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Filosofias Da Comunicacao

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    Jos Manuel SantosPedro M.S. Alves

    Joaquim Paulo Serra(Orgs.)

    Filosofias da Comunicao

    LabCom Books 2011

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    Livros LabComwww.livroslabcom.ubi.ptSrie: Estudos em ComunicaoDireco: Antnio FidalgoDesign da Capa: Madalena SenaPaginao: Filomena MatosPortugal, Covilh, UBI, LabCom, Livros LabCom, 2011

    ISBN: 978-989-654-079-1

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    Dedicatria

    Este livro dedicado Memria de Joo Paisana (1945-2001), ilustre fil-sofo, professor e investigador da Faculdade de Letras da Universidade deLisboa.

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    ndice

    I A comunicao no pensamento moderno 5

    Modernidade, cepticismo e comunicao: Montaigne e a comunica-opor Rui Bertrand Romo 7

    Metafsica leibniziana da comunicao: O paradigma monadolgicopor Adelino Cardoso 31

    Iluminismo e comunicao de Locke a Kantpor Paulo Serra 49

    II Comunicao e linguagem 83

    My language is the sum total of myself: universos dialgicos emPeircepor Anabela Gradim 85

    Wittgenstein e a Comunicaopor Rui Sampaio da Silva 127

    Frases no-declarativas e comunicao nas Investigaes Lgicas deHusserl. Notas para uma teoria dos actos comunicativos luz deHusserl e de Austinpor Pedro M.S. Alves 151

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    III Fenomenologia, hermenutica e comunicao 185

    Alfred Schutz: Algumas notas sobre uma Fenomenologia da Comu-nicaopor Joo Carlos Correia 187

    Gadamer e a Comunicaopor Rui Sampaio da Silva 219

    IV Crtica da comunicao 247

    A Eloquncia do No-dito. Crtica da Comunicao em T.W. Adornoe W. Benjaminpor Johann Kreuzer 249

    Deleuze: Comunicao e palavra de ordempor Edmundo Cordeiro 281

    V Os limites da comunicao: cepticismo e diferendo 301

    Comunicao e filosofia em Stanley Cavell: cepticismo, quotidiano ereconhecimentopor Rui Bertrand Romo 303

    Diferendo e comunicao em Lyotardpor Jos A. Domingues 319

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    Apresentao

    Os textos que constituem este livro so o resultado do trabalho efectuado nombito do projecto Filosofia e Comunicao. Este projecto, que foi apre-sentado ao concurso da FCT em 2001, tendo sido aprovado, teve como inves-tigador responsvel Jos Manuel Santos, coordenador do Instituto de FilosofiaPrtica (IFP) da Universidade da Beira Interior (UBI), e envolveu, para almde investigadores do Departamento de Comunicao e Artes da mesma uni-versidade, investigadores do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras daUniversidade de Lisboa, frente dos quais Pedro M.S. Alves, que coordenouos trabalhos nesta instituio participante.

    Como est patente no seu ttulo, o referido projecto tinha um carcter as-sumidamente interdisciplinar, integrando investigadores quer da muito antigarea da Filosofia, quer da novel rea das Cincias da Comunicao.

    Em coerncia com esta composio da equipa, o projecto traou, parasi prprio, dois objectivos, um primeiro global e um segundo complementar(citamos o texto da proposta): i) a anlise de filosofias e categorias filosficassusceptveis de servir para pensar o processo de comunicao e as questes dacomunicao e da cultura na sociedade da informao e da comunicao;ii) a utilizao dessas filosofias e categorias na rea, relativamente nova, dascincias da comunicao.

    De forma mais especfica, o projecto delimitou as seguintes linhas de in-vestigao (citamos, mais uma vez, o texto da proposta):

    a) Anlise de filosofias que abordam a questo da comunicao num con-texto mais global do que as filosofias analticas da linguagem. [. . . ] Nestatarefa engloba-se o problema da tecnicizao do mdium. b) Estudo defilosofias que lanaram a temtica da comunicao a partir do paradigmailuminista, favorvel publicidade dos discursos e ao desenvolvimento

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    de um espao pblico [. . . ] c) Estudo de filosofias que se mostram maiscpticas relativamente ao paradigma iluminista da comunicao. [. . . ]

    No necessariamente pela ordem de apresentao destas linhas de inves-tigao, os textos que compem este volume podem classificar-se em cincograndes grupos (embora esta classificao no deixe de comportar uma certadose de arbitrariedade).

    Num primeiro grupo, A comunicao no pensamento moderno, que trata(de algumas) das origens modernas do pensamento da comunicao, incluem-se os textos de Rui Bertrand Romo (Modernidade, cepticismo e comunica-o: Montaigne e a comunicao), Adelino Cardoso (Metafsica leibnizianada comunicao o paradigma monadolgico) e Paulo Serra (Iluminismoe comunicao de Locke a Kant). No seu texto, Rui Bertrand Romo ana-lisa a forma como, marcando de forma decisiva a filosofia moderna, o cep-ticismo de Montaigne acaba por marcar, tambm, o pensamento moderno econtemporneo da comunicao; referindo-se aos Essais, essa anlise centra-se, de forma especial, na Apologia de Raimundo Sabunde. Demarcando-se das leituras vulgares e preguiosas de Leibniz, mas tambm das deslei-turas de autores como Alain Renaut, o texto de Adelino Cardoso procuramostrar que o papel nuclear atribudo comunicao se constitui como umdos traos mais caractersticos da filosofia leibniziana, e em particular da suafase monadolgica. O texto de Paulo Serra intenta proceder a uma arque-ologia mnima daquilo a que se tem vindo a chamar a sociedade da co-municao, vista como sendo, em grande medida, a concretizao da uto-pia comunicacional que tem as suas razes no iluminismo europeu do sculoXVIII e, em particular, nas obras de Locke e Kant, sobre as quais recai a suaanlise.

    Num segundo grupo, Comunicao e linguagem, encontramos textos quese centram em autores que, no pretendendo tratar propriamente de comu-nicao, mas antes de semitica, lgica ou linguagem, acabam no s porpensar a comunicao mas tambm por ser de extrema relevncia para pensar-mos hoje (sobre) a comunicao. o caso, precisamente, de Charles SandersPeirce, a que Anabela Gradim dedica o texto My language is the sum totalof myself: universos dialgicos em Peirce; de Wittgenstein, objecto do textoWittgenstein e a Comunicao, de Rui Sampaio da Silva; ou ainda de Hus-

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    Jos Manuel Santos, Pedro M. S. Alves, Joaquim Paulo Serra (Orgs.) 3

    serl e Austin, sobre os quais incide o texto Frases no-declarativas e comuni-cao nas Investigaes Lgicas de Husserl. Notas para uma teoria dos actoscomunicativos luz de Husserl e de Austin, de Pedro M. S. Alves. Assim,tomando como ponto de partida o facto surpreendente de um autor (Peirce)que, assentando toda s sua obra na noo de comunicao, omnipresente nasua obra, pouco (ou quase nada) fala deste termo, Anabela Gradim tem comoobjectivo iluminar e determinar o papel da comunicao e, sobretudo, da co-municabilidade nos vrios nveis do sistema peirceano. Por seu lado, RuiSampaio da Silva examina a forma como, na sua obra tardia, Wittgenstein re-flecte sobre a dimenso social e pragmtica do conhecimento e da linguageme, ao faz-lo, torna visveis alguns dos aspectos essenciais da comunicaohumana. Finalmente, Pedro Alves, tomando como base as Investigaes L-gicas - principalmente o ltimo captulo da Sexta Investigao discute aquesto da relao entre frases declarativas e no-declarativas em Husserl e,mais concretamente, a questo de saber se as segundas supem sempre, deum ou outro modo, as primeiras. Essa discusso, que feita (tambm) luzdas teses de Austin sobre a linguagem ordinria e os actos de fala, procurausar os contributos de ambos os autores para proceder ao esboo daquilo aque chama uma teoria fenomenolgica dos actos sociais e da comunicao.

    Um terceiro grupo, Fenomenologia, hermenutica e comunicao, cons-titudo por textos que relevam da fenomenologia e daquilo a que se pode cha-mar uma teoria fenomenolgica da comunicao (a expresso aqui intro-duzida por ns). Assim, Joo Carlos Correia (Alfred Schutz: Algumas notassobre uma Fenomenologia da Comunicao) discute os principais aspectosda teoria da comunicao de Schutz, o criador da chamada fenomenologiasocial, e que, inspirado na sociologia compreensiva de Weber e na fenome-nologia de Husserl, v a comunicao como elemento estruturante da soci-abilidade humana. J Rui Sampaio da Silva (Gadamer e a Comunicao)debrua-se sobre a fenomenologia de Gadamer que, assumindo a universali-dade da hermenutica, assume como projecto essencial a determinao dascondies da compreenso e, portanto, da comunicao.

    O quarto grupo, Crtica da comunicao, compreende duas das mais im-portantes crticas da comunicao produzidas no sculo XX: a da teoria cr-tica, aqui representada por Adorno e Benjamin; a de Deleuze. A primeira tratada no texto de Johann Kreuzer (A Eloquncia do No-dito. Crticada Comunicao em T.W. Adorno e W. Benjamin), que sublinha a diferena

    Livros LabCom

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    que, segundo aqueles autores, existe entre o sentido da linguagem e aquiloa que poderamos chamar a linguagem da comunicao (de informaes);esta diferena centra-se, em ltima anlise, e como o diz o prprio ttulo doartigo, na eloquncia do no-dito. A segunda das abordagens objecto dotexto de Edmundo Cordeiro (Deleuze: Comunicao e palavra de ordem),que parte da crtica deleuziana da comunicao como palavra de ordem eelemento central das sociedades de controlo para interrogar o conceito decomunicao e a sua relao com a filosofia.

    O quinto e ltimo grupo, Os limites da comunicao: cepticismo e dife-rendo, inclui dois textos sobre perspectivas que, falta de melhor, classifica-ramos de perspectivas ps-modernas da comunicao. No primeiro dessestextos, Rui Bertrand Romo (Comunicao e filosofia em Stanley Cavell:cepticismo, quotidiano e reconhecimento) examina a reinveno do cepti-cismo, feita por Cavell que, demarcando-se do cepticismo cartesiano e ps-cartesiano, compreende uma interrogao sobre a filosofia que inclui no ape-nas a filosofia mas a prpria comunicao. No segundo dos textos, Jos A.Domingues (Diferendo e comunicao em Lyotard) discute as implicaesda noo de diferendo (e sua relao com o conflito e o litgio) em Lyotard,nomeadamente no que se refere comunicao e, mais especificamente, co-municao verbal a principal das quais ser a incomunicabilidade que dcorpo a uma escrita que se obstina em testemunhar o que h do que resta.

    Uma ltima palavra sobre a edio deste livro: razes vrias levaram aque ela s agora seja possvel; e possvel graas disponibilidade da editoraonline do Labcom e do seu Director, Prof. Antnio Fidalgo, a quem desde jagradecemos.

