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FILOSOFIA E OUTRAS FORMAS DE CONHECIMENTO Por Ivanor Luiz Guarnieri 1 Introdução O que a palavra filosofia evoca? Seguidamente se ouve dizer que a filosofia é um conhecimento que, além de difícil, é inútil. Ou que o filósofo está com a cabeça no "mundo da lua". É conhecida a história de Tales de Mileto, quando andava contemplando o firmamento e caiu em um buraco. Sua escrava o ajudou a levantar-se e questionou-o como ele queria entender o céu se não olhava sequer o mundo aos seus pés. Ou ainda a história de Sócrates que ouvia as reclamações de sua mulher, Xantipa. Como ele pouca importância dava aos gritos dela, esta jogou água sobre ele. Sócrates então teria exclamado: "Depois do trovão vem a chuva". 2 Histórias como estas podem ter levado algumas pessoas a acreditar que a filosofia é um conhecimento exótico, estranho e distante da realidade. Mas nada disso é verdadeiro, como se procurará mostrar. É que enquanto a maioria se ocupa de discursos laudatórios à realeza, o filósofo questiona o que é a realeza, que é o louvor, por que um homem deve elogiar outro, por quais motivos se devem elogiar, quais as melhores ações, portanto dignas de louvor e se a realeza tem tido tais ações. A afirmação de que alguém é tido como honesto suscita a questão 1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, Campus de Vilhena 2 Citado por MENDONÇA, E. P. de. O Mundo Precisa de Filosofia. 6. ed. Rio de Janeiro : Agir, 1981. Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 1

FILOSOFIA E OUTRAS FORMAS DE CONHECIMENTO

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FILOSOFIA E OUTRAS FORMAS DE CONHECIMENTOPor Ivanor Luiz Guarnieri1

Introdução

O que a palavra filosofia evoca?

Seguidamente se ouve dizer que a filosofia é um conhecimento que, além de

difícil, é inútil. Ou que o filósofo está com a cabeça no "mundo da lua". É conhecida a história

de Tales de Mileto, quando andava contemplando o firmamento e caiu em um buraco. Sua

escrava o ajudou a levantar-se e questionou-o como ele queria entender o céu se não olhava

sequer o mundo aos seus pés. Ou ainda a história de Sócrates que ouvia as reclamações de sua

mulher, Xantipa. Como ele pouca importância dava aos gritos dela, esta jogou água sobre ele.

Sócrates então teria exclamado: "Depois do trovão vem a chuva".2 Histórias como estas

podem ter levado algumas pessoas a acreditar que a filosofia é um conhecimento exótico,

estranho e distante da realidade. Mas nada disso é verdadeiro, como se procurará mostrar.

É que enquanto a maioria se ocupa de discursos laudatórios à realeza, o filósofo

questiona o que é a realeza, que é o louvor, por que um homem deve elogiar outro, por quais

motivos se devem elogiar, quais as melhores ações, portanto dignas de louvor e se a realeza

tem tido tais ações. A afirmação de que alguém é tido como honesto suscita a questão

filosófica que pergunta o que é a honestidade. Isso remete ao problema dos fundamentos e dos

critérios derivados desses fundamentos, que permitem julgar e aquilatar acerca das coisas que

cercam as pessoas e fazem parte de seu dia a dia.

É notório como hoje há um crescimento nos estudos filosóficos, ou seja, as

questões de ordem política, ética e do conhecimento, embora não sejam distinguida

claramente por alguns, são sentidas como relevantes e dignas de reflexão. Tal pode ser

observado na presença cotidiana da filosofia, nas mais diferentes situações. Bastaria

considerar as atitudes, os projetos, os trabalhos encontrados em uma escola para perceber, ao

menos implicitamente, a presença da filosofia no próprio trato metodológico do que é

estudado. Mesmo que alguém diga: "Eu não sigo nenhuma filosofia." Isto já é filosofia, ao

menos no sentido amplo do termo.

O homem moderno está apaixonado pelo fazer e esqueceu-se ou tem dado pouca

importância ao contemplativo. A própria palavra contemplativo gera desconforto em alguns,

imaginando que se trata de ficar olhando as nuvens, interessado em coisas de pouca monta. 1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, Campus de Vilhena2 Citado por MENDONÇA, E. P. de. O Mundo Precisa de Filosofia. 6. ed. Rio de Janeiro : Agir, 1981.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 1

Não é nada disso, contemplar é antes um breve afastamento da realidade massacrante do dia a

dia, para poder olhar melhor. Como se alguém estivesse no vale contemplando a montanha,

ou subisse a montanha para olhar melhor o vale, a contemplação filosófica permite observar

aspectos nem sempre claros acercado mundo3. Enquanto alguns se preocupam em como fazer,

a filosofia ocupa-se do porque fazer, para que fazer, quem se beneficia com o fazer das

coisas. Esperançosos em realizar grandes feitos e amealhar fortuna, conviria refletir acerca

dessa vontade, pois que, seguidamente, o desejo em ter sempre mais, nem sempre torna o

homem dono das coisas, e considerando uma ambição desenfreada em ter, é possível dizer

que, nesse caso, não é pessoa dona de muitas coisas, mas quase sempre as coisas é que são

donas da pessoa. Portanto, não só o como ter é importante, tanto ou mais importante é o

porquê ter, e este questionamento é antes de tudo filosofar.

A presença da filosofia se faz sentir nas doutrinas religiosas, no pensamento

político, nas teorias econômicas, na base da ciência, na preocupação com o método, nos

inúmeros questionamentos e julgamentos de valor, enfim, é possível afirmar que a filosofia é

o oxigênio no tocante a racionalidade. O homem sempre procurou teorizar, encontrar

explicações para o mundo que o cerca e constantemente lhe trazia pavor. Daí as inúmeras

formas explicativas de mundo, e todas elas partem de um posicionamento. O porquê deste ou

daquele posicionamento é uma atitude filosófica, mesmo que nem sempre se dê conta disso.

1.1- O senso comum, a consciência filosófica

Seguindo este raciocínio, podemos dizer que todos os homens, desde o primitivo

até aqueles tidos como os mais brilhantes, são filósofos. Todos buscam organizar suas idéias

em teorias explicativas de mundo. O cientista quando está em seu laboratório pesquisando

uma vacina capaz de curar algum mal, ou criando uma terrível bomba, capaz de matar

milhares, embora possa dizer que como cientista o que lhe interessa é o conhecimento por si

mesmo, já tomou uma posição ético/filosófica a favor ou contra a vida. "Por trás" das atitudes

e posições existe sempre um pressuposto filosófico, então se dizer que todo homem é

filósofo, capaz de posicionamento diante dos problemas e de ações baseadas neste

posicionamento.

Quanta vez se ouve falar em liberalismo, comunismo, anarquismo, etc., pois estas

teorias que tanto ouvimos é resultado de interpretações de mundo dadas por homens capazes

de formulações teóricas elaboradas. A filosofia, portanto, não é inocente e desinteressada. O

3 Mundo entendido como mundo humano, de cultura.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 2

mundo de hoje está fundado em concepções liberais. O Liberalismo é um conjunto de ideias

cuja constituição foi levada a efeito pelos filósofos da chamada Ilustração, notadamente no

século XVII e XVIII. Por essas teorias defende-se a liberdade individual, afirma-se que os

homens nascem livres e iguais, e deseja-se que todos tenham os mesmos direitos - muito

embora a realidade cotidiana tenha desmentido a igualdade. Tais ideias fazem parte do

cotidiano de milhões, bilhões de pessoas que vivem no capitalismo, apesar de detalhes de

realidades sociais e econômicas entre os povos variar.

A história tem mostrado exemplos da influência de certas idéias sobre o destino

de povos inteiros. Basta lembrar a implantação ou tentativa de implantação de idéias no

campo político. Milhões de pessoas vivem sob regimes cujos princípios foram extraídos da

filosofia marxista ou mais genericamente do materialismo histórico.

As concepções de mundo medievais determinavam a vida e as relações entre as

pessoas. Em um tempo onde se a realidade não estava de acordo com as idéias, era porque a

realidade estaria errada, e se tornava necessário encaixar a realidade às idéias. Pensamentos

estes varridos pela chamada revolução copernicana e pelas novas concepções de ciência e de

homem, marcantes nos séculos XVII e XVIII.

Do que foi dito nesta introdução fica patente a importância da filosofia. Mas esta

importância se verificará ainda mais, a medida que a o estudo avançar, retirando dele frutos

proveitosos para uma melhor compreensão de mundo e um aprofundamento das questões que

norteiam a cosmovisão que todo ser humano possui, e com a qual se posiciona no mundo,

desenvolvendo o poder de análise sobre a realidade circundante, a possibilidade de acerto nas

decisões tende a aumentar, claro. Nasce disso a questão tão difundida em filosofia que

aponta: Não devemos perguntar o que faremos com a filosofia, mas sim o que a filosofia fará

por nós.

Filosofia

Partindo da própria palavra filosofia, formada por dois vocábulos, cujo

significado é filo=amigo; sofia=sabedoria. Mas dizer isso é insuficiente, embora possa dar

uma pista. Já que o filósofo estaria preocupado com a sabedoria, surge porém outro

problemas: o que é sabedoria?

Tentar uma outra definição de filosofia é possível. Porém é igualmente

importante para o estudante, ele mesmo buscar em dicionários possíveis definições da

filosofia. Seja em dicionário de língua portuguesa ou, melhor ainda, em dicionários de

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 3

filosofia4. Encontrará o estudante sedento de conhecimento, inúmeras definições de filosofia.

Tal quadro não deve desanimá-lo, mas mostrar a complexidade do termo.

Em vista disso, convém doravante fazer uma breve análise das possibilidades e

do campo de estudo da filosofia. Tal esforço levará a conhecer os estudos filosóficos, sue

campo, sua problemática, levando a uma maior compreensão da disciplina, e quanto maior a

compreensão maior importância será dada a ela.

Claro que a filosofia é uma atividade. Mais é uma atividade humana intelectual e,

portanto visa ao saber. Dizer isso é dizer o óbvio. Importante, porém é começar pelo

conhecido para chegar ao desconhecido.

Sendo a filosofia uma atividade intelectual, seu objeto de estudo será o saber. Um

saber é sempre um saber sobre algo. Este algo é a realidade. Ora, mas a ciência também tem

como objeto de estudo a realidade. O que muda então? Muda a perspectiva do objeto no ato

de filosofar. A perspectiva da ciência é o experimentável, o empírico. A perspectiva da

filosofia é o inexperimentável, o meta-empírico. É diferente estudar a evaporação da água e

estudar o princípio da não contradição de Aristóteles. O experimentável corresponde ao que é

mensurável, ao fenômeno, segundo Kant. O inexperimentável corresponde ao que não é

mensurável, ao noumeno.5

Todos nascem com estas duas perspectivas de estudo: o fenômeno e o noumeno.

Alguns têm um pendão maior para a ciência, outros para a filosofia. Mas todos tem, em

maior ou menor grau, percepção filosófica, o "olho filosófico". Prova disso é que toda vez que

são emitidas opiniões sobre assuntos de ordem ético-moral, julgamentos acerca da beleza dos

seres, afirmação ou negação de uma idéia são utilizadas como base critérios de verdade,

critérios de justiça e outros, próprio da visão de mundo, de cada um.

Do que foi dito até aqui, é possível ter um a idéia do que seja a filosofia: estudo

do inexperimentável. A sugestão é aceitar esta idéia provisoriamente. Na medida em que

estudar a filosofia estará o estudante ampliando seus horizonte e o poder de penetração de seu

"olho filosófico".

Todos nascem em um meio, e deste meio, mais a personalidade, elabora uma

constelação psicológica, uma cosmovisão. É objetivo chegar ao final de dos estudos neste

período, com o modo de perceber o mundo e nisso incluem principalmente as relações

estabelecidas entre os homens e dos homens com a natureza, em especial num período de

4 Neste caso sugerimos: ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo : Mestre Jou, 19825 Baseado em DREHER, E. Que é Filosofia? 2. ed. Curitiba : Vicentina, 1977

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 4

grande avanços da ciência e debates acirrados sobre a medicina, a clonagem, a ética nas

comunicações e inúmeras outras questões sobre as quais a pedagogia é chamada a pronunciar-

se. A presença da filosofia é tão certa que até para negar a filosofia é preciso filosofar.

1.2- A questão teológica

Ao tratar das questões pertinentes a teologia, é necessário esclarecer que não se

pretende "discutir religião". A crença religiosa está assentada na fé, enquanto a teologia ou o

conhecimento teológico busca valer-se de explicações racionais para entender, aquilo que na

falta de um termo melhor se poderia chamar de: " a manifestação do fenômeno divino".

Portanto, religião não se discute, se vive, assim como a fé, enquanto a teologia se

estuda. Guardar a fé, mas isso não impede, e é mesmo salutar, estudar as diferentes religiões.

