FIORIN, J.L. Linguística E interdisciplinaridade

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    LINGUAGEM E INTERDISCIPLINARIDADE Jos Luiz Fiorin

    Kiakudikila, kiazanga...(O que se mistura separa)*

    Luandino Vieira

    ... Le cose tutte quanteHannordine tra loro; e questo forma

    Che luniverso a Dio fa simigliante.Dante , Paraso, I, 103-105

    A multiformidade e a heterogeneidade da linguagem

    A linguagem onipresente na vida de todos os homens. Cer-ca-nos desde o despertar da conscincia, ainda no bero; segue-nosdurante toda a nossa vida, em todos os nossos atos, e acompanha-nos at na hora da morte. Sem ela, no se pode organizar o mun-do do trabalho, pois ela que permite a cooperao entre os sereshumanos e a troca de informaes e experincias. Sem ela, o ho-mem no pode conhecer-se nem conhecer o mundo. Sem ela nose exerce a cidadania, porque ela possibilita inuenciar e ser in-uenciado. Sem ela no se pode aprender. Sem ela no se podemexpressar sentimentos. Sem ela, no se podem imaginar outras rea-lidades, construir utopias e sonhos. Sem ela no se pode falar doque nem do que poderia ser.

    A linguagem objeto de estudo de vrias disciplinas. A lin-gstica, por exemplo, tem por nalidade a explicao dos meca-nismos da linguagem por meio da descrio das diferentes lnguas

    faladas no mundo.Todas as lnguas tm em comum certas propriedades e carac-tersticas universais, que denem o que inerente natureza mes-ma da linguagem. Atravs da extraordinria diversidade das lnguasdo mundo, hoje se busca a unidade da linguagem humana, aqui-lo que faz sua especicidade em relao aos cdigos no humanos. A busca de uma origem nica das lnguas, o mito da torre de Ba-bel, que seria responsvel pela diversidade lingstica, a nostalgia

    do paraso perdido onde se falava uma s lngua, isso que est nabase, no plano mtico, da pesquisa contempornea dos universais

    * (VIEIRA, Jos Luandino.Lourentinho,Dona Antniade Sousa Neto & eu. Estrias.Luanda: Edies Maianga,2004: 60.)

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    da linguagem, das operaes mentais que presidem ao funciona-mento de todas as lnguas. Podemos estudar esses universais e es-sas operaes, bem como a perda da capacidade de linguagem porleses no crebro. Nesse caso, a lingstica conna com a biologiae as cincias cognitivas.

    Podemos debruar-nos sobre as diferenas entre as lnguas eento a lingstica faz fronteira com a antropologia e a etnologia.Podemos ocupar-nos da variao no espao, como fazem a diale-tologia e a geolingstica, e a a lingstica acerca-se da geograa.Podemos examinar a variao de grupo social para grupo social e,nesse caso, a lingstica limita-se com as teorias sociolgicas. Po-demos observar a variao de uma situao de comunicao paraoutra e ento a lingstica faz limites com a teoria da comunicao.

    Podemos pesquisar a mudana lingstica e a evoluo de uma ln-gua ou de uma famlia de lnguas e a a lingstica avizinha-se dahistria. Podemos analisar a aquisio da linguagem e a, depen-dendo da posio terica com que se faz a anlise, a lingstica con-na com a biologia ou a antropologia. Podemos ver a linguagemcomo um sistema formal e ento a lingstica se aproxima da ma-temtica e da computao. Podemos investigar as unidades maio-res do que a frase, isto , o discurso e o texto. Nesse caso, quando

    se pe acento na dimenso lingstica, os estudos do discurso tmvizinhana com a retrica, com a dialtica, com a teoria da litera-tura. Quando se enfatiza a dimenso histrica do discurso, a an-lise do discurso limtrofe da histria.

    Poderamos continuar a dar exemplos de formas de aborda-gem do fenmeno da linguagem, mas cremos que os elementos ex-postos acima so sucientes para mostrar que a linguagem , comodizia Saussure, multiforme e heterclita; est a cavaleiro de dife-

    rentes domnios; , ao mesmo tempo, fsica, siolgica e psqui-ca; pertence (...) ao domnio individual e ao domnio social.* Porisso, conna com diferentes campos do saber, no s das cinciashumanas, mas tambm das cincias exatas e biolgicas.

    A lingstica pelo prprio objeto parece ter uma funo in-terdisciplinar. Antes de avanar preciso pensar outra questo. NasLetras, o campo dos estudos da linguagem tradicionalmente divi-de-se em, de um lado, os estudos de lngua e, de outro, as investi-gaes sobre a literatura. Cada um desses domnios presidido poruma disciplina terica: a lingstica para o primeiro e a teoria da

    * (SAUSSURE, Ferdinand de.Curso de lingstica geral. So Paulo: EDUSP/Cultrix,1969: 17.)

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    literatura para o segundo. O primeiro, como j se disse acima,tem por objeto o estudo dos mecanismos da linguagem humanapor meio do exame das diferentes lnguas faladas pelo homem.O segundo tem por nalidade a compreenso de um fato lings-tico singular, que a literatura. Embora claramente distintos, esses

    dois mdulos dos estudos da linguagem deveriam manter relaesmuito estreitas. De um lado, um literato no pode voltar as costaspara os estudos lingsticos, porque a literatura um fato de lin-guagem; de outro, no pode o lingista ignorar a literatura, porqueela o campo da linguagem em que se trabalha a lngua em todasas suas possibilidades e em que se condensam as maneiras de ver,de pensar e de sentir de uma dada formao social numa determi-nada poca. A literatura a smula de toda a produo do esp-

    rito humano ao longo da Histria. J lembrava o grande lingis-ta Roman Jakobson em texto antolgico:Esta minha tentativa de reivindicar para a Lingstica o direito e odever de empreender a investigao da arte verbal em toda a sua am-plitude e em todos os seus aspectos conclui com a mesma mximaque resumia meu informe conferncia que se realizou em 1953aqui na Universidade de Indiana:Linguista sum; linguistici nihil mealienum puto. Se o poeta Ranson estiver certo (e o est) em dizerque a poesia uma espcie de linguagem, o lingista, cujo campo

    abrange qualquer espcie de linguagem, pode e deve incluir a poesiano mbito de seus estudos. A presente conferncia demonstrou queo tempo em que os lingistas, tanto quanto os historiadores liter-rios, eludiam as questes referentes estrutura potica cou, feliz-mente, para trs. Em verdade, conforme escreveu Hollander, pare-ce no haver razo para a tentativa de apartar os problemas literriosda Lingstica geral. Se existem alguns crticos que ainda duvidamda competncia da Lingstica para abarcar o campo da Potica,tenho para mim que a incompetncia potica de alguns lingistasintolerantes tenha sido tomada por uma incapacidade da prpriacincia lingstica. Todos ns que aqui estamos, todavia, compre-endemos denitivamente que um lingista surdo funo poticada linguagem e um especialista de literatura indiferente aos proble-mas lingsticos so, um e outro, agrantes anacronismos.*

    Este trabalho pretende pensar o problema da interdisciplina-ridade, depois discutir, de maneira mais aprofundada, a questoda interdisciplinaridade em lingstica, para terminar debatendo aproblemtica das relaes entre lingstica e literatura.

    * (JAKOBSON, Roman.Lin- gstica e comunicao. SoPaulo: Cultrix, 1969: 162.)

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    Interdisciplinaridade

    Parece haver duas formas bsicas de fazer cincia: uma re-gida por um princpio de excluso e a outra, por um princpio daparticipao.1* Esses dois princpios criam dois grandes regimes defuncionamento das atividades de pesquisa. O primeiro o da ex-cluso, cujo operador a triagem. Nele, quando o processo de re-lao entre objetos atinge seu termo leva confrontao do exclu-sivo e do excludo. As atividades reguladas por esse regime colo-cam em comparao o puro e o impuro.* O segundo regime oda participao, cujo operador a mistura, o que leva ao cotejo doigual e do desigual. A igualdade pressupe grandezas intercambi-veis; a desigualdade implica grandezas que se opem como supe-rior e inferior.*

    Assim, h dois tipos fundamentais de fazer cientco: o daexcluso e o da participao, ou, em outras palavras, o da triageme o da mistura.

