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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA FLAGELO DA HUMANIDADE: SABERES E PRÁTICAS ACERCA DO ALCOOLISMO (RECIFE 1930 - 1939) ELIANA VIEIRA SALES RECIFE-PE 2011

FLAGELO DA HUMANIDADE: SABERES E PRÁTICAS … · grupos sociais que impunham estratégias de controle social do uso do álcool, definindo a forma, como e o momento de beber, priorizando

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    FLAGELO DA HUMANIDADE: SABERES E PRTICAS

    ACERCA DO ALCOOLISMO (RECIFE 1930 - 1939)

    ELIANA VIEIRA SALES

    RECIFE-PE

    2011

  • ELIANA VIEIRA SALES

    FLAGELO DA HUMANIDADE: SABERES E PRTICAS ACERCA DO

    ALCOOLISMO (RECIFE 1930 - 1939)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria, da Universidade Federal

    de Pernambuco, como requisito parcial para

    obteno do ttulo de Mestre em Histria, sob

    orientao do Prof. Dr. Carlos Alberto Cunha

    Miranda.

    RECIFE-PE

    2011

  • AGRADECIMENTOS

    Este trabalho pde ser escrito graas a Deus por conceder-nos discernimento e foras

    para superar as dificuldades que se fizeram no percurso desta trajetria e a contribuio direta

    ou indireta de muitas pessoas.

    Agradeo ao orientador professor Carlos Miranda, mestre, amigo, incentivador,

    sempre pronto e a disposio para contribuir de forma agradvel e compromissada.

    Agradeo ao professor Fernando Dumas, por suas reflexes e pela concesso de seus

    artigos, os quais foram fundamentais para a realizao deste trabalho.

    Sou imensamente grata a Natlia Conceio Silva Barros pela enorme ajuda prestada,

    pelo tempo e esforo que dedicou e por todo o auxlio dado para desenvolvimento desta

    dissertao.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao da UFPE que, de alguma forma,

    contriburam com este trabalho, especialmente ao professor Hoffnagel, por suas crticas ao

    projeto de mestrado, que se fizeram essenciais para o refinamento da pesquisa e para

    determinaes de meus objetivos.

    querida chefamiga Gildete Pisarro pelo auxlio na construo do abstract.

    Igualmente a Maria Rosemere pelo apoio logstico, a Nadir de Sales, uma eterna e amada

    guardi e a Sandra Lopes pela ateno e disponibilidade em ajudar.

    CAPES pelo incentivo e crdito na pesquisa.

    Aos funcionrios da Biblioteca Pblica do Estado de Pernambuco, da Faculdade

    Direito, do Arquivo Pblico Estadual Jordo Emereciano, do setor de microfilmagem da

    Fundao Joaquim Nabuco, pela solicitude prestada durante a realizao da pesquisa. Em

    especial, ngela, bibliotecria do Hospital Ulisses Pernambucano.

  • professora Luciene De Colti e ao professor Marcus Carvalho por suas valiosas

    crticas e sugestes durante a qualificao, as quais contriburam sobremaneira para o

    amadurecimento de importantes questes nesta dissertao.

    Sandra, secretria do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFPE, sempre

    atenciosa e bem-humorada.

    Aos colegas do Mestrado, pela boa convivncia e pelo incentivo durante todo o curso.

    Um agradecimento especial ao meu marido, Nivaldo de Sales, grande incentivador e

    sustentculo para mais uma de minhas realizaes.

    Por fim, aos meus filhos Marcos Fernandes, Luiz Eduardo e Ana Carolina por terem

    compreendido os momentos de ausncias nestes ltimos anos.

  • "As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o esprito.

    Essa jurisdio soberana e temvel exercida com vossa razo.

    Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sbios, dos

    governos, adorna a psiquiatria de no sei que luzes sobrenaturais. O

    processo da vossa profisso j recebeu seu veredito. No pretendemos

    discutir aqui o valor de vossa cincia nem a duvidosa existncia das

    doenas mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se

    desencadeia a confuso da matria e do esprito, para cada cem

    classificaes das quais as mais vagas ainda so as tentativas nobres

    de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos

    prisioneiros? [...] A represso dos atos anti-sociais to ilusria

    quanto inaceitvel seu fundamento. Todos os atos individuais so anti-

    sociais. Os loucos so as vtimas individuais por excelncia da

    ditadura social; em nome dessa individualidade intrnseca ao homem,

    exigimos que sejam soltos esses encarcerados da sensiblidade, pois

    no est ao alcance das leis prender todos os homens que pensam e

    agem."