    Jos Manuel Santos, Paulo Serra

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    Parte I

    A comunicao no pensamentomoderno

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    Modernidade, cepticismo e comunicao: Montaigne e acomunicao

    Rui Bertrand RomoUniversidade da Beira Interior

    SE a comunicao como objecto hodierno de ateno filosfica no se pode,na actualidade, dissociar de uma considerao da modernidade e do quea torna especfica, esta to-pouco se poder pensar com alguma pertinnciahistrica, por um lado, e, por outro, com certa profundidade especulativa, semnecessariamente se falar sobre cepticismo. que o cepticismo, e a reflexoque ele suscita, marca de forma decisiva a filosofia moderna, no seu surgi-mento e na sua evoluo. Tal ocorre a mais de um nvel. Relevemos aquiapenas trs aspectos cruciais.

    Em primeiro lugar, tem de se levar em linha de conta a importncia hist-rica da revivescncia do cepticismo antigo, quer o pirrnico quer o acadmico,sobretudo efectuada ao longo do sculo XVI, na determinao da filosofiamoderna1.

    Um segundo aspecto a realar diz respeito dualidade cepticismo/anti-cepticismo como elemento fundamental da modernidade filosfica ps-carte-siana, enquanto problemtica essencialmente gnoseolgica, a partir da qual seergue o edifcio da filosofia.

    Por fim, no podemos omitir a importncia do cepticismo na formao eno desenvolvimento da prpria ideia de Iluminismo.

    Um autor deveras fulcral que se encontra na interseco destes trs ele-mentos Michel de Montaigne. Desempenhou ele um papel do maior relevona revivescncia quinhentista do cepticismo antigo, havendo-o, ademais, re-formulado, bem como tendo-lhe acrescentado facetas novas2.

    1Nas tradicionais histrias da filosofia oitocentistas e novecentistas tal papel, assim como oda revivescncia das demais filosofias helensticas no perodo protomoderno, no era de todoignorado. No entanto, a partir dos estudos de Richard Henry Popkin e de seus discpulos,comeados nos anos 50 do sculo XX, esse papel foi reavaliado, nomeadamente com umainvestigao mais aprofundada das fontes modernas principais sobre o assunto, com um co-nhecimento mais aprofundado do contexto filosfico-religioso de tais fontes e com a atenodevotada a escritos menores e a textos de autores pouco conhecidos.

    2Foi a partir de Montaigne e da sua leitura atenta de Sexto Emprico (traduzido do grego

    Filosofias da Comunicao , 7-29

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    8 Rui Bertrand Romo

    Quanto ao segundo ponto, cabe-nos, desde logo, dizer que a sua apresen-tao renovada da argumentao cptica, em grande parte herdada de SextoEmprico, de Ccero, bem como de algumas mais fontes da Antiguidade, ealiada a outros factores condicionantes, emblematiza, divulga e adensa umasituao de crise intelectual e filosfica que empola o relevo de tal argumenta-o e da problemtica em que ela se insere na determinao de uma respostafilosfica. esse o ambiente que precipita as respostas no apenas de Fran-cis Bacon e de Ren Descartes, mas tambm de Galileu e de Mersenne, porexemplo, para citar apenas alguns dos mais conhecidos autores, ao que pos-teriormente se convencionou apelidar de desafio cptico. A formulao doproblema cptico por Descartes e a sua tentativa de resoluo iro em especialmarcar toda a modernidade. Convm aqui salientar que, alm da influnciaindirecta, ou mesmo directa, que de um ou de outro modo exerceu a apre-sentao do cepticismo por Montaigne sobre Descartes, deve-se assinalar quetudo indica que o Autor das Meditaes de Filosofia Primeira foi um leitoratento e bom conhecedor dos Ensaios, que encarou quase laia de interpela-o muitas interrogaes a registadas e que se sentiu estimulado a, por umlado, prolongar as indagaes que a vislumbrava e, por outro lado, a fornecerrespostas s questes de Montaigne e s suas prprias surgidas no encalo dareflexo montaniana3.

    A respeito do terceiro elemento acima mencionado, sobre o qual no ha-ver, de resto, muito que insistir, por demasiado bem conhecido e suficien-temente explorado, convir notar que Montaigne trata-se de um autor cujarecepo, desde a dos seus coevos do incio do sculo XIX, tambm pode,de alguma maneira, ser concebida e lida como parte integrante da histria doIluminismo.

    Trata-se Montaigne de um autor para o qual a comunicao constitui um

    para latim por Henri Estienne em 1568) bem como de Ccero que a argumentao cptica sepopularizou e atingiu com grande impacte uma camada grande do pblico leitor em lnguasvulgares.

    3So inmeras as obras em que se trata do dilogo de Descartes com Montaigne e da in-fluncia deste sobre aquele. Citaremos aqui apenas trs: Lon Brunschvicg, Descartes et Pas-cal: Lecteurs de Montaigne, 2a ed., N.Iorque/Paris, Brentano, 1944; Richard H. Popkin, TheHistory of Scepticism from Erasmus to Spinoza, 3a ed. rev. e ampliada, Berkeley/Los An-geles/Londres, University of California Press, 1979 (1a ed.: The History of Scepticism fromErasmus to Descartes, 1960); M. G. Paulson,The possible influence of Montaignes Essaison Descartes Treatise on the passions, Lanham, University Press of America, 1988.

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    Modernidade, cepticismo e comunicao 9

    tema essencial. Embora, claro, no possamos com alguma legitimidadeabordar tal temtica num autor quinhentista como ele, situado no limiar damodernidade, sem termos presente que na sua abordagem natural que ten-damos a sobrevalorizar o que aponta em nossa direco, o que parea maisaproximar-se da configurao do nosso interesse actual (no apenas filos-fico e terico) pela temtica da comunicao em sua mesma determinao,no deixa de ser de algum modo lcito faz-lo, desde que procedamos coma devida cautela, evitando uma precipitao simplista, bem como violentosanacronismos e leituras redutoras.

    Uma dificuldade com que no podemos deixar de nos deparar ao enca-rarmos o tema da comunicao em Montaigne deriva da prpria ambiguidadee do carcter vago e incerto do prprio termo comunicao, ao qual no cor-responde uma noo facilmente identificvel e delimitada, mas na realidadeuma vasta nebulosa de noes, o que nos obriga a proceder com redobradacauo.

    A esta dificuldade uma outra associa-se: a que desponta por paradoxo damesma importncia, bem como da amplitude, do assunto em considerao.

    Se, por exemplo e desde logo, assumirmos dois ou trs sentidos genricosda comunicao, como sejam, o de transmisso envolvendo um de e um tex-titpara, o de partilha de uns com outros de informao, ou o de simplesmenteconstituir-se num estar-se e num ter-se em comum com algo que nos externo,dificilmente poderemos admitir que qualquer deles se possa considerar disso-civel dos Ensaios de Montaigne, especialmente se encarados como projectofilosfico e literrio, da sua gnese e da sua mesma essncia.

    Em pelo menos trs ocasies Montaigne usou a prpria palavra commu-nication para designar algo que se acha no mago e na origem da escrita e dopensamento ensastico. A primeira a que nos referimos aquela passagem emque ele se serve dela para qualificar o seu relacionamento com tienne de LaBotie:

    Acho esta queixa bem expressa e razovel pois, como eu sei por expe-rincia certa de mais, no h nenhuma to doce consolao para a perdados nossos amigos como aquela que nos traz o conhecimento de nada teresquecido de lhes dizer e de haver mantido com eles uma perfeita e integralcomunicao4

    4A verso dos Essais por ns aqui adoptada como de referncia a seguinte: Les Essais

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    10 Rui Bertrand Romo

    O sentido do original, por sua excessiva riqueza e sua pregnncia de sen-tido, perde-se inevitavelmente um bocado na traduo. A comunicao aqui uma partilha em comum que faz a cada um dos amigos, a cada um dosque tm em comum esse algo que os relaciona, ser mais ele prprio, tornar-semais inteiramente ele, ao privar com o outro, ao conhecer o mundo atravs dooutro, dando-lhe a conhecer o mundo por intermdio da sua prpria e nicaidentidade. O contexto em que surge o fragmento que acabmos de citar ex-prime bem a articulao operada pelo Autor entre a vontade de se entregarao conhecimento doutrem e a dificuldade em faz-lo. De facto, a queixa aque alude Montaigne era um desabafo de uma pessoa das suas relaes, umagrande figura do seu tempo, o famoso Marechal Blaise de Monluc (autor deComentrios que vieram a tornar-se um dos grandes clssicos da literatura re-nascimental). Aps a morte de seu filho, o Marechal lamentava-se de, entreoutras coisas, [. . . ] jamais ter-se comunicado a ele [. . . ]5. A conscincia daperda agudiza o sentimento da incompletude em que se acha face ausnciado outro e aquilo que de si irremediavelmente se impossibilitou de dar e re-velar ao outro. A falha de comunicao paterna de Monluc perante a morte dofilho vista, ento, a contrastar com a plenitude da comunicao de amizadehavida entre La Botie e Montaigne. Contraste salientado e reforado peloacrescento introduzido com a edio de 1588 (camada textual b):

    Abro-me aos meus, tanto quanto posso. E de bom grado dou-lhes a co-nhecer as minhas intenes em relao a eles e o meu juzo sobre eles,como o dou a toda a gente. Apresso-me a revelar-me e a expor-me, poisno quero que se enganem sobre mim seja de que maneira for6

    Montaigne um autor que, para comunicar com os outros, tem de se reve-lar na sua inteireza e na nudez do seu ser tal como ele a v. Como sabido, elefez questo de frisar, na advertncia preliminar ao leitor nos Ensaios, que o

    de Michel de Montaigne, dition conforme au texte de lExemplaire de Bordeaux par PierreVilley, rdite sous la direction et avec une prface de V.-L. Saulnier, 2 vols., Paris, P.U.F.,1965. As citaes que lhe fizermos tero apenas as siglas VS, seguidas do nmero do Livro,do captulo e da pgina, qual se acopla a camada textual do trecho referido. No caso presentetrata-se de II, 8, 396a. O itlico meu.

    5VS, II, 8, 395a (itlico meu).6VS, II, 8, 396b.

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    Modernidade, cepticismo e comunicao 11

    seu objectivo era pintar-se a si e que o seu ideal era apresentar-se todo inteiroe todo nu7.

    O segundo trecho em que Montaigne utiliza o vocbulo communicationnuma passagem central dos Ensaios, e a propsito de algo que indissocivelda escrita dos Ensaios e da sua prpria gnese, trata-se daquele em que elerecorre ao vocbulo com o fito de exprimir um trao fundamental da sua ami-zade com La Botie, distinguindo-a de outros tipos de amizade e de ligaoafectiva:

    Dos filhos para com os pais h, antes, respeito. A amizade nutre-se deuma reciprocidade de comunicao que no se pode achar entre aquelese estes devido sua demasiado grande disparidade, alm de que, se elafosse possvel, prejudicaria porventura os deveres naturais. Pois nem todosos pensamentos secretos dos pais se podemcomunicar aos filhos, para noengendrar uma inconveniente intimidade, nem, por outro lado, os conse-lhos e as admoestaes, que constituem uma das principais obrigaes daamizade, se poderiam exercer dos filhos aos pais8

    Se na passagem anteriormente comentada a comunicao perfeita e inte-gral praticamente se confundia com a prpria amizade perfeita, aqui constituium elemento essencial desta, o de uma relao de reciprocidade que envolve eimplica um sincero e franco dilogo, incluindo mesmo a partilha daquilo quese tem de costume pejo em revelar aos outros e que se reserva para a penumbrasecreta dos mais ntimos recessos de si mesmo.