Teologicamente não há porque não estudar o Muçulmanismo ou o Budismo (embora deste há

quem diga não ser religião) ou o Cristianismo. É até mesmo uma experiência importante para

crescer como pessoa, compreendendo as diferentes formas de conceber a idéia de Deus, e,

espera-se, ser mais tolerantes com pessoas de crenças diferentes.

A teologia tomada pelo sentido da palavra compreende o estudo de Deus, donde

Theos- Deus, logia- estudo, razão, discurso sobre alguma coisa. As dificuldades em estudar

Deus são infindas. Em vista disso, a teologia busca compreender as manifestações religiosas,

os diferentes argumentos acerca da existência de Deus, de seus possíveis atributos, etc.

Em termos de filosofia, o homem sempre se indagou sobre a existência de Deus.

Contudo é possível considerar estéril a discussão do tipo: "Você acredita em Deus?" ou

"Você não acredita?". A respeito disso, convém lembrar o que respondeu Einstein a um

jornalista que formulara esta pergunta, disse ele: ”Inicialmente defina-me o que você

entende por Deus e, então, eu lhe direi se acredito Nele"6 (grifo dos autores).

É notória a dimensão do sagrado. Mas já foi maior. O sagrado e o profano

assumem duas dimensões. Se considerar a casa, a alimentação e o sexo, para o homem

moderno, trata-se de fenômenos material, biológico, bem diferente do que entendia o homem

arcaico. Por isso, embora seja história da religião, o estudo do sagrado e do profano podem

interessar ao filósofo, ao sociólogo, ao fenomenólogo. Importante também colher exemplos

6 HUISMAN. D. & VERGEZ A. O Conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1978, p. 343

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 5

concretos, tirados em diferentes religiões e diferentes culturas. Nestas diferentes culturas,

encontramos a hierofania, que significa: "algo de sagrado se revela"7. *

Para fins didáticos, convém considerar algumas posições assumidas dentro da

filosofia, com relação ao problema do sagrado, ou do divino.

Teísmo: É a posição defendida por aqueles que declaram acreditar na existência

de um Deus, visto como o Criador do universo e transcendente ao mundo criado. A

representação de Deus é feita a nossa imagem. Trata-se, em geral de um Deus

antropomórfico.

Panteísmo: A idéia de que tudo é Deus, ou Deus está em toda parte. Os panteístas

proclamam a unidade fundamental do Universo. Deus é imanente ao universo pois sendo Ele

infinito, não poderia criar nada fora Dele mesmo. Se criasse, a soma resultaria em algo que é

mais que Deus, o que é absurdo.

Ateísmo: É a posição dos que negam a existência de Deus. Não há um Deus. A

matéria é perpétua - não infinita, pois isto significaria uma forma de temporalidade.

Agnosticismo: Negam a possibilidade de saber se Deus existe ou não. "O

Absoluto é um oceano para o qual não temos barco nem vela". (Littré).

Estas são apenas algumas das posições, que julgamos oportuno citar aqui, a título

de exemplo.

São Tomás de Aquino (1225 - 1274), procurando encontrar provas racionais da

existência de Deus, formulou alguns princípios, como: A noção do movimento, para o qual se

exige um primeiro motor. A inteligibilidade do vir-a-ser, segundo o qual tudo que se move é

movido por outro, nada pode ser causa de si mesmo. Prova pela existência de seres

contingentes. Neste caso, se os seres são contingentes, de onde vem a idéia de perfeição?

Deve vir de um ser que seja suma perfeição: Deus. Estes são alguns exemplo, os quais serão

retomados quando dos estudos da filosofia da ciência, e a questão dos paradigmas na filosofia

medieval, profundamente marcada pela teologia.

Em princípio, é importante que fique claro não estar sendo feita aqui apologia a

esta ou aquela crença. O objetivo e perceber posicionamentos diferentes acerca deste

problema. Em filosofia, a tentativa de justificar a existência de Deus por meios racionais

chama-se Teodicéia, i. é, justificação de Deus.

7 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo : Martins Fontes, 1996. p. 17* Caso queira se aprofundar nas questões do sagrado, um bom começo é o livro de Mircea Eliade citado acima.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 6

1.3 - O conhecimento nas ciências

A palavra ciência evoca uma série de sentimentos no homem moderno. Segurança

e satisfação por se tratar de algo diretamente ligado ao racional. É comum sentir orgulho da

ciência, e olhar para as pessoas que trabalham com ela, com respeito e admiração. Não é para

menos, a todo o momento as pessoas são bombardeadas com idéias, comerciais, filmes, etc.,

que enaltecem o papel da ciência e do cientista. Comerciais que apresentam produtos

“testados cientificamente”, ou elaborados nos melhores “laboratórios”.

O conceito de ciência variou, contudo. Dentro da história, o que os gregos

entendiam por ciência, não é o mesmo que os homens do Renascimento pensavam, e mesmo o

conceito de ciência hoje é próprio de nossa época. Isso não significa dizer que há uma

continuidade no desenvolvimento da ciência, no sentido de progresso. Não se trata de pensar a

ciência como uma evolução. Isso seria valer-se de uma idéia de tempo linear, positivista, que

compreende o presente como melhor que o passado, e o futuro como sendo superior, resultado

de uma evolução. Se observarmos bem, veremos que a física pensada por Aristóteles é

diferente da física de Galileu e deste diferente da física moderna. Não que tenha havido uma

evolução na física, mas rupturas, como veremos adiante. Cada momento é pensado com seus

próprios problemas, com seu paradigma. O enfoque dado ao problema da física é diferente em

cada momento. Podemos afirmar que a física de Aristóteles não foi melhorada pela física de

Galileu, foi abandonada, e se pensaram outros modelos, outro paradigma.

Na Grécia Antiga, Empédocles explicava a constituição dos objetos, a partir de

quatro elementos, que se combinavam entre si. Platão, por sua vez afirmava que o

conhecimento que temos dos sentidos físicos, constituem a doxa, a opinião, enquanto a

ciência, episteme, resultado das idéias imutáveis, que constituíam para ele a essência dos

seres.

Para Aristóteles, as coisas naturais são constituídas de quatro elementos, conforme

afirmava Empédocles. Da combinação destes quatro elementos, resultavam os corpos leves e

os corpos pesados. Sendo os leves destinados a subir, pois o “lugar natural” deles é para cima,

neste exemplo, podemos citar os derivados do fogo, como a fumaça. Os corpos pesados,

compostos de terra, tendem para baixo.

Ainda segundo Aristóteles, os astros celestes estavam organizados em esferas

circulares (Círculo era o símbolo da perfeição para os gregos), sendo sete esferas principais

(os sete céus) e outras menores, totalizando 55 esferas. Quanto mais alto, nas esferas, tanto

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 7

mais próximo da perfeição, pois nelas, a quintessência, impede a corrupção dos corpos, e

também por se aproximar mais do Primeiro Motor, identificado com a idéia de Deus.

Com estes exemplos é possível observar a busca de explicação para o mundo

natural, a partir do uso da razão, sem ocupar-se com experimentos e métodos. Acreditava-se

que seria possível conhecer a natureza tal como ela é – e não como uma representação.

O período medieval, fortemente influenciado pelas idéias gregas, em especial

Platão, que serviu de inspiração à Santo Agostinho e Aristóteles, chamado de “O Filósofo”

por São Tomás de Aquino. Como no exemplo dos gregos, os intelectuais da Idade Média,

davam pouco valor ao trabalho manual. Ambas as sociedades, a grega escravista, a medieval

servil, viam as duas classes de trabalhadores, escravos e servos respectivamente, com olhos de

somenos. Continuavam a valorizar um saber especulativo, baseado na força da argumentação

lógica, em detrimento da pesquisa experimental. Raras foram as exceções, entre as quais

Roger Bacon no século XIII, que procurou adotar o método da matemática nas ciências

naturais, argumentava que ver com os próprios olhos não era de todo incompatível com a fé.

Mesmo assim, era visto com desconfiança pelos pensadores do período, tão receosos da

experimentação.

Além de Roger Bancon, convém lembrar os alquimistas, que com suas idéias de

transmutação dos elementos, foram capazes de pesquisas no campo da química, mesmo que

indiretamente. Os árabes, igualmente, foram importantíssimos na difusão da filosofia grega,

da medicina e dos números, conhecidos por isso como arábicos. Para perceber a importância

de tais números, tão corriqueiros hoje, basta imaginar a dificuldade em somar com algarismos

romanos, XXXIII mais VI, por exemplo.

A partir do século XIV em diante, a Escolástica sofreu um processo de

autoritarismo muito forte. Quando se queria afirmar uma idéia, se recorria ao conceito de

autoridade, era o famoso magister dixit, o que sem dúvida empobreceu o debate, aliás, debate

não no sentido moderno do termo de troca de idéias a partir de argumentos, pura e

simplesmente, já que o peso de algum erudito era tomado como sinal de verdade.

Digo a meus ouvintes: Eis o que diz Aristóteles; eis o que afirma Platão; Galeno opina assim, e Hipócrates tem este outro parecer. Os que me ouvem são forçados a reconhecer que minhas asserções são dignas de crédito, visto não procederem de mim, mas das mais insignes autoridades na matéria, que falam por mim...8

8 Declaração de um professor da Universidade de Pisa, no séc. XVI. Tirado de:

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 8

Porém o mundo europeu passava por grandes transformações. Desde o século XII,

com o ressurgimento do comércio, uma nova classe social vinha adquirindo força no conjunto

social, era a burguesia, termo elástico que compreendia os mercadores, os caixeiros viajante,

financistas, banqueiros, pessoas que estavam imbuídas do espírito capitalista.

Para os burgueses, o mundo estático preconizado pela Igreja e defendido pelos

doutores da Igreja, não correspondia aos seus anseios. Era necessário uma nova maneira de

explicar, ordenar, compreender o mundo e com isso, claro, dominar a natureza, no sentido de

se poder obter sempre maior lucro. Não se está aqui subestimando o esforço dos filósofos e

cientistas da época do Renascimento, mas sim dizendo que é preciso considerar o momento

histórico que estes homens viviam e que tornou possível o desenvolvimento de uma ciência

experimental, na qual se pudesse ler o mundo, escrito que estava em linguagem matemática,

segundo Galileu Galilei.

Quando as teorias e tecnologias disponíveis não conseguem dar respostas às

indagações do cientista, há um obstáculo epistemológico. Neste momento, ocorre uma

ruptura, sendo mister a criação de novas teorias e tecnologias, capazes de satisfazer as

constantes indagações. A este momento de ruptura, o filósofo Khun chama de Revolução

Científica.

Para um breve apanhado da questão remetemos à uma síntese das principais

idéias de Thomas Kuhn:

Kuhn e a Questão dos ParadigmasAlgumas considerações acerca:Da importância do diálogo entre disciplinas.De como este diálogo pôde contribuir para o desenvolvimento epistemológico.Da ligação entre física, história e latim.

Ouvimos frequentemente a expressão "crise de paradigmas". Em seminários,

eventos e aulas de nossas universidades ouve-se a palavra paradigma com relativa frequência.

De onde nasceu a idéia de paradigma aplicada a um campo tão vasto de ciência e inventários

das chamadas ciência sociais? Vejamos:

Quando fazia pós-graduação em física teórica, Thomas Kuhn se matriculou em

um curso de história da ciência. Considerando o que havia estudado até então, a ciência, era

ARANHA, L. DE A. A. MARTINS, M.H.P. Filosofando: Introdução á Filosofia. São Paulo : Moderna, 1994, p. 146

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 9

tida como comulativa, isto é, o progresso científico seria resultado do somatório de

conhecimentos acumulados no longo desenvolvimento de teorias científicas, explicativas do

mundo, mundo desvelado progressivamente pelo avanço das pesquisas. Logo viu que tal não

ocorria com esta simplicidade.

Em outro momento importante de seus estudos, no início de 1947, Kuhn

preparava uma conferência sobre as origens da mecânica do século XVII. Tal conferência o

levou a pesquisar o que se entendia por física antes de Galileu e Newton, o que o colocou em

contato com a teoria aristotélica. Passou a indagar como era possível Aristóteles ter

desenvolvido idéias tão distantes da física moderna, que parecia nem mesmo poder ser

chamada de "física", e mais, ter sido acreditado por tanto tempo, por homens sábios e doutos,

inclusive. Aristóteles não poderia ter errado tanto e ter sido acompanhado neste possível erro

por tantas pessoas e por um tempo tão grande.

