Fitoterapia na atenção básica

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    Gisele Damian Antonio

    FITOTERAPIA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDEInteração de saberes e práticas de cuidado

    Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva daUniversidade Federal de SantaCatarina para a obtenção do Grau deDoutora em Saúde ColetivaOrientador: Prof. Dr. CharlesDalcanele TesserCoorientador: Prof. Dr. RodrigoOtávio Moretti-Pires

    Florianópolis2013

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    Para meus amores Vinicius e JoséGeraldo.

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus que iluminou cada um dos meus passos e encaminhaminha vida.

    Ao Professor Dr. Charles D. Tesser, pela competência, confiança,contribuições e apoio no processo de construção da tese.

    A José Geraldo, meu amor, pela força e incentivo nos momentosmais difíceis.

    A Vinícius, meu filho, pela paciência e parceria nesta jornada.Aos meus pais e avós, que apoiaram e me acalentaram em todos

    os momentos.Ao Professor Dr. Rodrigo Moretti-Pires, pelas contribuições e

    apoio no processo de construção da tese.A Professora Dra. Madel Luz, pelas contribuições na banca dequalificação da tese.

    Aos gestores, professores e profissionais de saúde de PresidenteCastello Branco/SC, Campinas/SP, Florianópolis/SC e RibeirãoPreto/SP pela contribuição no desenvolvimento da pesquisa nosmunicípios.

    Aos professores e voluntários do Horto Didático de HU/ UFSCpelas contribuições e apoio no processo de coleta de campo.

    Aos coordenadores do Núcleo do Telessaúde SC pelaoportunidade profissional essencial para construção deste estudo.

    Aos membros do NECST pelos momentos de estudo, reflexão edebate.

    As colegas Patrícia, Cristine, Emiliana, Manuela, Luana, Eliana,Cláudia, Thais, Ângela, Luise, Carmem, Mari Ângela, Mirvaine, Inajarapelo apoio neste processo.

    A todos que de alguma forma contribuíram para a realizaçãodeste trabalho.

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    RESUMOO uso de plantas medicinais como recurso terapêutico é consideradouma das primeiras formas de cuidado em saúde utilizada pelo homem eestá relacionada à tradição das populações. Dada a importância dasplantas medicinais no cuidado em saúde e simultaneamente a escassaliteratura que analisa sua inclusão nos serviços do âmbito da AtençãoPrimária à Saúde (APS), este estudo teve o objetivo de analisar odesenvolvimento de ações/programas com plantas medicinais, descritosna literatura brasileira, em municípios brasileiros nos serviços de APS.Foi elaborado um ensaio teórico-conceitual sobre a diversidade desaberes, contextos de cuidado e formas de uso de plantas medicinais queinteragem com os serviços de APS. Tal ensaio teórico expõe uma

    abordagem conceitual ancorado na “ecologia de saberes” proposto porBoaventura de Souza Santos e autores da antropologia da saúdereferentes às formas e setores de cuidado. A discussão do estado da artesobre plantas medicinais na APS envolveu uma análise documental depublicações oficiais do Ministério da Saúde que relatassem sobre açõese serviços de fitoterapia implantados na APS; uma análise bibliométricada produção científica brasileira sobre o tema no período de 1988-2012e um metaestudo sobre ações/programas com plantas medicinaisbrasileiros descritos na literatura nesse mesmo período. Foi realizadauma pesquisa empírica com abordagem qualitativa que visoucompreender os fatores facilitadores, dificultadores e as contribuições dafitoterapia na APS, em quatro municípios selecionados, a partir do olharde profissionais de saúde. Para coleta de informações foram realizadasentrevistas semiestruturadas com informantes-chave. Resultados: adiscussão da ecologia de saberes aplicada ao tema revelou a importânciado diálogo entre os saberes e práticas sobre plantas medicinais para oSUS e à APS, para além do discurso científico, de modo a valorizarsaberes emergentes presentes e acumulados na sociedade brasileira, semdesmerecer o saber científico, importante para a consolidação dosmedicamentos fitoterápicos no Brasil. A análise das abordagens sobreformas e contextos de uso das plantas no Brasil, culturalmentediversificadas, produziu uma proposta de reconhecimento de cincocontextos de uso das mesmas: familiar (autônomo), popular, tradicional,inserido na racionalidade biomédica e em outras racionalidades médicas(uso heterônomo, no geral). A análise bibliométrica evidenciou umaumento crescente das publicações no período de 1990 a 2012, embora

    elas sejam poucas, em ambiente nacional e internacional. A partir daanálise de 24 experiências brasileiras identificadas no metaestudo,percebeu-se que a inserção da fitoterapia na APS apresenta diferentes

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    abordagens, motivações, práticas e serviços. No entanto, mesmo apósvários anos da publicação da Política Nacional de Práticas Integrativas eComplementares e da Política Nacional de Plantas Medicinal, em 2006,há muitos fatores que dificultam a expansão e continuidade dostrabalhos com plantas medicinais na APS. Dentre eles, destacam-se:ausência de ensaios clínicos de plantas medicinais brasileiras,dificuldades no cumprimento das regulamentações pelos serviçospúblicos, déficit na formação dos profissionais de saúde, falta de apoiotécnico adequado à realidade dos serviços do setor público, falta deapoio à educação permanente. A aceitação, qualificação e o interesse(associados) dos profissionais, a participação e boa aceitação popular(sobretudo em cidade menores), a presença de articulações intersetoriais

    e a infraestrutura adequada foram apontados como fatores facilitadores àinserção de diferentes ações com plantas medicinais, para além deconsiderá-la como uma opção terapêutica a ser prescrita e um produto aser fornecido nos serviços de APS. Observou-se nos serviços de APSinvestigados que a fitoterapia contribui na aproximação do profissional ecomunidade, fortalece o vínculo equipe-comunidade, é uma ferramentamediadora para educação em saúde, promove articulações intersetoriaise facilita a interação de diferentes saberes circulantes nas comunidades.Concluiu-se que a fitoterapia é uma prática que facilita a interação desaberes, valoriza recursos culturais e práticas e saberes locais.Contribuiu para aproximação entre profissionais e usuários por meio deabordagens dialogais e empoderadoras. Enriquece as possibilidadesterapêuticas autônomas e heterônomas e a promoção de saúde na APS,além de consistir em uma promissora fonte de produtos terapêuticoscaseiros, manipulados ou industrializados.

    Palavra-chaves: Fitoterapia. Plantas medicinais. Atenção primária àsaúde.

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    ABSTRACT

    The use of medicinal plants as a therapeutic resource is considered one ofthe earliest forms of health care used by man and is related to the traditionof the people . Given the importance of medicinal plants in health care andsimultaneously the scarce literature that analyzes their inclusion in the scopeof services of the Primary Health Care, this study aimed to analyze thedevelopment of actions/programs with medicinal plants, described Brazilianliterature, Brazilian municipalities in PHC services. We prepared an essayon the theoretical and conceptual diversity of knowledge, care settings andusage of medicinal plants that interact with the PHC services. Thistheoretical essay presents a conceptual approach anchored in the "ecologyof knowledge" proposed by Boaventura de Souza Santos and authors of theanthropology of health on the forms and care sectors. The discussion of thestate of the art of medicinal plants in the APS involved a documentaryanalysis of official publications of the Ministry of Health who reported onactions and phytotherapy services deployed in APS, a bibliometric analysisof the scientific production on the subject in the period 1988-2012 andmeta-study on actions/programs with Brazilian medicinal plants describedin the literature over the same period. We performed an empirical studywith a qualitative approach that aimed to understand the risk factors,hindering and contributions of phytotherapy in APS, in four selectedmunicipalities, from the look of health professionals. Information gatheringwere conducted semi-structured interviews with key informants. Results:discussion of the ecology of knowledge applied to the subject revealed theimportance of dialogue between the knowledge and practices of medicinalplants for the NHS and the APS, beyond the scientific discourse, in order toexploit emerging knowledge present and accumulated in Brazilian society,without disparaging the scientific knowledge, important for theconsolidation of herbal medicines in Brazil. The analysis of the approachesto forms and contexts of use of plants in Brazil, culturally diverse, produceda proposal for recognition of five contexts of use of the same: family(standalone), folk, traditional, inserted in biomedical rationality and othermedical (use heteronomous, in general). A bibliometric analysis showed anincreasing publications in the period 1990-2012, although they are few innational and international environment. From the analysis of 24 Brazilianexperiences identified in the meta-study, it was found that the insertion ofphytotherapy in APS presents different approaches, motivations, practicesand services. However, even many years after the publication of theNational Policy on Integrative and Complementary Practices and National

    Policy on Medicinal Plants, in 2006, there are many factors that hinder theexpansion and continuity of work with medicinal plants in APS. Amongthem are: the absence of clinical trials of Brazilian medicinal plants,

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    difficulties in complying with the regulations for public services deficit inthe training of health professionals, lack of adequate technical support to thereality of public sector services, lack of support continuing education . Theacceptance , qualification and interest (related) professionals , participationand good popular acceptance (especially in smaller city), the presence of joint intersectoral and adequate infrastructure were mentioned as factorsfacilitating the insertion of different actions with medicinal plants , as wellas consider it as a treatment option to be prescribed and a product to beprovided in the PHC services . Observed in PHC services investigated theherbal approach contributes to the professional community and strengthensthe bond - staff community, is a mediating tool for health education,promotes joint intersectoral and facilitates the interaction of differentknowledge circulating in communities. It was concluded that the herbalmedicine is a practice that facilitates the interaction of knowledge, valuesand cultural resources practices and local knowledge. Contributed tobringing together professionals and users through dialogic approaches andempowering. Enriches the therapeutic possibilities autonomous andheteronomous and health promotion in PHC, and consist of a promisingsource of therapeutic products homemade, handled or processed.

    Key word: Phytotherapy. Medicinal plants. Primary health care.

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    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 - Referenciais sobre setorização e classificação de cuidados em saúde.