    O fazer governado pelo princpio da triagem tem um aspectodescontnuo e tende a restringir a circulao de objetos, que serpequena ou mesmo nula e, de qualquer maneira, desacelerada pe-la presena do exclusivo e do excludo. um fazer do interdito. Ja atividade gerida pelo princpio da mistura apresenta um aspecto

    contnuo, favorecendo o comrcio entre objetos, mtodos, con-ceitos. Nela, o andamento rpido. a atividade do permitido.* A triagem e a mistura variam em termos de tonicidade: tona

    e tnica. H triagens mais ou menos drsticas e misturas mais oumenos homogneas, o que daria o seguinte esquema:*

    Triagem Mistura Tnica unidade/nulidade universalidade

    tona totalidade diversidadeCada um desses fazeres opera com um tipo de valor diferente:

    os da triagem criam valores de absoluto, que so valores da intensi-dade; os da mistura, valores de universo, que so valores da exten-sidade. Os primeiros so mais fechados, tendendo a concentrar os

    1 Zilberberg e Fontanille desenvolvem os conceitos de regimes de mistura e de

    triagem, para mostrar como os valores tomam forma e circulam no discurso e nopara analisar os modos de fazer cincia. Tomamos as noes dos dois semioticistaspara estudar os valores relativos disciplinarizao e a sua superao.

    * (FONTANILLE, Jacques;ZILBERBERG, Claude.Ten-so e signicao. So Pau-

    lo: Discurso Editorial, Hu-manitas, 2001: 27.)

    * (Idem: 29.)

    * (Idem: 29.)

    * (Idem: 20-30.)

    (Idem: 33.)

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    A especializao no produziu s maravilhas. De um lado, preciso considerar que o prprio desenvolvimento da cincia pro-pe novos problemas que no cabem nesse programa cientco.De outro, ela deu lugar a uma institucionalizao danosa do fazercientco, regulada tambm pelo princpio da triagem. Os grupos

    de pesquisa atuam cindidos num regime de concorrncia selvagem,cada um competindo com outros. A pesquisa torna-se secreta, o que avesso ao ideal cientco da construo do conhecimento numprocesso de comunicao universal. Com a especializao, a triagemcontinua a operar e a surgem os dogmas, as igrejas, as purezas, asheresias, as excomunhes, os sumos sacerdotes, os ces de guarda...No entanto, no so esses os aspectos mais ruinosos da especializa-o. O mais grave o que ela produz sobre a formao e a culturados homens de cincia. Nos anos 20 do sculo passado, Ortega yGasset, de modo premonitrio, pois estvamos longe do auge doprocesso, j denunciava a barbrie da especializao:

    Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em s-bios e ignorantes, em mais ou menos sbios e mais ou menos igno-rantes. Mas o especialista no pode ser submetido a nenhuma des-sas duas categorias. No um sbio, porque ignora formalmente oque no entra na sua especialidade, mas tampouco um ignorante,porque um homem de cincia e conhece muito bem sua porci-ncula do universo. Devemos dizer que um sbio-ignorante, coisasobremodo grave, pois signica que um senhor que se comportarem todas as questes que ignora, no como um ignorante, mas comtoda a petulncia de quem na sua questo especial um sbio.*

    No domnio do conhecimento da linguagem, separam-se niti-damente os estudos lingsticos e os literrios. Ficam de costas umpara o outro. Embora, como se mostrou acima, Jakobson conside-re essa atitude um verdadeiro anacronismo, lingistas e especia-listas em literatura ignoram-se. Isso produziu uma conseqnciadevastadora: de um lado, constrangedor vericar a ignorncialiterria dos lingistas e, mais ainda, constatar que eles no do literatura nenhuma importncia; de outro, ainda mais embara-oso ouvir especialistas em literatura enunciando, com a petuln-cia dos sbios-ignorantes, banalidades do senso comum, eivadas depreconceito e de falsidade, sobre a lngua.

    Num texto famoso, Snow mostrava o distanciamento pro-gressivo das cincias naturais das humanidades, com prejuzo parauma e outra.* curioso que, no domnio dos estudos da linguagem,parece reproduzirem-se essas duas culturas. Com efeito, algumas

    *(GASSET, Jos Ortega y. Arebelio das massas. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Ameri-cano, 1962: 174.)

    * (SNOW, Charles Percy. Asduas culturas e uma segundaleitura: uma verso ampliadadas duas culturas e a revolu-o cientca. 2 ed. So Pau-lo: EDUSP, 1995.)

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    especialidades da lingstica aproximaram-se das cincias biolgi-cas ou das cincias exatas, enquanto a literatura permanece solida-mente ancorada entre as humanidades. Um jovem professor de li-teratura, com a arrogncia dos que tm um solene desprezo pelosoutros, assim resumiu essa dupla cultura no campo das Letras: os

    lingistas marcham e os especialistas em literatura sambam. Qual-quer brasileiro sabe o que eufrico e o que disfrico na perspec-tiva desse jovem ignorante.

    Mas no so apenas lsofos, humanistas e cientistas sociaisque se preocupam com as conseqncias da especializao selva-gem. Norbert Wiener, o criador da ciberntica, diz:

    Atualmente, podem contar-se nos dedos de uma mo os cientistasque no sejam exclusivamente matemticos, fsicos ou bilogos.Pode haver toplogos, especialistas em acstica ou coleopteristas,que dominam o jargo de sua especialidade e conhecem toda a li-teratura de sua rea e suas ramicaes, porm na maioria das ve-zes consideraro qualquer outra disciplina como algo que pertencea um colega, que trabalha no mesmo corredor, trs portas adiante,e crero que qualquer interesse de sua parte pelo tema uma injus-ticvel violao de privacidade.*

    Na lingstica, essa especializao faz-se sentir fortemente. J no se encontram mais lingistas, mas foneticistas, sintaticistas,

    fonlogos, semanticistas, analistas do discurso e assim por diante.Num processo de cissiparidade, talvez j no se encontrem mais se-manticistas, mas semanticistas formais, semanticistas lexicais, etc.Torna-se cada vez mais difcil encontrar algum com uma forma-o lingstica abrangente.

    A preocupao, mesmo dos cientistas, com a especializaocrescente, deriva do fato de que os especialistas trabalham apenasno domnio restrito, fazem progredir a cincia somente no interiorde um dado paradigma. No entanto, as grandes criaes cient-cas no foram feitas por especialistas, mas pelos sbios, que tinhamuma formao abrangente, multidisciplinar, aberta a todos os cam-pos do saber. Gilbert Durand mostra que, se olharmos, na hist-ria da cincia, para cada um dos grandes criadores, vamos vericarque eles no eram especialistas, mas cultivavam a mistura, com suaabertura, sua amplitude, sua largueza e sua profundidade:

    Os sbios criadores do m do sculo XIX e dos dez primeiros anosdo sculo XX, esse perodo ureo da criao cientca em que se per-lam nomes como os de Gauss, Lobohevsky, Riman, Poincar, Bec-querel, Curie, Pasteur, Max Planck, Niels Bohr, Einstein, etc., tive-

    * (WIENER, Norbert.Ciber-netica o el control y comu-nicacin en animales y m-quinas. Barcelona: TusquetsEditores, 1985: 24.)

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    ram todos uma larga formao pluridisciplinar, herdeira do velhotri-vium (as humanidades) equadrivium (os conhecimentos cientcose tambm a matemtica) medievais, prudente e parcimoniosamenteorganizados pelos colgios dos jesutas e dos frades oratorianos e pelaspequenas escolas jansenistas do novo humanismo de Lakanal.*

    Atualmente, estamos num momento de mudana da formade fazer cincia. Estamos passando de um fazer cientco regidopela triagem para um fazer investigativo governado pela mistura.Fala-se em interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade, multidis-ciplinaridade, transdisciplinaridade e mesmo indisciplinaridade.Hoje, esses termos so universais positivos do discurso, enquantoa especializao vista como algo fora de moda, relacionada a umpensamento autoritrio. Anal, a destruio das fronteiras umfenmeno contemporneo: as grandes entidades transnacionais,como a Unio Europia e o MERCOSUL, derrubaram as frontei-ras econmicas, permitindo a livre circulao de bens e de capi-tais; a queda do muro de Berlim deitou abaixo uma linha semn-tica divisria entre duas vises de mundo, a famosa cortina de fer-ro; o espao Shengen demoliu alfndegas e controles entre os esta-dos nacionais. Por outro lado, estamos num tempo do elogio dasmargens, do descentramento, da alteridade, da heterogeneidade,do dialogismo, vivemos num tempo de mestiagens e de imigra-

    es, de recusa da pureza. Esse ar do tempo leva a pr em questoas divises disciplinares, as fronteiras rgidas entre os campos dosaber. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da cincia, impulsio-nado por essa epistem do que foi chamado a ps-modernidade,leva os pesquisadores a comear a pensar problemas que esto si-tuados na fronteira das disciplinas e que, durante muito tempo,foram deixados de lado.

