que fez no ano de 1702. Nesse perodo, Santo

    Elias do Ja desenvolvia atividades missionrias e tinha sua economia com base no

    extrativismo, as drogas do serto, mas no era considerada uma economia forte. O

  • 40

    papel principal do povoado que foi crescendo lentamente era geopoltico, como

    descrito por Leonardi (2013, p. 29) no trecho a seguir:

    Santo Elias do Ja era uma fronteira, no fim do sculo XVII, a ponta mais avanada do processo de expanso (mercantilista) portugus pela Amaznia. Frei Vitoriano Pimentel sabia disso, pois um dos objetivos principais da sua viagem em 1702 era tentar convencer o padre Samuel Fritz jesuta a servio da Espanha, residente no Solimes da legitimidade das reivindicaes territoriais portuguesas sobre longos trechos desse rio.

    Por sua posio estratgica, o povoado foi se estabelecendo e ganhando

    sobrados, alm de atrair pessoas dos arredores para a festa do Divino Esprito Santo,

    evento celebrado com muita pompa na igreja dedicada a Santo Elias do Ja. Aqui

    cabe ressaltar a homenagem dos carmelitas ao seu inspirador espiritual, o profeta

    Elias, que d nome ao povoado e que, segundo o Antigo Testamento, tinha o poder

    de operar grandes milagres. Leonardi (2013, p. 239) destaca Quando Pedro, Tiago e

    Joo perguntaram a Jesus, no monte da transfigurao, se Elias devia vir primeiro, o

    mestre respondeu: Elias, quando vier primeiro, reformar todas as coisas. A escolha

    emblemtica do nome do povoado, um dos primeiros nas margens do rio Negro, no

    pode ser descartada nesta pesquisa ainda que seja uma informao bblica, pois o

    pesquisador no pode desconsiderar que os padres carmelitas que ergueram a igreja

    de pedra acreditavam que Elias viria primeiro para reformar todas as coisas, eles

    carregavam expectativas de que o povoado traria melhorias para a regio.

    Um processo de transformao aconteceu em 1759 quando o primeiro

    governador da capitania de So Jos do Rio Negro, Joaquim de Melo e Pvoas, eleva

    Santo Elias do Ja categoria de lugar, renomeado como Ayro, conforme descrito

    por Leonardi (2013, p. 31):

    Essa mudana de nome obedecia a uma poltica definida por Mendona Furtado, irmo do marqus de Pombal, em um momento em que a demarcao das fronteiras amaznicas entre espanhis e portugueses estava sendo feita tratados de Madri, de 1750, e de Santo Ildefonso, de 1777. Segundo essa geopoltica, os povoados amaznicos deveriam adotar nomes portugueses. Outros tinham, desde o incio, nomes desse tipo e assim permaneceram. A toponmia lusfona auxiliava, dessa maneira, os diplomas de Lisboa. Surgiram, assim, na Amaznia, localidades com nomes idnticos aos de vilas e cidades da metrpole: Silves, Santarm, Faro, Barcelos...

    E assim, Mariu passou a se chamar Barcelos, e Santo Elias virou Ayro. O

    sculo XVIII ficou marcado pela mudana de nomes dos povoados amaznicos e pela

  • 41

    construo de fortalezas na regio. Cada vez mais expedies percorriam os rios

    amaznidas, com destaque para o relato do brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira,

    uma das mais importantes fontes histricas para se estudar o Ayro. De acordo com

    Leonardi (2013, p. 32), Ferreira foi escolhido para chefiar uma expedio cientfica

    pela Amaznia no final do sculo XVIII e descreveu com detalhes o que encontrou no

    povoado:

    [...] das casas, que, nessa poca, distribuam-se em trs linhas paralelas ao rio: a da frente tinha seis casas; a segunda nove, incluindo as residncias do reverendo vigrio e do diretor; a terceira linha, apenas duas casas. Havia ainda um armazm e uma casa de forno. Os 148 moradores existentes em 1786 somavam 20 brancos, 126 ndios aldeados e dois pretos escravos.