    ...........................................................................................................................46 Quadro 2 - Cinco eixos de ação da promoção da saúde .....................................65

    Quadro 3 - Principais legislações sobre plantas medicinais e medicamentosfitoterápicos até 2013. ........................................................................................71

    Quadro 4 - Experiências de ações, projetos e programas de fitoterapia da regiãoSul, no estado de Santa Catarina ........................................................................78

    Quadro 5 - Experiências de ações, projetos e programas de fitoterapia d regiãosul, no estado do Paraná .....................................................................................79

    Quadro 6 - Experiências de ações, projetos e programas de fitoterapia na regiãonordeste, no estado do Ceará. ............................................................................80

    Quadro 7 - Experiências de ações, projetos e programas de fitoterapia na regiãonordeste, no estado do Pernanbuco, Alagoas e Bahia. .......................................81

    Quadro 8 - Experiências de ações, projetos e programas de fitoterapia na regiãonorte ...................................................................................................................82

    Quadro 9 - Experiências de ações, projetos e programas de fitoterapia na regiãocentro-oeste ........................................................................................................83

    Quadro 10 - Experiências de ações, projetos e programas de fitoterapia naregião sudeste, estado do Rio de Janeiro e Espírito Santo .................................84

    Quadro 11 - Experiências de ações, projetos e programas de fitoterapia naregião sudeste, estdo de São Paulo ....................................................................85

    Quadro 12 - Documentos oficiais do Ministério da Saúde sobre experiências eregulamentação de fitoterapia no Brasil .............................................................91

    Quadro 13 - Estratégias de busca nas bases de dado..........................................97

    Quadro 14- Artigos e teses incluídos na análise bibliométrica de 1990 a 2006. 99

    Quadro 15- Artigos e teses incluídos na análise bibliométrica 2006 a 2012. ...100

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    Quadro 16- Publicações incluídas no metaestudo............................................ 104

    Quadro 17- Pefil dos entrevistados nos municípios selecionados.................... 111

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    SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO .................................................................................... 25

    1. INTRODUÇÃO...................................................................................... 27 1.1 OBJETIVOS .......................................................................................... 31 1.1.1 OBJETIVO GERAL......................................................................... 31

    1.1.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS .......................................................... 31 2. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-CONCEITUAIS

    E CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ............................................. 33

    2.1 PLANTAS, MONOCULTURA E ECOLOGIA DE SABERES ........... 33 ..................................................................................................................... 35 2.2. CONTEXTOS, SABERES E PRÁTICAS DE CUIDADO À SAÚDENA APS ....................................................................................................... 37 2.3 FORMAS, SABERES E CONTEXTOS DE USO DEPLANTAS MEDICINAIS NOS SERVIÇOS DA APS ............................... 49 2.4 A FITOTERAPIA NO CUIDADO EM SAÚDE E NOS SERVIÇOSDE ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE ..................................................... 53 2.4.1 o uso de plantas medicinais no cuidado em saúde: do Tradicionalao científico ................................................................................................. 53 2.4.2. O uso mágico-religioso das plantas medicinais .............................. 53 2.4.3. O início do uso experimental das plantas medicinais pelospovos gregos antigos .................................................................................. 54 2.4.4. A disseminação dos primeiros saberes de plantas medicinais na

    idade média ................................................................................................ 55

    2.4.5. O uso de plantas medicinais na idade moderna ............................ 56 2.4.6. O uso de plantas medicinais no período contemporâneo Europeu..................................................................................................................... 58 2.4.8 Políticas públicas e as plantas medicinais emedicamentos fitoterápicos no SUS e na APS ......................................... 62 2.5. AÇÕES/PROGRAMAS COM PLANTAS MEDICINAIS NOBRASIL ....................................................................................................... 75

    3. PERCURSO METODOLÓGICO ........................................................ 89

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    3.1 DEFINIÇÕES CONCEITUAIS EMPREGADAS................................. ..89 3.2. ANÁLISE DOCUMENTAL ................................................................ ..90 3.3. ANÁLISE BIBLIOMÉTRICA ............................................................. ..95

    3.4 METAESTUDO .................................................................................... 101 3.5 PESQUISA QUALITATIVA COM INFORMANTES-CHAVES,EM MUNICÍPIOS SELECIONADOS ........................................................ 106

    4. RESULTADOS E DISCUSSÃO.....................................................115ARTIGO 1 - FITOTERAPIA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA ÀSAÚDE: PRODUÇÃO CIENTÍFICA DE 1988 A 2012 ............................ 117

    ARTIGO 2 - PLANTAS MEDICINAIS NA ATENÇÃO PRIMÁRIAÀ SAÚDE: FORMAS DE CUIDADO, SABERES E CONTEXTOS DEUSO ............................................................................................................. 141 ARTIGO 3 - CONTRIBUIÇÕES DAS PLANTASMEDICINAIS PARA O CUIDADO E A PROMOÇÃO DESAÚDE NA ATENÇÃO PRIMÁRIA ......................................................... 165 ARTIGO 4 - ANÁLISE DOS FATORES FACILITADORESE DIFICULTADORES NO DESENVOLVIMENTODE AÇÕES/PROGRAMAS COM PLANTAS MEDICINAIS NAATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE BRASILEIRA ................................... 197 ..................................................................................................................... 218 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 225

    REFERÊNCIAS ........................................................................................ 229

    APÊNDICE 1 APROXIMAÇÃO, OBSERVAÇÃO DIRETA ECONTEXTO HISTÓRICO DA INSERÇÃO AÇÕES/PROGRAMASDE FITOTERAPIA NOS QUATRO MUNICÍPIOS SELECIONADOS.......................................................................................................................... 247 APÊNDICE 2 – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVREE ESCLARECIDO ................................................................................... 285 APÊNDICE 3 – ROTEIRO DE ENTREVISTA ESCRITA ................... 287 APÊNDICE 4 – RELATÓRIO DAS VISITAS TÉCNICAS .................. 293

    APÊNDICE 5 – AÇÕES E PROGRAMAS COM PLANTASMEDICINAIS NA APS, RELATADOS NA LITERATURA DE 1988

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    A 2012, E SUA DISTRIBUIÇÃONAS REGIÕES BRASILEIRA ............................................................... 297 ANEXO 1 - PLANO DO ENSINO DO CURSO FLORIANÓPOLIS/SC

    ..................................................................................................................... 299 ANEXO 2 - PLANTAS MAIS COMUNS NAS EM SEIS UNIDADES DESAÚDE E ESTUDADAS NO CURSO DE CAPACITAÇÃO EMPLANTAS MEDICINAIS DA SECRETARIA MUNICIPAL DEFLORIANÓPOLIS/SC .............................................................................. 303

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    APRESENTAÇÃOEste trabalho analisou o desenvolvimento de ações/programas

    com plantas medicinais, descritos na literatura, na Atenção Primária àSaúde (APS) brasileira. Partiu-se da premissa de que um processo deinteração qualificado, respeitoso e dialogal entre saberes e práticaslocais em fitoterapia com saberes e práticas técnico-científicas (dosprofissionais de saúde), sistematizadas e organizadas, no âmbito dosserviços de APS, pode contribuir para uma abordagem culturalmenteenriquecedora da fitoterapia, a ser explorada de forma mais ampla nosserviços pelos profissionais e pelas instituições de ensino e pesquisa.Com isso, pretende-se compreender os fatores que influenciam odesenvolvimento de ações com plantas medicinais na APS, bem comoas possíveis estratégias de trabalho, contextos de uso das plantasmedicinais e suas potencialidades na promoção e no cuidado da saúde.

    Conforme o Regimento do Programa de Pós-Graduação emSaúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina, a forma deapresentação dos resultados da tese de doutorado é por meio dapublicação mínima de um artigo publicado em revistaQualis B1 daCoordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior(CAPES) Saúde Coletiva e dois artigos submetidos a revistasQualis da

    CAPES A1. Por essa razão, os resultados e a discussão deste estudoestão sob a forma de quatro artigos científicos, antecedidos por um textointrodutório com uma contextualização do problema de pesquisa, osobjetivos, as questões norteadoras e os métodos utilizados.

    O primeiro artigo intitula-se “Fitoterapia na Atenção Primária àSaúde: produção científica de 1988 a 2012.Foi efetuada uma análisebibliométrica da produção científica brasileira sobre o tema no períodode 1988-2012. Esta análise evidenciou um crescente aumento dapublicação de artigos e teses descrevendo e analisando odesenvolvimento de ações com plantas medicinais nos serviços de APS.O segundo artigo, “Plantas medicinais na Atenção Primária àSaúde: formas de cuidado, saberes e contextos de uso”, apresenta umensaio teórico que expõe uma abordagem conceitual para a diversidadede saberes, práticas de cuidado e formas de uso de plantas medicinaisque coexistem socialmente no mundo contemporâneo e interagem comos serviços na APS. Os principais autores utilizados foram Kleinman(1980), Laplatine, Rayberon (1989), Mendendez (2003), Luz (2005),Santos (2000, 2007, 2010) e Boaventura de Souza Santos (2000, 2007,2010).

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    No terceiro, “ A contribuição da fitoterapia para promoção ecuidado da saúde na Atenção Primária”, realizamos uma análise críticade vinte e quatro pesquisas qualitativas sobre ações/programas complantas medicinais, selecionados por meio de uma de revisão sistemáticade literatura tipo metaestudo (Partenson et al., 2001). Esta análiseoportunizou evidenciar diferentes abordagens, motivações e práticas deprogramas de fitoterapia nos últimos 20 anos. Não havia até o momentorevisão e sistematização de estudos e experiências de ações/programascom plantas medicinais brasileiros descritos na literatura. É consensual aalta relevância do tema para a Saúde Coletiva e o Sistema Único deSaúde (SUS), no contexto da promoção de saúde e dos cuidadosprofissionais nos serviços de APS, bem como no cuidado autônomo oufamiliar no Brasil. A análise realizada no metaestudo foi baseada emBoaventura Souza Santos (1988, 2000, 2003, 2004, 2005, 2007, 2008,2010), especificamente na sua defesa sobre a necessidade de(re)construção ou reconhecimento de uma "ecologia de saberes" e ideiasassociadas, que não desperdice, desqualifique ou destrua osaber/experiência acumulados pelos diferentes grupos sociaisbrasileiros. Tal perspectiva foi considerada adequada e contribuiu para adiscussão e análise da fitoterapia na APS, na perspectiva do cuidado e

    da promoção de saúde.O quarto, “ Análise dos fatores facilitadores e dificultadores nodesenvolvimento de ações/programas de plantas medicinais na AtençãoPrimária à Saúde brasileira”,foi feito um estudo empírico descrevendoe analisando o desenvolvimento de ações e programas de plantasmedicinais em dois municípios paulistas e dois catarinenses, no qualforam identificados fatores facilitadores e dificultadores da inserçãodesta prática nos serviços de APS.