    No entanto, que realmente interdisciplinaridade? E mul-

    tidisciplinaridade? E pluridisciplinaridade? Transdisciplinaridade,ento? E essa tal de indisciplinaridade? Ningum sabe direito. Va-mos tentar uma denio a partir da etimologia das palavras.3 Es-se conjunto de termos tem um radical comum,-disciplina , um su-xo comum, -dade , e prexos distintosin-, multi-, pluri-, inter-,trans-. No se criam diferentes palavras para expressar o mesmosentido. A distino do sentido est na parte diversicada e no3 Essas denies elaboradas a partir da etimologia no diferem do que avana

    Piaget em seu lcido ensaio sobre a interdisciplinaridade. (PIAGET, Jean. Pro-blmes gneraux de la recherche interdisciplinaire et mcanismes communs. Em:pistmologie des sciences de lhomme . Paris: Gallimard, 1970: 253-377.)

    * (DURAND, Gilbert. Mul-tidisciplinarits et heuristi-que. Em: PORTELLA, Edu-ardo. (org.). Entre savoirs.Linterdisciplinarit en acte:enjeux, obstacles, perspec-tives. Toulouse: res/UNES-CO, 1991: 36.)

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    na parte idntica dos vocbulos.Disciplina provm do latimdisci- plina , formada do radical indo-europeudek-, que signica rece-ber e est na base dediscere , aprender, discipulus , o que apren-de;disciplina , o que se aprende. Modernamente, a palavra temdois grandes sentidos: a) ramo do conhecimento, principalmente

    entendido como componente de um currculo; b) normas de con-duta. O suxo-dade formador de substantivos abstratos a partirde adjetivos. Para denir os termos, a questo pensar os prexos,todos de origem latina, sempre a partir das razes indo-europias:in < ne (indica negao e aparece em palavras comonulo, neutro,negar , ningum, intil ); inter < en(denota dentro de, entre eocorre, por exemplo, eminterior , ntimo, interno, entrar , intestino); pluri < pel4 (remete ao sentido de encher, abundncia, grandenmero e est presente em vocbulos como plural , plenitude , ple-nipotencirio, cheio, pleno, suprir ); multi < mel (traduz a noo deabundncia quantitativa ou qualitativa e aparece emmuito, mul-tido, mltiplo, multiplicao, melhor , etc.);trans< ter (quer dizer,atravessar, chegar ao m e ocorre emtermo, trmino, determinar ,traduzir , transportar , trs-os-montes e assim por diante). Observan-do a etimologia das palavras em que aparecem os prexos pluriemulti , pode-se dizer que h um matiz diferenciador entre eles: oprimeiro indica abundncia de elementos homogneos, enquan-to o segundo no traz essa idia de homogeneidade. No entanto,essa nuana de sentido perdeu-se na histria. Podemos, pois, di-zer quemultidisciplinaridade e pluridisciplinaridadequerem dizera mesma coisa. Alm disso, se deixarmos de lado o termoindisci- plinaridade , porque, apesar do charme dado pela conotao liber-tria, indica apenas uma negao, sem qualquer valor positivo, te-mos trs termos a denir: pluri e multidisciplinaridade, interdisci-plinaridade e transdisciplinaridade. Pode-se pens-los como ocon-

    tinuum de um processo.Na multidisciplinaridade (ou pluridisciplinaridade), vrias dis-ciplinas analisam um dado objeto, sem que haja ligao necessriaentre essas abordagens disciplinares. O que se faz pr em parale-lo diferentes maneiras de enfocar um tema, que so coordenadascom vistas ao conhecimento global de uma determinada matria.Tomemos, por exemplo, o caso da energia. Esse assunto deve ne-

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    A forma primeira da raiz -pel, o que explica o ingls full (cheio), ll (encher),o alemo Flle (abundncia), fllen (encher), voll (cheio), o grego plys (muito)e plis (cidade). Essa forma transforma-se em ple.

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    cessariamente ser enfocado multidisciplinarmente: a fsica estudaas formas e transformaes da energia; a biologia investiga os pro-cessos para obteno da biomassa; a geologia examina as formas dedescobrir jazidas de recursos no renovveis de produo de ener-gia, como o carvo mineral, o xisto, o petrleo e o gs natural; asengenharias pesquisam como aproveitar a energia, como extra-la,como distribu-la; a economia analisa a oferta e a procura de ener-gia, as vantagens e desvantagens econmicas do uso de uma dadaforma de energia; a ecologia avalia os efeitos do uso de certo tipode energia no meio ambiente; a sociologia e a antropologia obser-vam os efeitos do uso da energia em determinada comunidade hu-mana e assim por diante.

    A interdisciplinaridade pressupe uma convergncia, umacomplementaridade, o que signica, de um lado, a transfernciade conceitos tericos e de metodologias e, de outro, a combinaode reas. Assim, por exemplo, a sociologia pode utilizar conceitosda economia, como faz Pierre Bourdieu quando se serve dos con-ceitos de capital, mercado e bens para todas as atividades sociais eno somente as econmicas, ou quando faz largo uso da noo detroca. Com muita freqncia, a interdisciplinaridade d origem anovos campos do saber, que tendem a disciplinarizar-se.* A bioqu-mica, unindo biologia e qumica, estuda os processos qumicos que

    ocorrem nos organismos vivos. A sociobiologia a tentativa de ex-plicar biologicamente os comportamentos sociais.Quando as fronteiras das disciplinas se tornam mveis e ui-

    das num permevel processo de fuso, temos a transdisciplinari-dade. transdisciplinar uma potica da cincia. Na poesia, perce-bem-se analogias, observam-se correspondncias, no se respeita aautoridade dos cdigos, das estruturas, da tradio, dos signica-dos, do discurso. Da mesma forma, a transdisciplinaridade do-mnio da audcia, que leva a examinar todo o conhecimento, nosomente a partir dos trs axiomas da lgica clssica (o do tercei-ro excludo, o da identidade e o da no contradio) nem apenascom base nos princpios que fundam a cincia moderna (o da or-dem, que engloba o da determinao; o da separao e o da redu-o), mas a partir de fundamentos analgicos, de conceitos comocaos, irreversibilidade, degradao. As intercincias, como as Cin-cias Cognitivas e a Ecologia, so transdisciplinares. A ecologia ocampo transdisciplinar emblemtico, pois contm um saber cien-tco diversicado, utilizado numa concepo generosa, universa-lizante e redentora da vida do homem no planeta.

    * (cf. PIAGET, op. cit.: 369.)

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    Examinemos mais detidamente a interdisciplinaridade, que uma das formas mais interessantes e produtivas de trabalho cien-tco de nossa poca. Poderamos dizer que temos, basicamente,duas prticas interdisciplinares: a) transferncia, que a passagemde conceitos, metodologias e tcnicas desenvolvidos numa cincia

    para outra; b) interseco, em que duas ou mais disciplinas se cru-zam para tratar de determinados problemas. Como se v, a inter-disciplinaridade no pressupe a diluio das fronteiras discipli-nares num ecletismo frouxo. Assim, a interdisciplinaridade da lin-gstica com outras cincias no o apagamento dos contornos dacincia da linguagem e sua transformao em outros campos doconhecimento. No a biologizao, a matematizao, a sociolo-gizao, a antropologizao, etc. da lingstica. Como dizia SrioPossenti, em recente conferncia, o papel dos lingistas no fa-zer uma histria ou uma sociologia de segunda, mas uma lings-tica de primeira. A interdisciplinaridade supe disciplinas que seinterseccionam, que se sobrepem, que se reorganizam, que bus-cam elementos noutras cincias.

    Relao da lingstica com outras cincias

    Como se disse, a interdisciplinaridade pressupe, de um lado,

    a transferncia de conceitos tericos e de metodologia e, de outro,a interseco de reas. Mostremos, com alguns exemplos, como is-so se deu na lingstica.