Thomas Kuhn percebeu que estava "olhando" para o pensamento de Aristóteles

com os olhos, digo, as noções, teorias e modelos da física moderna, mas que para entender as

idéias aristotélicas seria necessário fazer um esforço para procurar ver e pensar a partir das

noções do próprio ambiente aristotélico. Enquanto para Aristóteles movimento significava a

passagem do ato à potência, portanto da transformação dos seres, como por exemplo, de uma

semente que se transforma em árvore, para a física de Galileu, movimento tem como

significado maior o deslocamento dos objetos. Portanto embora em ambos os casos se refiram

à física (physis = natureza) e contemplem a questão do movimento, são diferentes

concepções. Estava aberto o caminho para o conceito de paradigmas, que são as

...realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem

problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência9. Esta

idéia será enriquecida no posfácio de 1969, no qual além de o paradigma ser apontado como

a constelação de crenças valores, etc., de uma comunidade determinada, são também as

soluções dos quebra-cabeças da ciência normal. Quebra-cabeças enquanto problemas que se

propõe à ciência, e ciência normal, que veremos logo a seguir.

Se durante algum tempo fornecem soluções, por que razão seriam os paradigmas

abalados?

A comunidade de cientistas que compartilham um paradigma aguardam dos

fenômenos determinadas respostas. Podemos dizer que conforme as perguntas formuladas

9 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1995, p13.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 10

obteremos determinadas respostas. Mas não é sempre assim. As vezes as respostas dadas não

correspondem às expectativas da comunidade. A isso Kuhn chama de anomalia. As

anomalias não emergem do curso normal da investigação cientifica enquanto os instrumentos

e os conceitos não se tiverem desenvolvido o suficiente para se tornar a anomalia que daí

resulta reconhecível como uma violação da expectativa10.

A comunidade de cientistas - cujos escritos cada vez mais especializados se

destinam a seus pares -, trabalha a pesquisa para a articulação daqueles fenômenos e teorias

já fornecidos pelo paradigma11, buscando a delimitação de fatos significativos, a

harmonização da teoria e dos fatos e a articulação teórica. Três pontos daquilo que Kuhn

chama de "ciência normal", período em que o modelo de paradigma é usado como regra, sem

grandes contestações.

Mas, a medida que os instrumentos se modificam, determinadas respostas são

frustradas e aparecem "anomalias". Em princípio, a comunidade científica procurará encaixar

a novidade no velho modelo. Contudo, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que

governam a ciência normal12. Instaura-se a crise, não de modo abrupto, passando o novo

paradigma a ser construído aos poucos, com o relaxamento das regras do velho paradigma que

até ali havia orientado a pesquisa, e tecendo lentamente as teias do novo paradigma.

A crise instaurada pela anomalia pode ser tratada de três modos. Primeiro com a

ciência procurando resolver a anomalia enquadrando-a nos moldes do paradigma antigo.

Segundo, tendo dificuldade para resolver um quebra-cabeça anormal para os moldes

paradigmáticos vigentes, deixa a solução para ser tentada pelas gerações futuras. Terceiro,

surge um novo paradigma como candidato a solucionar o problema e as consequentes brigas

em torno dele. Neste último caso, Kuhn afirma que a transição para um novo paradigma é

uma revolução científica13. Uma revolução que desloca a rede de conceitos pelos quais os

cientistas vêem o mundo, chegando mesmo, o autor, a sugerir que se passa a viver em um

outro mundo.

Para finalizar, convém lembrar que a palavra paradigma, se for buscada em

dicionários de língua portuguesa, está definida como 'modelo'. Thomas Kuhn irá, todavia,

tomar a palavra paradigma de empréstimo da gramática latina, na qual as cinco declinações

chamadas de paradigmas, compreendendo o nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo

10 KUHN, Thomas S. A tensão essencial. Lisboa, Edições 70, 1989, p. 219.11 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1995, p45.12 Idem, Ibidem. p. 7813 Idem. p. 122

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 11

e ablativo, no singular e no plural. Como vimos, um físico estudando história da ciência,

valendo-se do latim para criar uma concepção epistemológica que hoje é utilizada em grande

medida em diferentes áreas do conhecimento, demonstrando assim a fertilidade dos contatos

interdisiciplinares, ou seria mais conveniente dizer, transdiciplinares, por tratar-se de idéias

que transitam em diferentes disciplinas**.

Após estas considerações sobre o importantíssimo papel dos estudos de Thomas

Kuhn acerca dos paradigmas, e considerando tratar-se de um texto de difusão, já que foi

apresentado inicialmente em um jornal, se faz necessário voltar as questões apontadas sobre a

ciência e que vinham sendo desenvolvidas como análise de diferentes posicionamentos acerca

da física, por exemplo, desde os gregos até os modernos.

Corroborando a idéia inicialmente apresentada, de que é complicado pensar a

ciência como uma evolução, pois o que se tinha como ciência para os homens da Idade

Média, não o é para os homens do Renascimento, da Revolução Copernicana, tema a ser

abordado futuramente, e que recebe um tópico exclusivo no programa de filosofia do Curso.

É possível afirmar então que o conhecimento científico não se faz numa suposta evolução,

mas caminha por saltos e revoluções.

É compreensível, no entanto, a impressão de um desenvolvimento evolutivo, por

causa da tecnologia que cerca o homem atual, com seus aparelhos, e curas na medicina, que

fazendo imaginar que o mundo dehoje é superior, mais avançado, e em conseqüência, que

isso se deve ao avanço da ciência.

Mas, não convém para aqui, se faz necessário aprofundar mais os conceitos de

ciência, tão primordial no cotidiano das pessoas e da vida escolar.

O mundo do capitalismo firmou novos conceitos e idéias. Tal fato vem reforçar o

compromisso que o conhecimento científico tem com a aplicação prática desses saberes.

Afinal, por que seriam gastos milhões, bilhões, se não for útil, aplicável? É bastante comum

perguntar-se: Para que serve isso? De fato, pouco valor tem um conhecimento de divagação se

não nos leva a pensar o mundo ao nosso redor, a compreensão das relações, ou a aplicação

prática do saber.

Tem-se hoje o mundo da técnica. Para tudo existe um técnica. A descoberta de

uma enzima, de um novo combustível, etc. é logo pensada no sentido de poder aplicar no dia

* * Texto editado originalmente em: Guarnieri, Ivanor Luiz. Kuhn e a Questão dos Paradigmas. O Paraná, Cascavel, 25 fev. 2001. Educação. n. 71. p. 09.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 12

a dia. Grosso modo, é possível dizer que a junção do conhecimento científico e sua aplicação

resultam na tecnologia. Termo este mais elaborado, que representa o coroamento de uma

pesquisa. Por outro lado, a tecnologia não é o último momento. Serve ela também para a

própria pesquisa científica, basta ver a utilização de um sem número de aparelhos

‘tecnológicos’, nas mais diferentes áreas de pesquisa, "...um objeto é tecnológico quando sua

construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das

pesquisas científica”.14

Até aqui foi falado de ciência. Mas existem várias ciências e suas especialidades.

Aliás, uma das características do saber é especializar-se cada vez mais. O homem começou a

olhar para o céu, procurando descobrir o universo. As mais recentes ciências tem procurado

descobrir o universo que é o próprio homem. Primeiro um olhar para o que estava distante,

hoje o homem volta-se para si mesmo.

Em meio a tantas descobertas e ciências, como classificá-las? Abaixo há uma

proposta de classificação. Outras existem, e tem sido apresentadas. Contudo, pela abrangência

e clareza, convém dizer que existem:

- Ciências formais = matemática e lógica.

- Ciências da natureza = física, química, biologia, etc.

- Ciências humanas = história, sociologia, geografia humana, etc.

- Ciências aplicadas = as que conduzem a invenção de tecnologias para intervir

na natureza, como a engenharia, medicina, informática, etc.

Genericamente falando, as ciências buscam aprimorar o método de investigação.

A palavra método vem de meta, que significa “ao longo de”, e hodos, “via, caminho”,

portanto é a ordem seguida para alcançar um determinado fim.

Ao deparar-se com um problema, é formulada uma hipótese, aquilo que está sob a

tese, de hypó (debaixo de) e thésis (proposição). Segue-se um raciocínio, que em geral pode

ser: indutivo, hipotético-dedutivo. Confirmada a hipótese, segue-se a generalização. Para tal, é

forçoso fazer experimentação, observação, o estudo do caso enfim, para poder confirmar a

hipótese ou não, conforme já foi estudado em aula.

O estudo da ciência é empolgante, estamos cercados pelos produtos das mais

diferentes ciência. Fazemos votos que os estudos aqui apresentados possam nos motivar ainda

mais a busca do saber.

14 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 3. Ed. São Paulo : Ática, 1995, p.256

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 13

Consciência mítica - mito e explicação mítica

A palavra mito é bastante conhecida. Constantemente se fala dos mitos do

futebol, ou das artes, por exemplo. Que esta ou aquela atriz, ou ator, são mitos do cinema,

principalmente se já tiverem falecido, ou quando ainda é vivo se diz: "é um mito vivo", do

esporte, da televisão, etc. conforme o caso. Mas o que vem a ser mito? Seria esta apenas sua

concepção? Claro que não.

Convém começar a partir da origem da palavra. Mito vem do grego Mythos e do

verbo Mutheyo, que significava contar, narrar, conversar no sentido de anunciar algo para os

outros15. Segundo informa o historiador da filosofia, Nicola Abbagnano, é possível distinguir,

historicamente, três concepções de mito: "1º Mito como uma forma atenuada de

intelectualidade; 2º Mito como uma forma autônoma de pensamento ou de vida; 3º Mito como

instrumento de controle social"16. Estas três concepções de mito podem ser encontradas ao

longo da história e em diferentes situações, quer seja para tentar dar uma explicação para um

problema, atemorizante ou não, mais que de qualquer forma angustia, então, embora seja uma

forma atenuada de intelectualidade, sem maiores questionamentos, acrítico, e mesmo sem

uma melhor sistematização, o mito irá dar uma primeira resposta, até que sejam possíveis

novas e melhores explicações. Torna-se então uma forma autônoma de pensamento, a medida

que tem uma coerência interna que lhe é própria, muito embora não resista à crítica externa,

limitando-se a afirmar que é porque é e pronto. Apesar disso, é passível de ser usado como

controle social, como teoria explicativa que muitas vezes procura justificar, por exemplo as

origens do mal não nas relações sociais, em alguma briga ou disputa entre os deuses – como

no caso da história da 'Caixa de Pandora', vista em aula.

A narrativa mítica é uma forma de tentar atribuir significado ao mundo, de busca

de explicação. Por exemplo:

ESTERILIDADE - Punição enviada pelos deuses para castigar um país de um crime ou sacrilégio cometido por um de seus habitantes. Baco, mal recebido por Licurgo, rei da Trácia, tornou seu reino estéril: os rios secaram, a terra fendeu-se, a vegetação desapareceu. Para apaziguar o deus, foi preciso matar Licurgo. A esterilidade também atingia os homens; Egeu, por exemplo, não teve filhos com suas duas primeiras mulheres. Nos

15 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 3. ed. São Paulo : Ática, 1995. p 28.16 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo : Mestre Jou, 1982, p 644.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 14

casamentos sem filhos, os esposos perguntavam aos oráculos as razões da cólera dos deuses e os meios para aplacá-las"17

Existem inúmeros outros exemplos na mitologia grega, além do citado acima, que

falam da morte, do amor, do nascimento do mundo. Até hoje as narrativas gregas são

bastante apreciadas, embora não acreditemos na existência física de seus deuses,

reconhecendo apenas o gênio criador do helenos.

Em assim sendo, é necessário ter presente a atualidade dos mitos, e não apenas os

gregos, mas os nossos próprios, como foi dito no início deste item. Basta lembrar o "mito do

cientificismo", segundo o qual a ciência poderia trazer o progresso, sendo ela - a ciência - a

única capaz de gerar conhecimento. Como conseqüência mundo hodierno é cada vez mais

tecnocrático, no qual ainda existem pessoas crentes na neutralidade da ciência. Neste caso a

idéia de mito assume o sentido de algo impossível de ser efetivado, de algo enganoso até.

O que foi dito até o momento acerca da ciência basta por hora. Mas é necessário

considerar alguns aspectos dos mitos relacionados com a cultura.

Mitos e culturas

Segundo informa Alfredo Bosi:

"Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã. As relações entre os fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem. As palavras cultura, culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo...Colo significou, na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra e, por extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo. Um herdeiro antigo de colo é incola, o habitante, outro é inquilinus, aquele que reside em terra alheia." 18

(grifos do autor)

É possível perceber a ligação direta com o meio físico e geográfico, na origem da

palavra, segundo o sentido etimológico apontado por Bosi.