    A terceira ocasio em que o termo communication aparece associado vontade de Montaigne se expor atravs da escrita, e por ela, ao intento de elese escrever ao longo dos Ensaios, a de uma passagem de auto-comentriodo Livro III, em que ele fala da sua natureza, caracterizando-a como essenci-almente comunicativa:

    H naturezas solitrias, retiradas e viradas para o interior. A minha manei-ra de ser, em sua essncia, apta comunicao e exposio: mostro-metodo, pondo-o em evidncia, nascido que sou para as relaes sociais e paraa amizade9

    7VS, Au Lecteur, 3a.8VS, I, 28, 184a (itlico meu).9VS, III, 3, 823b (itlico meu).

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    12 Rui Bertrand Romo

    Foi a propsito deste trecho e nele inspirado que Robert D. Cottrell escre-veu que Montaigne no acentua nenhum trao do seu carcter mais urgente-mente do que a sua necessidade de comunicar10.

    Na realidade, fcil cair-se na tentao de, de alguma forma, confundir-sea explorao da temtica da comunicao com os Ensaios eles prprios, as-sociando a urgncia do seu autor em escrever com o impulso de comunicar,comunicando-se a si e ao mundo de que escreve aos leitores. Se justapuser-mos que ele diz algures que fala com o papel11 com esta confisso da suanecessidade de comunicar e com a sua tendncia a identificar-se com o seulivro12, no poderemos deixar de ver a comunicao como figura inscrita nomesmo cerne do livro e do projecto filosfico que ele encerra. Mas no esta-remos ento a esticar em demasia a noo de comunicao, a sermos poucoprecisos e um pouco precipitados e a fazer extrapolaes algo foradas?

    Seja como for, dificuldades como esta no nos devem impedir de procurarperceber como Montaigne concebe a noo de comunicao, de apurar o papelque ela desempenha ao longo dos Ensaios, e de investigar os problemas queorigina, bem como de reflectir sobre a questo da eventual actualidade dosproblemas respeitantes comunicao que Montaigne na sua obra acaba porlevantar.

    Em primeiro lugar, temos de proceder a uma indagao acerca do uso queMontaigne faz do termo communication e dos que etimologicamente se lherelacionam, bem como de outros afins, da sua frequncia e distribuio pelostrs livros da obra e pelas camadas cronolgicas cuja datao identificvel13.Esta indagao tem de tomar, como parece evidente, em linha de conta asdiversas acepes do termo no francs de Quinhentos.

    Depois desta pesquisa necessria, e dado que o presente captulo no tem10Robert D. Cottrell, Sexuality/Textuality. A study of the fabric of Montaignes Essais,

    Columbus, Ohio State University Press, 1981, p.101.11Falo com o papel como primeiro que encontro, VS, III, 1, 790b.12Cf., e.g., VS, II, 18, 665c; III, 2, 806b; III, 5, 875b.13Seguimos aqui o hbito, tradicional desde as edies de Fortunat Strowski e de Pierre Vil-

    ley, de distinguir trs camadas principais de texto nos Essais, correspondentes editio princepsde 1580 (a), dita quinta edio de 1588, em que pela primeira vez publicado o livro III almde conter muitas interpolaes e acrescentos ao texto dos anteriores livros (b), e (c) ao textopreparado por Montaigne para uma nova edio quando morreu em 1592, em que, embora nohaja nenhum livro novo nem captulo novo, os acrescentos aos antigos so tantos que a obra noseu todo cresceu cerca de um tero do seu volume.

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    Modernidade, cepticismo e comunicao 13

    pretenses a um tratamento exaustivo de um tema que facilmente se vislum-bra como vastssimo, se no mesmo inesgotvel, centraremos a nossa atenonum caso particular da abordagem dessa temtica nos Ensaios. Assim, iremoster fundamentalmente em considerao o captulo duodcimo do Segundo Li-vro dos Ensaios, LApologie de Raimond Sebon, escolhido no apenas pelasua extenso (desmesurada em comparao com os demais captulos dos En-saios)14, pela sua incontestvel importncia no conjunto da obra, por se tra-tar do ensaio mais ostensivamente filosfico e daquele em que o seu Autormais expe sobre o cepticismo, mas tambm por ser precisamente o captulodos Ensaios em que ocorre com maior frequncia o uso dessa palavra e dassuas correlatas. Confrontaremos, em seguida, em rpido relance, as conclu-ses a que chegmos nesta nossa interpretao da Apologia de RaimundoSabunde15 luz da noo de comunicao com o estudo do uso de tais ter-mos noutros captulos dos Ensaios, aproveitando para, de passagem, assinalarem brevssima resenha as tentativas de aplicao de algumas recentes teoriasda comunicao a aspectos ou partes dos Ensaios, que tm sido levadas a cabopor diversos filsofos e estudiosos.

    Segundo o relativamente recente dicionrio especializado sobre o francsrenascimental da autoria de Algirdas Julien Greimas e Teresa Mary Keane,Dictionnaire du moyen franais la Renaissance, de um modo geral, no fran-cs do perodo de Montaigne16, o termo communication possua cinco sen-tidos principais17: 1) o de relacionamento ou comunho entre homens; 2) ode uma comunicao no verbal; 3) o de relao ou conversa; 4) o de discus-so, debate, conferncia e de parlamentao; 5) finalmente, o de entendimentoamigvel e de uma espcie de cumplicidade.

    Se quisermos, poderemos reduzir a trs estes cinco sentidos, considerandoos outros dois deles sub-espcies de um desses trs. Tais sentidos principaisseriam o 1, o 3 e o 5, o 2 e o 4 constituindo especificaes enquadrveis

    14Para se ter uma ideia de tal desmesura proporcional, basta ver que na edio moderna dosEssais que aqui seguimos como referncia, em 1118 pginas dos trs livros, distribudas pornoventa e quarto captulos, este ocupa umas 169 pginas.

    15A partir daqui referiremos este ensaio pelo seu nome em portugus, por vezes abreviadopara apenas Apologia.

    16Os limites temporais estabelecidos pelos autores deste dicionrio so 1340 e 1610, por-tanto este o perodo do francs tardo-medieval at imposio do francs clssico.

    17Cf. Algirdas Julien Greimas; Teresa Mary Keane, Dictionnaire du moyen franais - laRenaissance, Paris, Larousse, 1992, p.129.

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    no mbito do 3. Ditos de outra maneira e sintetizados, tais trs sentidos po-deriam assim ser definidos: 1) a partilha e participao em comum de algopor um conjunto determinado ou indeterminado de indivduos; 3) emisso,transmisso e recepo por meios convencionados e codificados de algo [3A,comunicao no sentido 3 limitada a meios no verbais; 3B, comunicao nosentido 3 quando essencialmente efectuada pelo meio da linguagem; 3C, co-municao no sentido 3B quando efectuada tendo em vista um entendimento,ou seja, uma negociao feita para se chegar a um acordo ou convnio dealgum tipo, nomeadamente os de ndole poltica, diplomtica e militar].

    De acordo com o mesmo dicionrio, o verbo communiquer cuja primei-ra apario localizada numa obra datada ocorre em 1361, nas thiques deNicolas Oresme, possui igualmente cinco acepes na lngua francesa renas-cimental, as trs primeiras das quais figurando em expresses correntes:

    1. Comunicar com alguma coisa, participar em alguma coisa. 2. Co-municar de alguma coisa a algum, dar parte 3. Comunicar em conjunto,entrar em relao com. Comunicar em conjunto por casamento, levaruma vida marital. 4. Partilhar com os pobres, dar esmola. 5. Distri-buir18

    Antes de passarmos considerao do uso que Montaigne faz destes voc-bulos, convir ainda assinalar o que regista a entrada comunicao no dici-onrio de Huguet, mais especializado, mais extenso e mais antigo (cerca de60 anos) que o de Greimas e Keane19. Curiosamente, a entrada bem maissucinta que a que figura no dicionrio mais moderno, a tal circunstncia talvezno sendo alheio o acerado interesse contemporneo (grosso modo, posterior Segunda Guerra Mundial) pelo ncleo nocional de comunicao e tudo quantocom ele se relaciona de algum modo. Assim, so apenas dois os sentidos queaparecem na entrada comunicao: o de comunidade e o de comunho. Jno que se refere ao vocbulo comunicar, os sentidos equivalem aos regista-

    18Ibidem.19Edmond Huguet, Dictionnaire de la langue franaise du 16e sicle, Paris, Droz, 1972,

    t.2, p. 372. Deve-se salientar que este dicionrio, alis uma monumental obra de erudio,compreende vrios volumes publicados ao longo de dezenas de anos e se destina a um pblicode especialistas, ao passo que o dicionrio de Greimas, mais acessvel, de tiragem maior e demuito menor volume, se prope, segundo o que os prprios autores dizem, ser uma obra deconsulta e no uma de referncia.

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    dos por Greimas e Keane, devendo-se, no entanto, realar que a nfase postaexplicitamente no sentido de participar20.

    Montaigne utiliza o termo communication ao longo dos Ensaios em to-dos os sentidos assinalados por Grimas e Keane. Percorrendo a Concordn-cia de Leake, verificamos que Montaigne emprega o nome communicationvinte e nove vezes, de uma forma distribuda pelos Trs Livros dos Ensaioscom certa regularidade e em ritmo de crescimento contnuo21. So sete as apa-ries do termo no Livro I, dez no Livro II e doze no III. De um ponto de vistadiacrnico, tendo em considerao as trs camadas de texto habitualmente dis-tintas a partir de Pierre Villey22, j o caso se apresenta diferentemente, pois aobservam-se contrastes maiores e uma tendncia de progressiva diminuio23.Cruzando as informaes obtidas por estas duas contagens, note-se que seriaerrneo pensar que o Montaigne mais maduro usasse com maior frequncia ovocbulo, pois aps 1588, apenas por trs vezes a ele recorre.

    A regularidade do emprego de formas verbais de communiquer ao longodos trs Livros dos Ensaios ainda maior: onze vezes no Livro I, oito no IIe doze no III (trinta e uma vezes no total). De uma perspectiva diacrnica,os dados referentes ao uso do verbo confirmam aqueloutros concernindo o dosubstantivo, registando-se aqui de igual modo uma progresso decrescente, sebem que um pouco menos acentuada: catorze vezes na camada A, onze na Be seis na C24.

    O adjectivo communicable, esse aparece apenas uma vez, num texto dacamada C do Livro I25, ao passo que o aparentado e significativo adjectivo in-communicable surge trs vezes, equitativamente distribudo pelos trs Livrosem passagens todas elas pertencentes camada B26.