    Transferncia de conceitos da lingstica para outras cincias

    A antropologia estrutural importa da lingstica, antes detudo, um modelo de cienticidade. Toma mtodos e noes dalingstica, considerada ento cincia piloto das cincias humanas. Antes de Lvi-Strauss, a antropologia estava ligada s cincias danatureza e comprometida com toda sorte de racismos e com a noode determinismo biolgico. O antroplogo francs, para estudar asestruturas elementares de parentesco, toma da fonologia a idia dabusca de constantes presentes sob a imensa variabilidade da realida-de. Sob as mltiplas prticas matrimoniais, aparecem as invarian-tes, as estruturas elementares, que determinam, basicamente, comquem se pode e com quem no se pode casar. Lvi-Strauss coloca aproibio do incesto como um universal, entendido no como uminterdito moral, mas como uma regra de positividade social, desti-

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    nada a proteger a espcie contra os efeitos funestos dos casamentosconsangneos. Assim, ele desbiologiza o fenmeno do parentesco,deslocando a questo das relaes consangneas para o carter detransao, de comunicao, que se instaura com a aliana matri-monial. Diz ele que a proibio do incesto exprime a passagem

    do fato natural da consanginidade ao fato cultural da aliana.*

    A antropologia deixa a natureza e colocada no terreno exclusi-vo da cultura. A lingstica, em particular a fonologia, permite,com seus mtodos, suas teorias, suas noes, ultrapassar o estgiodos fenmenos conscientes para atingir aquilo que inconscien-te; possibilita no ver os termos em sua positividade, mas apreen-d-los em suas relaes internas, ou seja, tomar por base da anli-se as relaes entre os termos e no os prprios termos; propiciadescobrir os sistemas e pr em evidncia suas estruturas; proporcio-na desvendar leis gerais. Lvi-Strauss mostra que se podem anali-sar certos fenmenos sociais, como, por exemplo, o parentesco, demaneira anloga da fonologia, porque eles so elementos dotadosde signicao, integram-se em sistemas inconscientes, resultam deleis gerais, dado que se encontram fenmenos similares em regiesbastante afastadas umas das outras.5 Diz o antroplogo francs que,como os fonemas, os termos de parentesco s adquirem signica-o quando se integram em sistemas.* Na busca das invariantes paraalm da multiplicidade das variedades percebidas, ele pe de ladotodo recurso conscincia do sujeito.6 D prevalncia sincronia.Da mesma forma, os mitos formam estruturas: as variantes de ummesmo mito integram-se num sistema no qual cada elemento seope a todos os outros.

    Lacan teve, para a psicanlise, o mesmo papel que Lvi-Strausspara a antropologia. A lingstica oferece para a psicanlise lacania-na um modelo de cienticidade. Por volta dos anos 50 do sculo

    passado, na Frana, reinava uma biologizao das conquistas freu-dianas e a psicanlise dissolvia-se na psiquiatria. Lacan denunciatambm o behaviorismo, dominante nos Estados Unidos, como

    5 Diz Lvi-Strauss que o sistema de parentesco uma linguagem (LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1975: 65.); arma ainda: postulamos que existe uma correspondncia formalentre a estrutura da lngua e a do sistema de parentesco (Idem: 79).6 Esse o modo de proceder de um fonlogo. Observe-se, por exemplo, a argu-

    mentao de Mattoso Camara, para explicar por que o portugus no tem vo-gais nasais (CAMARA Jr., Joaquim Mattoso.Estrutura da lngua portuguesa . Pe-trpolis: Vozes, 1970: 48-50).

    * (LVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementaresde parentesco. Petrpolis:Vozes, 1976: 70.)

    * (Idem: 48)

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    uma adaptao do indivduo s normas sociais, como uma teoriaque tem uma funo de ordem, de normalizao. Deseja a desme-dicalizao e a desbiologizao do discurso freudiano e a retiradado inconsciente do seio das estruturas psicologizantes behavioristas.Prope uma ruptura enraizada na obra de Freud, uma volta a Freud.*

    Esse retorno dar-se-ia, levando em conta o modelo da lingstica.*

    Para Lacan, h uma prevalncia da dimenso sincrnica na orga-nizao do inconsciente. Portanto, ele no considera essencial emFreud a teoria dos estgios sucessivos, mas a existncia de uma es-trutura edipiana de base, caracterizada por sua universalidade, in-diferente s contingncias de tempo e de espao. Para ele, o homems existe enquanto tal pela funo simblica. Ele , pois, produto dalinguagem, efeito dela. Isso permite ao psicanalista francs criar suafamosa frmula: O inconsciente estruturado como uma lingua-gem. A existncia simblica do ser humano deixa clara a impor-tncia dada linguagem, relao com o outro. Dessa forma, eledesmedicaliza a abordagem do inconsciente, objeto da psicanlise,considerando-o como um discurso. A psicanlise deixa de ser umadisciplina mdica e passa a ser uma disciplina analtica.

    Lacan fundamenta-se na teoria saussuriana do signo, apor-tando-lhe uma srie de modicaes e mesmo de tores.* Saussu-re mostrara que o signo no une um nome a uma coisa, mas umconceito a uma imagem acstica. Ele separou, portanto, o signo dequalquer relao com o referente.* O signo, sem qualquer vnculocom o referente, , para Lacan, o fundamento da condio hu-mana. No entanto, diferentemente de Saussure, ele relega o sig-nicado a um lugar acessrio. A fala, cortada de qualquer acessoao real, veicula apenas signicantes que remetem uns aos outros.O inconsciente, objeto que funda a identidade cientca da psica-nlise, uma cadeia de signicantes.

    O inconsciente um efeito da linguagem, de suas regras, deseu cdigo. Lacan recorre aos conceitos de metfora e de metonmiadesenvolvidos por Jakobson e assimila-os aos dois processos de fun-cionamento do inconsciente: a condensao e o deslocamento.

    Alm desses modelos gerais, Lacan toma conceitos particularesda lingstica: por exemplo, de Damourette e Pichon vem a divisoentre o je e omoi e o conceito de forcluso.7 O primeiro serve para

    7

    Pichon era, alm de gramtico, psicanalista. A forcluso um fenmeno gra-matical que diz respeito negao. O francs faz uma negao com um morfemadescontnuo. O primeiro elemento da negao considerado por Damourette e

    * (LACAN, Jacques.crits I.Paris: Seuil, 1966: 145.)

    * (Idem: 165.)

    * (Idem: 250-289.)

    * (SAUSSURE, Op. cit.: 79-81.)

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    pensar a diviso entre o sujeito do inconsciente e o da conscinciacom seu imaginrio; o segundo, para mostrar que h um processode fracasso do recalcamento originrio, em que no se conserva oque se recalcou, porque o recalcado excludo ou barrado pura esimplesmente, o que produz a psicose.*

    O recurso da psicanlise a conceitos lingsticos no era novi-dade. Freud baseara-se em Sperber e Carl Abel, para justicar suasteses de que o simbolismo sempre sexual, mesmo quando pareceque falamos de outra coisa, e de que os smbolos so ambivalentes,porque so aptos a signicar dois contedos opostos.* De Sperbertomou o longo ensaio Da inuncia dos fatores sexuais na forma-o e na evoluo da linguagem e utilizou-o como base para de-monstrar que, se a linguagem se funda na sexualidade, ento noexiste contradio entre o funcionamento da linguagem e o simbo-lismo. A Carl Abel dedica um estudo, intitulado Sobre o sentidoantittico das palavras primitivas.* O que interessava a Freud era atese de Abel de que as lnguas primitivas tinham uma s palavra paradenotar sentidos opostos. Isso comprovava sua tese sobre a ambiva-lncia dos smbolos, que podem representar qualquer coisa pelo seucontrrio. No caso de um sonho, no se pode, em princpio, saberse um elemento traduz um contedo positivo ou negativo.

    Transferncia de conceitos de outras cincias para a lingstica

    A lingstica histrica toma das cincias histricas, ao longo deseu desenvolvimento, trs conceitos de histria: a) a histria como de-cadncia; b) a histria como progresso; c) a histria como mudana.