Se considerar as definições de dicionário verificaremos diferentes posições acerca

do termo. Assim, desde o Aurélio que afirma no item 3 do verbete cultura: "O complexo dos

padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e

materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade; civilização: a cultura

ocidental, a cultura dos esquimós"19. Ou ainda se for levada em consideração a longa

17 DICIONÁRIO de Mitologia Greco-Romana. São Paulo : Abril Cultural, 1973. p 6518 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. 3. ed. São Paulo : Cia das Letras, 1992 p 11.19 FERREIRA, A. B. DE H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo : Nova Fronteira. 1975 p 409

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 15

exposição trazida pelo dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano, mas que pode ser

traduzido em duas posições básicas:

"O primeiro e mais antigo é aquele pelo qual significa a formação do homem, o seu melhorar-se e refinar-se... O segundo significado é aquele pelo qual indica o produto dessa formação, esto é, o conjunto dos modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, que se costumam também indicar pelo nome civilização"20 (grifos do autor).

Fora estas idéias, existem outras significações conforme seja seguida esta ou

aquela linha de explicação da cultura. A escola de antropologia de Oxford, por exemplo,

considera a cultura como o modo de vida social de um povo, com esta idéia concordando

Fernando de Azevedo, quando diz ser a cultura "todo o modo de vida social"21.

A breve exposição apresentada aqui parece tender para a importância dos bens

espirituais, ou das criações do espírito como o modo de ser e de fazer de um povo. E os

diferentes povos, na busca por explicar o mundo criaram narrativas que pudessem dar conta

das origens dos seres ou dos males.

Entre os gregos havia várias narrativas, consideradas fantásticas, sobre serem

excepcionais, chamados de deuses, e que por sua vontade ou atitude, fizeram nascer o mundo,

a vida, etc. Entre os romanos, influenciados que foram pelos gregos, são encontradas

narrativas muito semelhantes, embora os deuses romanos tenham outros nomes, como é

amplamente sabido.

Outros povos, em outras circunstâncias também criaram narrativas, tidas hoje

como mitológicas. Para explicar o firmamento, os egípcios diziam que a abóbada celeste era o

manto da deusa Nut, que tinha as mãos pousadas no nascente e os pés no Poente. As estrelas

eram bordados do seu manto.

O indigenísta Orlando Vilas-Boas, nos conta um relato indígena com o qual se

pretende dar uma explicação sobre o destino dos índios.

A três índios diferentes foram dados um arco branco, um arco preto e uma carabina. Os três chegaram às margens de um lago de águas muito claras. Os dois índios que escolheram os arcos não quiseram entrar no lago, puseram apenas as mãos em suas águas. As mãos ficaram brancas e eles tentaram limpá-las numa árvore. Aí ouviram a voz de Avinhoka (divindade protetora) que disse: 'Assim como a árvore, vocês não serão para sempre'. O terceiro índio que havia escolhido a carabina, entrou na água e saiu

20 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo : Mestre Jou, 1982. p 20921 AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro : UFRJ ; Brasília : UnB, 1996. p 29

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 16

completamente branco. Em seguida foi deitar-se sobre uma pedra. A este, disse Avinhoka: 'Assim como a pedra, você será eterno'.22

Embora o espaço seja pequeno e por isso não é possível alongar muito as

questões acerca dos mitos, é permitido contudo observar aspectos da mitologia indígena

brasileira. Em geral, nosso índios viam os deuses como entes benéficos ou maléficos que

tomavam conta de fenômenos naturais, de aspectos ligadas à guerra, aos perigos, a vida

física, moral e psicológica das tribos. Há seres míticos que protegem as águas, a mata, os

animais, e com isso garantem o alimento. Há serem que representam sentimentos como o

amor e o ódio também. "PERUDA - entre os TUPIS - presidia o AMOR e a SAUDADE!

Viajava, nos ventos, sob a forma de um guerreiro moço e, tinha, por NUMES, que o seguiam,

voando - CAIRÊ - CATITI - MBOI - por sua vez um gênio, guarda da virgindade, que

devorava as "CUNHATÃS - vitimadas pelo amor impuro"23. Tais narrativas mostram a

presença do mito nas mais diferentes culturas.

Mas não era possível continuar sempre explicando os fenômenos pôr tais

narrativas. Tornava-se imperioso buscar razões melhor elaboradas para as coisas. Em vista

disso, tomou-se uma atitude mais filosófica. É o que será visto a seguir.

O "nascimento" da Filosofia - a busca da racionalidade

Existem algumas causas que em geral são apontadas para o surgimento de uma

atitude mais voltada para a racionalidade, i. é, para as primeiras tentativas de explicação de

cunho filosófico do mundo que cercava os homens e os problemas que eram sentidos de

modo mais imediato. Os mitos que até então serviram como refúgio explicativo para os

fenômenos, parecem perder sua força. Em especial entre os gregos, cujos contatos com outros

povos punham a nu a questão das contradições ou mesmo da diversidade de mitos, haveriam

de forçar uma nova atitude em relação a vida. Neste caso, o contato entre povos diferentes,

trouxe questionamentos enriquecedores, forçando posições racionais-especulativas.

É oportuno chamar a atenção para a importância da água na origem de muitas

civilizações. É notável que as civilizações do mundo antigo, que exercem uma influência em

no modo de pensar atual, tenham nascido às margens do rios: Tigre e Eufrates

(Mesopotâmia), Nilo (Egito), Amarelo (China), Ganges ( Índia). A água doadora de vida, 22 TELES, Antônio Xavier. Introdução ao Estudo da Filosofia. 20. ed. São Paulo : Ática, 1983. p 1523 SANTOS, B. N. dos. Mitos e Heróis do Folclore Paranaense. Curitiba, 1979. p 156.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 17

capaz de transportar os homens com maior facilidade, em um mundo carente de meios de

transporte velozes. Será a margem destes rios, ou banhados pelo mar, como é o caso das ilhas

gregas, que a movimentação de pessoas, e com elas a troca de experiências e idéias, semeará

pensamentos que frutificaram em atitudes mentais questionadoras, e portanto, capazes de

fazer pensar de modo mais crítico e racional. Mas, convém não se alongar muito, não

deixando porém de observar brevemente alguns pontos da filosofia hindu e chinesa de antes

de Cristo, para, aí sim, iniciar o estudo do pensamento grego.

Pensamento hindu

Antes de estudar o início do pensamento grego, vejamos duas culturas do oriente,

cujo pensamento pode servir de contraponto a 'atitude grega'. Todavia, a filosofia, como a é

entendida no mundo ocidental, é grega. Muito embora possam ter sofrido influência do

mundo oriental, o pensamento filosófico grego é único e marca toda a tradição ocidental.

Cumpre dizer dos hindus, o seu profundo sentimento religioso. Causa admiração

ao visitante e ao estudante as atitudes de contemplação piedosa ao lado do Ganges, no lugar

místico como o Tibet, e outros, onde o homem procurar inserir-se na natureza, receber seu

influxo, entender a vida.

A Índia nos deu Siddartha Gautama - o Buda -, que segundo a tradição teria sido

"iluminado", quando em 534 a.C. abandonou a família e saiu em busca do sentido da vida,

depois de presenciar a morte e o sofrimento humano. Decisão corajosa para um jovem

príncipe, mas compreensível em um homem grandioso como ele. Após anos de peregrinação,

sentado às margens do rio Naranja, Buda teve a seguinte inspiração:

"1ª) A essência do mundo humano é o sofrimento. A mente humana está estruturada em termos de sofrimento. 2ª) A origem do sofrimento é o desejo, o apego às próprias necessidades, às próprias idéias, ao que se julga ser a vida. 3ª) A libertação do sofrimento é possível mediante o domínio dos desejos, dos apegos, até a obtenção de sua extinção. 4ª) Esta extinção dos desejos e do sofrimento é o que se chama de Nirvana"24.

Para conseguir chegar a eliminação do desejo e ao estado de Nirvana, é preciso

seguir as oito etapas para as quatro verdades. Estas etapas consistem em uma visão reta,

pensamento reto, palavra reta, vida reta, ação reta,, trabalho reto, conhecimento reto,

meditação reta. Forte é a presença do Budismo no mundo oriental, como sabemos, e marca

24 TELES, Antônio Xavier. Op. Cit. p. 46.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 18

uma atitude reflexiva em relação à vida. Indicando uma maneira de proceder, marca também

o modo de ser, a filosofia de vida de quem segue estas orientações, e como conseqüência,

claro, toca na cultura, no modus vivendi do povo.

Pensamento chinês

Fortemente marcado pelos problemas relativos ao convívio humano, a filosofia

chinesa irá ocupar-se com o problema moral, com as questões do bem e do mal. É possível

perceber traços desse tipo de indagação na seguinte pergunta: Será que a lei que reprime é

sempre necessária?

Tentativas de solução para estes problemas podem ser encontrada no pensamento

de Kung-Fu-Tsé (551-479 a.C.). Confúcio, como é conhecido, preconizava a obediência do

mais jovens aos mais velhos, pois estes estariam mais próximos dos antepassados, a quem se

deve reverência e respeito. Entre suas máximas, uma recomenda: seja o príncipe, príncipe; o

súdito, súdito; o pai, pai e o filho, filho. Entendendo assim cada um cumprir com suas

obrigações, numa atitude de respeito, onde os mais jovens e os mais humildes deveriam

reverência aos mais velhos e dirigentes, e estes deveriam agir com bondade nas relações com

aqueles.

Lao-Tsé (604 - 551 a.C.), por sua vez estava preocupado com as leis que regiam o

mundo. Haveria uma ordem eterna - TAO - para a qual tudo deveria convergir. Haveriam

também duas forças: YIN e YANG, a primeira feminina, negativa; a segunda masculina e

positiva (note que não se trata de conceito pejorativo por ser a feminina "negativa").

Foram deixados estes aspectos do pensamento oriental em nosso texto, no intuito

de ter uma idéia, mesmo que breve, de outras visões de mundo, e que hoje, em vista das

telecomunicações, nota-se a presença de alguns lampejos de pensamento tão antigo. Não é

objetivo realizar um estudo pormenorizado da filosofia oriental, mas espera-se ter

oportunizado, nos encontros de filosofia, uma pequena abertura que seja, para outras

possibilidades de pensamento (exclusivamente de pensamento e não de religião, é bom que se

diga).

Há uma crítica que se faz à filosofia do ocidente em relação à oriental, no sentido

de que a nossa filosofia (ocidental) estaria preocupada em avançar 'na horizontal', i. é,

ampliando a quantidade de conhecimento, cada vez sabendo mais das coisas do mundo, mas

tendo pouco avanço 'na vertical', ou seja, não compreendendo o mundo e a vida em sua

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 19

profundidade. Em que pese tal crítica, cabe agora iniciar o estudo do pensamento grego, do

qual o mundo ocidental é herdeiro.

Os pré-socráticos

A filosofia grega, para fins didáticos, está dividida em antes de Sócrates (470/469-

399 a.C.) e depois de Sócrates. Comumente os filósofos anteriores à Sócrates são chamados

de pré-socráticos. São também conhecidos como filósofos da natureza, pois suas indagações

buscavam um princípio (arché), dos objetos naturais. Tal princípio deveria: estar no início, ser

a subsistência, e estar no fim das coisas.

Dos primeiros filósofos, destacam-se:

Tales de Mileto, nascido no século VII e falecido no século VI a.C. Considerando

que todas as coisas em sua volta tinham umidade, julgou ser a água o princípio físico.

Para Anaximandro de Mileto (séc. VII -VI a.C.), o princípio seria o a-peiron, uma

substância privada de limites, infinita, que não nasce e não tem fim. As coisas seriam geradas

e destruídas pela luta de contrários. Interessante em Anaximandro é sua explicação para a

posição da terra. Esta estaria equilibrada pela ação de outros astros, como o sol, a lua e outros

planetas, colocados em tal distância, e em tal harmonia de movimentos, que a exemplo de

imãs gigantes, a terras seria 'suspensa' pela força destes astros.

Anaxímenes de mileto (séc. VI a.C.), para quem a substância primordial seria o ar.

Segundo afirma, o ar dilatado produz calor, e o ar comprimido produz gelo e frio. Teria

possivelmente chegado a esta conclusão, valendo-se do sopro, pois quando se quer as mão,

sopramos de modo 'dilatado', e quando desejamos esfriar, sopramos comprimindo o ar.

Para Heráclito de Éfeso (séc. VI - V a.C.), tudo se move, tudo escorre, e nada

permanece imóvel e fixo. É dele a famosa idéia, segundo a qual não é possível banhar-se no

mesmo rio duas vezes, pois ao voltar, a água já será outra, e mesmo a pessoa estará diferente.