    Segundo os relatos do viajante, com quase um sculo de existncia, no havia

    nada na localidade que indicasse prosperidade econmica e, embora possusse uma

    grande riqueza florestal, isso no se refletia em sobrados opulentos, o prprio

    madeirame da igreja encontrava-se estragado.

    Mas esse perodo de estagnao comeou a mudar quando a Europa e os

    Estados Unidos aumentaram o consumo de produtos feitos a partir do ltex das

    seringueiras para a fabricao de pneus, artefatos de borracha e materiais cirrgicos,

    por exemplo. O Brasil, como maior produtor mundial, comeou a exportar a matria-

    prima, e a regio amaznica, que possua o maior nmero de seringueiras nativas,

    passou a receber os soldados da borracha12, imigrantes, principalmente nordestinos

    que vieram para trabalhar nos seringais.

    Sobre esse perodo, h um fato extremamente interessante e pitoresco: um

    lugar chamado Caverna das Profecias, onde acontecia um ritual de entrada no Ja,

    realizado pelos seringueiros para predizer a sorte:

    Todos os seringueiros que cortavam seringa de machadinha nos rios Ja e Carabini tinham por obrigao parar sua canoa ou batelo, que eram movidos a remo ou a vela, para passar, um por um, por esse buraco. Aquele que entrasse na parte de baixo da caverna e sasse na parte de cima sem dificuldades ia fazer muita borracha e gozar de muita sade durante a safra, e passaria ainda estaria vivo o dia de So Joo do prximo ano. Porm, aquele que tivesse dificuldades para passar, ou por azar no pudesse sair, ia ter um pssimo fabrico de borracha e estava sujeito a adoecer e morrer ao

    12 A denominao foi dada ao exrcito de imigrantes, principalmente nordestinos, que foi mobilizado durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945) para servir na Amaznia. Os jovens em idade militar eram convocados pelo Estado brasileiro e precisavam escolher entre os campos de batalha, na Itlia; ou extrair o ltex da seringa, na Amaznia; os que escolheram se embrenhar pela floresta ficaram conhecidos como Soldados da Borracha.

  • 42

    ser atacado pelo beribri e o impaludismo que assolavam os seringais, esta pessoa jamais passaria o dia de So Joo do prximo ano. (LEONARDI, 2013, p.160).

    Essas singularidades demonstram as idiossincrasias amaznidas e revelam

    caractersticas que no podem ser desconsideradas em uma pesquisa ecossistmica.

    So especificidades locais e regionais que demonstram uma maneira de ver e sentir

    que nica e que pode ser compartilhada pelos conhecedores das sutilezas

    amaznicas. notrio que a histria do Airo est envolta em verses e apresenta

    vrios elementos enigmticos, expresses da forma cabocla de ver a vida e da relao

    do homem com a natureza. H uma fora mtica na histria de Santo Elias do Ja que

    o colocava como local de esperana e que continua presente nas narrativas do Novo

    Airo. Santo Elias ainda figura na nova Airo nomeando um bairro na cidade.

    preciso encontrar as conexes, as pontes entre a natureza, o homem e a sua histria.

    Sem isso, estaremos fadados a ver fontes de conhecimento sobre a vida e a histria

    se transformando em runas, como bem destaca Leonardi (2013, p. 237):

    E foi assim que o Velho Airo virou ruinas. Quando o ltimo morador, senhor Joo Bezerra de Vasconcelos Filho, abandonou a terra onde havia nascido, a pessoa que transportou sua mudana, senhor Carlos Gouva, retirou, pouco antes de partir do porto fluvial da velha povoao, a placa com o nome da rua principal. Esta placa est at hoje em sua casa no Novo Airo. Graas a esse senhor, ficamos hoje sabendo que a rua principal daquela pequena cidade em runas chamava-se rua Occidental. Esse nome concentra e expressa todos os paradoxos e contradies da histria regional amaznica: terra de ndios e caboclos, de sumamas gigantes e castanheiras generosas; mas, tambm, terra cujas elites sempre viveram de costas para a floresta e com os olhos voltados para Lisboa, Paris e Londres. Por isso, rua Occidental. Bela expresso literria de um fim que afinal se concretizou: os telhados das casas desabaram, a igreja de Santo Elias est em runas, no armazm do porto vivem borboletas e passarinhos, no cemitrio o mato cresceu, e uma grande ona do tamanho de uma anta disse-me o senhor Carlos Gouva, que j a viu passeia por ali, tranquila, soberana, atravessando de dia e de noite a antiga rua Occidental.