    O primeiro vem da Antigidade e expresso na doutrina dasidades do gnero humano: por exemplo, em Hesodo, a humani-dade vai da idade de ouro, em que os homens viviam como deuses,

    at a idade do ferro, em que os homens esto sujeitos a toda espciePichon da ordem da discordncia. O segundo elemento da negao denomina-do forclusivo. Seu semantismo originrio o de uma ocorrncia mnima ( pas, goutte, miette, aucun, nul, personne, rien). Essa ocorrncia remete a um paradig-ma: personne , por exemplo, a ocorrncia mnima que remete ao paradigma dosanimados humanos;rien, ao paradigma dos no animados; ps , assim comonul-lement , ao paradigma das quanticaes. O que dado por forclos (ou excludo,isto , localizado num exterior nocional) ento a representao de um pa-radigma, evocado em intenso, qualitativamente; em outras palavras, deni-

    do por uma propriedade e no construdo em extenso (DAMOURETTE, Jacques; PICHON, Edouard.Des mots la pense. Essai de grammaire de la lan- gue franaise . Paris: ditions dArtrey, 1970, t. 6: 113-143).

    * (LACAN, Jacques.Le smi-naire. Livre III: les psycho-ses, 1955-1956. Paris: Seuil,1981: 229 e 361.)

    * (cf. ARRIV, Michel. Lin- gs tica e psicanlise:Freud, Saussure, Hjelmslev,Lacan e os outros. So Pau-lo: EDUSP, 2001: 79-91.)

    * (FREUD, Sigmund. Sobreel sentido antittico de laspalabras primitivas. Em:Obras completas. BuenosAires: Amorrortu Editores,2001, v. 11: 143-154.)

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    de males, passando pelas idades da prata, do bronze e dos heris.* Muitos comparatistas, por exemplo, Schleicher,* defendiam que aslnguas antigas estavam num estgio superior de desenvolvimen-to em comparao com as lnguas modernas, que representariamuma fase de decadncia, de degenerao. Isso se devia organiza-o morfolgica mais densa (declinaes e conjugaes), que, se-gundo eles, implicava uma maior capacidade de expresso, por rea-lizar um nmero maior de distines gramaticais. A Histria seria,ento, um processo degenerador, porque degradava as estruturasda lngua. Da a relevncia da reconstituio de seu passado, parabuscar atingir o que seria o perodo ureo das lnguas.

    O conceito da histria como progresso uma idia iluminis-ta, que aparece, por exemplo, em Voltaire.* Herbert Spencer conce-be a histria humana como um processo contnuo e linear de evo-luo.* Em Comte, aparece um determinismo sociolgico. Sua leidos trs estados o teolgico, o metafsico e o positivo opera naontognese e na lognese. Ela indica que, assim como os indiv-duos, todas as sociedades caminham para atingir o mais alto estgiode desenvolvimento.* Otto Jespersen* sustenta que, na histria daslnguas, h progresso, h uma marcha na direo de formas maisaperfeioadas. Como as formas se abreviaram, estruturas analti-cas tomaram lugar das formas sintticas, as formas irregulares re-

    gularizaram-se, a ordem das palavras tornou-se xa, a lngua coucada vez mais apta para a expresso, porque adquire maior clare-za e preciso e exige do usurio menor esforo de memria e, atmesmo, menor esforo muscular na fala. O modelo de Jespersenera o ingls, lngua da qual escreveu uma monumental gramtica.* Vendrys termina sua obra,Le langage , expondo a idia de que ahistria das lnguas um aperfeioamento constante desse instru-mento criado pelo homem.*

    A idia da histria como mudana, no governada por ne-nhuma teleologia, rege as concepes atuais em lingstica histri-ca. J Lucrcio negava o nalismo,* aduzindo que ele pe antes oque vem depois. A lingstica atual no trabalha mais com as idiasde decadncia e de progresso. Mattoso Cmara diz que: a palavraevoluo, em lingstica, pressupe apenas um processo de mudan-as graduais e coerentes.*

    Schleicher, que, alm de lingista, era botnico, preconizavaque a cincia da linguagem deveria estar entre as cincias da natu-

    reza. Importa uma srie de princpios da biologia. Seu objetivo eraestabelecer leis gerais e rigorosas do desenvolvimento das lnguas.

    * (HESODO.Os trabalhos eos dias. 4 ed. So Paulo: Ilu-minuras, 2002: v. 106-201.)* (cf. CAMARA Jr., JoaquimMattoso.Histria da lings-tica. 4 ed. Petrpolis: Vozes,1986: 54-55.)

    * (VOLTAIRE, Franois-Ma-rie.Oeuvres historiques. Pa-ris: Gallimard, 2000.)

    * (SPENCER, Herbert.Do progresso, sua lei e sua cau-sa. Lisboa: Editorial Inqu-rito, 1939.)* (COMTE, Auguste. Coursde philosophie positive. Pa-ris: Schleicher Frres, 1908,t. 4: 328-387.)* (JESPERSEN, Otto.Progressin Language. Amsterdam: E. John Benjamins, 1993.) (JES-PERSEN, Otto.Efciency inLinguistic Change. Copenha-guen: E. Munksgaard, 194.)

    * (JESPERSEN, Otto. ModernEnglish Grammar on Histo-rical Principles. Londres: G.Allen Unwin; Copenhaguen:E. Munksgaard, 1961, 7 v.)* (VENDRYS, J.Le langage.Paris: Albin Michel, 1950:402-420.)* (LUCRCIO.De la natu-re. Paris: Les Belles Lttres,1948, t. II: IV, 822-842.)

    * (CAMARA Jr., Joaquim Mat-toso.Princpios de lingstica geral . Rio de Janeiro: LivrariaAcadmica, 1970a: 192.)

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    Schleicher contrapunha a lingstica lologia. Esta um ramo dahistria, enquanto aquela, no. As trs idias que traz das cinciasda natureza so: a) a lngua um organismo natural e, portanto,ela desenvolve-se at um certo ponto e, depois, entra em decadn-cia; b) a mudana lingstica deve ser entendida como uma evolu-

    o natural no sentido darwiniano; c) a lngua depende de traosfsicos do crebro e do aparelho fonador e varia segundo as raasdo mundo, sendo, portanto, um critrio adequado para elaboraruma classicao racial.* Mesmo que hoje essas idias nos pareamcompletamente erradas, Schleicher teve uma importante inun-cia em temas como a classicao das lnguas indo-europias, a re-construo do indo-europeu, os estudos de fontica, a classicaotipolgica das lnguas baseada na estrutura da palavra.* Para Sch-leicher, o pice da evoluo lingstica era o indo-europeu; depoisdele, comeava a degenerao.

    A chamada lingstica matemtica trouxe desta cincia diver-sos instrumentos para a realizao da anlise lingstica: teoria dosconjuntos, lgebra de Boole, topologia, estatstica, clculo de pro-babilidades, teoria dos jogos. Zellig Harris, por exemplo, publicaum estudo da gramtica em termos de teoria dos conjuntos.* De-vem-se lembrar ainda os usos da estatstica nos estudos de lexico-logia e lexicograa. Da computao a lingstica toma programase tcnicas para aplic-los a aspectos da linguagem humana, fazendoum tratamento automtico das lnguas: traduo automtica, cor-reo ortogrca, recuperao de informaes e busca nos textos,resumos automticos, reconhecimento de voz, sntese vocal para oestabelecimento da interface homem-mquina, etc.

    Interseco de reas

    A sociolingstica estuda a lngua como instrumento de integra-o social. Em primeiro lugar, interessa-se pela questo da variaolingstica, examinando a covarincia sistemtica entre a estruturalingstica e a estrutura social. Estuda, assim, a variao por grupossociais. Analisa tambm a lngua como classicador social e como fa-tor de coeso social para as etnias, as classes ou outros grupos sociais.Estuda as relaes entre as lnguas em funo de fatores sociais, bemcomo toda a problemtica do contato das lnguas e do bilingismo.Como se v, da sociologia vem a questo dos fatores sociais e da lin-gstica, a anlise da lngua. O que a sociolingstica faz estabele-cer a correlao entre fatores sociais e fatos de linguagem.

    * (Camara Jr., 1986: 50-51.)

    * (Idem: 52-55.)

    * (HARRIS, Zellig S. Mathe-matical Structures of Langua- ge. Nova York: Wiley-Inters-cience, 1968.)