    A síntese e articulação dos resultados apresentados nos artigosestão contempladas nas considerações finais.

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    1. INTRODUÇÃO

    As plantas medicinais sempre tiveram grande importância nacultura, religião, medicina, estética e alimentação dos povos no mundo.Cada civilização foi compilando suas experiências, deixando acumularum amplo conhecimento sobre espécies vegetais que é transmitido degeração a geração até os dias de hoje (SIMÕES, et al. 1999; RATES,2001; CALIXTO, 2000; VIEGAS; MELLO, 2008). Disso, resultamdiferentes saberes sobre plantas medicinais, os quais foram e sãorepassados oralmente de pais para filhos ou de praticantes paraaprendizes. As explicações tradicionais para o uso de plantasmedicinais, oriundas das diversas culturas e sociedades ao longo dotempo, são as mais antigas que conhecemos. São disseminados pelaspessoas, curadores populares, associados ou não a tradições religiosas. Ouso familiar de plantas exemplifica uma prática baseada no saber leigo,acumulado no decorrer de nossas vidas, pela nossa observação eexperiência (DI STASI, 2007).

    O conhecimento tradicional e popular tem sido a fonte empíricaprincipal para as investigações científicas contemporâneas na construçãode novos saberes sobre as propriedades terapêuticas de plantas

    medicinais, ou seja, “40% dos medicamentos disponíveis na terapêuticaatual foram desenvolvidos de fontes naturais: 25% de plantas, 13% demicrorganismos e 3% de animais” (CALIXTO, 2003, p. 37). Nos paísesem desenvolvimento, grande parte da população depende da medicinatradicional para os atendimentos em saúde, tendo em vista que 90%desta população utiliza práticas tradicionais e populares nos seuscuidados primários e 70-95% usa plantas medicinais. Além disso,verifica-se um importante contingente de pessoas com dificuldade deacesso à biomedicina (OMS, 2011).

    Por outro lado, os avanços científicos na busca de novosmedicamentos sintéticos contribuíram para o desenvolvimento dosrecursos terapêuticos na maior parte do mundo no século XX. Ofármaco sintético constitui-se em um instrumento terapêutico central nodesenvolvimento técnico-científico, impulsionando grandes descobertasna ciência e na tecnologia médicas, intimamente relacionada àsindústrias farmacêuticas, aos hospitais e às especialidades médicas(BARRETO; BOLZANI, 2009). A cientificidade do cuidado à saúdealimentou a superespecialização das profissões, a busca por isolamentode compostos químicos, o aumento do custo e fragmentação do cuidado,tornando a sociedade cada vez mais dependente de práticas profissionais

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    especializadas. Neste contexto, é importante ressaltar que os saberesfamiliares, populares, tradicionais vão sendo progressivamentedesvalorizados e considerados apenas como uma fonte empírica paraexpansão do conhecimento científico, tanto pelos profissionais da saúdequando pela sociedade em geral. Com isso, a permeabilidade e a escutados profissionais de saúde aos saberes e práticas populares e tradicionaisvão diminuindo (TESSER; LUZ, 2008; TESSER, 2010). Os saberestécnico-científicos vão proliferando com importância e valorizaçãocrescentes, com desqualificação dos saberes não científicos, maiorhierarquização nas relações profissionais-usuários e disseminação dedificuldades de comunicação, malentendidos, divergências designificação para adoecimentos e tratamentos (LUZ, 2005).

    Em uma perspectiva antropológica ampla, pode-se considerardiferentes saberes e práticas sobre plantas medicinais que coexistem nocontexto do cuidado em saúde na APS, baseadas em premissas bastantedistintas. Algumas delas são articuladas e elaboradas em saberesestruturados, com maior ou menor diferença entre si (MENÉNDEZ,2003; 2009). No contexto dos serviços públicos de saúde, esses saberese práticas podem interagir por meio de diferentes relações sociais, noscontatos entre médicos e demais profissionais de saúde e usuários, nas

    atividades dos agentes comunitários de saúde (ACS) (onde a EstratégiaSaúde da Família está presente), nas atividades educativas, gruposterapêuticos, em projetos e parcerias com movimentos sociais,universidades, empresas, etc (TESSER et al., 2011).

    Com o desenvolvimento da ciência moderna e das diversasdisciplinas básicas e aplicadas envolvidas direta ou indiretamente com ocuidado em saúde, a terapêutica com medicamentos de síntesedespontou como carro-chefe da terapêutica científica (biomédica),atrelada ao desenvolvimento industrial. Apesar dos avançostecnológicos e científicos nas diversas áreas de conhecimento naspesquisas de medicamentos no Brasil e no mundo, é consenso entrediversos pesquisadores o fato de que as plantas medicinais constituemfonte importante de materia-prima para a indústria farmacêutica(VIEGAS; BONZANI; BARREIRO, 2006; BARREIRO; BOLZANI,2009).

    Esse processo de construção do conhecimento científico do usode plantas medicinais e de seus derivados tem levado a uma progressivadistância entre saber científico e saber popular. Porém, maisrecentemente, a etnobotânica torna visível o conhecimento de curadoresespecializado não-profissionalizados de diversas culturas, de modo que

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    talvez seja mais apropriado incluir estes especialistas sociais na históriada construção da fitoterapia (ALBUQUERQUE; ANDRADE, 2002).Essa inclusão sugere maior diferenciação nos saberes sobre as plantasmedicinais não científicas do que sugere a visão dicotômica pautada nopar conhecimento científico – conhecimento popular.

    Embora o uso de plantas medicinais atravesse diferentescontextos de uso e práticas de saúde como recurso terapêutico, sendoconsiderado um dos mais importantes instrumentos terapêuticos nocuidado familiar e tradicional, tem também sua relevância reconhecidano ambiente científico e profissional, especialmente na APS.

    A discussão sobre a promoção e a inserção das práticas popularese tradicionais no SUS, especialmente na APS, no Brasil foi contempladaem debates e documentos de Conferências Nacionais de Saúde,Resoluções Interministeriais e Convênios entre os anos de 1985 a 2005,que culminou na publicação da Política Nacional de Práticas (PNPIC),regulamentada pela Portaria nº 971, de 03 de maio de 2006 e na PolíticaNacional de Plantas Medicinal e Fitoterápico (PNPMF) instituída peloDecreto nº 5.813, de 22 de junho de 2006 no desenvolvimento doPrograma Nacional de Plantas Medicinais, no Brasil. Estas duaspolíticas públicas reconhecem a fitoterapia como uma prática oficial no

    SUS, definindo-a fitoterapia como um recurso terapêutico caracterizadopelo uso de plantas medicinais em suas diferentes formas farmacêuticas,além de ser uma abordagem que incentiva o desenvolvimentocomunitário, a solidariedade, a participação social e o fortalecimento daAPS.

    Em 2010, o Ministério da Saúde institucionaliza a“FarmáciasVivas” por meio da Portaria no 886, de 20 de abril de 2010. (BRASIL,2006a; 2006b; BRASIL, 2010a; BRASIL, 2010c). Posteriormente, em2012, o Ministério da Saúde publicou o Caderno de Atenção Básica n.31, de 2012 - “Práticas Integrativas e Complementares: PlantasMedicinais e Fitoterapia na Atenção Básica”. A Agência Nacional deVigilância Sanitária, também, publicou diversas resoluções e instruçõesnormativas com ênfase na regulamentação de plantas medicinais emedicamentos fitoterápicos para uso nos serviços de saúde comorecurso terapêutico, contribuindo para a expansão desta prática nosserviços de saúde.

    Entende-se por “Farmácias-Vivas” o termo institucional criadoem 1983, pelo professor da Universidade Federal do Ceará, ofarmacêutico, Dr. Francisco J. Abreu Matos, para designar os hortos deplantas medicinais padronizadas cientificamente, instaladas em

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    comunidades organizadas. Sua finalidade foi, naquele contexto,distinguir as hortas padronizadas do cultivo de plantas de uso popularescolhidas empiricamente pela população. (MATOS, 2006, p.8).

    Após a sua criação no Estado do Ceará, tornou-se referência paratodo o país e serviu de referência para estruturação de ações/programascom plantas medicinais nos serviços públicos e legislações no país. APortaria 886/10 recontextualiza a Farmácia-Viva criada por FranciscoMatos - “Farmácia-Viva” na lógica biomédica e define a prática dafitoterapia no âmbito do SUS como sendo “uma atribuição daAssistência Farmacêutica no setor público que compreende o cultivo, acoleta, o processamento, o armazenamento, a manipulação e adispensação de prescrições magistrais e oficinais de plantas medicinais emedicamentos fitoterápicos” (BRASIL, 2010c, p. 2), diferenciando estaatividade das farmácias de manipulação e indústria farmacêutica.

    No Brasil, existem 350 ações/programas de plantas medicinaisem várias regiões brasileiras (BRASIL, 2012a) que contemplamdiferentes ações e serviços: hortas e hortos didáticos, farmácia-viva,dispensação de drogas vegetais e medicamentos fitoterápicos. Umapequena parcela de experiências foi descritas na literatura científica eacadêmica, após 2010 (SILVELLO, 2010; SANTOS et al. 2011;

    BATISTA; VALENÇA, 2012). Damian, Tesser e Moretti-Pires (2013)evidenciam a presença de uma maior diversidade de ações do que aprevista normativamente pelo Ministério da Saúde: rodas de conversacom plantas medicinais, educação permanente, oficinas de manipulaçãode fórmulas tradicionais, orientação e apoio ao uso autônomo, hortas emescolas e comunidade entre outros.