    Um outro vocbulo que em parte se entrecruza semanticamente comcommunication commerce (aparecendo mesmo numa ocasio os doisemparelhados)27, ou seja, comrcio, termo deveras relevante nos Ensaios

    20Cf. Ibidem.21Cf. Roy E. Leake; David B. Leake; Alice Elder Leake, Concordance des Essais de Mon-

    taigne, 2 vols., Genebra, Droz, 1981, I, p. 251.22Ver supra, n. 14.23Respectivamente, quinze aparies na camada textual (a), onze na (b) e apenas trs na (c).24Cf. Leake, op. cit., p. 251.25Cf. Ibidem.26Cf. Ibidem, p.617.27Cf. VS, III, 5, 850b: La science, la force, la bont, la beaut, la richesse, toutes autres

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    por diversas razes, entre as quais avulta a de figurar no ttulo de um dosmais importantes e emblemticos captulos do Livro III, Des Trois Com-merces28. Alm da bvia acepo mercantil de troca, possua este termo nofrancs quinhentista dois outros sentidos, o de relacionamento e convivncia,e o de familiaridade29. Montaigne emprega-o com ainda maior frequnciaque communication, sessenta e uma vezes, e com grande regularidade (de-zanove vezes no Livro I, igual nmero de vezes no Livro II e vinte e trs noLivro III)30.

    Tal como commerce, conference tambm utilizado por Montaignecomo dobrando communication, no, porm, de uma nica feita, mas emduas ocasies31. Trata-se, alis, de um vocbulo de que um dos sentidos maiscomuns no francs do sculo XVI, juntamente com o de convvio amistoso eo de debate, conversa ou disputa, sinonmico de communication32.A esse termo e aos do mesmo tronco (isto , as formas verbais de confe-rer, de igual modo derivadas do latim conferre), emprega-os Montaigne commenor assiduidade geral: quinze vezes conference, dezasseis vezes formasverbais de conferer33. Destas trinta e uma ocorrncias, vinte surgem na ca-mada textual C, uma das quais no ttulo de um dos captulos dos Ensaios maisconhecidos e comentados do Livro III, e dos que mais tm que ver directa-mente com o tema da comunicao, De lart de conferer34.

    qualitez, tombent en communication et commerce [. . . ] (itlico nosso). Referimos aqui apassagem em francs porque a traduo, mais ou menos literal, perderia sentido.

    28VS, III, 3, 818-829. H uma traduo portuguesa deste ensaio, vertido como De Trs Es-pcies de Convivncia, in Ensaios Antologia, Introduo, traduo e notas de Rui BertrandRomo, Pinturas de Pedro Calapez, Lisboa, Relgio Dgua Editores, 1998, pp. 201-215.

    29Cf. Greimas; Keane, op. cit., p.128. Um importante estudo no apenas deste captulomas de todos os Ensaios feito sob o signo da anlise do discurso econmico o de PhilippeDesan, Les Commerces de Montaigne le discours conomique des Essais, Paris, LibrairieA.-G. Nizet, 1992.

    30Cf. Leake, op. cit., vol. I, p. 248.31Cf. VS, I, 28, 186a: ; III, 8, 938b.32Cf. Greimas; Keane, op. cit., p. 135.33Cf. Leake, op. cit., vol. I, pp. 260-261.34Ensaio traduzido em portugus por Agostinho da Silva como Da arte de discutir (in

    Montaigne, Trs ensaios, trad. de Agostinho da Silva, 2a edio, Lisboa, Vega, 1993, pp. 99-140 [1a ed.: Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933]. Mas na realidade no nos parece haveruma s palavra portuguesa que consiga transmitir exactamente a riqueza semntica do termoconferer no francs quinhentista. O ttulo poderia ser igualmente vertido, por exemplo, como

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    Como antes dissemos, o captulo mais extenso dos Ensaios, A Apologiade Raimundo Sabunde, tambm aquele que mais vezes comporta a palavracommunication e formas verbais de communiquer. Mas no , de modoalgum, apenas s aparies de tais termos que se restringe o tratamento datemtica da comunicao nesse captulo dos Ensaios. Na realidade, pode-seler a inesgotvel Apologia luz do questionamento da comunicao e dacomunicabilidade, bem assim como da sua viabilidade, os obstculos que selhe levantam e da indagao das consequncias, a vrios nveis, da negaodessa viabilidade.

    Tal como acima dissemos que os Ensaios parecem dominados pela figurada comunicao, poderemos observar que de alguma forma a Apologia nodesmente tal afirmao, antes a confirma, s que o faz pela negativa. Estelongo e prolixo ensaio35, de longe nico na obra pelos seus excessos, in-cluindo o da extenso, o dos paradoxos, o da densidade filosfica, da abun-dncia pletrica de argumentao e contra-argumentao, e o do seu predomi-nante tom de negro pessimismo, dir-se-ia, em certo sentido, constituir um tra-tado sobre a imperfeio da comunicao e a tendncia incomunicabilidade:dos homens com o mundo, com as demais criaturas e com a natureza; de unscom os outros homens, quer a nvel de indivduos quer a nvel de grupos deindivduos, seja no meio dos sbios e dos filsofos seja no meio do vulgo; edo homem com o divino, e logo, com o que verdadeira e somente .

    A ideia da imperfeio da comunicao humana como inevitvel condi-o da espcie aparece como o reverso simtrico da comunicao ideal, a queMontaigne alude nos trechos de I, 28 e III, 3, acima citados36. Aquela ideia

    da arte de conversar, da arte de debater, da arte de conferenciar (se da arte de conferir,conquanto estas duas tradues literais acabem por se revelar das menos adequadas e felizes)ou, at mesmo (embora no sem algum impulso tendencioso) como da arte de comunicar.

    35Em princpio achamos que, com rigor, deve-se referir a cada captulo dos Ensaios comocaptulo e no como ensaio, porquanto a designao da obra em Montaigne genrica eele emprega sempre o termo essais no plural para designar a obra e cada captulo aparecenomeado como captulo (conquanto Montaigne no use a expresso, noutro captulo do meulivro, ou equivalente. Normalmente ele diz ailleurs para significar isto. Todavia, como ohbito comum e est arreigado mesmo em muitos comentadores, estudiosos e especialistas deMontaigne, no vejo inconveniente em empregar o termo ensaio como sinnimo de captulo,para designar, portanto, uma parte intitulada relativamente autnoma da obra, uma vez que oleitor seja posto ao corrente que no se deve de maneira nenhuma confundir um ensaio deMontaigne, nesta acepo, com um ensaio moderno.

    36Ver supra.

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    desenvolvida ao longo da Apologia no contexto da polmica contra osadversrios racionalistas de Sabunde, denunciados como antropocntricos, ede uma diatribe contra a alegada superioridade do homem entre as criaturase contra a principal marca de tal superioridade, o uso da razo, diatribe queenvolve uma depreciao da linguagem. A imperfeio essencial da comuni-cao humana aqui vista pois em associao depreciao das capacidadescognitivas do homem e encarada como sinal distintivo da espcie e dos seusespcimes.

    O problema da comunicao primeiro tratado na Apologia na sua sec-o de elogio das faculdades animais. A imperfeio da comunicao entreos homens e as outras criaturas de incio atribudo aos homens e aos animaismas a nfase acaba por ser posta na culpa do homem, na sua dificuldade emsentir-se parte da natureza, tanto mais que Montaigne explicita que tal imper-feio pode ser observada no seio da prpria espcie humana:

    A imperfeio que impede a comunicao entre eles e ns, por que motivono ser to imputvel a ns quanto a eles? Queda por descobrir de quem a culpa de que no nos entendamos de todo pois ns os no entende-mos mais que eles nos entendem. Por esta mesma razo, eles podem-nosjulgar brutos como ns os julgamos. No grande maravilha que os nocompreendamos: to-pouco o fazemos em relao aos Bascos ou aos Tro-gloditas37

    Estamos aqui perante um paradoxo: esta reivindicao da falta de comuni-cao entre os homens e os animais insere-se no curso da demonstrao mon-taniana da nossa paridade com os animais. Alm de outros motivos capazesde justificar o paradoxo incluindo o recurso argumentativo que Montaignefaz a dois tipos de demonstrao complementares, a que visa mostrar os bru-tos humanos e a que quer apresentar os homens como bestiais , podemosreparar que aqui se justape a tais motivos o propsito de dar nfase faltade comunicao como caracterstica dos homens, os quais so consideradosresponsveis por ela em consequncia do seu desejo de uma ruptura artificialcom a natureza, assim exibindo a sua hybris:

    Eis a interpretao que do episdio deu Cleantes, provando assim queos bichos completamente desprovidos de voz no deixam de ter entre si

    37VS II, 12, 453a (itlico meu).

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    relaes e comunicao38, de que no participamos por nossa culpa; e,por este motivo, tolo que nos intrometamos a opinar sobre o assunto39

    Essa imperfeio concerne o entendimento. Contudo, isso no impede aexistncia de um outro tipo de entendimento mtuo, medocre e funcional,limitado quase inteiramente aos sentidos. Destarte, a reciprocidade comuni-cativa entre os homens e os animais encarada como uma relao de foras einteresses, como uma troca de lisonja, ameaas e splicas:

    Temos uma compreenso aproximativa das suas intenes e do seu sentir,e assim eles dos nossos, de maneira mais ou menos equivalente. Acariciam-nos, ameaam-nos e pedem-nos coisas; e ns a eles40

    A comunicao completa e integral v-se, assim, relegada para uma m-tica Idade do Ouro, de que a melhor representao ainda ser a comunicaohavida entre os prprios bichos, quer os da mesma espcie quer os de espciesdiferentes:

    Plato, na sua descrio da idade de ouro saturnina, conta entre as princi-pais vantagens do homem de ento a capacidade de comunicao com osanimais, de que, informando-se junto deles e deles tomando lies, sabia asverdadeiras qualidades e as diferenas que os distinguiam, por onde adqui-ria um perfeitssimo entendimento e bom senso, com que regia a sua vidade longe bem mais felizmente que ns hoje o saberamos fazer. [. . . ] Deresto, observamos como evidncia que entre eles se estabelece uma perfeitae total comunicao e um entendimento mtuo, no s entre os da mesmaespcie, mas de igual modo entre os de espcies diferentes. [. . . ] Em certolatido do co o cavalo percebe que h clera; com certos outros latidosno se assusta nada. Mesmo entre os animais desprovidos de voz, a partirdas ligaes que vemos manterem entre si nas suas sociedades, facilmenteconcluiremos haver algum outro meio de comunicao (c) - os seus gestosdiscursam e argumentam [. . . ] 41

    Esta comunicao perfeita na maioria das vezes levada a cabo de modono verbal e talvez seja por essa precisa razo que ela se torna, afinal, vivel e

    38No original: [. . . ] pratique et communication mutuelle [. . . ].39VS, II, 12, 468a (itlico meu).40VS, II, 12, 453a.41VS 452 c (itlico meu).

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    possvel. De maneira similar, no meio humano, entre uns e outros homens, uma espcie de linguagem corporal que vista a mais se acercar de um idealde comunicao perfeita. E por que motivo no h-de ser assim, uma vez queh paridade entre os homens e os animais e que nestes o gesto como queuma outra voz ainda? A valorizao da gestualidade em detrimento da falaaparece pois como uma consequncia imediata da observao da presena dacomunicao entre os ditos brutos.