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    A antropolingstica estabelece uma correlao entre lngua ecultura. No esto mais em pauta grupos sociais como na sociolin-gstica, mas fatores culturais. Estuda-se a lngua no contexto cul-tural. Interessa antropolingstica a questo da lngua em relaoao sagrado (por exemplo, lnguas cultuais), as teorias populares e os

    mitos a respeito da linguagem, os tabus e as frmulas mgicas e en-cantatrias, a viso das relaes entre a palavra e a coisa, as taxiono-mias, os sistemas de percepo e de categorizao do mundo.

    A psicolingstica estuda o conjunto de operaes mentais li-gadas linguagem. Assim, ocupa-se da reteno e do esquecimen-to de informaes verbais, da aquisio da linguagem, do proces-samento da informao pelo crebro, etc.

    A geolingstica um campo interdisciplinar, em que se unema lingustica e a geograa. A geolingstica ocupa-se de estudar aslnguas no seu contexto geogrco. Preocupa-se com a identica-o e a descrio de reas lingsticas (domnios lingsticos, reasdialectais, etc.), com a anlise das dinmicas geogrcas das varia-es internas do idioma, com o estudo da importncia territorialdas lnguas e das suas variedades em diferentes escalas (local, regio-nal, nacional, continental, mundial), com a anlise das dinmicasterritoriais das lnguas e das suas variedades (evoluo demoling-stica, territrios onde so faladas, dinmicas de expanso e retro-cesso territorial), com o estudo de situaes de conito territorialcausado pelas diferenas lingsticas, com o conhecimento das re-presentaes que as pessoas tm dos espaos lingsticos, das suasfalas e da sua dinmica territorial.

    A neurolingstica, compartilhamento da neurologia e da lin-gstica, durante muito tempo, estudou (e continua ainda a faz-lo) as leses no crtex cerebral e as decincias afsicas da resul-tantes. No entanto, ela no se restringe a isso, pois estuda a elabo-

    rao cerebral da linguagem. Ocupa-se com o estudo dos mecanis-mos do crebro humano envolvidos na compreenso e na produ-o lingstica e no conhecimento da lngua. Ocupa-se tanto daelaborao da linguagem normal como das alteraes lingsticascausadas por distrbios. A neurolingstica leva a uma compreen-so das bases biolgicas da linguagem.

    Como se mostrou acima que a linguagem multiforme e hete-rclita e, portanto, a interdisciplinaridade da sua natureza, pode-

    ramos continuar a mostrar a interdisciplinaridade da lingstica comoutras cincias, em suas diferentes formas, ao longo da histria. No

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    entanto, preciso chegar ao ponto nal: a discusso da relao entrelingstica e literatura, os dois ramos em que se dividem as Letras.

    Relao da lingstica com a literatura

    At por volta dos anos 60, a relao entre a lingstica e a lite-ratura era bastante simples: de um lado, na medida em que a an-lise do texto literrio era o estudo da substncia do plano do con-tedo em sua relao com uma realidade extralingstica, no erapreciso recorrer a qualquer categoria lingstica e, portanto, nohavia qualquer ligao entre esses dois campos do conhecimento,em que, tradicionalmente, se dividem os estudos da linguagem; deoutro, no estabelecimento de textos e na estilstica, havia certa vin-culao, mas bastante rudimentar, entre esses dois domnios. Ex-

    pliquemos melhor essas armaes.Quando, por exemplo, a crtica machadiana mostra as tradi-es de que se valeu o autor para compor sua obra; quando o acu-sa de macaqueao de Sterne, como faz Slvio Romero;* quandodetecta temas comuns a seus romances, vinculados a sua biograa,como mostra Lcia Miguel Pereira;* quando demonstra, como As-trojildo Pereira,* que Machado o romancista do segundo reinado;quando desvela que as formas dos grandes romances machadianosimitam processos histrico-sociais, como faz Roberto Schwarz* eassim por diante, no h necessidade de recorrer linguagem paraestudar uma obra literria, j que ela no vista como linguagem,mas como representao de uma realidade exterior a ela.

    Por outro lado, havia uma relao entre lingstica e literatu-ra, quando se estabeleciam textos antigos. A literatura, nesse traba-lho lolgico, valia-se das categorias e das descobertas da lingsticahistrico-comparada do sculo XIX, considerada como algo pron-to e acabado. A relao entre lngua e literatura ocorria tambm nodomnio da estilstica. Inicialmente, a estilstica era o estudo dosmeios de expresso dos contedos afetivos da lngua, pois um fatode estilo era entendido como uma ocorrncia lingstica que provo-cava um dado efeito no leitor. Nessa estilstica, estudavam-se, frag-mentariamente, os fatos de estilo e, numa anlise de textos, o quese procurava observar era a soma de efeitos que os fatos estilsticosnele presentes produziam. Essa estilstica, tal como foi praticadapor Bally * e, entre ns, por Rodrigues Lapa * e Mattoso Camara,*

    valia-se de uma retrica reduzida, porque restrita dimenso tro-polgica, e de uma anlise lingstica elementar, que se encontra na

    * (ROMERO, Silvio.Macha-do de Assis: estudo compa-rativo de literatura brasileira.Campinas: Editora da UNI-CAMP, 1992: 164.)* (PEREIRA, Lcia Miguel.Machado de Assis: ensaiocrtico e biogrfico. 6 ed.Belo Horizonte/So Paulo:Itatiaia/EDUSP, 1988.)* (PEREIRA, Astrojildo. In-terpretaes. Rio de Janei-ro: CEB, 1944.)* (SCHWARZ, Roberto. Aovencedor as batatas: formaliterria e processo socialnos incios do romance bra-sileiro. So Paulo: Duas Ci-dades, 1977.) (SCHWARZ,Roberto.Um mestre na pe-riferia do capitalismo: Ma-chado de Assis. So Paulo:Duas Cidades, 1990.)* (BALLY, Charles.Le lan- gage et la vie. Paris: Payot,1926.) (BALLY, Charles.Trai-t de stylistique franaise.3 ed. Genebra: Georg &Cie., 1951.)* (LAPA, Manuel Rodrigues.Estilstica da lngua portu- guesa. 5 ed. Rio de Janeiro:Livraria Acadmica, 1968.)* (CAMARA Jr., Joaquim Mat-toso. Contribuio estils-tica portuguesa. 3 ed. Riode Janeiro: Ao Livro Tcni-co, 1977.)

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    chegavam, com base numa viso conspiratria da Histria, a dizerque o estruturalismo lingstico era um programa de estudos -nanciado pela CIA, para naturalizar a linguagem e, assim, afastara Histria, com vistas a aumentar a alienao. Deixando de ladoesses pontos de vista que hoje nos parecem no mnimo estranhos,

    deve-se notar que, nesse perodo, a literatura no mais buscava, nalingstica, descries de fatos prprios das lnguas naturais nemexplicaes de tropos, mas conceitos gerais, como conotao/de-notao, signicado/signicante, sintagma/paradigma etc. Na ver-dade, o que a literatura transfere da lingstica so os conceitosque explicam como se estruturam os sistemas signicantes, quais-quer que eles sejam. Mais do que a lingstica, o que mantm re-laes com a literatura uma semiologia, tal como fora propostapor Saussure.* Nesse perodo, duas vertentes dos estudos literriosdesenvolvem-se: a potica e a teoria da narrativa. A primeira, umateoria da poeticidade, deriva do programa dos formalistas russos eencontra em Jakobson seu grande formulador, que assim enunciao princpio da funo potica: projeta o princpio de equivaln-cia do eixo de seleo sobre o eixo de combinao.8* A segundavertente busca, com base na idia de sistema, as invariantes para-digmticas e sintagmticas, que ocorrem sob a diversidade quaseinnita das narrativas realizadas. Esses dois ramos dos estudos li-terrios tiveram um desenvolvimento notvel, apesar da acusaode muitos, fundados ainda numa ideologia romntica, que, comodiz Rgine Robin, anterior a Marx e a Freud,* de que esses mo-delos eram redutores.9 Para esses estudiosos, os produtos humanosno podem ser examinados do ponto de vista de suas invariantes,porque os seres humanos, em sua innita criatividade, no estosubmetidos a quaisquer coeres sociais e psquicas. Anal, paraeles, o sujeito neutro, mestre de si mesmo, sem qualquer deter-

    minao scio-ideolgica.8 Um belo exemplo de anlise potica, com base nos conceitos da lingstica, oestudo feito pelo prprio Jakobson, com a colaborao de Luciana Stegagno Pic-chio, sobre os oxmoros em Fernando Pessoa (JAKOBSON, Roman.Lingstica, potica, cinema.So Paulo: Perspectiva, 1970: 93-118). Um livro terico, edita-do no Brasil, sobre potica foiTeoria da literatura. Formalistas russos , organizadopor Dionsio de Oliveira Toledo (TOLEDO, Dionsio de Oliveira. Teoria da li-teratura. Formalistas russos . Porto Alegre: Globo, 1971).9 Um exemplo brasileiro de anlise estrutural da narrativa, realizada com compe-

    tncia, o livro de Affonso Romano de SantAnna, intitulado Anlise estruturalde romances brasileiros (SANTANNA, Affonso Romano de. Anlise estrutural deromances brasileiros . 2 ed. Petrpolis: Vozes, 1973).