    Entende-se que a presença da fitoterapia nas práticas daEstratégia da Saúde da Família (ESF) reforça a solidariedade, odesenvolvimento e a participação comunitária nas ações de saúde. Alémdisso, a riqueza biológica e a diversidade botânica brasileira tornam-seainda mais importante porque está aliado a uma sociodiversidade queenvolve vários povos e comunidades com visões, saberes e práticasculturais próprias. Na questão do uso terapêutico das plantas, essessaberes e práticas estão intrinsecamente relacionados aos territórios eseus recursos naturais, como parte integrante da reproduçãosociocultural e econômica desses povos e comunidades brasileiras.Neste sentido, é imprescindível promover o resgate, o reconhecimento ea valorização das práticas tradicionais e populares de uso de plantasmedicinais, remédios caseiros e medicamentos fitoterápicos, importantes

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    para a promoção e cuidado da saúde, bem como para o fortalecimentoda APS, conforme preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS).

    Frente a estas questões, o presente estudo buscou analisar odesenvolvimento de ações/programas de fitoterapia, descritos naliteratura científica e consolidados na APS brasileira, bem como osfatores facilitadores, dificultadores e contribuições associadas àspossíveis formas de trabalho com plantas medicinais no contextocomunitário e dos serviços de saúde público.

    Desta forma, este estudo foi norteado pelos seguintesquestionamentos:Quais os programas de fitoterapia na APS foramdescritos na literatura no período 1988-2012? Como e por que estes programas de fitoterapia na APS foram implantados e desenvolvidos na APS? Quais os fatores facilitadores e dificultadores no desenvolvimentode ações e programas de plantas medicinais na APS? Quais ascontribuições das plantas medicinais para a APS?

    Em outras palavras, trata-se de investigar como os municípiostêm organizado ações/programas de plantas medicinais no âmbito doserviço de APS e como os profissionais que têm trabalhado com plantasmedicinais de uma forma mais organizada e sistematizada relacionam-secom os saberes e práticas presentes nas comunidades em que trabalham.

    Compreender que tipo de estratégias têm sido mais presentes nasrelações entre profissionais da APS e comunidade e quais as barreirasvivenciadas ou encontradas nestas experiências, bem como ascontribuições a serem explorados de forma mais ampla nos serviços,pelos profissionais e pelas instituições de ensino e pesquisa.

    1.1 OBJETIVOS

    1.1.1 Objetivo Geral

    - Analisar o desenvolvimento de ações/programas de plantasmedicinais em municípios brasileiros, descritos na literatura brasileira,no âmbito do serviço de Atenção Primária à Saúde.

    1.1.2 Objetivos Específicos

    - Mapear a produção científica brasileira sobre ações/programascom plantas medicinais no período 1988-2012;

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    - Compreender os objetivos, motivações, enfoques, estratégiaspara o desenvolvimento de ações/programas de plantas medicinais naAPS brasileira, abordados na literatura científica, no período de 1988 a2012; - Conhecer os fatores facilitadores e dificultadores nodesenvolvimento de ações/programas com plantas medicinais no âmbitodo serviço de APS brasileira, bem como suas contribuições para ocuidado e a promoção da saúde nesse ambiente, a partir do olhar deprofissionais de saúde de municípios selecionados.

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    2. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-CONCEITUAIS ECONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

    2.1 PLANTAS, MONOCULTURA E ECOLOGIA DE SABERESO avanço científico e tecnológico das práticas biomédicas torna a

    sociedade cada vez mais dependente de práticas profissionalizadas. Estacientificidade do cuidado proporcionou acesso desigual aosmedicamentos entre as populações mundiais, o que levou instituiçõesinternacionais como a OMS (1978; 2002) a valorizarem as práticaslocais “com intuito de resolver os problemas de adoecimento de grandesgrupos populacionais desprovidos de atenção médica no mundo” (LUZ,2005, p.165). Neste sentido, o resgate, a valorização e a interação daspráticas tradicionais com as práticas técnico-científicas sãoimprescindíveis para a promoção e para o cuidado de saúde, sejaprofissional ou no ambiente familiar (OMS, 2011).

    Para Santos (2007), a sociedade contemporânea se assenta emdois pilares: o da regulação e o da emancipação. O primeiro constitui-seem obrigações envolvendo o Estado, o mercado e a comunidade. Aobrigação política do Estado é vertical e se dá entre cidadãos e o Estado.

    A regulação do mercado é uma relação individualista e antagônica entreparceiros. No princípio da comunidade, essa relação é horizontal,solidária e se processa entre membros da comunidade. O pilar daemancipação é formado pela racionalidade cognitiva e instrumental daciência, pela estético-expressiva das artes e literatura e pela moral.

    Todavia, a ciência e o direito, categorias emancipatórias no inícioda modernidade, tornaram-se, no seu transcorrer, categorias regulatóriashegemônicas a serviço das forças do mercado e das grandescorporações. A ideia de desenvolvimento se deve ao fato de que essasformas de poder, de direito e de conhecimento sobrepujaram com algumêxito outras formas estabelecidas nos chamados “espaços-tempo” dasociedade moderna: o espaço mundial, o espaço doméstico, daprodução, da cidadania (SANTOS, 2008).

    O espaço-tempo mundial é o espaço-tempo das relações sociaisentre sociedades territoriais, nomeadamente entre Estado-Nação nointerior do sistema mundial e da economia-mundo. O problemafundamental do espaço tempo mundial é a crescente e presumivelmenteirreversível polarização entre o Norte e o Sul, entre países centrais epaíses periféricos no sistema mundial (p. 286).

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    O espaço-tempo doméstico é o espaço-tempo das relaçõesfamiliares, nomeadamente entre cônjuges e entre pais e filhos. Asrelações sociais familiares estão dominadas por um poder, o patriarcado(...) (p.301).O espaço-tempo da produção é o espaço-tempo das relaçõessociais através das quais se produzem bens e serviços que satisfazem asnecessidades tal como elas se manifestam no mercado enquanto procuraefetiva. Caracteriza-se por uma dupla desigualdade de poder: entrecapitalistas e trabalhadores (p.306).

    O espaço-tempo cidadania é constituído pelas relações sociaisentre Estados e os cidadãos, e nele gera uma forma de poder, adominação, que estabelece a desigualdade entre cidadão e Estado e entregrupos e interesses politicamente organizados (p. 314).

    Segundo Santos (2000), a ciência moderna tem sido gradualmentetransformada numa força produtiva. A ciência como força produtiva(tecnologismo, formação profissional, cultura empresarial) contribuidecisivamente para as trocas desiguais na sociedade contemporânea.Contudo, ao contrário do direito estatal, a ciência não dependeexclusivamente de uma instituição nacional, centralizada e burocrática(Estado), para exercer o seu funcionamento. Embora o Estado seja um

    facilitador efetivo, por meio de políticas de incentivo científico e dedesenvolvimento, a ciência funciona por ser um saber organizado,especializado e profissionalizado, susceptível de se perpetuar ao longodo tempo em espaços aparentemente alheios ao contexto, de acordo commetodologias formalizadas e reproduzíveis. Trata-se de uma forma deconhecimento capaz de intervenções poderosas na natureza e nasociedade.

    A ciência moderna ao longo do tempo, ao produzir existências,também produziu ausências no mundo dos espaços da comunidade e davida doméstica. O silêncio (ausência) é fabricado pela desqualificaçãode determinados saberes ou experiências, que as torna invisíveis oudescartáveis, de modo muitas vezes irreversível (BORGES; PINHO;SANTOS, 2009). A esse processo de silenciamento, o autor denominoude monocultura do saber científico (SANTOS, 2007), que se caracterizapor uma racionalidade hegemônica que nega e exclui o diferente (SANTOS, 2004).

    Na mesma direção, forças políticas hegemônicas de informaçõesde massa e regulamentação, no espaço do mercado e da produção,influenciam profissionais e cidadãos criando falsas necessidades(MARCUSE, 1964). As grandes descobertas na ciência e na tecnologia

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    médica incentivaram, portanto, uma monocultura do saber nas práticasbiomédicas (VEIGAS; BOLZANI; BARREIRO 2006; SANTOS, 2007).Esta monocultura descredibiliza a existência de outros saberes e práticascirculantes na sociedade. Os saberes e práticas locais vão sendoprogressivamente desvalorizados tanto pelos profissionais da saúdequando pela sociedade em geral (MENÉNDEZ, 2003). Estes passaram aser considerados apenas como uma fonte empírica para expansão dasverdades científicas, atrelada ao desenvolvimento industrial, ànecessidade de mercado para busca de patentes de novas moléculasbioativas (BARREIRO; BOLZANI, 2009). No espaço do mercado, daprodução e dos serviços de saúde, os medicamentos fitoterápicosindustrializados aparecem como o único produto seguro, de qualidade eeficácia, para uso de plantas medicinais, o que deságua em restringir afitoterapia à prescrição profissional na APS, ou pelo menos enfatizareste aspecto dela, obscurecendo outras possibilidades pela ênfase pelainserção de medicamentos fitoterápicos. Este pensamento unidirecionalcultiva ideias, anseios e objetivos que reduzem o universo de ações defitoterapia ao campo técnico-científico e profissional, reforçando umamonocultura científica e dificultando o desenvolvimento deações/programas com plantas medicinais na APS para além desse

    enfoque (DAMIAN; TESSER; PIRES, 2013b).A monocultura científica implica domínio, influência e relaçõesinterpessoais desiguais em instituições formadoras, gestores de serviçose entre profissionais, tornando invisível saberes emergentes, “do sul1”,não científicos. Santos e Menenses (2010) designam de “Epistemologiado Sul” o conjunto de intervenções epistemológicas que valoriza adiversidade de saberes (além do saber científico) e denunciam adesigualdade da relação saber-poder responsáveis pela supressão demuitas formas de saber próprios dos povos e/ou nações colonizadas. Aesse processo de “reconhecimento da pluralidade de conhecimentosheterogênios (sendo um deles a ciência moderna) e a interações

    1 O Sul é aqui concebido metaforicamente como um campo de desafiosepistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos historicamente causadospelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo. Esta concepção do Sulsobrepõe-se em parte como o Sul geográfico, o conjunto de países e regiões domundo que foram submetidos ao colonialismo europeu e que, com exceções

    (Autrália e Nova Zelândia), não atingiram níveis de desenvlvimento econômicosemelhante ao do Norte Global (Europa e América do Norte) (SANTOS,MENESES, 2010, p.19).