    (a) E porque no, uma vez que os nossos mudos tambm discutem, ar-gumentam e contam histrias por meio de sinais? Vi alguns to hbeise experimentados nesta prtica que na verdade nada lhes faltava para sa-ber fazerem-se entender perfeitamente. Os namorados arrufam-se, reconci-liam-se, rogam-se, agradecem-se, marcam encontros e, enfim, tudo expri-mem com os olhos. [. . . ] (c) E que dizer das mos? Por meio delasrequeremos, prometemos, chamamos, despedimos, ameaamos, oramos,suplicamos, negamos, recusamos, interrogamos, admiramos, enumeramos,confessamos, arrependemo-nos, tememos, envergonhamo-nos, duvidamos,instrumos, comandamos, incitamos, encorajamos, juramos, testemunha-mos, acusamos, condenamos, absolvemos, injuriamos, desprezamos, de-safiamos, zangamo-nos, lisonjeamos, aplaudimos, abenoamos, humilha-mo-nos, troamos, reconciliamo-nos, recomendamos, exaltamos, festeja-mos, regozijamo-nos, queixamo-nos, entristecemo-nos, desanimamo-nos,desesperamos, espantamos, gritamos, calamos e que mais no? comuma variedade e multiplicidade de causar inveja lngua. Com a cabea:convidamos, expulsamos, admitimos, desdizemos, desmentimos, sauda-mos, honramos, veneramos, desdenhamos, pedimos, indeferimos, alegra-mos, lamentamo-nos, acariciamos, ralhamos, submetemo-nos, afrontamos,exortamos, ameaamos, asseguramos, inquirimos. E com as sobrancelhas?E com os ombros? No h gesto que no fale uma linguagem inteligvelsem ensino e comum a todos, o que, atendendo sua riqueza e ao seu usodestrinado do das outras linguagens, faz que deva ser julgada a prpriada natureza humana42

    Nesta clebre passagem, na sua maioria um acrescento posterior a 1588(camada textual c), Montaigne frisa a primazia do corpo como meio de co-municao, mantendo como pano de fundo a oposio da arte natureza. OHomem v-se assim preso e ancorado sua condio natural de animal. Aprpria circunstncia da plasticidade verbal deste texto de ritmo alucinante, o

    42VS 454a-c (itlico meu).

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    qual se insere numa reflexo sobre a eloquncia do silncio, interrompendoesta com o seu expressivo frenesim, d redobrada fora noo de ambigui-dade das palavras, veiculada ao longo do ensaio. O interrompido silnciotorna-se aqui uma espcie de ausncia presente que em contraste com a verti-gem verbal do texto que comunica a prpria expressividade comunicativa doautor a quem em silncio o l revela-se prenhe de sentido.

    Seja como for, Montaigne articula de forma admirvel com a sua defesa daparidade das criaturas as temticas e as problemticas da linguagem e da co-municao, o que parece tanto mais surpreendente por a linguagem aparecerao longo do curso da Apologia como portadora de ambiguidade e incertezae como defeituoso meio de comunicao que traz consigo discrdia, dissen-so e luta em vez de harmonia e entendimento. Esta concepo negativa dalinguagem v-se acentuada pelo prprio tom fidesta do ensaio, e mais do quenoutra parte se manifesta e se evidencia na abordagem das vs conjecturas dafilosofia sobre Deus e o divino43.

    A instabilidade das palavras, signos convencionais e arbitrrios, agravadapela plasticidade do juzo, pelos caprichos da vontade e pelas vicissitudesda fortuna, manipulando aquelas e distorcendo-lhes o sentido, mostra-se umadicional factor de perturbao da comunicao entre os homens.

    Mas, ainda assim, esta imperfeio de comunicao, tanto entre as diver-sas criaturas, entre as espcies, entre os homens ou de indivduo para indiv-duo, se por vezes se traduz em ausncia de comunicao e se a ela acaba portender, no se pode confundir, com uma pura e simples impossibilidade de co-municao, com a incomunicabilidade absoluta. Esta assume uma dimensometafsica na Apologia, concernindo a separao das ordens, do humano edo divino e vem a revelar-se plenamente na seco conclusiva do ensaio.

    A argumentao montaniana que frisara a instabilidade do juzo humano,a discrdia entre os homens correlatas da variabilidade e diversidade das dou-trinas cientficas e filosficas, das leis e dos costumes e da subjectividadedas interpretaes completa-se com a argumentao acerca da inviabilidadedos sentidos para desembocar na sustentao da impossibilidade do conheci-mento das coisas pelo homem. Montaigne, nesta seco de ritmo em constanteacelerao, vale-se criteriosamente dos argumentos pirrnicos antigos44 para

    43VS II, 12, 512-536.44Os chamados tropoi, ou modos de argumentar conducentes epoche (suspenso), de que

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    atingir o clmax da seco conclusiva. Um ponto fulcral ser a passagem queliga o uso montaniano dos argumentos pirrnicos conducentes suspenso dojuzo utilizao de um longo emprunt de Plutarco45. A Montaigne tendea fundir a atitude cptica, encarada de uma perspectiva epistemolgica, comuma concepo de raiz heraclitiana de um mobilismo metafsico expresso nodilogo plutarquiano De E apud Delphos. A fuso acentuada pela cir-cunstncia que no texto de articulao o Autor apresenta de maneira invertidaa sequncia do encadeamento da srie de argumentos pirrnicos na weltans-chauung heraclitiana. Primeiro, ele declara a falta de permanncia na exis-tncia do homem e do mundo e enfatiza a ideia de transitoriedade universal,a mutabilidade do juzo humano incluindo-se em tal fluxo, e s depois queinfere da mudana contnua a que o sujeito e os objectos se acham sujeitos aimpossibilidade de um conhecimento certo.

    Enfim, no h nenhuma existncia permanente nem do nosso ser nem dodos objectos. Ns, o nosso juzo e todas as coisas mortais, vamos correndo eescorrendo incessantemente. Destarte, estando em contnua mutao e agita-o o sujeito que julga e o objecto julgado, nada de certo se pode estabelecerentre um e outro46

    A inconstncia aparecendo como representao paradigmtica do queexiste a nvel da imanncia impede que haja qualquer estabilidade na rela-o entre o sujeito e os objectos, na qual pudesse fundamentar-se qualquerconhecimento seguro. Assim, o juzo surge reduzido condio de mera opi-nio. A famosa frase que segue a passagem que acabmos de citar a doincio da longa, e levemente alterada, citao de Plutarco:

    No temos nenhuma comunicao com o ser, porque toda natureza hu-mana est sempre a meio caminho entre o nascer e o morrer, no dando desi mesma seno uma obscura imagem, uma sombra, e uma incerta e dbilopinio47

    havia dois grupos principais, os dez atribudos a Enesidemo e os cinco atribudos a Agrippa. Aexposio mais pormenorizada deles na Antiguidade at ns chegada (e que Montaigne muitobem conhecia) a devida a Sexto Emprico, nos Esboos Pirrnicos (P. H., I, 13, 31-I, 15,177). Montaigne faz um uso criterioso e muito pessoal desses argumentos na Apologia emespecial na seco final.

    45Emprunt literalmente quer dizer emprstimo ou pedao emprestado e a expressoque habitualmente se aplica aos textos que Montaigne cita ou parafraseia ao longo dos Ensaios.

    46VS II, 12, 601a.47Ibidem (sublinhado meu).

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    No temos nenhuma comunicao com o ser, tomada em si como fraseisolada uma declarao impressionante e marcante, asss comentada, e queo antroplogo francs Claude Lvi-Strauss considerou, no, porm, sem exa-gero, a talvez mais forte frmula que se pode ler em toda a filosofia48.Embora sem chegarmos a tamanho excesso, temos de admitir que Montaigneradicaliza o comeo do excerto plutarquiano, para o qual se serviu da tradu-o francesa do bispo Amyot49. Nesta, a frase em questo, em vez de Nousnavons aucune communication lestre [...], [...] nous navons aucuneparticipation du vray estre [...], [...] no temos nenhuma participao noverdadeiro ser [...]. Montaigne abandona assim qualquer expresso capazde restringir ou diminuir a brutalidade da abissal separao das ordens, en-tre a do homem e a do Ser. Ele substitui o termo participation por um desentido semelhante mas que, na formulao negativa, e devido s suas cono-taes semnticas, parece mais vigoroso e sobretudo mais explcito, ainda50;e suprime o adjectivo verdadeiro (vray), a qualificar o ser, supresso queelimina qualquer possibilidade de se lanar uma ponte sobre o abismo, imer-gindo o homem na mais completa ausncia e negatividade. Esta radicalizao,com a supresso da referncia explcita ao verdadeiro ser, e portanto con-traposio do ser humano, que no passa de mero devir, com o Ser divino,que s Ele verdadeiramente , tem a vantagem para Montaigne de adiar a ex-plicitao no texto da dita contraposio para algumas linhas mais adiante,aps ser levada a cabo a descrio da evanescncia humana e da sua reduo anada pela discontinuidade temporal. Torna-se assim dramaticamente realadaa apario de Deus.

    Quem se sujeita a mudana, no se mantm o mesmo, e se o no , de todoj no . Em vez disso, quando muda o ser uno, muda tambm o simplesser, tornando-se sempre outro a partir de um outro. Por conseguinte, danatureza dos sentidos enganarem-se e mentirem, tomando o que parece peloque , mngua de bem saber o que . Mas ento que que verdadeiramente

    48Claude Lvi-Strauss, Histoire de Lynx, Paris, Plon, 1994, p. 284 [1a ed.: 1991.]49Plutarco, Les Oeuvres Morales & Mesles, Translates du grec en Franois par Jacques

    Amyot, 2 vols., Paris, Vascosan, 1572 (reprint: Paris/ N.Iorque, Mouton/Johnson, 1971), p.356.

    50Tambm se poder supor que a negao da participao do homem com o divino poderiano ser rigorosamente cristo e poderia afinal equivaler a negar a noo de graa divina, cujainterveno Montaigne precisamente acentua mesmo no fim do ensaio.