    * (Op. cit.: 23-25.)

    * (Idem: 130.)

    * (ROBIN, Rgine.Histria elingstica. So Paulo: Cul-trix, 1977: 25.)

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    No entanto, o mais importante no foi o fato de que a lite-ratura passou a utilizar-se de conceitos da lingstica, mas sim deque ela comeou a fundar sua concepo de literatura na noo dearbitrariedade do signo, princpio basilar da cincia da linguagem. A obra construo e no representao direta e imediata da reali-

    dade, seja ela a conscincia do autor ou a conscincia de uma classesocial ou de uma frao de classe. Se a literatura construo, ela linguagem, regida, portanto, por cdigos, que preciso descobrir noestudo da obra literria. No se buscam mais as fontes extralingsti-cas do texto literrio e afasta-se a ideologia de que a linguagem repre-senta o real, de que a linguagem reexo da realidade. Isso no de-veria causar, como provocou, espanto ou fortes reaes, pois, anal, Antonio Candido, considerado o expoente da anlise sociolgica, jdissera que a mimese sempre uma forma de poiese.* Mais que ocontexto da criao, interessa o estudo da obra em si mesma.

    Entre o nal dos anos 70 e o incio dos 80, h um novo rom-pimento entre a lingstica e a literatura. De um lado, os estudiososde literatura consideram que a lingstica nada tem de interessan-te a dizer sobre a literatura e voltam a utilizar a velha e elementargramtica tradicional para justicar algum fato de lngua que sir-va de apoio a suas concluses. Muito da produo lingstica, porsua vez, abandona a perspectiva mais ampla da semiologia, que seocupava de explicar os sistemas de signo em geral, a m de voltar-se para os fatos de lngua. o perodo do apogeu das idias forma-listas, como as da gramtica gerativa. Mesmo a pragmtica, que seconsagra ao estudo do uso da linguagem, dedica-se anlise da lin-guagem verbal cf., por exemplo, os trabalhos de Austin,* Searle,* Grice,* Ducrot.* Mas o campo da lingstica vai ampliando-se. Apartir dos trabalhos de Benveniste sobre a enunciao, a cincia dalinguagem cria um novo objeto terico, o discurso.* Diversas teo-rias do discurso so criadas. Uma delas, a semitica francesa, bus-ca construir o projeto saussuriano de uma semiologia, agora ten-do como objeto no mais os sistemas de signo, mas a signicao.Debrua-se sobre os textos, manifestao do discurso. A obra deBakhtin e a anlise do discurso de linha francesa procuram, com osconceitos de dialogismo e de interdiscursividade, mostrar o modode funcionamento real do discurso, sua inscrio na Histria. Pa-ralelamente s teorias do discurso, aparece uma lingstica do tex-to, que se debrua sobre os fatores de textualidade, como a coeso,a coerncia, a intertextualidade.

    * (CANDIDO, Antonio.Lite-

    ratura e sociedade: estudosde teoria e histria literria.4 ed. So Paulo: Editora Na-cional, 1975: 12.)

    * (AUSTIN, John Langshaw.Quando dizer fazer. Pala-vras e ao.Porto Alegre: Ar-tes Mdicas, 1990;)* (SEARLE, John R.Os actosde fala: um ensaio de loso-

    a da linguagem. Coimbra:Almedina, 1991.)* (GRICE, H. Paul. Logiqueet conversation. Commu-nications. Paris, 30, 1979:57-72.)* (DUCROT, Oswald. Princ- pios de semntica lingstica:dizer e no dizer. So Paulo:Cultrix, 1977.)* (BENVENISTE, Emile. Pro-blemas de lingstica geral.

    So Paulo: Nacional/ EDUSP,1976, t. 1: 284-296.)

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    Uma relao entre lingstica e literatura, atualmente, nose fundar no uso pela literatura de rudimentos de uma gramticaelementar nem em princpios de organizao gerais sobre os quaisassentar os estudos literrios, mas em conceitos que explicam a or-ganizao do discurso literrio e seu modo de funcionamento. Is-

    so quer dizer que os conceitos lingsticos devem ser um instru-mento de investigao do texto literrio, que ser estudado comoprocesso enunciativo e totalidade textual. preciso que o recursoaos conceitos desenvolvidos pela lingstica do discurso sirva paradesvelar novas camadas de sentido. No pode ser nunca um meiode validar concluses oriundas da intuio do analista. Por isso,no sero sucientes as descries morfolgicas e sintticas. pre-ciso recorrer a todos os estudos de fenmenos enunciativos (gu-rativizao, isotopia, modalizao, temporalizao, actorializao,espacializao, modulao tensiva, meta-enunciao, aspectualiza-o, contrato enunciativo;* atos de fala, gneros do discurso, pres-supostos e subentendidos, leis do discurso, conectores argumen-tativos, cenograa,* interdiscursividade, heterogeneidade, espaosdiscursivos, campos discursivos, dialogismo,* thos,* estilo* e assimsucessivamente), bem como queles a respeito dos mecanismos detextualizao (categorias plsticas, semi-simbolismo, etc.*). Mas asteorias do discurso permitem ainda ver o prprio processo de cria-o literria como um ato enunciativo, como uma atividade, comouma prxis discursiva, o que possibilita analisar a adoo ou rejei-o de usos inovadores ou cristalizados e a criao dos cnones edosbest-sellers , o desgaste e a cristalizao das formas, a resseman-tizao de frmulas desgastadas ou cristalizadas, etc.

    Pensemos agora a questo do lado contrrio: o que a lings-tica importa da literatura. necessrio colocar o texto literrio eos estudos literrios no corao da lingstica para pensar a natu-

    reza da linguagem humana como um mecanismo que contm asregras de sua prpria subverso, bem como para ampliar a com-preenso da linguagem e dos mecanismos lingsticos. a leiturade Joo e Maria , de Chico Buarque, com seu uso do pretrito im-perfeito pelo presente (Agora eu era heri/ E o meu cavalo s fa-lava ingls), ou do poemaProfundamente , de Manuel Bandeira,* com sua presenticao do passado, que nos leva a ver a tempora-lizao no como um decalque do tempo do mundo, mas como a

    construo lingstica de uma vertigem temporal, em que presen-te se torna passado, em que passado se presentica, em que futuro

    * (GREIMAS, Algirdas Julien;COURTES, Joseph.Smioti-que. Dictionnaire raisonnde la thorie du langage. Pa-ris: Hachette, 1979.) (FIO-RIN, Jos Luiz. As astcias daenunciao. So Paulo: ti-ca, 1996; Bertrand, 2003.)*

    (cf. MAINGUENEAU, Do-minique.Pragmatique pourle discours littraire. Pa-ris: Bordas, 1990; e MAIN-GUENEAU, Dominique.Ocontexto da obra literria. So Paulo: Martins Fontes,1995.)* (cf. MAINGUENEAU, Domi-nique.Smantique de la po-lmique. Discours religieuxet ruptures idologiques auXVIIe sicle. Lausanne: LAgedHomme, 1983; MAINGUE-NEAU, Dominique.Gensesdu discours. Bruxelas: PierreMardaga, 1984; e MAINGUE-NEAU, Dominique.Nouvel-les tendances en analysedu discours. Paris: Hachet-te, 1987.)* (cf. BAKHTIN, Mikhail.La potique de Dostoewski.Pa-ris: Seuil, 1970a; e BAKHTIN,Mikhail.Loeuvre de Fran-ois Rabelais et la culture populaire au Moyen ge et

    sous la Renaissance.Paris:Gallimard, 1970b.)* (MAINGUENEAU, Domini-que. Cenas da enunciao.Curitiba: Criar, 2006.) (FIO-RIN, Jos Luiz. O thos doenunciador Em: CORTINA,Arnaldo; MARCHEZAN, Re-nata Coelho.Razes e sensi-bilidades. Araraquara: Cultu-ra Acadmica Editora, 2004:117-138.)* (DISCINI, Norma.O estilonos textos. So Paulo: Con-texto, 2003.)* (cf. TEIXEIRA, Lucia. Leitu-ra de textos visuais na esco-la. Comunicao apresen-tada no III Encontro Fran-co-Brasileiro de Anlise doDiscurso. Rio de Janeiro:UFRJ, 1999.* (Fontanille e Zilberberg,Op. cit.)* (BANDEIRA, Manuel.Poe-sia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983:217-218.)