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    sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua atonomia”, osautores denominaram de “ecologia de saberes”. “A ecologia de saberesbaseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento” (p.53).

    A estratégia contra hegemônica de “ecologia de saberes” propostapor Santos envolve a reconstrução do polo da emancipação nacontemporaneidade. Segundo Santos e Meneses (2010), a ecologia desaberes não propõe excluir a credibilidade do saber técnico-científico,mas não o considera como única verdade (monocultura). O sabertécnico-científico deve ser entendido como parte de uma ecologia maisampla de saberes que possibilita um diálogo qualificado. Isso nãosignifica que tudo vale do mesmo modo, mas que o saber técnico-científico não é o único, pois há outros saberes circulantes na sociedadeque podem ser valorizados quanto ao uso de plantas medicinais,particularmente na APS. O espaço comunitário em que estão inseridosos serviços de saúde de APS seria um espaço social fértil para essareconstrução, que tem sido pouco elaborado pela ciência (FREITAS;PORTO, 2011).

    Nesse sentido, desviando do ideário cientificista, este estudocompartilha da perspectiva de que não há somente um único saberválido para o cuidado à saúde e o uso comunitário de plantas medicinais.

    O saber comunitário e popular sobre plantas, baseado nas tradiçõesculturais, pode ser visto como uma possibilidade de aproximação doprofissional da saúde do usuário. Neste contexto, o princípio que orientaas relações humanas pode ser a solidariedade, a reciprocidade, o respeitoe a valorização mútua. Esta interação entre comunidade e equipe desaúde pode ocorrer em encontros para compartilhar experiências, como,identificação das plantas, como são preparadas e indicadas e de queforma são usadas pela comunidade Isso significa considerar a APS comoum ambiente favorável ao diálogo respeitoso e mutuamenteenriquecedor entre saberes, técnicas, tradições e racionalidades diversasem saúde, leigas e especializadas. Usa-se aqui o termo “especializado”no sentido geral proposto por Berger e Luckmann (1996), ou seja, com osignificado de práticas realizadas por agentes sociais (no caso, os quecuram) com processo de treinamento e formação específicos, quepodem ou não ser profissionalizados. Nesse sentido, os profissionais desaúde são especialistas e, também, grande parte dos curadores popularesou tradicionais.

    Acompanhando Santos e Meneses (2010), a perspectiva teórico-política deste estudo dirige-se para identificar possibilidades depromoção, interação e valorização de outros saberes que convivem de

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    maneira latente nas comunidades, mas são marginalizados pelo saber“científico” no âmbito dos serviços de saúde. Para os autores, o nãoaproveitamento dos diferentes saberes e práticas emergentes nasociedade favorecem o “desperdício de uma riqueza social” (BORGES;PINHO; SANTOS, 2009, p.375). Nessa perspectiva, a fitoterapia, nocontexto da APS, possibilita o aproveitamento e valorização de“riquezas sociais” na direção da emancipação (social, cultural, técnica epolítica) (SANTOS, 2003) dos profissionais e usuários dos serviços deforma crítica, participativa, interdisciplinar e intersetorial. A riquezasocial caracteriza-se pela diversidade e diálogo entre os diferentessaberes, pois todo o conhecimento se assenta em saberes oriundos daexperiência cotidiana de distintas comunidades e grupos.

    A valorização destas riquezas é especialmente importante efacilitada, como uma força emancipatória na sociedade, devido àrelativa convergência dos saberes tradicionais com os científicos no usodas plantas medicinais (LEITE, 2009). O universo concreto evidenciadopelas práticas tradicionais, populares e familiares com plantasmedicinais deve ter um lugar nas análises científicas, como forma dereabilitar os diferentes saberes, permitindo que aquilo que é ativamenteproduzido como não existente ganhe visibilidade, transformando as

    ausências em presenças, fortalecendo o pilar emancipatório nacontemporaneidade.

    2.2. CONTEXTOS, SABERES E PRÁTICAS DE CUIDADO ÀSAÚDE NA APS

    As pessoas buscam diversas práticas de cuidado quando sedefrontam com um problema de saúde. Tais práticas são contextuais,culturais e politicamente definidas, bem como disputadas (HELMAN,2003; MENÉNDEZ, 2009). Assim, pode-se identificar um grandeuniverso de cuidado em saúde, vinculado à cultura do usuário além dasexercidas pelos profissionais de saúde. O conceito de cultura que seapresenta aqui se refere a um sistema de símbolos, frente a umarealidade, que está sempre em transformação. Este conceito de culturaremete a uma dimensão dinâmica da ação das pessoas e que nos ajuda acompreender as decisões tomadas por um indivíduo com relação ao usode plantas medicinais no cuidado em saúde (GEERTZ, 1989).

    As formas de cuidado em saúde distintas das exercidas pelosmédicos e outros profissionais de saúde de vertente acadêmica oucientífica podem ser conceituadas genericamente como Medicinas

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    Alternativas e Complementares (MAC), apenas pelo fato de nãopertencerem ao conjunto da medicina oficial, convencional oubiomedicina, ou seja, aquilo que não é ensinado e não é consagrado naformação e na prática médica e de outras profissões pode ser chamadode MAC (NCCAM, 2007). Todavia, esta é uma conceituação porexclusão ou pelo negativo. Ela diz pouco sobre o que seriam estas MACe como elas podem ser entendidas, já que fala apenas do que elas nãosão. Tal conceituação pode fazer pensar que tudo o que não é científicoé MAC, ou que todas as MAC são similares, ou que uma classificaçãobaseada em tipos de práticas é suficiente para mapear esse universo. Hádiferentes classificações das MAC, dentre elas destacamos as propostaspor: BELL et al., 2002; NOGALES-GAETE, 2004; BARROS; NUNES,2006; NCCA, 2007; OTANI; BARROS, 2011.

    Uma mínima aproximação da diversidade de práticas e saberesexistentes nas sociedades contemporânea parece necessário devido aheterogeneidade de significados e sentidos de uso, relações sociais emque se inserem os variados saberes não biomédicos.

    Os primeiros estudiosos dessas práticas foram os antropólogos, aodescrever sociedades consideradas exóticas e primitivas, nas suaspráticas de cuidado autônomo e heterônomo. Mais recentemente,

    Kleinman (1980) propôs um agrupamento do cuidado em saúde em trêsgrandes sistemas ou setores coexistentes nas sociedades contemporâneasmodernas: profissional, popular ( folk) e informal (familiar), baseadomais nas relações sociais entre agentes provedores e “recebedores” docuidado. O primeiro setor inclui os curadores profissionalizados emdeterminada sociedade; o segundo inclui os especialistas populares nãoprofissionalizados de vários tipos; e o terceiro refere-se ao cuidadorealizado no ambiente familiar e nas redes de apoio social das pessoas,geralmente solidário e não envolvendo remuneração (parentes, amigos,vizinhos, grupos religiosos e de autoajuda). Cada setor possuicaracterísticas próprias (em que são utilizadas noções, saberes e práticasdiferentes em relação à saúde e à doença), mas eles estãointerrelacionados. A figura 1 ilustra na página 39, a distribuição dosconteúdos nos setores de cuidado proposto por Kleinman (1980).

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    Figura 1 – Setores de cuidado em saúde segundo Kleinman (1980)

    Fonte: KLEINMAN (1980)

    O agrupamento, proposto na figura 1, pode ser questionado, umavez que incluem no setor profissional sistemas médicos cujas práticasapresentam diferenças significativas em relação à biomedicina, porexemplo, homeopatia e a acupuntura. Tais medicinas apresentam caráterparcialmente profissionalizado, como especialidades médicas no Brasil.O que essa setorização ressalta é que uma vez profissionalizadas, aspráticas tendem a reproduzir as relações sociais de cuidado dabiomedicina, assemelhando-se a ela. Além disso, o autor coloca nomesmo setor os curadores especializados populares (medicina popular) etradicionais (medicina tradicional), que, no Brasil, diferenciam-se emrelação a crenças, valores e tradições e encontram-se, geralmente, emcontextos significativamente distintos (adiante abordados).

    Para a OMS (2002), a Medicina Tradicional (MT) consideradapor Kleimnann parte do setor popular, é um termo abrangente que deveser diferenciado da Medicina Popular (MP). O saber tradicional possuium sistema de classificação próprio, complexo, gerado e transmitidopela tradição de povos e comunidades, que se reconhecem como tais porpossuírem formas próprias de organização social (OMS, 2002). No quediz respeito à MT brasileira, a fonte de seus saberes e prática pode estar

    relacionada aos povos indígenas, quilombolas e às comunidadestradicionais brasileiras (caboclos, ribeirinhos, caiçaras). Eles possuemvasta experiência na utilização e conservação da diversidade biológica e

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    ecológica, podendo contribuir positivamente na utilização sustentável dabiodiversidade.

    Nos países em que o sistema de saúde baseia-se na biomedicinaou que a MT não tenha sido incorporada no sistema de saúde nacional, aMT e/ou MP é chamada de Medicina Alternativa e Complementar(MAC): no Brasil, homeopatia, iridologia, reiki, cromoterapia,meditação transcendental, medicina ayurvédica, medicina tradicionalchinesa, chás caseiros de plantas etc. A MAC poderia incluir todas asMT, mas a OMS (2002) reserva este termo para os locais em que não háMT forte e a biomedicina domina a oferta de cuidado nos sistemas desaúde e na sociedade.