    De acordo com o histrico do municpio encontrado no site do IBGE, em 1833

    Airo Freguesia pertencente ao Termo de Manaus. Em 1938, transformada no

    Distrito de Airo, ainda subordinada ao municpio de Manaus. Essa ligao com a

    capital permanece por alguns anos, como descrito por Leonardi (2013, p. 153):

    No se deve esquecer que, alm disso, enquanto no foi criado o municpio de Airo, em 1955 com sede posteriormente transferida para Novo Airo/Tauapessassu , essa localidade pertenceu ao municpio de Manaus,

  • 43

    que capitaneava, assim, toda a poltica do baixo rio Negro na Repblica Velha.

    Finalmente, em 1955 o Distrito de Airo desmembrado de Manaus e, em

    1956, elevado categoria de cidade. Aps a mudana da sede do municpio, os

    moradores comeam a ocupar a rea da margem direita do rio, abandonando

    definitivamente o antigo povoado de Santo Elias do Ja (LEONARDI, 2013, p. 20):

    No caso do Velho Airo, no houve apenas crise, houve, de fato, arruinamento, de forma total e definitiva: a cidade Airo foi elevada categoria de municpio em 1955 no tem mais nenhum morador h muitos anos, nenhuma casa cujo telhado no tenha cado, nenhuma rua com algum vestgio recente de presena humana e convvio social. A prpria rua Occidental a principal rua do Airo s transitada hoje por animais silvestres. No entanto, Airo j teve escola, prefeitura, cartrio, padaria, taverna, sobrados, armazns, lojas, duas igrejas... Hoje tudo est estragado e destrudo. Arruinamento o ato ou efeito de ficar sem recursos. Foi exatamente isso o que aconteceu com o Velho Airo ao longo dos anos: ficou sem recursos, desacreditado, dia aps dia, at perder-se, para sempre.

    Segundo o blog Novo Airo em foco, quando o ltimo morador deixou a cidade,

    em 1985, a Marinha do Brasil passou a usar a cidade abandonada como rea para

    exerccio de tiros de seus navios at que em 2005 foi tombada pelo Instituto do

    Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN). Nesse ponto da pesquisa surgiram

    indagaes sobre como foi permitido usar um lugar to cheio de memrias para testes

    de tiro e mssil, um bombardeio contra nossas entranhas histricas e contra a prpria

    memria beligerante dos Tarum, os guerreiros audaciosos que ocuparam

    inicialmente o lugar. Em viagem ao Airo, o historiador Leonardi (2013, p. 138) deixa-

    nos entrever sua percepo ao revelar que

    [...] as runas do Airo suscitavam em mim uma sensao de estar diante de um enigma, quis dizer, justamente, o quanto a histria da Amaznia complexa e cheia de desigualdades: pelo Airo passavam mquinas a vapor, no sculo XIX, e passageiros a bordo daqueles barcos, e pelo Airo passavam tambm ndios Waimiri-Atroari, com seus arcos, flechas e bordunas, tentando ainda disputar, com os brancos, uma terra para sempre conquistada...

    Aps anos de total abandono, em 2002 Airo Velho ganhou um guardio, um

    imigrante japons chamado Shigeru Nakayama. Segundo ele, o local recebe visita de

    pesquisadores, jornalistas e turistas, principalmente estrangeiros. Em entrevista para

    o Portal A Crtica, no ano de 2015, o nico morador virou especialista em assuntos

    http://pt.wikipedia.org/wiki/IPHAN

  • 44

    sobre o Airo Velho e chama ateno ao falar sobre o descaso com a conservao

    da estrutura e da histria do local. Por conta disso, o guardio cuida com muita

    dedicao dos objetos encontrados por ele e revela em entrevista (AFFONSO, 2015):

    Comecei a organizar um pequeno museu num dos quartos da casa onde moro com as coisas que acho [...] Para quem tem condies, fcil e rpido montar um museu, mas para quem no tem, como o meu caso, aos poucos. E tudo que acho guardo: um pedao de ferro, uma foto antiga. Mas tem tambm telhas portuguesas, uma garrafa holandesa antiga, um artefato indgena, uma espingarda do sculo passado....