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    ? O que eterno, quer dizer, o que nunca nasceu nem ter fim, e aoqual o tempo jamais traz mudana. [. . . ] Portanto, deve-se concluir queapenas Deus , no conforme alguma medida do tempo, mas na eternidadeimutvel e imvel, no mensurvel, nem sujeita a declnio. Antes dele,nada ; depois dele, nada ser, nem haver nada mais novo ou recente. Ele o ser real e uno que com um nico agora enche todo o sempre. Nada hque verdadeiramente seja seno Ele, Ele de quem no se pode dizer foi, ouser; Ele, que sem comeo e sem fim51

    Destarte, o captulo dos Ensaios em que a palavra communication maisaparece tambm aquele em que com maior nfase e mais desenvolvidamenteMontaigne mostra os limites da comunicao e as iluses que ela necessaria-mente comporta. Deve-se, no entanto, ter em conta a hiptese de a aparentedemonstrao da impossibilidade de uma comunicao que no esteja mar-cada pelo selo da imperfeio, levada a cabo na Apologia, obedecer a umaestratgia especfica deste ensaio52 ou de ser parte integrante de um perodo dopensamento montaniano detectvel na evoluo da obra, identificvel comocrise pirrnica e que daria lugar a uma filosofia menos pessimista e maisconvivial, a qual seria sobretudo expressa nos captulos do Livro III53.

    nossa opinio, como temos sustentado noutras ocasies54, que o pirro-nismo manifestado na Apologia no meramente estratgico, como to-pouco constitui um momento de crise ultrapassvel. Antes, estamos con-vencido que se trata de uma filosofia reinventada por Montaigne, de maiorflexibilidade do que primeira vista parece ter (uma das suas principais ca-ractersticas ser precisamente o carcter de abertura anti-sectria), e que plenamente compatvel com muitos traos aparentemente no pirrnicos. Ocaso da comunicao no nos parece de modo algum excepcional. O queacontece que h muitas facetas de um mesmo objecto e a filosofia monta-

    51VS II, 12, 603a.52Hiptese em geral defendida por muitos autores e comentadores, como, por exemplo,

    David Schaefer.53As leituras evolucionistas de Montaigne, postas em moda por Fortunat Strowski e Pierre

    Villey no princpio do sculo XX no so hoje, em geral, retidas dominantemente como aindao eram h uns trinta ou quarenta anos.

    54Por exemplo, no nosso artigo Da Arte de Pirronizar, in Philosophica, n.o 14, 1999, pp.133-145, ou na nossa tese de doutoramento, A Apologia na Balana, Lisboa, FCSH da UNL,1999 (passim).

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    niana precisamente uma que integra em si o que, depois de Nietzsche, podeser caracterizado como um certo tipo de perspectivismo.

    De resto, as citaes que precedentemente fizemos a propsito da noo decomunicao perfeita e integral como a que Montaigne associa que era parteintegrante da sua amizade com tienne de La Botie podero precisamenteser encaradas como o reverso da medalha do retrato pessimista que perpassa aApologia. Num caso, Montaigne fala de uma comunicao ideal e no outroda dificuldade em atingir aquela. Mas, se no houvesse um ideal to elevado,a desiluso tambm no seria to grande.

    Por outro lado, h que considerar que uma compreenso realista das falhascomunicativas condio sine qua non para se tentar paliar esse estado dedeficincia da melhor maneira possvel, sendo que tal tentativa se acha bemexpressa em muitos passos do Livro III.

    No podemos to-pouco esquecer que, mesmo os textos do ltimo perodode escrita ensastica, o correspondente camada textual (c), no desmentem aconcepo pirrnica da Apologia. nomeadamente o que se passa com umem que a frmula inspirada em Plutarco do final da Apologia reapareceligeiramente alterada:

    Enquanto nos mexemos, transportamo-nos antecipadamente aonde nosapraz: mas estando fora do ser, no temos comunicao nenhuma com oque . E seria melhor dizer a Slon que nunca nenhum homem feliz, poiss o depois de deixar de ser55

    A frase no parece aqui to lapidar, tanto mais que o contexto diferente,mas, olhando bem para ela, no decerto menos pessimista que a sua equi-valente da Apologia. Claro que no se acha aqui directamente em questo oconhecimento do homem e a limitao das suas capacidades. To-pouco estaafirmao tem, de imediato, a ressonncia csmica e teolgica da sua con-gnere da Apologia, a qual, apesar do que Lvi-Strauss diz em comparaocom o texto de Plutarco traduzido por Amyot, ao observar que Montaigne nelemuda a tnica da ontologia para a epistemologia56, nos parece de tom emi-nentemente ontolgico. Mas na realidade trata-se do mesmo dito, aludindoimplicitamente destrina das ordens e, explicitamente, referindo a imerso

    55VS I, 3, 17c.56Cf. Lvi-Strauss, op. cit., p. 285.

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    humana na mutabilidade do devir e exibindo a debilidade e vulnerabilidadeexistencial do homem.

    E, bem vistas as coisas, o que Montaigne na Apologia diz sobre a im-perfeio e as imperfeies da comunicao nem desemboca num genuno nii-lismo filosfico nem implica que a incomunicabilidade seja erigida em normanem contradiz o ideal da comunicao perfeita. Que o homem no comuniquecom os animais defeito da sua hybris passvel eventualmente de ser corri-gido, no uma incapacidade de origem e inultrapassvel por completo. Queo homem despreze a natureza e as outras criaturas advm do mesmo defeitobem como indicia tacanhez e estupidez. Que os homens no comuniquem unscom os outros como o podiam e deviam fazer, mais resultado de ms esco-lhas da sua vontade, de ms decises da sua inteligncia, de presuno arro-gante e de cedncia a paixes que os servilizam que consequncia inevitvelda sua natureza. Mas para comunicar, precisa o homem de ter conscincia dosseus limites e de que ele no passa de uma criatura como as demais.

    Analogamente o prprio reconhecimento dos perigos em que se incorrepelos equvocos da linguagem, pela hipocrisia dos dissimuladores, pelos jogosdas circunstncias, pelas vicissitudes do acaso, e por outros factores de per-turbao, que, conjugado com a importncia concedida comunicao, levao Autor (cujo impulso natural prazer me d gosto sem comunicao [. . . ](sublinhado meu).) a comunicar e a comunicar-se de uma forma prpria eespecfica, a qual se imprime na escrita dos Ensaios, procurando faz-lo damelhor, mais completa e perfeita maneira possvel e rejeitando as simplifi-caes que apenas concebem a comunicao sem levar em linha de conta osentraves como parte integrante da sua mesma noo de comunicao. Comestas tambm se v definitivamente repelida como impedimento de comuni-cao a falta de palavra, o culto da mentira, o seu emprego sistemtico comoessencial a um comportamento determinado:

    Conduzindo-se o nosso entendimento mtuo to-s pela via da palavra,aquele que a falsifica, trai a sociedade pblica. o nico instrumentopor meio do qual as nossas vontades e pensamentos se comunicam, ointrprete da nossa alma, se ele nos falhar, no nos aguentamos mais, nonos podemos conhecer uns aos outros. Se nos engana, quebra toda a nossaconvivncia57 e corta todas as ligaes da comunidade poltica58

    57No original: commerce.58VS II, 18, 666a-667a.

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    Modernidade, cepticismo e comunicao 27

    A concepo aparentemente mais positiva da comunicao qual a que emgeral se sente palpvel no Livro III no ser pois nem mais nem menos cpticaque a da Apologia, surgindo antes como seu complemento natural.

    No Livro III so sobretudo trs os ensaios que mais podero acrescentarao tema da comunicao, o III, 3, De trois commerces, o III, 5, Sur des versde Virgile, e, sobretudo, o III, 8, De lart de conferer, dos quais, de resto, jacima citmos passagens. Este ltimo, em particular, com a sua apresentaoda concepo montaniana do debate, tem chamado a ateno dos intrpretes,alguns dos quais, inclusive, o tm lido luz de modernas teorias da comuni-cao, com elas o confrontando, e descobrindo nele, de alguma maneira, umseu predecessor.

    De entre estas leituras tem de se destacar a do filsofo portugus FernandoGil, que, em La conversation est-elle possible?59, prope como refernciaa contrapor ao modelo defensivo da conversao de Erwin Goffmann o damontaniana arte de conferenciar60, que ele distingue por se guiar em fun-o da busca da verdade, pela sua orientao processual, pela sua crtica doacordo unssono como entediante e pelo relevo dado ao confronto das antte-ses: [. . . ] o confronto de teses opostas seria no s possvel como se revelariao bom mtodo de chegar verdade61. Todavia, o filsofo portugus acha queMontaigne no teria percorrido o caminho todo:

    Montaigne no se explica sobre os contedos desta ordem, desta prudn-cia, desta regra, desta forma, desta maneira, desta conduta. Dito de outramaneira, ele no adianta nada quanto aos processos que sustentaro a con-versa, limita-se a comentar que poucos homens podem dizer como deveser. Acrescentaramos hoje que estes processos so da competncia de umapragmtica transcendental62

    Uma leitura do mesmo ensaio que neste contexto no se pode deixar deassinalar a de Marie-Luce Demonet, para quem [. . . ] somente num qua-dro de um contrato de cooperao (no sentido de H. P. Grice) que Montaigne

    59Fernando Gil, La conversation est-elle possible?, in Communication, Arquivos do Cen-tro Cultural Calouste Gulbenkian, vol. XLI, Lisboa-Paris, 2001, pp. 47-52.

    60Cf. Ibidem, p. 48.61Ibidem, p. 50.62Ibidem, p. 51.

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    encara a possibilidade da conversa63. Reala ela ainda que a conversa, talcomo concebida por Montaigne, respeita os dois princpios do contrato decooperao e da pertinncia64.

    Estas e outras leituras deste ensaio65, exibindo a actualidade e a riquezainfinita da dialctica montaniana, no podem, porm, contrariar a inscriodesta no mbito da filosofia ensastica que reinventa a do pirronismo antigoe, portanto, a plena compatibilidade da arte de comunicar com o discursosobre a comunicao mantido ao longo da Apologia.

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    63Marie-Luce Demonet-Launay, Art de conferer, art de raisonner (III,8), in FranoiseCharpentier (ed.), Montaigne. Les derniers essais, Cahiers Textuel 34/44, Paris, UER, p. 19.

    64Cf. Ibidem, pp. 23-24.65Cite-se, por exemplo, a de Anthony Wilden, Montaigne on the Paradoxes of Individua-

    lism: A Communication about Communication, in System and Structure: Essays in Commu-nication and Exchange, Londres, Tavistock Publications, 1980, pp. 88-109.

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    Modernidade, cepticismo e comunicao 29

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    Metafsica leibniziana da comunicao: O paradigmamonadolgico

    Adelino CardosoUniversidade de Lisboa

    Ora, esta ligao ou este acomodamento de todas as coisas criadas a cadauma e de cada uma a todas as outras, leva a que cada substncia simplestenha relaes que exprimem todas as outras e que, por conseguinte, sejaum espelho vivo perptuo do universo 1

    O trao mais caracterstico do sistema leibniziano reside porventura no sig-nificado que a reconhecido comunicao. Trata-se de uma noonuclear, que assume diferentes modos, graus e, inclusive, sentidos. Comoprocurarei mostrar, esses vrios sentidos metafsico, moral, jurdico, hist-rico-antropolgico fazem sistema e, mais, encontram o seu mximo de in-tensidade e vigor na fase monadolgica, aquela que justamente a expressoculminante do leibnizianismo.

    Por conseguinte, entendo demarcar-me da leitura preguiosa e superficialque a mais comum vulgata leibniziana faz da clebre frmula de que a m-nada no tem portas nem janelas por onde algo de exterior possa introduzir-se nela, diminuindo a sua autonomia e dinamismo intrnsecos2. Por maioria

    1Monadologia, art. 56.Siglas e AbreviaturasA Gottfried Wilhelm Leibniz, Smtliche Schriften und Briefe. Herausgegeben von der

    Deutschen Akademie der Wissenschaften zu Berlin, Darmstadt, 1923 segs, Leipzig, 1938 segs,Berlin, 1950 segs. (A referncia ser feita em trs nmeros: srie, tomo, pgina).