Observando as constantes modificações no mundo físico, conclui que todas as coisas estão em

estado de guerra, i. é, a luta de opostos: frio/quente, seco/úmido, etc. o que levaria a uma

eterna luta na natureza, razão pela qual os seres desaparecem, nascem e tornam a desaparecer,

em um movimento incessante. Tais afirmações colocavam sérios obstáculos ao problema do

conhecimento, pois havendo tantas mudanças, quando afirmo algo, este algo já não é mais

como eu havia afirmado, necessitando refazer minhas afirmações.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 20

Pitágoras. A vida deste pensador está envolvida em mistério. Tendo vivido o

apogeu de sua vida em Samos, em 532 a.C., morreu no início do século V. Fundou em

Crotona, na Itália uma escola com trezentas pessoas, entre seguidores e administradores. É

possível que seus ensinamentos tenham sido acrescidos pelos seus discípulos, já que entre eles

havia o costume de afirmar ipse dixit (ele disse), quando se referiam a algum assunto. As

inúmeras "Vidas de Pitágoras", trazem a admiração que os discípulos tinham pelo mestre,

cujo figura, ao final de sua vida, era representada como um iluminado.

A Escola de Pitágoras possuía algumas características. Nasceu como uma

fraternidade religiosa, buscando o bem comum. Possuía ensinamentos que só poderiam ser

conhecidos pelos iniciados.

Tendo observado que as leis numéricas regem os anos, a gestação, as estações,

etc., permitiu aos pitagóricos ver o mundo pela ordem. Mesmo na música, tendo estudado a

extensão das notas musicais, pela extensão de um monocórdio. É importante alertar, porém,

que o número era considerado ente real, não apenas mental como temos hoje.

"Pitágoras concebe a extensão como descontínua: constituída por unidades invisíveis e separadas por um "intervalo". Segundo a cosmologia pitagórica, esse 'intervalo" seria resultante da respiração do universo que, vivo, inalaria o ar infinito (pneuma ápeiron) em que estaria imerso. Mínimo de extensão e mínimo de corpo, as unidades comporiam os números. Os números não seriam, portanto - como virão a ser mais tarde -, meros símbolos a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, eles são reais, são a própria "alma das coisas", são entidades corpóreas constituídas pelas unidades contíguas. Assim, quando os pirtagóricos falam que as coisas imitam os números estariam entendendo essa imitação (mímesis) num sentido perfeitamente realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura numérica que lhes é inerente."25

Para citar alguns exemplos: consideravam que 2 x 2 ou 3 x 3 representariam a

justiça, assim como 32 ou 22 , por representaram o imóvel. Consideravam ainda os números

pares ilimitado, imperfeito e comporiam um retângulo, já os números ímpares seriam

limitados, perfeitos e comporiam o quadrado. Puderam deduzir isso, considerando a

disposição de alguns seixos (de onde vem a expressão moderna calcular, de calculus, pequeno

seixo). Ex.: .

. . . .

25 OS PRÉ-SOCRÁTICOS: fragmentos, doxografia e comentários. Col. Os Pensadores. 5. ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991. p XVIII

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 21

(ímpar) (par)Note-se que no caso do ímpar, a flecha está limitada por um ponto, enquanto no

desenho representativo do par, não.

O número 1 é par/ímpar, e o 10 é o número perfeito, pois com ele podemos

construir um triângulo com 4 pontos cada lado

Xenófanes, de Cólofon na Jônia, (570 a 528 a.C.), critica o antropomorfismo dos

deuses, dizendo que os deuses pouco diferiam dos mortais, a não ser no fato de serem eternos.

Veja o que ele diz:

Mas os mortais acham que os deuses nascem,que tem roupas, vozes e vultos como eles.Homero e Hesíodo atribuem aos deuses tudo aquilo que é desonra e vergonha para os homens:roubar, cometer adultério, enganar-se mutuamente.26

Com tal atitude, Xenófanes desmente os poetas como mentirosos, ao mostrar a

crueza e algumas contradições dos deuses. Por outro lado, considera o UNO como deus, deus-

cosmos, por isso tudo vê, tudo ouve.

Um dado importante neste filósofo, foi a afirmação de que é a força da mente, e

não a física que pensa, cabendo a mente a máxima honra. Tal firmação traz algo de diferente

em uma sociedade que valorizava sobremaneira a preparação física.

Parmênides, de Eléia (VI a.C. - meados do séc. V a.C.). Fundador da escola

eleática (do ser), que traz para os problemas da physis a questão ontológica. Afirmava

Parmênides que o ser é o não-ser não é; "o ser é e não pode não ser; o não ser não é e não

pode ser de modo algum"27. Por isso, um só caminho resta ao discurso, o que o ser é. Institui-

se o discurso da não contradição, pois o ser e não-ser não podem existir ao mesmo tempo.

Zenão de Eléia (séc. V a.C.). Considerado por Aristóteles o primeiro dialético,

Zenão tomava os argumentos dos adversários (em especial aqueles que queriam ridicularizar

Parmênides, com quem Zenão estudou), para com estes mesmos argumentos desmenti-los.

São conhecidas suas aporias (caminhos sem saída). Em uma delas, acerca do movimento,

segundo a qual, quando alguém partir de um ponto, e considerar meio caminho andado,

jamais chegará ao destino, pois restará sempre meio caminho a andar. Assim, numa extensão

de cem metros, restara 50. Destes cinquenta, a metade é 25, quando passar pela metade,

26 REALE. G. ANTISERI. D. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo : Paulinas, 1990. P. 48

27 REALE. G. ANTISERI. D. Op. Cit. p. 50.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 22

restará 12,5 e assim sucessivamente, de sorte que sempre haverá metade do caminho a

percorrer. Ou o caso da flecha que ocupa sempre o mesmo espaço, então mesmo sendo

lançada pelo arqueiro, ela não tem movimento, ocupando sempre um espaço igual ao início.

O PROBLEMA FÍSICO

Empédocles (484/481 - 424/421 a.C.)

Não existiria a morte e o nascer. Segundo seu pensamento, haveria o misturar-se e

dissolver-se, isso com relação aos quatro elementos; água, ar, terra e fogo, chamados por ele

de 'raízes de todas as coisas'.

Estes elementos se misturam ou dissolvem por dois princípios: a amizade/amor e

pela discórdia/ódio, surgindo daí a geração e corrupção dos seres.

Interessante observar que para Empédocles os processos de conhecimento provém

dos eflúvios (emanação invisível que sai de um fluído, exalação), que partem dos objetos e

são reconhecidos pelos sentidos. Do mesmo modo, parte da visão eflúvios, que por sua vez

reconhece nos seres os seus iguais, dentro do princípio de que o semelhante conhece o

semelhante. O pensamento tem por veículo o sangue e a sua sede é o coração. Como

conseqüência, pensar não é exclusivo do homem.

Anaxágoras de Clazômena (aproximadamente 500 a 428 a.C.)

Considerava que só os quatro elementos não explicam a variedade de seres e

fenômenos. As spérmatas (sementes) devem ser tantas e tão variadas, para delas surgir os

elementos tão diferentes que são encontrados no mundo. Estas sementes pensadas por

Anaxágoras, seriam infinitas, divisíveis em várias partes que são sempre iguais, não havendo

limite entre tamanho, pois por mais que se divida, nunca chega ao nada, já que este não existe.

São as chamadas homeomerias (em grego, "partes semelhantes").

Todas as coisas estariam em confusão até a inteligência por ordem em tudo.

Anaxágoras afirma ainda, que tudo contém todas as coisas. As sementes

(homeomerias) estariam colocadas em quantidades variáveis em todos os seres, organizando-

se para formar o grão de trigo, ou a árvore, por exemplo. Mas no trigo, já estaria a semente da

carne, do osso e do cabelo, que fazem parte do homem que come o trigo, e encontra nele estas

"semestes" que lhe permitem nutrir um corpo de carne, osso, e cabelos.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 23

Demócrito (cerca de 460 - 370 a.C.)

Concordando com Empédocles e Anaxágoras, de que os seres não nascem ou

morrem, mas se agrupam ou dissolvem, Demócrito afirmava a existência de muitos corpos,

invisíveis, por serem sumamente pequenos, de mínimo volume. Tais corpos seriam

indivisíveis, incriados e indestrutíveis, não mudando nunca. Foram chamadas de átomos (do

grego "não divisível").

A constituição das coisas se explicaria pela existência de átomos, vazios e

movimentos. Por isso chamada de teoria atômica.

Este pequeno texto acerca dos pensadores pré-socráticos parece ser suficiente

para dar uma idéia das preocupações e idéias dos primeiros filósofos gregos..

Os problemas da filosofia

Não é forçoso fazer uma exaustiva excursão pela filosofia, rastreando os

diferentes significados e as várias respostas dadas aos seus problemas. É útil considerar que

tais problemas são muito antigos, mas as soluções apresentadas variaram e muito ao longo da

tradição filosófica ocidental. Objetivo principal é apontar algumas questões que possam

servir como percepção problematizadora. Um aprofundamento maior poderá ser feito em um

curso específico de filosofia, como uma pós graduação, por exemplo, mas fugiria aos

propósitos do curso de pedagogia, bastando, em princípio, além das discussões em aula, os

apontamentos que seguem.

O SER

Lembrando Parmênides, ser é aquilo que é. É forçoso observar, entretanto que

existem outros sentidos para o problema do ser:

a) substância: significa o que é a coisa como substância (ousia). A mesa é de

madeira.

b) como essência: aquilo que a coisa é: A mesa é.

c) como ser-no-mundo. Dentro da fenomenologia, em Heidegger (1889-1976), o

Dasein (ser aí), está jogado no mundo, sem que disso tenha opinado. O mundo neste sentido

não é o universo físico, mas geográfico, histórico, social e econômico, portanto, mundo

construído pelo homem.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 24

Várias outras idéias acerca do ser tem sido apontadas e serão abordadas na medida

em que o plano de ensino transcorrer e situações problematizadoras surgirem nos encontros

de filosofia.

O VALOR

Entendido originalmente ligado à coragem, à bravura, ao caráter. A noção

filosófica do valor o relaciona àquilo que é bom, útil, àquilo que deve ser realizado. Tomados

assim, e na perspectiva da ética, correspondem aos fundamentos das normas morais, das

regras que ditam como deve ser a conduta correta.

Várias questões tem sido apontadas acerca dos valores: se eles valem em si

mesmos, se tem valor externo, se haveriam valores absolutos, de per si, desde o princípio, e

sempre reconhecíveis como certos, ou se são adquiridos conforme a cultura e a natureza

humana.

Com relação aos valores, questiona-se igualmente os juízos de valor, que irão

avaliar a validade ou não de uma determinada norma ou ação, suas implicação, positividade,

etc.

Com relação aos problemas de estética há que se considerar tratar-se de questões

pertinentes a teoria do belo. Quando nos referimos a beleza, ou de alguma coisa dizendo

tratar-se de algo belo, que se pretende dizer? Qual o entendimento do belo apontado em

geral pelas pessoas? Quais seriam os valores implicados na definição da beleza?

SABER

Tocando profundamente no problema da teoria do conhecimento, a questão do

saber indaga da possibilidade/impossibilidade/dificuldade de ser atingida a verdade. Até que

ponto sabemos? O que é saber? Como ter certeza do que sei?

O saber envolve não apenas a filosofia, mas compreende outras formas de

conhecimento, como a ciência e mesmo a 'sabedoria', como um conhecimento necessário para

poder situar-se e resolver as questões do cotidiano.

Indagou-se por um longo tempo, a relação entre um sujeito que conhece e um

objeto que é conhecido. Mais recentemente, os estudos fenomenológicos trouxeram a baila a

questão do fenômeno (aquilo que aparece), e a relação deste com o homem, ser de

conhecimento, ser no mundo, com o mundo e para o mundo.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 25

Convém frisar mais uma vez, que estes problemas serão constantemente tomados

ao ser analisadas as diferentes posições filosóficas, sobre os problemas da filosofia, servindo

este brevíssimo texto como um primeiro contato com estas questões.

Atitude Grega - O mundo grego

Dos pontos observados anteriormente acerca do mundo grego, é importante agora

considerar mais especificamente o ambiente ateniense, cidade-Estado grega que nos deu

grandes filósofos, dentre os quais Sócrates e Platão. A análise deverá prender-se aos filósofos

dentre os principais de todos os tempos. Iniciaremos com Sócrates, que, como se sabe que não

deixou nada escrito, mas marca fundamentalmente o mundo ocidental.

Sócrates - a figura histórica

Nascido em 470/469 a.C., Sócrates era filhos de Sofronisco e Fenareta. O pai era

escultor e a mãe parteira.

Figura inegavelmente influente entre os jovens da Grécia Antiga, Sócrates

costumava dialogar com o interlocutor acerca das proposições defendidas, visando mostrar

que aquilo que é tido como certo, muitas vezes revela-se contraditório e mostra-se

indefensável.