    Atualmente Airo Velho patrimnio histrico, est situado no Parque Estadual

    Rio Negro Setor Norte e fica prximo aos Parques Nacionais de Anavilhanas e Ja.

    Segundo o senhor Nakayama, o local hoje, conserva apenas nove prdios, sendo s

    dois de alvenaria, alm de trs runas e um cemitrio, com lpides que datam de

    meados do sculo 19. (AFFONSO, 2015).

    A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentvel (SDS)

    realizou uma audincia pblica em 2014, em Novo Airo, em que foi aprovada a proposta

    de criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentvel (RDS) nas imediaes do Parque

    Estadual Rio Negro. Segundo a secretria da SDS, Kamila Amaral, em entrevista ao Portal

    G1 Amazonas (COMUNITRIOS, 2014),

    a finalidade de criar a RDS a conservao da biodiversidade, proteo dos cursos dgua e conectividade biolgica dos fragmentos florestais; alm do acesso das mais de 200 famlias moradoras da regio aos recursos e polticas pblicas disponveis.

    Na ocasio, tambm foi debatida a questo da conservao e proteo do

    patrimnio histrico existente, especialmente as runas de Airo Velho.

    Em que pese a proximidade a Manaus e a facilidade de acesso, o que se observa

    que no houve movimentao aps a aprovao e a histria continua se transformando

    em runas. Leonardi (2013, p. 12) ainda nos alerta: As runas do Airo ensinam que o

    futuro da Amaznia requer respeito e reciprocidade com os amaznidas e sua

    esplendorosa natureza. So tantos paradoxos e contradies em uma histria que nos

    permeia de questes e provocaes. Airo Velho permanece to enigmtico quanto as

    guas do rio Negro.

  • 45

    3 ENTRONCAMENTOS E ATRAVESSAMENTOS: PERCORRENDO A TRILHA

    INVESTIGATIVA

    O imaginrio um rio cujas guas passam muitas vezes no mesmo lugar, sempre iguais e sempre diferentes.

    (SILVA, 2006, p. 8).

    A produo do conhecimento cientfico em Comunicao na Amrica Latina

    muito recente, uma cincia jovem, que ainda est em construo. As investigaes

    acerca dos fenmenos comunicacionais tm apenas dcadas de existncia no Brasil,

    onde o primeiro curso de Jornalismo foi criado em 1947 na Faculdade Csper Lbero

    (SP). A esse respeito Frana e Simes destacam que:

    Em linhas gerais, pode-se dizer que a pesquisa em comunicao na Amrica Latina teve incio apenas a partir da segunda metade do sculo XX. Embora os primeiros cursos de Jornalismo datem dos anos 1930-1940, o incio do sculo registra somente trabalhos esparsos sobre a histria e a legislao do Jornalismo. A partir da, e at o final do sculo XX, podemos grosso modo, identificar trs fases: o surgimento dos primeiros estudos, sob influncia americana; a fase crtica, de denncias e proposies, por volta da dcada de 1970; o vis culturalista, a partir dos anos 1980. (FRANA; SIMES, 2016, p. 163).

    Isso pode explicar o desenvolvimento e a consolidao dos centros de pesquisa

    dos Estados Unidos e da Europa e a influncia que eles exerceram e ainda exercem,

    por meio das suas teorias e prticas, na pesquisa em Comunicao no Brasil.