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    passado e assim por diante. A leitura daProsso de f , de Bilac,* um poeta que hoje no goza de qualquer favor da crtica universit-ria, permite apreender o modo de funcionamento real do discursocom suas recusas, aceitaes, deslizamentos, ressignicaes, reto-madas. a leitura de um poema de Manoel de Barros, como o que

    se inicia com o verso A menina apareceu grvida de um gavio,*

    que possibilita pensar os deslimites da referenciao e as possibili-dades, com o processo de gurativizao, de criao de realidadesna linguagem. O captulo XV, intitulado Marcela, de Memrias pstumas de Brs Cubas , de Machado de Assis, mostra para ns osprocessos de tematizao e gurativizao.* A forma como Riobal-do revela pessoa com quem conversa seus sentimentos por Dia-dorim e seu verdadeiro sexo obriga a postular uma distino entreo narrador e o observador.* Manuel de Barros, no poemaO apa-nhador de desperdcios ,* leva a recusar o carter utilitrio da lingua-gem, mostrando que ela uma fonte de prazer:

    Uso a palavra para compor meus silncios.No gosto das palavrasfatigadas de informarDou mais respeitos que vivem de barriga no chotipo gua pedra sapo.Entendo bem o sotaque das guas.Dou respeito s coisas desimportantese aos seres desimportantes.Prezo insetos mais que avies.Prezo a velocidadedas tartarugas mais que a dos msseisTenho em mim esse atraso de nascena.Eu fui aparelhadopara gostar de passarinhos.Tenho abundncia de ser feliz por isso.

    Meu quintal maior do que o mundo.Sou um apanhador de desperdcios:amo os restoscomo as boas moscas.Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.Porque eu no sou da informtica:eu sou da invenciontica.S uso a palavra para compor meus silncios.

    Poderamos continuar a desar exemplos para mostrar que a li-

    teratura tem que estar no corao da reexo lingstica, tem que sernutrida por ela, pois no possvel construir uma teoria lingstica

    * (BILAC, Olavo.Poesias. 19ed. Rio de Janeiro: Francis-co Alves, 1942: 5-7.)

    * (BARROS, Manoel de.Re-

    trato do artista quando coi-sa. Rio de Janeiro: Record,1998: 77.)

    * (ASSIS, Machado de. Obracompleta. Rio de Janeiro: No-va Aguilar, 1979, v. I: 534.)

    * (ver, por exemplo, ROSA, Joo Guimares.Grandeserto: veredas. 22 ed. Riode Janeiro: Nova Fronteira,1986: 469, 471, 560.)* (BARROS, Manuel de.Memrias inventadas: a in-fncia. So Paulo: Plane-ta, 2003.)

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    com frases como Maria compra arroz e Joo passeia pelo Rio de Janeiro.No entanto, resta uma ltima pergunta: possvel renovar o dilogoentre a lingstica e a literatura, ele tem chance de acontecer?

    A resposta pessimista: nenhuma. Para que houvesse uma in-terdisciplinaridade entre as duas reas, seria preciso disposio pa-

    ra mudar hbitos intelectuais, respeito pela diferena, abertura pa-ra a alteridade, vontade de abandonar a comodidade de trilhar ossendeiros j batidos. Seria necessrio olhar para nossos vizinhos desala sem desprezo; admitir que, em cincia, no h feudo, no hexclusividade; reconhecer a legitimidade do outro para tratar doassunto em que se especialista. Entretanto, a cincia desertou denossas escolas, pois, quando um ponto de vista terico ou um cam-po do saber so vistos como a totalidade do conhecimento, como averdade, estamos longe do discurso cientco e muito perto do dis-curso religioso. A a aventura da interdisciplinaridade some, porqueaparecem sumos sacerdotes, dogmas, interdies, excomunhes... A triagem sobreleva a mistura. isso que vivemos em nossas igre- jas, que esto fazendo estiolar qualquer projeto cientco.

    Jos Luiz Fiorin Jos Luiz Fiorin mestre e doutor em Letras (Lingstica) pela Uni-versidade de So Paulo. Fez ps-doutorado na cole des Hautestudes en Sciences Sociales (Paris) (1983-1984) e na Universidadede Bucareste (1991-1992). Atualmente Professor Associado doDepartamento de Lingstica da FFLCH da Universidade de SoPaulo. Foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq (2000-2004) e Representante da rea de Letras e Ligstica na CAPES(1995-1999). Publicou muitos artigos em revistas especializadas ediversos livros. Entres estes, citam-se As astcias da enunciao, Li-es de texto, Para entender o texto, Elementos de anlise do discurso,

    Discurso e ideologia , Introduo ao pensamento de Bakhtin.

    ResumoDepois de mostrar que a interdisciplinaridade da natureza dos es-tudos lingsticos, porque a linguagem multiforme e heterognea,este trabalho expe os dois modos bsicos de fazer cincia, um regi-do pelo princpio da excluso e outro governado pelo princpio daparticipao, que produzem, respectivamente, a especializao e a

    sua ultrapassagem. A partir da, discute as vantagens e os problemasda disciplinaridade, apresenta as razes pelas quais hoje a interdis-

    Palavras-chave: lingstica;estudos literrios; interdis-ciplinaridade; multidisci-plinaridade; transdiscipli-naridade.

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    ciplinaridade um universal positivo do discurso e conceitua, combase na etimologia, os termos interdisciplinaridade, multidiscipli-naridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade. Examina osvnculos da lingstica com outras cincias, para terminar traandoum histrico das relaes entre lingstica e literatura no Brasil.

    Abstract Since language is multifacetedand heterogeneous, interdisci-plinarity is natural to linguis-tic studies. In this article, afterdemonstrating that, I presenttwo basic ways of doing science.

    One is ruled by the principle ofexclusion, whereas the other isruled by the principle of par-ticipation. The former leads tospecialization, whereas the latterleads to the surpassing of spe-cialization. From that, I discussthe advantages and problems of

    disciplinarity, and present thereasons why nowadays interdis-ciplinarity is a positive univer-sal in scientic and pedagogicaldiscourses. Also, based on ety-mology, I discuss the conceptsof interdisciplinarity, multidis-ciplinarity, pluridisciplinarityand transdisciplinarity. Finally,I examine the bonds betweenlinguistics and other sciences,by drawing a brief history ofthe relations between linguisticsand literature in Brazil.

    Rsum Aprs avoir montr que linter-disciplinarit est de lordre destudes linguistiques, car le lan-gage est multiforme et htrog-ne, cet essai expose les deux fa-ons de faire de la science, lune

    rgie par le principe de lexclu-sion et lautre gouverne par leprincipe de la participation. Cesdeux principes produisent, res-pectivement, la spcialisationet son dpassement. A partirde l, on discute les avantageset les inconvnients de la disci-

    plinarit, on avance les raisonsselon lesquelles linterdiscipli-narit est aujourdhui un uni-versel positif du discours et ondnit, en sappuyant sur lty-mologie, les termes dinterdis-ciplinarit, multidisciplinarit,pluridisciplinarit et transdis-ciplinarit. On analyse les rap-ports de la linguisitique avecdautres sciences et on nit partracer lhistorique des relationsentre la linguistique et la litt-rature au Brsil.

    Key words : linguistics; litera-ry studies; interdisciplinari-ty; multidisciplinarity; trans-disciplinarity.

    Mots-cls: Linguistique; tu-des littraires; interdiscipli-narit; multidisciplinarit;transdisciplinarit.

    Recebido em15/03/2008

    Aprovado em15/04/2008