Em uma sociedade dada a discussão pública, onde os cidadãos valorizavam

sobremaneira a retórica, e a arte de falar era indispensável, a atitude questionadora de

Sócrates, colocando o interlocutor em situação vexatória, criaram alguns inimigos, motivo

pelo qual foi levado ao tribunal dos heliastas*, acusado por Meleto, Anito e Licão de

corromper a juventude, não reconhecer os deuses da cidade, pregando outros deuses.

O julgamento de Sócrates está descrito em Apologia de Sócrates28, constituindo-

se numa das páginas mais expressivas e célebres da literatura universal. A obra está dividida

em três partes. Na primeira examina e refuta as acusações feitas contra ele. Na segunda parte,

tendo sido condenado, Sócrates apresenta a pena que se propõe a pagar. Tendo a consciência

tranqüila, e não encontrando nela razões para a condenação, Sócrates propõe viver o resto de

seus dias no Pritaneu**. Não deixa assim alternativa aos juizes, devendo ser levado à

execução. Na terceira parte, Sócrates dirige a palavra aos juizes, dizendo da condenação

* Constituído por 500 ou 501 juizes, pertencentes à população de Atenas, reunidos em 399 a. C. para julgar Sócrates.28 PLATÃO, Diálogos : Apologia de Sócrates. São Paulo Hemus s/d.** Lugar destinado aos heróis e beneméritos da cidade.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 26

recebida e fazendo uma reflexão sobre a morte: Mas eis a hora de partirmos, eu para a morte,

vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto o deus29.

Em outra obra de Platão, Fedon, são narrados os momentos finais de Sócrates,

quando está obrigado a tomar cicuta***. Sócrates morre em 399 a.C.

As informações que temos do filósofo, foram fornecidas principalmente por

Platão, do qual dos vinte e oito escritos considerado autênticos, apresentam Sócrates em vinte

e seis deles, e destes, vinte e três diálogos tem Sócrates como interrogador30. Além de Platão,

Xenofonte, outro discípulo do filósofo, e Aristófanes, poeta cômico grego, nos deixaram

importantes obras a respeito de Sócrates31.

Maiêutica.

Enquanto os filósofos que precederam à Sócrates ocupavam-se preferencialmente

de questões ligadas a cosmologia, ao mundo da physis, Sócrates ocupou-se de questões

referentes ao Estado e ao próprio homem, daí Ter sido apontado como um dos principais

pensadores da ética, entendida como o questionamento das ações humanas32. É sabido que

andava questionando as pessoas acerca das afirmações que faziam. Ele fazia perguntas como

estas: Se eu quiser que me consertem os sapatos, a quem devo recorrer? Ao que algum jovem

ingênuo responderia: À um sapateiro, ó Sócrates! Depois referia-se a carpinteiro,

caldeireiros, etc., e, finalmente perguntava: Quem deve consertar a nave do Estado?33.

O método utilizado por Sócrates valia-se de perguntas. Era através delas que

procurava sustentar o discurso. Muitas vezes aquele a quem Sócrates interrogava mostrava-se

confuso, ou contraditório, tornando-se discípulo dele ou odiando-o. De qualquer forma,

percebia um conhecimento novo ou observava falhas no saber que antes de ser interrogado

pelo filósofo não havia notado.

Ao modo de interrogar socrático, o próprio filósofo dava o nome de maiêutica, ou

parturição das idéias, possivelmente uma homenagem ao trabalho de sua mãe, que ajudava as

mulheres a dar a luz, enquanto a maiêutica socrática trazia à luz idéias e conceito das pessoas.

Conforme declara no livro Teeteto, de autoria da Platão:29 SÓCRATES, In: Coleção Os pensadores. 5 ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991, p. X.*** Planta que masserada libera veneno. Veneno do mesmo nome.30 WATANABE, Lygia Araujo. Platão, por mitos e hipóteses. São Paulo : Moderna, 1995, p. 84.31 Dentre as quais lembramos: "Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, de autoria de Xenofonte, e As nuvens escrito por Aristófanes, ambos encontráveis na coleção "Os Pensadores" - Sócrates, já citado.32 VALLS, Álvaro L. M. O que é ética. São Paulo : Brasiliense, 1994, p. 17.33 RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. 3 ed. São Paulo : Companhia Editora Nacional,

1969, p. 98.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 27

Eu tenho isto em comum com as parteiras, diz Sócrates: sou estéril de sabedoria; e aquilo pelo que muitos há anos me censura, isto é, que interrogo aos outros mas não respondo nunca por mim, porque não tenho pensamento sábio algum a expor, é censura justa.34

Um exemplo da Maiêutica se encontra em Menon35, quando Sócrates leva um

escravo a conceber intrincadas noções matemáticas, a partir da análise de figuras quadradas,

procurando mostrar que o escravo tinha dentro de si um conhecimento que nem mesmo

suspeitava, bastando ser relembrado através de perguntas bem formuladas e que objetivam

despertar o conhecimento latente, presente dentro das pessoas.

Segundo declara no tribunal, Sócrates teria um "demônio" daimon que o impelia

ao saber e levava a questionar. Ainda em Apologia de Sócrates, o filósofo afirma ter ouvido

do Oráculo de Delfos, a declaração de que ele, Sócrates, era o mais sábio dos homens. Não se

reconhecendo como sábio, passou a interrogar as pessoas na tentativa de encontrar alguém

mais sábio, desmentindo então a afirmação do oráculo.

Cabe lembrar ainda que tanto a Maiêutica quanto a ironia socrática, podem fazer

confundir Sócrates com os sofistas. Mas isso não é correto, pois os sofistas procuravam ser

agradáveis e discorriam sobre um assunto previamente preparado, buscando mostrar domínio

sobre o mesmo, enquanto Sócrates, como vimos, procedia através de questões e

constantemente declarava nada saber, como na última fala do diálogo Eutífron, quando este

derrotado na tentativa de definir o que é piedoso, se despede de Sócrates e ouve deste:

O que vais fazer, meu bom amigo? Vais, deixando por terra a grande esperança que tinha de aprender de ti o que é piedoso e o que não é. Pois, pensava livrar-me da acusação de Meleto, fazendo-o ver que, instruído por Eutífron nas coisas divinas, não me aventurava a improvisar e a inovar por ignorância nestas matérias e formulava o propósito de levar, daqui para diante, uma vida melhor36.

Vê-se neste pequeno trecho também a chamada ironia socrática, a utilização de

perguntas a partir da idéia de que se era ignorante, mas na verdade uma tentativa de tirar do

interlocutor aquilo que este supunha como sendo verdade, deste modo, mesmo sendo 'senhor

da situação', de certa forma, ironiza pondo-se como discípulo daquele a quem acabou de

refutar.

34 ABBAGNANO, Nicola. Op. Cit. p. 610.35 WATANABE, Lygia Araújo. Op. Cit. p. 143.36 PLATÃO, Diálogos : Eutífron. São Paulo Hemus s/d. p. 34

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 28

Platão

Nascido em 428-427 a.C., na cidade de Atenas, Arístocles (seu verdadeiro nome),

pertencia a tradicional família de Atenas. Filho de Ariston e Perictione, quando esta viuvou,

casou-se com Pirilampo. Todos ligados à política, portanto à aristocracia ateniense. É no

ambiente político de sua cidade natal que Platão cresce, observando os acertos políticos num

momento de ouro para a democracia ateniense (observe o fato de os gregos terem uma

democracia bastante restrita, pois somente os cidadãos livres poderiam dela participar). Este

regime político levou Sócrates ao tribunal, condenou-o e matou-o. Tais fatos teriam levado o

jovem Platão a odiar a democracia e a ocupar-se com os problemas políticos de seu tempo.

...Platão desfere contra os regimes democráticos sua maior crítica, e talvez aquele que ainda hoje não foi considerada frente a frente: pois, para ele, a democracia dá injustamente o direito de governo à maioria dos cidadãos, justamente àquela ala política dos menos instruídos, o povo, que é o contraponto do sábio37.

Duras palavras contra um regime tão amplamente elogiado. Platão faleceu em

348-347 a.C. sem ver seu projeto político executado. Que idéias seriam essas? É o que

procuramos mostrar, ao menos em parte, a seguir.

O ideal de cidade

Será apresentado agora alguns pontos da obra A República, escrita por Platão,

justamente ocupando-se do problema político. Queremos adiantar que são apenas alguns

pontos e tem a pretensão de estimular a leitura da obra em si, cuja grandiosidade só pode ser

sentida lendo-a em sua inteireza.

A REPÚBLICA38

Sócrates e Gláucon encontram-se no Pireu, estão caminhando, quando são

chamados pelo escravo de Polemarco, que pede que esperem seu dono. Polemarco, que se

encontrava com outros amigos, convida Sócrates a passar o restante do dia em sua casa. Este

aceita o convite.

Ao chegar na casa, Sócrates é recebido com alegria por Céfalo, um ancião cuja

fortuna havia herdado de seu pai e conseguiu aumentá-la um pouco. Sócrates pergunta à

Céfalo se a vida aos que chagam naquela idade é custosa ou não. Para alguns a vida é 37 WATANABE, Lygia Araújo. Op. Cit. p. 36.38 PLATÃO. A República. 4 ed. Lisboa : Calouse Gulbenkian, 1983.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 29

custosa, para outros não, respondeu o velho Céfalo. Quando chega no limiar da velhice, a

pessoa começa a fazer as contas, a ver se não ficou em débito com alguém, a ver se cometeu

alguma injustiça, com temor de que por ter sido injusto venha a sofrer os horrores do Hades, a

região dos mortos.

Como Sócrates quis saber o que era a justiça e a injustiça, Céfalo definiu a justiça

como sendo dizer a verdade e dar a cada um aquilo que se lhe tomou. É a partir da pergunta

de Sócrates e da resposta de Céfalo, que este diálogo de Platão será conduzido, i.é, visando

saber o que é a justiça.

Em seguida, Polemarco, que é o filho mais velho de Céfalo, toma as vezes do pai,

enquanto este se dirige ao pátio para fazer um sacrifício ao deus da casa. Polemarco define a

justiça como sendo dar a cada um o que se lhe deve. Aos amigos, o bem e aos inimigos, o

mal. Esta tese é refutada por Sócrates, pois o que se faz de mal torna as pessoas piores, como

o músico não pode tornar a outros ignorantes de sua arte, ao usá-la, também o justo não pode

tornar a outro ignorante da justiça por meio dela.

O sofista Trasímaco, que se encontrava no grupo, dá também a sua definição de

justiça, porém só depois de ter sido pago. Para Trasímaco, a justiça não é outra coisa que a

conveniência do mais forte. Argumenta que os governantes ao prescreverem as leis, as fazem

em benefício próprio. Sócrates, primeiramente, quer saber se os governantes erram as vezes,

ou se não erram nunca. Como Trasímaco concorda que eles erram as vezes, Sócrates

argumenta então que os súditos cumprem leis que são em alguns casos, são desfavoráveis ao

governante. O sofista rebate a argumentação de Sócrates, dizendo que não se pode dizer que

um médico é medico quando erra, mas sim se acerta na dieta contra as doenças. Tomando o

médico como comparação, Sócrates diz que a medicina vem em auxílio do corpo, que lhe é

mais fraco, o piloto trabalha pela população do navio, afim de levá-la à salvo, e de igual

forma o governante (que é mais forte), trabalha em função de seus súditos. Após derrotado,

Trasímaco sente rubor, o suor lhe escorre na face, e pede então para Sócrates definir a justiça.

Sócrates propõe o seguinte: Imaginemos que alguém deva ler letras miúdas e

descubra que em algum outro lugar há em dimensões maiores, as mesmas letras, na mesma

disposição. O que se fará é ler nas de maior tamanho, e depois ler as que estão em caracteres

menores. Com esse exemplo, Sócrates sugere que se funde uma cidade e após descobrir nela

onde está a justiça, seja transportada a análise para o sujeito, afim de verificar o que é e onde

está a justiça.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 30

Na cidade ideal, existiriam três classes: a dos artífices, a classe dos guerreiros e a

classe dos guardiões. A educação dos guardiões deverá ser feita através da música e da

ginástica. A poesia fica bastante restrita em Platão, pois segundo ele, a poesia é a maneira

mais sutil de introduzir maus costumes na cidade, por isso ele censura uma série de poetas

que falam nos horrores do Hades, por exemplo, que pode comprometer a coragem dos

guerreiros, deixando-os mais temerosos da morte, como também a censura a poesia que fala

nas brigas entre os deuses e coisas impróprias de um deus, o que levaria os cidadãos a se

tornarem piores.

A procriação deverá ser feita em comum, sem que o filho saiba quem são seus

pais, nem os pais quem são seus filhos, além de criar meios para os mais fortes e melhores nos

combates se relacionarem com um número maior de mulheres, é outro ponto curioso do livro

de Platão.

Depois de fundada a cidade, é hora de buscar nela a localização das quatro

virtudes, a saber: sabedoria, coragem , temperança, e finalmente a justiça.