    C Louis Couturat (ed.), Opuscules et Fragments indits de Leibniz extraits des manuscritsde la Bibliothque royale de Hanovre, Paris, 1903. Reimp. Hildesheim, 1961.

    GP Gottfried Wilhelm Leibniz, Die philosophischen Schriften, ed. C. I. Gerhardt, 7 vols.,Berlin, 1857-1890. Reimp. Hildesheim, 1965.

    Grua Gottfried Wilhelm Leibniz, Textes indits daprs les manuscrits de la Bibliothqueprovinciale de Hanovre. Ed. G. Grua, 2 vols., Paris, 1948.

    2A interpretao proposta por Alain Badiou tpica sob este aspecto: Mas pode igual-mente dizer-se: j que os pontos metafsicos apenas so discernveis pelas suas qualidadesinternas, devemos pens-los como interioridades puras o aforismo: As mnadas no tmjanelas e por conseguinte como sujeitos. No entanto este sujeito, que nenhum descentra-

    Filosofias da Comunicao , 31-48

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    de razo, demarco-me da desleitura operada por Alain Renaut a respeito dosignificado histrico-sistemtico da obra leibniziana e da dinmica que o arti-cula. Segundo este autor, Leibniz representa o desembocar do cogito racio-nalista num individualismo sem sujeito3, o fechamento do eu em si mesmo,sem qualquer relao com o outro e com o mundo: uma subjectividade semintersubjectividade, uma identidade a si que se pe sem nenhuma relao coma alteridade de um mundo nem de um outro. Solipsismo e atomismo encon-trariam na monadologia o seu quadro de eleio, acrescendo que o indivduoassim erigido em absoluto ele prprio vazio, uma contnua reiterao de umamesma identidade fundamental do universo: As diferenas entre as mnadasso assim meras diferenciaes a partir de uma identidade fundamental, quecorresponde identidade a si do universo4.

    A questo muito certeiramente colocada por Renaut Como pensar re-laes de ordem, como conceber relaes entre realidades intrinsecamenteseparadas?5 uma boa questo, mas, longe de ser o paradoxo inscritono estilo monadolgico inaugurado por Leibniz6, ela que trabalha e impul-siona o exerccio leibniziano do pensar, na procura de um topos mediador,a igual distncia do holismo e do individualismo7. Com efeito, o programamonadolgico justamente o de estabelecer a coerncia de um universo irre-dutivelmente pluralista, no totalizvel.

    mento da lei fende, e cujo desejo no despertado por nenhum objecto, na verdade um purosujeito lgico. O que parece advir-lhe to-s o desenrolar dos seus predicados qualitativos. uma tautologia prtica, uma reiterao da sua diferena, Alain Badiou, Ltre et lvnement,Paris, Seuil, 1988, p. 357.

    3Fantstica dissoluo paralela da subjectividade e da intersubjectividade, a monadologia neste sentido o acto de nascimento filosfico do indivduo e do individualismo Alain Renaut,Lre de lindividu, Paris, Gallimard, 1989, p. 140.

    4Ibidem, p. 148.5Ibidem, p. 154.6Ibidem.7Procurar um terreno mediador no qual seja superado o abismo entre holismo e individua-

    lismo um procedimento bem distinto de visar uma conciliao entre princpios irredutivel-mente heterogneos, Ibidem, p. 100.

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    Metafsica leibniziana da comunicao 33

    Indivduo e comunidade

    A inscrio da comunicao na espontaneidade do ser uma das molas dareformulao do leibnizianismo at alcanar o seu mximo de coerncia naverso monadolgica. Em termos esquemticos, proponho-me focar a lgicaimanente ao evolver da metafsica leibniziana em que a reiterada afirmao doindivduo caminha a par com a resistncia ao individualismo.

    Como bem atesta a sua primeira obra Disputatio de principio indivi-dui (1663) , a formao intelectual de Leibniz est fortemente impregnadada metafsica escolstica, mormente na verso de F. Surez, que assume vi-gorosamente o primado do indivduo: o prprio conceito genrico de ser nopassa de um modo inadequado da inteligncia humana visar o ser individual,pelo que o seu estatuto o de um conceito meramente objectivo8. Na sua Dis-putatio, Leibniz retoma a tese central das Disputationes (1597) suarezianas:a entidade o dado ltimo9, o princpio de constituio e distino do ente,num dinamismo que se identifica por inteiro com o processo de individua-o. Na formulao suareziano-leibniziana, a individuao opera-se, no pelaforma ou pela matria tomadas isoladamente, mas pela entitas tota10, o quesignifica que a individuao consiste basicamente num trabalho de integraopelo qual uma entidade se constitui como unidade que liga numa totalidade apluralidade dos seus acidentes.

    Os contornos da metafsica inscrita na Disputatio tocam num individua-lismo atomstico em que no se vislumbra nenhum vnculo efectivo entre osseres individuais, sendo manifestamente insuficiente afirmar a sua comumpertena ao ser, que no constitui uma verdadeira comunidade. Por sua vez,a simples inteligibilidade de um mundo constitudo por entes individuais le-vanta a questo da sua ligao interna. Como estabelecer uma ordem inter-individual se os indivduos no comunicam entre si?

    Leibniz tem conscincia da dificuldade que existe em conciliar o primado8A este respeito, veja-se, Adelino Cardoso, A transformao suareziana da metafsica,

    in Pedro Calafate, Histria do Pensamento Filosfico Portugus, II tomo, Lisboa, Caminho,2001, pp. 559-575.

    9(...) cada coisa pela sua entidade (res quaelibet per suam Entitatem est) Leibniz,Disputatio, 5.

    10A entitas tota a inteligibilidade fundamental do ser, a sua medida prpria. Ser ser-indivduo: (...) a entidade inteira , em termos universais, o princpio universal do ente (totaentitas est principium Entis universale in universali) Ibidem, 7.

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    do indivduo, o seu carcter originrio, com a exigncia do vnculo comu-nitrio. Da a formulao muito explcita, se bem que requerendo um maisvasto enquadramento sistemtico, contida num escrito de 1663/66: Nenhumser (ens) na natureza inteira solitrio, mas todo o ente (ens) simbitico,isto , pertence a uma sociedade11. O intento leibniziano de fazer inserir oindivduo num habitat comum claro, mas ainda razoavelmente obscuro omodo dessa insero, que relegada para o domnio do inefvel, como algoque supera os limites da nossa compreenso: Da o inefvel comrcio e ainfinita unio e comunho de todas as coisas12. E todavia, avana-se nestemesmo escrito algo de equiparvel a um princpio comunitrio no processo deauto-constituio do ente. A gnese do indivduo pressupe um universo co-mum no seio do qual ele se distingue e diferencia: Toda a diferena positivase funda na convenincia ou unidade e, portanto, todas as coisas que diferementre si positivamente tambm convm necessariamente entre si13. Por con-seguinte, a entidade discreta, que se constitui na referncia exclusiva a si, no simplesmente pensvel.

    Um opsculo de 1677, intitulado De iis quae per se concipiuntur, recolocaa uma nova luz o princpio leibniziano da comunidade, afastando a tendnciapara o substancializar. O ponto de focagem deste escrito o ser na sua formainfinitiva (esse), no substantiva (ens). O que est em jogo o esse enquantotal, no enquanto ele est vinculado a tal ou tal entidade: bvio que o pr-prio ser (esse) se concebe por si. Se, com efeito, avanamos que se concebepor outras coisas, como a e b, bvio que a respeito destas tambm se podeconceber o prprio ser; o que absurdo. Logo, a existncia indecomponvel(incomposita) ou seja irresolvel14. Muito sucintamente, seria absurdo pre-tender focar o ser de uma entidade porquanto no h distino real entre umacoisa e a outra, pode focar-se, sim, a especificidade do ser em acto, isto , omodo pelo qual ele se exerce.

    Sem que a palavra seja expressamente utilizada, o que se anuncia aqui oprincpio de compossibilidade enquanto requisito fundamental de advenin-cia do real: a diferena pura, isto , a simples entidade abstrada de qualquerrelao, carece em absoluto de realidade. Como lapidarmente expresso:

    11Notae ad J. HenricumBisterfeldim, A VI, I, p. 153.12Ibidem.13Ibidem, p. 155.14De iis quae per se concipiuntur, A VI, IV, A, p. 25.

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    Digo que a diferena pura no contm realidade porque a realidade algo decomum, que no deve estar contido na diferena pura15. No limite, a enti-dade em si, distinta de todas as outras (isto , a diferena pura), uma noovazia e abstracta, meramente nominal: (...) por conseguinte, no devemospostular uma certa diferena ltima16. O prprio e o comum jogam indisso-ciavelmente um com o outro, o que se ajusta ao modo pelo qual se exerce opensar, que no nunca vazio, simples acto de um eu que se coloca em face deum pensvel. O pensar situa-se num ponto de interseco, como elo de ligaoentre diferenciados: no pensamos nada de absolutamente simples17.

    O Discurso de Metafsica (1686) fornece a primeira elaborao sistemti-ca do leibnizianismo, cuja significao em larga medida elucidada na intensacorrespondncia com Arnauld, subsequente recepo pelo ilustre Telogodo sumrio dos 37 artigos da obra, que se manteve longamente indita. Aescolha de Arnauld como interlocutor privilegiado do DM no tem nada deacidental: Leibniz aprecia o vigor e a solidez da argumentao arnaldiana, masreceia que a intransigncia do Patriarca de Port-Royal aprofunde as divisesfilosfico-teolgicas que afectam a Europa no final do sculo XVII. O DMresponde, de algum modo, exigncia de estabelecer um ncleo comum denoes, superando o esprito de seita que tende a prevalecer entre os diferentespartidos. No se trata de anular as diferenas e inibir a sua expresso, masde procurar a sua inteligibilidade recproca.

    A filosofia um exerccio de inteligibilidade, a procura de uma ordemimanente aos fenmenos contingentes que ocorrem na natureza e na existnciahumana. Contingncia joga com uma inteligibilidade fsico-moral, a igualdistncia do necessitarismo estrito e do acaso fortuito.

    O indivduo razo e fundamento de todos os seus fenmenos, a lei ima-nente da srie de todos os estados que o afectam. o que significa o termocompleto, pelo qual se define o carcter prprio da substncia individual:Sendo assim, podemos dizer que a natureza de uma substncia individualou de um ser completo ter uma noo to acabada que seja suficiente paracompreender e deduzir a partir dela todos os predicados do sujeito a que talnoo atribuda18. Noo completa designa tambm e principalmente o in-

    15Ibidem, p. 26.16Ibidem.17Ibidem.18Discurso de Metafsica, art. 8.