    Segundo documento ministerial brasileiro, as MAC sãodesignadas institucionalmente Práticas Integrativas e Complementares,as quais envolvem abordagens que buscam estimular os mecanismosnaturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde, com ênfase naescuta acolhedora, no desenvolvimento do vínculo terapêutico e naintegração do ser humano com o meio ambiente e a sociedade. Outrospontos compartilhados pelas diversas abordagens abrangidas nessecampo são a visão ampliada ou holística do processo saúde-doença e apromoção global do cuidado humano, especialmente do autocuidado

    (LEVIN; JONAS, 2001).Diferente da MT e MAC, a MP é um conjunto de técnicas detratamento empregadas pelos especialistas não reconhecidos pelamedicina oficial e que não fazem parte de povos tradicionais no Brasil(LOYOLA, 1984), mas se manifestam independentemente do controleda medicina oficial (QUEIRÓZ, 1993). Em geral, nossa população (eseus curadores populares) é resultante da mestiçagem entre índios,europeus e africanos (RIBEIRO, 1995). A MP pode ser dividida emmedicina caseira (plantas medicinais, massagem) e medicina religiosa(benzedura, resguardo, toque), segundo Queiróz (1993) e Oliveira(1985). Ela é praticada em diferentes espaços e por vários especialistaspopulares que são fortemente influenciados pela religião e pelavalorização da fé (LEVI-STRAUS, 1970). Dentre eles destacam-se: osraizeiros ou erveiros; as benzedeiras ou rezadeiras; os pais de santo; osreligiosos católicos (párocos, religiosas ou pastoral da saúde) e asparteiras, como apontam Metcalf, Berger e Negri (2004) e Di Stasi(2007). Este grupo de curadores especializados apresenta significativadiferença dos curadores tradicionais pertencentes à tradição indígenae/ou comunidades ribeirinhas. Esses curadores ocupam um espaçosignificativo no cuidado à saúde propiciado pela relação de confiança

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    com o doente (estimulador da chamada eficácia simbólica) (ALONSO,2008), pela falta de cobertura do sistema formal, pelo alto preço dosmedicamentos e pelo fraco relacionamento com os profissionais desaúde (METCALF; BERGER; NEGRI, 2004).Numa tentativa de adaptar os setores de cuidado proposto porKleinmann (1980) ao contexto brasileiro da APS, Metcalf, Berger eNegri (2004) propõem uma redistribuição das práticas pelos setores decuidado: setor popular ou informal ou tradicional (práticas familiares,caseiras); setor oficial ou biomedicina e setor das MAC. No setor MACesses autores alocam os “especialistas tradicionais” (xamãs, benzedeiras,raizeiros) junto com sistemas terapêuticos e diagnósticos complexoscom bases teóricas eruditas (homeopatia, acupuntura), além deprocessos isolados com fins diagnósticos (iridologia, fisignomonia) outerapêuticos (fitoterapia, aromaterapia, musicoterapia), como faz aOMS; e separam esse conjunto da biomedicina.

    Diferente de Metcalf, Berger e Negri (2004), a interpretação deLaplantine e Rabeyron (1989) sobre as MAC é de serem práticasheterogêneas que se diferenciam segundo a legitimidade social formal(legais ou ilegais ou não legalizadas); a dimensão tradicional (antigas oumodernas); a constituição emcorpus teórico (popular ou erudita); e a

    funcionalidade (diagnóstica e/ou terapêutica). Por exemplo, ahomeopatia pode ser considerada uma forma legal de medicina noBrasil, legalizada desde a década de 1980; relativamente moderna, assimcomo a biomedicina – uma vez que nasceu na Europa no início doséculo XIX, tendo chegado ao Brasil pelo meio desse século; erudita – já que desde o início despontou como uma medicina de especialistas,profissionalizada, fundada por um médico europeu que estabeleceu umcorpo teórico de conhecimentos, doutrinas e métodos sistematizadospara orientar a prática específica dos médicos; e, por fim, é tantodiagnóstica quanto terapêutica. A abordagem proposta por Laplatine eRayron permite uma análise contextualizada das práticas e saberes dasMAC, mas ainda de forma genérica.

    Para Menéndez (2003; 2009), os setores de cuidado consistemnum processo dinâmico, complexo, diferenciado. As diferentes práticasde saúde estão relacionadas com o contexto social estratificado dapopulação. O autor propõe outra distribuição adaptada para a realidadelatino-americana: setor biomédico, popular, alternativo ou paralelo,práticas derivadas de medicinas tradicionais e práticas familiares (figura2, página 42). Para o autor, osetor biomédico refere-se aos saberes epráticas implementados por médicos ou paramédicos que trabalham nos

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    três níveis de atendimento físico, mental, inclusive os saberespreventivos de tipo biomédico. Osetor popular constitui-se peloscuradores especializados, tais como: feiticeiros, curadores,espiritualistas, erveiros, xamãs, santos, atividades carismáticas epentencostais.O setor alternativo ou paralelo(“new age”) incluioutras práticas não biomédicas chamadas atualmente como práticasintegrativas e complementares. Osetor de práticas derivadas demedicinas tradicionaisrefere-se às medicinas tradicionais – medicinatradicional chinesa, medicina indiana (ayruvédica), medicina árabe, etc.E aspráticas de autoatençãosão consideradas as formas centradas naspráticas primárias, familiarese as organizadas em termos de gruposde autoajuda, que incluem os grupos de alcoólicos anônimos,narcóticos anônimos, grupos de diabéticos, associações de pais decrianças com Síndrome de Down, etc., que têm por objetivo orientar aspessoas que adoecem e ou procuram ajuda entre pares.

    Figura 2 – Saberes, contextos e formas de cuidado em saúde segudo Menéndez(2003)

    Fonte: Menéndez (2003)

    Menéndez (2009, p. 48) valoriza o cuidado autônomo de saúde nocontexto familiar, a qual denomina de autoatenção. As práticas deautoatenção são definidas como atividades que a população utiliza tantoindividual quanto socialmente para diagnóstico, explicar, atender,controlar, aliviar, suportar, curar, solucionar ou prevenir os processos

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    que afetam sua saúde em termos reais ou imaginários, sem a intervençãocentral, direta e intencional de curadores profissionais ou especializados,embora eles possam ser os referenciais dessa atividade.

    Muitas vezes, o termo autoatenção é confundido ou identificadopela biomedicina com a automedicação ou autocuidado. Aautomedicação refere-se ao uso de determinado medicamento outratamento (de origem biomédica ou não), em geral tendo a biomedicinacomo referência) sem intervenção do médico ou profissional de saúdehabilitado. A automedicação está incluída na autoatenção, mas esta émais ampla que aquela. Dada a proeminência das doenças crônicas e oenvelhecimento populacional, há ainda que considerar as práticas deautocuidado, hoje muito valorizadas na biomedicina, para além daautomedicação, envolvendo comportamentos individuais relacionadosmais a atividade física e alimentação. O termo autoatenção de Menéndez(2009) permite diferenciar autocuidado e automedicação de autoatenção.A autoatenção é um termo mais amplo, que inclui os dois primeiros.

    A abordagem de Menéndez (2003), por um lado, parece relevantedada à significativa heterogeneidade das práticas de saúde disponíveisem uma sociedade complexa e continental como a brasileira. Adistribuição proposta pelo autor diferencia as práticas derivadas de

    medicinas tradicionais das práticas populares com abordagem religiosa,comunitárias e das de autoatenção; além da diferenciação das práticas desaúde advindas de outras tradições médicas diferentes da biomedicina. Asetorização de Menéndez (2003) ressalta o contexto social comodeterminante (ponto central) para a diferenciação das formas de atençãoà saúde, e evidencia um processo dinâmico de apropriação das práticasde saúde profissionalizadas e especializadas. Por outro lado, considera eabre uma sessão “outras” considerando parecidas, paralelas oualternativas uma grande heterogeneidade de práticas etiquetadas depráticas complementares.Considerando essas diferenças internas ao universo dasMAC/MT, bem como o contexto dos serviços da APS brasileira, deveser mencionado ainda o conceito de “Racionalidades médicas”.“Racionalidade médica” é uma categoria analítica proposta por Luz(1995) para o estudo e comparação de sistemas médicos complexospresentes no mundo contemporâneo. A categoria é inspirada nos tiposideais de Max Weber (1864-1920), importante pensador das ciênciassociais, e tem a característica de ser ao mesmo tempo uma descriçãotendencial de fenômenos e ou realidades e um instrumento de análise ecomparação dessas realidades. A partir de elementos empíricos

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    perceptíveis, é postulado um “tipo ideal” (um construto teórico,portanto) que traduz características centrais ou consideradas importantesdesses fenômenos (LUZ; BARROS, 2012). A partir da descrição oucaracterização desse tipo ideal, pode-se, então, estudar realidadesempíricas comparando-as com o “modelo” e entre si, o que enriquece oconhecimento e a compreensão sobre as mesmas e, num movimento de feed-back , aperfeiçoa a própria caracterização do tipo ideal,potencializando-o como instrumento de compreensão das realidades. Nocaso em questão, tratou-se de reconhecer e estudar sistemas médicoscomplexos de cuidado e cura que persistem nas sociedadescontemporâneas.

    Uma racionalidade médica, segundo Luz e Barros (2012), foidefinida como um conjunto articulado e coerente de componentes de umsistema de cuidado e cura, composto por: uma doutrina médica(explicações sobre as causas e naturezas dos adoecimentos e do processode cura), uma morfologia (descrição das partes e componentes do serhumano, equivalente à anatomia), uma dinâmica vital humana(descrição do funcionamento do ser humano, equivalente à fisiologia),um sistema de diagnose (métodos de interpretação dos problemas desaúde), um sistema terapêutico (métodos de cuidado, prevenção e

    tratamento dos adoecimentos e de promoção da saúde) e por fim umasexta dimensão mais geral: uma cosmologia, uma cosmovisão sobre anatureza do universo e do ser humano e suas relações, subjacente atodos os elementos anteriores, dando-lhes uma transfundo cultural e devalores tácitos, amalgamando-os.