A sabedoria encontra-se nos guardiões, a coragem é encontrada nos guerreiros, a

temperança na harmonia entre as classes. A justiça, por fim, estará em cada classe fazer o que

lhe é devido. Assim, os artífices deverão fazer o que é de responsabilidade deles, os

guerreiros farão aquilo relativo a arte da guerra. Os guardiões cuidarão do governo, da guarda

da cidade. A injustiça, por sua vez, acontecerá quando um guerreiro se meter a fazer o

trabalho de um artífice ou do governante. Enfim, qualquer coisa que um membro de uma das

três classes quiser fazer, mas que não pertence a sua classe, será uma injustiça.

A cidade deverá ser governada pelo filósofo, aquele que é capaz de chegar à

essência das coisas. No mito da caverna, o filósofo é aquele prisioneiro que sai do mundo das

sombras e observa as coisas como elas são. O filósofo irá nutrir-se do bem, que é fonte da

verdade, da beleza, da sabedoria, da temperança.

Após vencidas algumas dificuldades, Sócrates é interrogado sobre a possibilidade

de existir uma cidade assim. Ora, dirá ele, mesmo que não haja esta possibilidade, haverá, no

céu, um modelo para quem quiser contemplar.

A crítica em Platão

É conhecida a expressão "amor platônico", como sendo um amor inacessível,

distante, inatingível, no qual o amante deposita no amado uma série de qualidades muitas

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 31

vezes absurdas e inexistentes. Quando se trata de fundar o conhecimento, porém, Platão

distinguia o mundo sensível, no qual nós vivemos, e o 'mundo das idéias'. O mundo das

sombras seria uma projeção do mundo perfeito das idéias.

Na obra Fedro39, encontram-se Sócrates e a personagem que dá nome ao livro de

Platão, às margens do rio Ilisso*, quando se põe a discutir aspectos relacionados a constituição

da alma humana. Esta é comparada com uma parelha de cavalos que puxam um carro,

dirigido por um cocheiro. Este carro participa no cortejo os deuses, no Zênite**. Enquanto os

cavalos dos deuses são de boa raça, os cavalos dos homens são, um de boa raça e outro o

contrário deste. É nesse caminho no Zênite que as almas irão nutrir-se das coisas em si. A

verdade, a bondade, a beleza em si mesmas. Como o carro é puxado por uma parelha de

cavalos de boa e má raça, o movimento que devem executar para seguir no caminho é

dificultado, o que lhes permite apenas vislumbrar as coisas em si mesmas. As almas chegam

ao Zênite pelas asas, ou graças a elas, cujo crescimento é possibilitado pelo que é bom, sendo

que o mal é causador da queda das asas.

Devido as constantes brigas entre os dois corcéis, a alma cai e aqui na terra bate

em um corpo inanimado, dando-lhe vida. Aqui na terra, ao se deparar com um objeto belo, se

recorda daquele belo ideal, daquele mundo ideal. É a beleza que primeiro faz recordar daquele

mundo ideal, pois, somente a beleza tem a ventura de ser a mais perceptível e cativante40.

Neste pequeno trecho sintetizado da obra de Platão, é possível perceber o núcleo

fundamental da teoria do mundo das idéias, no qual está centrada a crítica em Platão.

Aristóteles (384-322 a.C.)

Nascido em Estagira, na Calcídia, pertencente ao domínio da Macedônia. Seu pai,

chamado Nicômaco, era médico na corte de Amintas II. Aos dezessete ou dezoito anos,

Aristóteles mudou-se para Atenas, onde matriculou-se naquela que já era famosa escola de

filosofia, a Academia de Platão. Apesar de algumas dificuldades de pronúncia em um mundo

onde a fala era fundamental, Aristóteles logo se destacaria na escola de Platão, onde segundo

se dizia, o hábito de ler abundantemente teria lhe conferido a alcunha de “ O Leitor”. Tal fato

pode ser constatado pelas numerosas citações que Aristóteles faz de filósofos anteriores a ele,

o que permite lhe conferir o título de historiador da filosofia. Aliás, muitas coisas acerca dos

39 PLATÃO, Fedro. Lisboa :Guimarães Editores, 1986.* Rio que corria pelas cercanias de Atenas.** O cume da abobada celeste, onde os deuses seguem em procissão.40 Fedro 250 d.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 32

filósofos pré-socráticos se devem à iniciativa de Aristóteles, primeiro historiador da filosofia,

por ter analisado estes mesmos pensadores, afim de refutá-los ou concordar com as

proposições apresentadas pelos mesmo.

Em 343 a.C. Aristóteles torna-se preceptor de Alexandre futuro imperador

macedão. Por convite feito pelo rei macedão e pai de Alexandre, Filipe II. Antes disso, havia

fundado em Atenas sua própria escola, o Liceu.

Enorme influência exerceu Aristóteles no pensamento ocidental, tendo sido

tomado por São Tomás de Aquino como “O Filósofo”, tamanha a admiração do santo da

Igreja Católica pelo estagirita.

O fundamento epistemológico

Em Platão o conhecimento, ou a crítica, afirma existir dois mundos: o mundo das

idéias e o mundo das sombras. Para Aristóteles esta duplicidade não tem sentido. A realidade

é constituída de seres singulares, concretos e particulares, dos quais pare para construir o

conhecimento. A partir da observação dos seres particulares observando o gênero próximo e

a diferença específica, contruíndo assim formulações científicas, portanto necessárias e

universais.

Observar repetidamente os casos particulares. Tirar deles o aspecto comum,

formular uma lei. Este procedimento - indução - conduz o raciocínio do particular para o

geral, do singular para o universal, objetivo da busca do conhecimento. O universal existe no

espírito (inteligência) como conceito. Contudo, não se trata de conceito subjetivo, pois está

fundado no concreto, nos casos singulares reais.

Os seres concretos teriam uma estrutura comum capaz de permitir ao intelecto

nominar os seres, como: cavalo, mesa, pássaro, etc.

Tais problemas conduzem a questão do ser. Qual seria esta estrutura íntima capaz

de revelar a "essência" do ser 'cavalo' por exemplo? Este problema conduz Aristóteles às

questões metafísicas. Esta é o fundamento primeiro das ciência, pois busca o ser. Mas ser em

Aristóteles assume o dinamismo que o mundo físico exige. Para ele o ser teria diversas

acepções.

Assim, qualquer termo que designa algo que é, designa ou uma substância (um ser) ou um acidente (um modo de ser); porém os modos de ser são vários e os acidentes podem significar uma quantidade, ou uma qualidade, ou uma relação (duplo, menor, pai e filho), ou o onde, ou o quando, ou ainda uma posição (sentado), ou

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 33

um estado (vestido, equipado), ou uma ação (escrever), ou então uma paixão (estar doente)41 (grifos do autor).

Ato e potência.

Como já foi dito quando foram estudados os pensadores pré-socráticos, o

problema do movimento era uma questão crucial. Como pode haver o movimento e o mundo

permanecer o mesmo? Aristóteles rejeita tanto a posição de Heráclito, para quem é

impossível o conhecimento duradouro, quanto a idéia de Parmênides, que afirmava um ser

imutável.

As diferentes mudanças e o movimento dos seres se explicam, segundo

Aristóteles, pelo ato e potência. É possível dizer que em ato o ser é aquilo que é naquele

momento. A potência é a possibilidade do vir a ser. Assim, a semente da árvore é ato como

semente e árvore como potência, possibilidade do vir a ser árvore. Nota-se contudo, que o ser

'semente' em ato só pode realizar aquilo para o qual sua natureza ou essência permite, i. é,

semente de árvore terá como possibilidade a árvore, mesa, o móvel, não um cavalo, por

exemplo.

A potência é então uma disponibilidade para a forma, não é ainda a forma. Implica por isso mesmo imperfeição e carência; ainda não é efetivamente tudo o que pode vir a ser. Por exemplo, a semente ainda não é a árvore, mas a possibilidade da árvore.O ato, ao contrário, é a forma realizada e presente no ser...O ato é a realização daquilo que existia apenas como possibilidade, como disponibilidade.42

Este ponto da metafísica aristotélica - a teoria do ato e potência -, requer a noção

de causalidade. A transformação exige uma causa. Mais, Aristóteles distingue quatro noções

de causalidade, que podemos resumir assim: A causa pode ser: material (aquilo que é a

matéria do ser); formal (a forma do ser que o distingue dos demais seres); a causa eficiente (o

agente que transforma o ser), e a causa final (como diz o nome, a finalidade do ser). Esta

última é a mais importante, pois determinaria as outras. É em vista da finalidade que o

escultor dá forma ao mármore.

41ARISTÓTELES, In: Coleção Os pensadores. 5 ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991, p. XIX

42 FARIA, Maria do Carmo Bettencourt de. Aristóteles: a plenitude como horizonte do ser. São Paulo : Moderna, 1994, p. 52

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 34

Ética e Ethos

Considerando as diferentes culturas, será possível observar em cada uma um

modo de ser. O homem cria normas de conduta, valores morais (do latim mor, moris-

morale = o costume), padrões de comportamento visando organizar a vida em sociedade,

fundando assim uma tradição.

A palavra ética deriva de ethos, cujo significa é "costume", tradição de

comportamento. A ética observa então a conduta relacionada às leis de comportamento e ação

com relação ao problema do bem e do mal, de conformidade com o ethos, o modo de ser

social, ligado, claro, ao sujeito da ação.

Feitas estas primeiras consideração, é necessário observar que para Aristóteles, o

homem tem duas dimensões básicas: a política e a ética. Tendo a dimensão política o sentido

da vida social, a ética visando a busca da felicidade. Sendo as duas indissociáveis. Não é

possível dicotomizar o homem ético do homem político.

A exemplo do problema epistemológico, na ética, Aristóteles chama a atenção

para o caráter prático. O conhecimento puramente teórico seria insuficiente para mostrar o

agir correto, tendo a felicidade como fim da ético. Mas que seria a felicidade para o filósofo

de Estagira?

Quando o homem consegue afinar os desejos e as ações com seu pensamento, agindo em plena consonância com a própria natureza e realizando os fins que lhe são próprios, alcança esse sentimento de plenitude que constitui a felicidade e que é mais do que a honra, o poder, o sucesso ou o prazer.43

Se por um lado Aristóteles chama a atenção para os aspectos práticos da ética, isso

não significa desprezo pelo conhecimento. No Conhecimento ético estariam a sabedoria e a

prudência, sendo que quanto mais sábio e prudente, maiores serão as possibilidades de ser

alcançada a felicidade.

Quando se quer saber o que é a virtude, convém observar o homem virtuoso. Ser

virtuoso é usar da "justa medida", i. é, dominar o desejo e as emoções, evitando assim ser

dominado por eles, o que não significa reprimir o desejo, mas achar o meio termo. O contrário

da virtude, ou seja o vício, ocorre pelo excesso ou falta de emoção e desejo. A virtude e o

vício constituem o caráter.

43 FARIAS. Op. Cit. p. 73

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 35

Por fim, é preciso lembrar que para Aristóteles só os atos voluntários dizem

respeito à esfera moral, e a amizade desinteressada, como amor a sim mesmo e ao semelhante

coroa uma vida virtuosa.

Organon

Platão havia empregado a dialética como método (de diá, "dois", logos

"discurso"). Tal método consistia em opor dois discursos, acreditando chegar assim mais

próximo da verdade. Aristóteles considerava tal método pouco consistente em um mundo

cercado por discursos sofísticos, capazes de enganar até 'aquele que sabe'. Em vista disso,

procurou criar um instrumento capaz de dar segurança ao pensamento, no sentido de conduzir

a razão à verdade. Daí os escritos aristotélicos ligados à lógica terem sido chamados em seu

conjunto de organon, i. é, instrumento, sendo a lógica entendida como um instrumento para

bem pensar: A lógica estuda a razão como instrumento da ciência ou meio de adquirir e

possuir a verdade44 (grifo do autor).

Nem sempre é fácil dizer o que é a lógica. Num certo sentido os escritos que você

está lendo são lógica e pretendem dizer o que é a lógica. O certo é que desejado ter um

raciocínio adequado e correto, se quer ser razoavel, ter raciocínios corretos para bem dirigir a

razão na construção do conhecimento. Claro, não é mister ser estudioso da lógica para pensar

com correção, mas o seu estudo deverá favorecer a organização das idéias e suas exposições

verbais com maior clareza, pois: O estudo da lógica é o estudo dos métodos e princípios

usados para distinguir o raciocínio correto do incorreto45.

Do que foi dito será agora estudado alguns aspectos da lógica formal, na qual

estão expressas as regras de raciocínio com relação à 'forma' do pensamento. Aspectos estes

que ilustram o trabalho realizado por Aristóteles. A lógica formal é também conhecida por

lógica menor, em oposição à lógica material que se ocupava da natureza dos objetos e é mais

extensa.