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    divduo enquanto expresso, sua escala, do mundo no qual se desenrola a suaexistncia19: De igual modo, quando se considera bem a conexo das coisas,pode dizer-se que existem desde sempre na alma de Alexandre vestgios detudo quanto lhe aconteceu e as marcas de tudo o que se passa no universo, sebem que s a Deus caiba reconhec-los a todos20. Assim, completo refere-seao ser individual enquanto ele contm, sua escala, a estrutura de todo ummundo. Enquanto completa, toda a substncia um mundo, contendo tantaordem quanta a do universo: Ora, cada substncia individual deste universoexprime na sua noo o universo no qual ela entra. (...) porque a naturezade uma substncia individual consiste em ter uma tal noo completa da qualse pode deduzir tudo o que lhe pode ser atribudo e mesmo o universo porcausa da conexo das coisas21. Por conseguinte, o indivduo no um sim-ples fragmento do universo, parte total22, no sentido em que ele todoo mundo sob uma forma singular. A expresso o princpio regulador dagnese e funcionamento do mundo actual. Ela comum a todas as formas etraduz-se na correspondncia e ordenao mtua de todos os seres e fenme-nos: Uma coisa exprime uma outra (na minha linguagem) quando h umarelao constante e regrada entre o que se pode dizer de uma e da outra. assim que uma projeco de perspectiva exprime o seu geometral. A expres-so comum a todas as formas, e um gnero de que a percepo natural, osentimento animal e o conhecimento intelectual so espcies23.

    Num universo regulado pela expresso, no h uma figura prpria domundo, que inteiramente dessubstancializado. Por seu lado, o indivduoafirma-se como perfil do universal24, um ponto de vista num dinamismoentre-expressivo: Pois, virando Deus, por assim dizer, de todos os lados e detodas as maneiras, o sistema geral dos fenmenos que acha bom produzir paramanifestar a sua glria e olhando todas as faces do mundo de todas as maneiraspossveis, j que no existe nenhuma relao que escape sua omniscincia,

    19Nos termos concisos de Michel Fichant: Melhor ainda: a determinao completa da indi-vidualidade assenta na considerao da copertena a um mundo que se especifica entre todos osmundos possveis Michel Fichant, Science et mtaphysique dans Descartes et Leibniz, Paris,PUF, 1998, p. 132.

    20Ibidem.21Carta a Arnauld, de 21-31. 05. 1686, GP II, p. 41.22GP II, p. 263.23Carta a Arnauld, de 9. 10. 1687, GP II, p. 112.24Michel Serres, Le systme de Leibniz et ses modles mathmatiques, Paris, 1968, p. 555.

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    o resultado de cada vista do universo, enquanto olhado de um certo local, uma substncia que exprime o universo em conformidade com essa vista, seDeus considera bom tornar efectivo o seu pensamento e produzir tal substn-cia25. A substncia individual realiza o mundo enquanto sistema geral dosfenmenos atravs da sua potncia expressiva. H graus de expresso, quevo desde a simples matria animada at aos espritos superiores. Exprimir realizar uma nova possibilidade do mundo, unificar a multiplicidade dos seusfenmenos sob a unidade de um ponto de vista, dar uma fisionomia originalao comum.

    O DM acompanha o esforo de inveno de uma nova fsica, distinta damecnica, que trata o movimento como um fenmeno geomtrico, elucid-vel pela extenso. Com efeito, a natureza material no simples extenso,os corpos fsicos esto investidos de uma fora que lhes confere uma acoespontnea: o movimento em si, desligado da fora, algo de meramenterelativo, mas a fora qualquer coisa de real e absoluto26. A fundaoleibniziana da dinmica visa superar a homogeneidade e indiferenciao doespao geomtrico, reconhecendo a diversidade implicada na natureza ani-mada27.

    Enquanto sujeito da fora, o corpo fsico ganha substancialidade e algumgrau de unidade: no um simples agregado de partes extrinsecamente justa-postas umas s outras, mas um composto no qual as partes se ajustam natural-mente, por si. Ora o composto no pode existir sem o simples. O compostoexige um princpio de composio, requer o simples como seu fundamento.Mas tambm o simples s tem cabimento na sua relao ao composto.

    O significado da monadologia reside precisamente na correlao entresimples e composto: A mnada de que falamos aqui no outra coisa senouma substncia simples, que entra nos compostos28. Ao contrrio do quepretende a vulgarizada exegese leibniziana, mnada e substncia composta

    25Discurso de Metafsica, XIV.26Carta a Arnauld, 14. 01. 1688, GP II, p. 133.27A suposio da extenso absolutamente nua destri toda esta maravilhosa variedade, a

    simples massa (se fosse possvel conceb-la) est to abaixo de uma substncia que perceptivae representao de todo o universo segundo o seu ponto de vista e segundo as impresses (oumelhor, as relaes) que o seu corpo recebe mediata ou imediatamente de todos os outros,como um cadver est abaixo de um animal, ou melhor, como uma mquina est abaixo de umhomem Carta a Arnauld, 30. 04. 1687, GP II, p. 98.

    28Monadologia, art. 1.

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    exigem-se mutuamente. A coerncia entre ambas a articulao fundamen-tal do universo monadolgico, dando-lhe o carcter de uma filosofia da vidaenquanto exerccio singular de comunicao.

    A relao entre o simples e o composto no de exterioridade mtua, decopertena originria, uma relao de simbolizao no sentido em que MarieCariou interpreta a frmula do art. 61 da Monadologia: E nisso os compos-tos simbolizam com os simples o de um misto primordial29. Consideradaem si mesma, sem referncia ao composto, a mnada carece de realidade efuno: ela no e para o composto. Como dito princesa Sofia: VossaAlteza pergunta-me o que uma substncia simples. Respondo que a sua na-tureza consiste em ter percepo e, por conseguinte, em representar as coisascompostas30.

    O vinculum substancial o mediador pelo qual se estabelece a ligao ea continuidade entre o simples e o composto31. O seu estatuto no o de umente, mas o de uma operao imanente substncia enquanto disposio parao composto. Trata-se de uma disposio originria que se identifica plena-mente com o dinamismo de substanciao da substncia, entendida como avida no processo da sua efectividade, j que s o vivo um composto dotadode unidade e, portanto, de substancialidade: Mas assim restrinjo a substn-cia corprea ou composta exclusivamente aos vivos ou s nicas mquinas danatureza32.

    O vinculum substancial e unional a operao genesaca do vivo e o seumodo de efectividade enquanto sistema autnomo cuja especializao e dife-renciao interna refora a coeso do todo: um artifcio infinitamente ma-ravilhoso, que Leibniz baptiza com um neologismo inventado em simultneopelo Filsofo e pelo mdico G. E. Stahl - organismo. Este outra coisa no seno um mecanismo mais divino cuja subtileza vai ao infinito33, ou, nos

    29[Simbolizar] , em primeiro lugar, o termo mais prprio para apagar a ideia de umaseparao prvia de dois termos a unir sem todavia ser o equivalente de um confusionismoindeciso. Simbolizar o verbo simultaneamente potico e mstico que traduz a inerncia: omesmo no outro, o mltiplo no uno. Este vocabulrio, alis alqumico, permite designar umamistura primitiva indissocivel cujos componentes so no entanto especficos Marie Cariou,Latomisme. Gassendi, Leibniz, Bergson et Lucrce, Paris, Aubier, 1978, p. 123.

    30Carta princesa Sofia, de 6. 02. 1706, GP VII, p. 566.31(...) a continuidade real s pode nascer do vnculo, Carta a Des Bosses, GP II, p. 517.32Carta a Des Bosses, 29. 05. 1716, GP II, p. 520.33Consequncias Metafsicas do Princpio de Razo, C, p. 16.

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    Metafsica leibniziana da comunicao 39

    termos do 64 da Monadologia, as mquinas da natureza, isto , os corposvivos so mquinas tambm nas suas partes mais nfimas at ao infinito.A mais nfima poro de matria orgnica envolve a vida na sua dimensocomunitria.

    O organismo evidencia a plasticidade e a finalidade da prpria natureza, noquadro de uma filosofia da vida cujo trao mais notvel a interdependnciaentre o ser vivo singular e o mundo da vida. A vida para o vivo, que se cons-titui no seio desta mesma vida. O carcter prprio do universo monadolgico,definido pela vida, o de uma comunidade de membros que se acomodame entre-exprimem mutuamente: Ora, esta ligao ou este acomodamento detodas as coisas criadas com cada uma e de cada uma com todas as outras leva aque cada substncia simples tenha relaes que exprimem todas outras e que,por conseguinte, ela seja um espelho vivo perptuo do universo34.

    A mediao corporal e lingustica

    A mnada o requisito fundamental da constituio do vivo, o alfabeto davida, o elemento genesaco das coisas. H graus, desde o nvel mais embrio-nrio e incipiente de organizao a simples mnada nua at ao espritomais elevado.

    O esprito consuma a natureza, esta o meio no qual se realiza o esprito, oteatro da sua efectividade. Longe de ser um obstculo realizao do esprito,o corpo uma condio da sua completude, j que no h percepes semrgos35. Um esprito desenraizado do mundo fenomenal seria uma aberra-o, uma entidade inteiramente amorfa, agindo caoticamente e uma espciede desertor da ordem universal36. O corpo mediador universal de ordem.Assim, um mundo de puros espritos seria um mundo atomstico, constitudopor entidades discretas e ordenadas, incapazes de participar em qualquer tipode ordem. Da a tese de que o melhor dos mundos um mundo de almas e cor-pos mutuamente ajustados: Por conseguinte, o melhor sistema das coisas noconter deuses; ser sempre um sistema de corpos, isto , de coisas dispostas

    34 Monadologia, 56.35Carta a Hartsoeker, 7. 12. 1711, GP III, p. 529.36Considrations sur les principes de vie, GP VI, p. 546.

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    40 Adelino Cardoso

    segundo os lugares e os tempos, e de almas que representam e apercebem oscorpos37.

    O esprito no pode prescindir da ligao ao corpo porque ele um requi-sito da sua interioridade e da sua capacidade expressiva38. A prpria relaode si consigo, ou a conscincia, mediada pelo corpo39, sendo por isso umaexperincia insuperavelmente confusa40.

    A filosofia leibniziana da corporeidade transporta consigo uma concepoda linguagem cujo ponto de perspectiva a inviabilidade de um pensamentopuro, exercendo-se aqum da linguagem41. A linguagem um anlogo docorpo, desempenhando relativamente ao pensamento a mesma funo que ocorpo relativamente ao esprito: condio do seu exerccio e fonte da sua de-terminao. Essa analogia, da qual decorre que a linguagem no mera ver-balizao de um pensamento constitudo independentemente dela, est bemexpressa nos Novos Ensaios: E estou persuadido de que a alma e os espritosno esto nunca sem rgos e tambm nunca sem sensaes, como tambmno poderia raciocinar sem caracteres42.

    A linguagem a casa do pensamento, o seu habitat prprio. Leibnizdemarca-se, pois, da tendncia cartesiana, muito expressamente formuladapor Cordemoy, de que os espritos comunicam imediatamente os seus pen-samentos uns aos outros, sendo essa a mais genuna comunicao, a que alinguagem cria obstculo, em virtude da sua natureza sensvel43. Ora, leibni-

    37Essais de Thodice, art.200.38(...) pelo corpo e pelas coisas corporais que a a