    Vale ressaltar que as pesquisas em comunicao surgem na esteira das

    preocupaes dos cientistas com os impactos do modo de produo capitalista o

    que fez as tecnologias de um modo geral saltarem em quantidade e aperfeioamento

    sobre a comunidade humana principalmente. Assim, as teorias e prticas

    comunicacionais privilegiam um jeito de conceber o mundo a partir da sua matriz

    ocidental e ocidentalizante. Alis, uma matriz que, embora sinalize para uma

    necessidade hegemnica de entendimento do mundo, abriga uma enorme diversidade

    de pensamentos13.

    Evidentemente que esse processo, no campo acadmico e intelectual, est

    permeado por crticas e contrapontos aos avanos e limitaes das teorias

    comunicacionais e suas aplicaes. De certo modo, foi essa diversidade terica e

    13 Uma panormica destas abordagens encontrada na obra Teoria do Jornalismo de Pena (2010).

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    prtica que potencializou a pesquisa e os estudos da comunicao nas universidades

    e em seus centros de pesquisa ao longo desses anos. No demais relembrar que

    essa situao est vinculada, quase sempre, aos saltos tecnolgicos que afetam o

    modo de pensar, viver e agir em partes significativas do planeta14.

    O desenvolvimento das tecnologias e seus efeitos sobre a humanidade so,

    portanto, resultados de um longo processo de articulao tecnolgica e cientfica, de

    experincias e vivncias que contriburam para a formao de reas especializadas

    nos diversos setores do pensamento, com o intuito de organizar o mundo da cincia,

    da sua produo, disseminao e aplicabilidade. No geral, o pensamento ocidental

    clssico/moderno desde Scrates e, mais contemporaneamente, desde Newton e

    Descartes tende a se organizar de modo racional e racionalizante em disciplinas,

    em fragmentos. Como j dissemos, isso tem uma lgica: a provvel hegemonia de um

    modo de vida e suas variveis de interesse. No obstante, esse jeito de se pensar e

    se fazer cincia esteve e est sempre fustigado por outras formas de concepes,

    interpretao e viver no e para o mundo, como os conhecimentos de determinadas

    filosofias, das artes, das religies, das cosmologias e cosmogonias tnicas indgenas

    que, em vez de se separarem da relao (comunicao) subjetiva do conviver e viver

    se mantm inter-relacionados a elas15.

    Entendemos, assim, que as sociedades clssicas/modernas fundamentaram

    seus conceitos nos saberes assentados a partir de cada novo paradigma, porm,

    paradigmas que almejam a verdade por meio de um nico jeito de pensar: o racional,

    que, desdobrado nas suas variveis de interesse, tende a se tornar racionalizante, no

    sentido de que s se deve chegar verdade e a uma nica verdade por meio dos

    pressupostos da razo.

    Sabemos, agora de antemo, que as cincias se formulam, se fortalecem e se

    estabelecem no tempo e no espao de momentos culturais, inclusive das culturas

    polticas, como nos comunica Kuhn (1997), e por elas esto influenciadas (ou por que

    no determinadas?!. Enquanto isso, outras formas ou contraformas de elaborao de

    conhecimento no so avalizadas pelo establishment acadmico e, por isso, so

    colocadas na margem desse processo. Porm, como o pensamento atitude

    14 O livro A Galxia da Internet de Castells (2003) faz um apanhado histrico e crtico desses avanos. 15 Embora este tema esteja presente em outros autores, inspiramo-nos especificamente para este trabalho, nos estudos de Durand (2010) sobre a relao razo-verso-desrazo no contexto do imaginrio.

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    (GEERTZ, 2001), as cincias persistem em ao e, s vezes, latentes como sementes

    em busca de brechas para brotar autopoieticamente.

    Por isso, seria prudente dizer que a produo de pesquisa e a construo de

    conhecimento esto inseridas em um contexto de diversidade cultural e de sabedorias

    mltiplas. No entanto, mesmo diante desse contexto, podemos perceber o quanto a

    rigidez epistemolgica, inspirada nos moldes do mtodo cartesiano, ainda busca

    alcanar a verdade cientfica absoluta. Perde-se, assim, o olhar da/e sobre a

    complexidade da vida, dando nfase apenas aos resultados cientifizantes, separando

    o sujeito do objeto, a razo da desrazo, a certeza da incerteza, a natureza, a cultura

    e o cos