Segundo informa Jolivet, A lógica formal estabelece as condições de

conformidade do pensamento consigo mesmo...Ora, todo raciocínio se compõe de juízos, e

todo juízo de idéias: há lugar, pois, para distinguir três operações intelectuais

especificamente diferentes46. Estas três operações citadas pelo autor são: o raciocinar, o

44 MARITAIN, Jacques. Elementos de filosofia II: A ordem dos conceitos, lógica menor (lógica formal). 10 ed. Rio de Janeiro : Agir, 1983, p. 17

45 COPI, Irving Marmer. Introdução à Lógica. 2 ed. São Paulo : Mestre Jou, 1978, p. 19.46 JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. 14 ed. Rio de Janeiro : Agir, 1982, p. 31.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 36

julgar e o apreender (uma idéia), donde temos: o raciocínio, o juízo e a simples apreensão.

São portanto três momentos do raciocínio formal.

Simples apreensão.

É o ato pelo qual o espírito (inteligência), simplesmente apreende uma idéia.

Neste momento não há ainda um afirmar ou negar a idéia, ela é apenas apreendida. Ex.: casa,

caneta, avião, terra, etc. Com a simples apreensão os objetos são representados

intelectualmente. Não se deve portanto, confundir idéia com palavra, pois é preciso

considerar ainda que, a expressão verbal da idéia é o termo: Os "termos" são as palavras que

entram nas ligações lógicas, tomadas enquanto expressões verbais de um conteúdo: homem,

cão, cavalo, vertebrado47(grifos do autor).

A idéia, bem como seu termo, pode ser entendida quanto a extensão e a

compreensão. A primeira é o conjunto de sujeitos a que a idéia convém48 e a compreensão o

conjunto de elementos de que uma idéia se compõe, ou o conteúdo da idéia.

O Juízo.

Tomado como a segunda operação do espírito, o juízo é o ato pelo qual se afirma

ou nega uma idéia de outra. Neste sentido, compõe-se necessariamente de três elementos: o

sujeito, o atributo e a afirmação ou negação. A expressão verbal do juízo é a proposição, que a

exemplo do juízo se compõe de três elementos: o sujeito, o predicado e o verbo de ligação,

também chamado de cópula, pois liga o sujeito e o predicado.

Quanto a classificação das proposições, são as seguintes as principais:

a) quanto a extensão do sujeito. Neste caso, será verificado a quantidade.

Universal: o sujeito é tomado na sua universalidade, ex.: todo homem, nenhum homem.

Particular: Ex.: algum homem é virtuoso.

Singular: um sujeito. Ex.: Pedro, este caderno, etc.

No tocante a qualidade da proposição, esta pode ser afirmativa ou negativa, quer

seja uma universal negativa ou afirmativa, quer se trate de proposição particular afirmativa ou

negativa.

Exemplos:

Universal afirmativa: todo homem é mortal.

Particular negativa: algum homem não é diplomata.

O raciocínio.

47 LEFEBVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1995, p. 138.48 JOLIVET. Régis. Op. Cit. p. 34.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 37

Depois de apreender e ajuizar com clareza, é chegada a hora da terceira operação

do espírito, para a qual as duas primeiras convergem. No raciocínio, de duas ou mais idéias

conhecidas, conclu-se uma terceira que daquelas decorre necessariamente.

O argumento/argumentação é a expressão verbal do raciocínio. A mais conhecida

forma de raciocínio, para os formalistas, é o silogismo, no qual de um antecedente que une

dois termos a um terceiro, tira-se um conseqüente que une estes dois termos entre si49. No

plano da lógica aristotélica, é dividir o raciocínio em dois grandes grupos: o raciocínio

dedutivo, que parte do geral para o particular e o indutivo que parte de particulares para a

formulação de uma idéia geral.

Raciocínio indutivo: O cão é um animal e morre.

O homem é um animal e morre.

A ave é um animal e morre.

Logo, os animais morrem.

Raciocínio dedutivo: Todos os animais morrem.

Ora, o cão é um animal.

Logo, o cão morre.

Conforme foi visto, a lógica formal se ocupa da forma do pensamento, está

voltada para as regras de correção do pensamento consigo mesmo. Mas além dela, a lógica

material também ocupa-se em ajudar na busca da verdade, mas neste caso volta-se para a

matéria do pensamento. Estuda as questões relacionadas a verdade e ao erro, ao problema da

dúvida, da opinião, da ignorância, dos critérios de certeza e evidência, o método, e o

conhecimento na ciência. Modernamente a lógica material tem sido preterida em favor da

epistemologia ou da teoria do conhecimento que questiona as possibilidades de chegar ao

conhecimento, do processo de aquisição do mesmo e de suas principais formulações. Em

uma palavra e como se pode perceber dos tópicos apontados acima, hoje os problemas da

lógica material são objeto da Teoria do Conhecimento, da filosofia da ciência ou da

epistemologia, etc.

Não é propósito deste texto introdutório de filosofia fazer um tratado de lógica.

Os escrito que agora foram apresentados devem servir para apontar algumas idéias

relacionadas à lógica em Aristóteles, e a visão dos diferentes autores citados no texto. Existem

várias regras do silogismo, do juízo e da simples apreensão que propositadamente não foram

49 JOLIVET. Régis. Op. Cit. p. 47.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 38

apontadas, mas poderão ser estudadas consultando a bibliografia indicada ao longo deste

texto.

Filosofia e cristandade medieval.

Patrística

Originada no período de decadência do Império Romano (século II - V d.C .), a

Patrística recebe este nome por ter sido formulada pelos padres da Igreja Católica. Sua

preocupação era refutar os argumentos pagãos para justificar a fé. Para isso era mister utilizar-

se de argumentos racionais (e não apenas da fé), e estes eram encontrados na filosofia

helenística. Contudo, a filosofia não deveria sobrepor-se à fé, devendo antes ser uma auxiliar

da mesma.

Dentre os pensadores pagãos que exerceram maior influência na Patrística está

Platão, que além de ser estudado naquele período, trazia idéias capazes de pensar as questões

da fé. Além disso, havia sido utilizado pelos pagãos, contrários à fé cristã. Seria interessante

valer-se das mesmas armas teóricas para confirmar a fé.

Um exemplo do uso da filosofia para justificar a fé se encontra em Santo

Agostinho (354-430). Tendo nascido em Tagasta no norte da África, filho de pai pagão -

Patrício, e mãe cristã - Mônica, Agostinho converteu-se ao Cristianismo aos 33 anos, vindo a

ser sagrado bispo em Hipona. Segundo a sua Teoria da Iluminação, o homem recebe o

conhecimento das eternas verdades de Deus, pois tal como o sol descrito na alegoria da

caverna por Platão, Deus ilumina a razão e torna possível ao homem o conhecimento através

do correto pensar.

Escolástica (século IX ao XIV)

Conforme aponta Reale50, a escolástica era a filosofia ensinada nas escolas

medievais. Trata-se, como o autor adverte, de definição extrínseca, passando a seguir a

explicitar o significado de 'escolas medievais'. Não é este o entendimento do padre Leonel

Franca51, para quem é fundamental caracterizar um movimento filosófico pelas suas idéias.

Transcrevemos a seguir as linhas mestras da filosofia escolástica apontadas pelo autor:

50 REALE, Op. Cit. p. 478.51 FRANCA, Leonel. Noções de História da Filosofia. 22 ed. Rio de Janeiro : AGIR, 1978, p. 91

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 39

Em criteriologia: existência da certeza e objetividade do conhecimento. Em

Metafísica: individualismo acentuado, construído sobre as noções aristotélicas de ato e

potência, substância e acidente. Em cosmologia: composição substancial dos seres. Em

psicologia: espiritualismo moderado, unidade, substancialidade e espiritualidade da alma,

distinção entre o conhecimento sensitivo e o intelectual, origem sensitiva das idéias, livre

arbítrio. Em teodicéia: transcendência e personalidade de Deus, Criação e Providência (sic)52.

Não se pretende aqui fazer um tratado sobre a escolástica, mas apontar algumas

das principais linhas de pensamento europeu, num período em que as escolas renasciam com

vigor e as universidades estavam sendo fundadas.

Fides e Ratio

Tanto na Patrística quanto na Escolástica, predomina a aliança entre a fé e a razão,

sendo a razão e em conseqüência a filosofia, considerada serva da teologia, neste sentido

devendo os argumentos filosóficos servirem como instrumento da justificação da fé. Era

comum as disputas terminarem com um apelo à autoridade, i. é, à consulta aos intérpretes

autorizados pela igreja. Tal atitude criou entraves ao desenvolvimento da ciência, provocando

uma ruptura no pensamento europeu, como veremos no item : "A Revolução Copernicana".

Se Santo Agostinho é o principal representante da Patrística, a Escolástica foi

marcada significativamente pelo gênio de São Tomás de Aquino. Nascido no Castelo de

Roccasecca em 1225, filho de nobre, estudou com os beneditinos de Montecassino e viveu a

mocidade em Nápoles. Mesmo contrariando a vontade da família, decidiu tornar-se monge,

ingressando na Ordem de São Domingos. Seu gênio e dedicação levaram-no a tornar-se

mestre, lecionando em universidade como as de Paris, Orvieto, Roma, Viterbo, Nápoles.

Valendo-se da filosofia de Aristóteles, a quem Aquino chamava "O Filósofo",

procurou o Doutor Angélico ou Anjo das escolas, como passou a ser também conhecido, à

demonstrar que as verdades da razão não são incompatíveis com a fé.

Se é verdade que a verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão humana, nem por isso os princípios inatos naturalmente à razão podem estar em contradição com esta verdade sobrenatural...Deus não pode infundir no homem opiniões ou uma fé que vão contra os dados do conhecimento adquirido pela razão natural.53

52 FRANCA, Leonel. Op. Cit. p. 9253 AQUINO, Santo Tomás de. Súmula contra os gentios, Os Pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1973, p. 70.

Filosofia, texto 1 Ivanor Luiz Guarnieri 40

São também conhecidas as cinco provas da existência de Deus, também chamadas

de cinco vias, que serão apresentadas resumidamente a seguir.

a) caminho da mutação: o que é movido só pode ser movido por outro. Nada é

causa do movimento de si mesmo. Considerando a teoria do Ato e Potência, formulada por

Aristóteles, segue-se o mesmo raciocínio, a semente não pode tornar-se árvore por suas

próprias forças, é Deus que dá o movimento.

b) A causa eficiente: uma coisa não pode ser eficiência de si mesma. Neste sentido

seria absurdo pensar que eu criei a mim mesmo. Não poderia ir também ao infinito querendo

saber quem criou aos pais, avós bisavós, etc. A causa eficiente última é Deus.

c) Caminho da contingência: O homem é um ser contingente. Tudo vem de algo.

Se houvesse um não-ser, nada existiria, pois o não-ser só criaria o nada, o que é absurdo.

Logo deve existir um Ser primeiro, incriado, do qual derivam todas as coisas. Este ser é

Deus.

d) O caminho dos graus de perfeição: Os homens são seres derivados. Assim

como a causa do calor é o fogo, que é mais forte, Deus como grau máximo de perfeição é a

causa do universo.

e) Fim: Tudo tende para um fim, como a flecha na mão do arqueiro. A flecha não

pode ser um fim em si mesma, mas na intenção do arqueiro. Não é possível ser um fim em si

mesmo, logo o fim último é Deus.

Mas a filosofia da Idade Média não se restringe à São Tomas de Aquino, claro,

assim como a Patrística não é só Santo Agostinho. Será visto a seguir uma das maiores

controvérsias da história da filosofia.

O problema dos universais.

A questão dos universais nasce dos problemas trazidos pela lógica aristotélica. O

que existe na realidade conceitos, idéias, que procuram exprimir esta realidade. Estes

conceitos são universais. Haveria alguma contradição entre o caráter universal das idéias e a

contingência dos seres individuais? Desta dúvida surgiram quatro posições, a saber: realismo

exagerado, conceptualismo, nominalismo e realismo moderado.

Realismo exagerado: afirma a existência de realidades objetivas formalmente

universais, como ensinava Platão. Nominalismo: concebe os universais apenas enquanto

termos ou vocábulos comuns, como os quais são nominados aos seres. Conceptualismo: só

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admite o valor ideal dos conceitos universais. Realismo moderado: considera os objetos

individuais e particulares, mas unidos pelo conceito, que é universal. Existiria na inteligência,

mas se fundamenta nas coisas.

Espera-se que as idéias apresentadas até aqui possam dar um pequeno quadro do

pensamento medieval no qual destacam-se a teologia cristã, defendida pela Igreja Católica, a

qual conservou inúmeras obras de pensadores gregos e romanos em seus mosteiros em cujas

bibliotecas predominou o trabalho dos copistas.

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