    Por meio desta categoria, alguns sistemas de cura foram econtinuam sendo estudados, teórica e empiricamente. Foramcaracterizados até o momento como racionalidades médicas, porexemplo, a medicina ocidental contemporânea ou biomedicina, amedicina tradicional chinesa (MTC), de onde provém a acupuntura, ahomeopatia, a medicina ayurvédica (da Índia) e a medicinaantroposófica (LUZ; BARROS, 2012). Tais sistemas médicoscomplexos podem ser, segundo essa proposta analítica, diferenciados deoutras práticas e formas de cuidado que não apresentam todas essascaracterísticas, como os Florais, a iridologia, o reiki, fitoterapia, etc. Oreconhecimento da existência desses sistemas é que eles possuem umaracionalidade própria, fundada em uma cosmovisão específica, às vezesafiliado a uma antiga tradição cultural (como na China e na Índia),portadores de doutrinas médicas próprias coerentes com seus sistemasdiagnósticos e terapêuticos e seus saberes sobre o ser humano e sua

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    saúde-doença (morfologia e dinâmica vital), permite atribuir-lhe créditoepistemológico; isto é, admitir que eles possuem verdades e critérios deeficácia autóctones, associados com seus valores, saberes ecosmovisões, irredutíveis aos saberes biomédicos ou biocientíficoscontemporâneos. Possuem algo como paradigmas próprios usando oconceito de Thomas Kuhn (987, 1989), em certa medida incomparáveisou intraduzíveis ou incompreensíveis do ponto de vista do paradigmabiomédico, atualmente hegemônico, chamado biomecânico oumecanicista, materialista, analítico e cartesiano (CAMARGO JR, 2003).Tal categoria de racionalidade realça, portanto as diferenças entresistemas médicos complexos, mesmo que em parte estejamprofissionalizados e aceitos formalmente na sociedade.

    O quadro 1 sintetiza virtudes e problemas dos referenciaiscomentados até o momento sobre setorização e classificação decuidados em saúde.

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    Quadro 1 - Referenciais sobre setorização e classificação de cuidados em saúde.

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    Respeitando as significativas diferenças conceituais e simbólicase os distintos contextos de cuidado anteriormente mencionados,especialmente em relação ao uso de plantas medicinais, propõe-se aseguinte distribuição dos contextos de cuidado e dos saberes/técnicas eformas de cuidado respectivos, referentes aos cuidados comunitários, emque se insere a APS, ilustrados na figura 3. Tal esquema prepara oterreno para a discussão das formas de uso de plantas medicinais pelapopulação brasileira e nos serviços de APS.

    a) Contextos e saberes familiares incluem todas as práticas desaúde que as pessoas usam sem qualquer pagamento e sem consulta, ouseja, refere-se aos relacionamentos informais que ocorrem dentro darede social do próprio paciente (família, amigos, vizinhos, parentes);

    b) Contextos e saberes populares: refere-se aos curadoreslocais que não fazem parte do sistema médico oficial e ocupam umaposição intermediária entre as práticas tradicionais e as biomédicas.Seus saberes e práticas constituem-se de herança familiar e aprendizadocom curandeiros tradicionais, refere-se às práticas desenvolvidas porcarismáticos, pentencostais, raizeiros, benzedeiras;

    c) Contextos e saberes advindos de povos tradicionais:referem-se às práticas de povos tradicionais passadas de geração por

    geração, tais como medicina tradicional indígena (no Brasil), medicinatradicional chinesa, medicina indiana, medicina árabe;d) Contextos e saberes de outras racionalidades médicas:é

    um conjunto de saberes e práticas de outros sistemas médicoscomplexos do mundo contemporâneo além da biomedicina (homeopatia,medicina ayurvédica, medicina antroposófica), segundo Luz e Barros(2012);

    e) Contextos e saberes da racionalidade biomédica:é oconjunto de saberes e práticas técnico-científicas utilizadas porprofissionais de saúde no contexto institucionalizado dos serviços, comona APS e redea de atenção à saúde.

    O uso de plantas medicinais como recurso terapêutico atravessa,com maior ou menor presença, os setores de cuidado, apresentados nafigura 3, sendo exercido sob diferentes referenciais de saber e de cultura.A APS é um espaço de potencial interação e valorização desses saberes.O reconhecimento das diferentes formas/contextos de uso de plantasmedicinais, presentes no território no qual os serviços de APS seinserem, pode contribuir, portanto, para uma comunicação clínicaadequada e para a promoção da saúde no âmbito do serviço de saúde (HERNÁEZ, 2008).

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    Figura 3 - Contextos, saberes, práticas de cuidado de cuidado na APS,

    Legenda: a variação de tons de cinza, e espessura da linha de contornodemonstram a representatividade e diferenciação em cada contexto de cuidado(proposto pela autora).

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    2.3 FORMAS, SABERES E CONTEXTOS DE USO DE PLANTASMEDICINAIS NOS SERVIÇOS DA APS

    As formas de cuidado com plantas medicinais podem ocorrer apartir das doutrinas, valores e saberes de uma racionalidade médica(entre elas a biomedicina), de curadores diversos (populares etradicionais) ou a partir da população considerada leiga.

    Seguindo a adaptação realizada por Metcalf, Berger e Negri(2004) da abordagem de Kleinman (1980) para o contexto brasileiro,considerando também as abordagens de Menéndez (2009), Laplatine eRabeyron (1989) e Luz e Barros (2012), e visando respeitar assignificativas diferenças de saberes e contexto social de uso das plantasmedicinais, diferenciaram-se as formas de cuidado com plantas, em doistipos básicos, associadas aos atores envolvidos, desdobrados em cincocontextos de uso: no tipo autônomo há o uso familiar (1), (podendo ounão ser tradicional) e no tipo heterônomo há recurso de especialista dealgum tipo. Neste segundo caso, o uso pode ser: (2) popular; (3)tradicional; afiliado a uma racionalidade médica: a biomedicina - (4)fitoterapia científica - ou (5) outra racionalidade específica, porexemplo, o uso de plantas pela medicina tradicional chinesa. A

    fitoterapia pode ser considerada um recurso terapêutico (produto) e/ouprática de saúde (ação) vinculada à cultura/saber do usuário/família e/oucuidador que orienta ou prescreve, um terapeuta popular, tradicional, dabiomedicina ou de outra racionalidade (figura 4).

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    Figura 4 - Atores, saberes e formas de uso de plantas medicinais na APS.

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    O uso familiar de plantas medicinais, que muitas vezes nãoconta com registro escrito da sua prática, refere-se às práticas autônomase informais de autoatenção envolvendo uso de plantas medicinais(remédios caseiros, automedicação, aconselhamento) dos usuários quese inserem em uma rede social e cultural de cuidado familiar (família,amigos, vizinhos, parentes), seguindo Kleinman (1980).

    O uso de plantas medicinais popular é a praticada porespecialistas populares não profissionalizados. Segundo Menéndez(2009), os saberes e práticas populares baseiam-se em herança familiar,marca de nascença, “dom” e ou aprendizado com outro curador. Estesespecialistas estabelecem um forte vínculo de confiança com os usuáriosdevido à identidade, proximidade na linguagem e conhecimento dacomunidade e ou por falta de acesso ao cuidado biomédico.

    O uso de plantas medicinais tradicional ocorre quando o uso deplantas é enraizado na cultura de uma população ou povo comidentidade e longa tradição próprias, e pode ser inserida ou não em umaracionalidade médica (LUZ; BARROS, 2012), diferente da biomédica,caracterizando o que a OMS designa por MT. Por exemplo, a medicinaindígena faz parte da MT brasileira, que difere, em geral, das práticas

    familiares e populares.O uso de plantas medicinais científico refere-se ao uso deespécies vegetais, droga vegetal e medicamentos fitoterápicos apoiadana racionalidade biomédica, com o propósito de tratamento médico,como medicamentos fitoterápicos (FERNANDES, 2004).

    O uso de plantas medicinais em outras racionalidadesmédicas acontece de formas coerentes com as teorias e métodos deracionalidades médicas diferentes da biomedicina e das formasanteriores, ainda que por vezes possa haver alguma convergência nasindicações. Mas esse uso aqui no Brasil não pode ser consideradotradicional, nem popular, nem familiar, sendo geralmente heterônomo.Por exemplo, na medicina tradicional chinesa as plantas medicinais sãoutilizadas em geral misturadas e a partir de suas propriedades e ações emtermos das noções de ying e yang, 5 “elementos” (ar, água, fogo, metal emadeira) e suas interrelações, para promover e resgatar uma relaçãoharmônica do “Qi” no homem. Não há reconhecimento acadêmicoestabelecido ou regulamentação de tal fitoterapia no Brasil. Na medicinaantroposófica a saúde é o resultado de sintonia rítmica harmoniosa entreos elementos básicos constitutivos da estrutura humana, conforme ossaberes dessa racionalidade médica. (Luz, Barros, 2012, p. 209). A

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    medicina ayurvédica também tem rico acervo próprio de saberes,doutrinas e técnicas no uso de plantas. Já na homeopatia, as plantas sãomatérias primas para elaboração de medicamentos homeopáticos usadosconforme o princípio da semelhança: servirão para o tratamento desituações e quadros similares aos que o próprio medicamento produziuem pessoas sadias (em experimentações chamadas patogenesias). Osmedicamentos homeopáticos em sua grande maioria são produzidos apartir de plantas, com uma farmacotécnica específica já regulamentadano Brasil, diversa da biomédica, que utiliza grandes diluições,ultrapassando o imponderável (FERRO, 2008). O uso de plantas poroutras racionalidades médicas difere do raciocínio da biomedicina eexige compreensão das doutrinas médicas respectivas, o que é umcampo aberto para pesquisas.

    A diferenciação descrita acima discorda, em parte, da recenteclassificação, proposta pelo Ministério da Saúde, que distingue afitoterapia em: popular, tradicional e científica ocidental (BRASIL,2012). Julga-se haver maior diferenciação nos saberes e usos quemerece ser valorizada. O uso autônomo de plantas medicinais, noâmbito familiar, pode sofrer influência tanto do saber técnico-científicoquanto do saber popular e tradicional. Estes últimos são esparsos,

    distribuídos irregularmente na sociedade, mais presentes no meio rural enas periferias urbanas, concentrados em curadores. A fitoterapiatradicional brasileira tem maior presença na região norte, nordeste ecentro-oeste, onde se encontram comunidades com maior continuidadecultural. A fitoterapia científica tem relativamente grande convergênciacom a popular, a familiar e tradicional, mas isso parece obscurecidofrente à hierarquização social que privilegia e valoriza a ciência. Asoutras racionalidades médicas (vitalistas) são escassas nos serviços desaúde e sua fitoterapia é quase incipiente no setor público. Elaslocalizam na sociedade civil, sendo mais conhecidas pelas camadaseconômicas médias e altas, no mercado (setor privado), inclusive ahomeopatia e acupuntura, já profissionalizadas no Brasil e inseridas noSUS.

    Desta forma, entende-se que o uso de plantas medicinais, noBrasil, envolve matrizes de conhecimento, mais ou menos “teoricamenteelaboradas”, contextuais, culturais e historicamente definidas. Hátambém, no mundo contemporâneo, uma valorização desigual e mesmouma disputa, envolvendo a apropriação científica e por grupos restritosdo saber sobre plantas medicinais, vinculada ao comércio, patentes, etc.O saber científico, vinculado às tecnologias duras industrializadas e à

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    indústria farmacêutica, é comercializável e assim objeto de grandesdisputas políticas e econômicas. Os saberes populares, familiares etradicionais são relativamente desvalorizados socialmente eprofissionalmente, em parte coletivos e dispersos – ainda que maisconcentrados em curadores - e, todavia, fundamentais para orientar aabordagem científica da fitoterapia.

    2.4 A FITOTERAPIA NO CUIDADO EM SAÚDE E NOS SERVIÇOSDE ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

    2.4.1 O uso de plantas medicinais no cuidado em saúde: dotradicional ao científico

    O uso de plantas medicinais no cuidado em saúde foiinfluenciado e transformado, ao longo do tempo, por diferentes atoressociais que fizeram parte da medicina tradicional à medicina científicamoderna. Estes atores sociais podem, simultaneamente, tercompartilhado de diferentes tradições, culturas e saberes, favorecendo acirculação de ideias. De acordo com Fleck (2010, p. 157), “a complexaestrutura da sociedade moderna possibilita que diferentes coletivos de

    pensamento se interseccionem e inter-relacionem de formas diversas”.Desta forma, cada civilização, em seu contexto sociocultural, foicompilando suas experiências, deixando acumular um amploconhecimento sobre as plantas, sendo hoje cada vez mais comprovadopela ciência moderna, como será apresentado a seguir (FERRO, 2008).

    2.4.2. O uso mágico-religioso das plantas medicinais

    Nas sociedades primitivas a doença era compreendida como algoexterno ao corpo em decorrência de magia e pecados. Esta forma deinterpretar o processo saúde-doença dos povos mesopotâneosinfluenciou os antigos escritos sobre plantas medicinais provenientesdesta época. Na mesopotâmia (3000 a. C) não havia o saber técnico-científico (estruturado atualmente). O uso de plantas medicinais pelascivilizações antigas era sustentado por rituais empíricos e sagrado.Muitas plantas reconhecidas pelos povos primitivos são utilizadas hojecomo medicinais:Coriandrum sativum(coentro), Acácia arábica(acácia), Aloesp. (babosa), Ricinus communisL. (rícino).

    O pensamento assírio-babilônico baseava-se na crença de quetodos os fenômenos, tanto os terrenos como os cósmicos, encontravam-

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    se estreitamente unidos e subordinados à vontade dos deuses,considerando as doenças, castigo de Deus. Essa visão traduziu-se naimportância dada aos estudos dos movimentos celestes como forma depredizer o futuro. Nestes casos, o arrependimento poderia levar à curadas doenças. O tratamento com plantas medicinais ocorria através deencantamentos, simpatias, misticismo e penitência por meio docuranderismo, do benzimento, da astrologia, das peregrinações ou dacura pelo “médico divino”, os deuses. A maior parte da terapêutica tinhaem vista a purificação do indivíduo por meio do conteúdo mágico daservas medicinais (FERRO, 2008; BARROS, 2008; ALONSO, 2008).

    2.4.3. O início do uso experimental das plantas medicinais pelospovos gregos antigos

    O pensamento filosófico da Grécia Antiga contribuiu para asocialização do conhecimento sobre as propriedades de plantasmedicinais. Foi nesta época que surgiram os primeiros filósofos queprocuraram apresentar sistemas coerentes para explicar o universo.Partindo do pensamento grego de que a natureza resulta da combinaçãode quatro elementos (ar, fogo, terra e água) Hipócrates desenvolveu a

    concepção de que no corpo, a saúde resulta do equilíbrio dos humoresdo corpo humano. A doença nesta época era entendida como odesequilíbrio entre os humores e os elementos e a terapêutica deviaeliminar os humores em excesso (ROSEN, 1994). Assim, o pensamentode Hipócrates e de Aristóteles permitiu que lentamente as práticasmágico-religiosas que influenciavam o uso das plantas medicinasfossem transformadas em práticas baseadas em observação terapêuticas.(ROSEN, 1994; FERRO, 2008; BARROS, 2008; ALONSO, 2008).

    O pensamento hipocrático representa um marco na medicinaocidental, por sua decisiva participação na construção da observaçãoclínica de elaboração de um corpo doutrinário capaz de fornecerexplicações para os processos mórbidos, teorização acerca detratamentos possíveis e organização do repertório vigente na época,entre elas o uso correto de plantas medicinais (LEITE, 2009).

    O pensamento de Aristóteles tratava da unidade orgânica dosseres vivos, sendo a doença a expressão de alterações globais doorganismo em interação com o seu meio físico e social. Acreditava-seque, do mesmo modo como os humores e líquidos do organismoinfluenciam as virtudes do homem, suas virtudes influenciam oshumores. Um importante filósofo grego influenciado pelos pensamentos

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    aristotélicos foi Teofrastos (370-286 a.C). Ele tentou sistematizar umaclassificação para as plantas medicinais noTratado de odores e HistóriaPlantarum.A obra incluiu propriedades farmacológicas e farmacêuticassobre as plantas medicinais, tais como: Achillea millefolium(mil folhas), Rosmarinus officinalis(alecrim) (LEITE, 2009).

    As idéias de Hipócrates influenciaram outros dois importantescontribuintes da história sobre o uso terapêutico de plantas medicinais:Galeno (130-200 d.C) e Dioscórides (40-90d.C). Dioscórides foi médicodo exército romano, sendo grande parte de seu conhecimento adquiridoem suas viagens com os soldados do império em territórios próximos doOriente, à França, à Espanha, à Alemanha e à Itália. Seus conhecimentossobre plantas medicinais foram contemplados pelas leituras das obras deHipócrates, Teophrastus e outros. Dioscódies, pai da Farmacognosia,descreveu cerca de 600 espécies medicinais em cinco livros conhecidoscomo Materia medica,um marco histórico no conhecimento de muitosfármacos, muitos dos quais ainda hoje são usados. Os livros escritos porele serviram como base às terapêuticas medievais e renascentistas(LEITE, 2009; FERRO, 2008; ALONSO, 2008).

    Galeno participou de várias sessões de dessecação humana, quelhe forneceu os primeiros aprendizados de anatomia e fisiologia que

    contribuíram para o conhecimento do corpo humano. Foi o maiorpropagador dos ensinamentos de Hipócrates na antiguidade. Escreveuvários livros sobre as propriedades das plantas medicinais, sendoatualmente conhecida por sua importante contribuição na descrição defórmulas e prescrições contendo dosagens, denominadas fórmulasgalênicas. Galeno influenciou a forma de preparo das plantas medicinaisa partir de tinturas e valorização dos princípios ativos das plantasmedicinais (FERRO, 2008; BARROS, 2008; ALONSO, 2008).

    2.4.4. A disseminação dos primeiros saberes de plantas medicinaisna Idade Média

    Na Idade Média (século V a XIV), o mundo árabe conservou eampliou o legado cultural grego. Por volta de 900 d.C todas as obrasgregas foram traduzidas para o Latim. Neste período destaca-se o sábioárabe Avicena (980-1037) maior difusor das obras de Galeno. Uma dasobras, conhecidas comoCanon Medicinae,reuniu importantes dadossobre as doenças da época. No âmbito da terapêutica, retomou váriosensinamentos da farmácia galênica, perpetuando tais teorias na IdadeMédia (LEITE, 2009).

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    Os conhecimentos dos vários povos antigos, estudiosos gregos,romanos e árabes da Idade Antiga e Média contribuíram para adisseminação dos primeiros saberes e práticas tradicionais de plantasmedicinas. A tradução dos manuscritos na Idade Média por grupossociais distintos garantiu a circulação intercultural de ideias e a troca desaberes entre diferentes povos em prol da saúde (FERRO, 2008, OMS,2002) sobre várias plantas medicinais conhecidas nos dias de hoje, taiscomo: Matricaria chamomilla(camomila) - dores e doenças dos olhos; Melissa officinalis(erva cidreira) eSalvia officinalis(salvia) (ALONSO,2008; LEITE, 2009; FERRO, 2008).

    Por volta do século XIII, pode-se dizer que as concepções desaúde no feudalismo retrocederam a das sociedades primitivas, pois adoença era associada a crenças pagãs ou religiosas e o alívio dava-se pormeio de rituais e preces aos santos. Além das orações e das penitênciascomo recurso para a salvação, o cristianismo entendia a doença comouma punição pelo pecado ou resultado de feitiçaria (ROSEN, 1994). Ouso de plantas medicinais era restrito aos monges e sacerdotes emdecorrência da restrição imposta ao curanderismo quando preparavam,misteriosamente, unguentos maravilhosos por meio de fórmulasmágicas. Eram considerados como produtos vegetais mágicos a

    mandrágora, a arruda e o alho. Esta forma de interpretar o uso de plantasmedicinais influenciou o uso de “plantas de proteção” nos rituais