    Antonin Artaud

    Trecho da Carta aos mdicos chefes dos manicmios

  • RESUMO

    O consumo das bebidas alcolicas considerado uma prtica bastante antiga na histria da

    humanidade, o beber um ato social que deve ser compreendido no contexto de valores,

    normas e atitudes de cada cultura e poca. Desde tempos remotos, essa prtica esteve

    assentada em uma srie de disposies simblicas, restritivas e permissivas de diferentes

    grupos sociais que impunham estratgias de controle social do uso do lcool, definindo a

    forma, como e o momento de beber, priorizando os espaos e as situaes adequadas nas

    quais a bebida era preconizada. No entanto, com o advento da Revoluo Industrial e das

    modificaes estruturais por ela provocadas na sociedade, o relacionamento das pessoas com

    o lcool passou por mudanas profundas. O equilbrio, at ento existente, foi rompido em

    funo de um conjunto de fatores trazidos pelas transformaes socioeconmicas ocorridas na

    poca. A crescente produo de bebidas e de maior teor alcolico, as transformaes oriundas

    da dinmica capitalista, a intensificao do processo de urbanizao com uma tendncia de

    criar espaos cada vez mais civilizados, oportunizaram o deslocamento de uma prtica

    conveniada pelos grupos sociais a uma normatizada pelo saber mdico. O presente trabalho

    analisa o discurso cientfico, particularmente o psiquitrico, no processo de construo da

    doena alcoolismo, uma patologia de alta periculosidade merecedora de todos os cuidados,

    no contexto do Recife, durante os anos de 1930. A partir da produo discursiva do perodo,

    elaborada pelos prprios psiquiatras tanto com fins cientficos como instrutivos, o alcoolismo

    foi sendo apresentado como um problema intimamente associado malandragem, loucura,

    criminalidade, desordem, fator de debilidade moral e social. Com base na convico de que

    falavam em nome da verdade e da cincia, desempenhando seus papis de

    especialistas/cientistas, os psiquiatras nomearam-se os nicos com plenos direitos de

    disciplinar, controlar, higienizar os comportamentos das pessoas no que se refere ao hbito de

    consumir bebidas alcolicas, harmonizando-se com o programa estatal do governo varguista

    que investia numa srie de representaes enaltecedoras do trabalhador idealizado como um

    bom cidado e chefe de famlia, cultivador do lar e dos bons costumes, ou seja, em prol de

    indivduos sbrios e produtivos, e da boa ordem do corpo social. Dessa forma, procuramos

    descrever a materializao das campanhas antialcolicas, abordar as concepes norteadoras

    do combate antialcolico, as representaes acerca dos alcoolistas, conhecer as dificuldades

    encontradas pelos psiquiatras na pretenso de efetivar seus princpios abstmios sobre a

    populao recifense. A anlise dos pronturios mdicos dos alcoolistas internados no Hospital

    de Alienados possibilitou acessar informaes sobre os pacientes, o processo de internao,

    diagnsticos, sinais e sintomas do alcoolismo, teraputica utilizada, entre outras.

    PALAVRAS-CHAVE: alcoolismo, psiquiatria, degenerescncia, controle social, Hospital de

    Alienados.

  • ABSTRACT

    The consumption of alcohol is considered a very old practice in human history the drinking is

    a social act that should be comprehended in the context of values, norms and attitudes of each

    culture and epoch. Since ancient times this practice was built on a series of symbolic,

    restrictive and permissive measures of different social groups who impose social control

    strategies of alcohol use, setting the way, how and when to drink, prioritizing the spaces and

    in appropriate situations which the beverage was recommended. However, with the advent of

    the Industrial Revolution and the structural changes caused by it in society, people's

    relationship with alcohol has undergone profound changes. The balance, up to then existing,

    was broken due to a combination of factors brought about by socioeconomic changes that

    occurred at the time. The increased production of beverages and higher alcohol content, the

    changes arising from the capitalist dynamic, the intensification of the urbanization process,

    with a tendency to create more "civilized" spaces opportune to the displacement of a practice

    by the private social groups to a normalized by medical knowledge. This paper examines the

    scientific discourse, especially of psychiatrists in the process of alcoholism as a disease, a

    highly dangerous disease that deserves all the care in context Recife, during the 1930s. From

    the discursive production of the period, drafted by psychiatrists themselves both for scientific

    purposes as instructive, alcoholism was being presented as an issue intimately related to the

    mischief, madness, crime, disorder, factor of social and moral weakness. Based on the belief

    that speaking in the name of truth and science, performing their roles as experts,

    scientists/psychiatrists have named themselves the only ones with full rights to discipline,

    control, sanitize the conduct of persons in relation to the habit of alcoholic beverages

    consumption, harmonizing with Vargas state program of government that invested in a series

    of uplifting representations of idealized worker as a good citizen and head of family,

    cultivator of home and morality, or in favor of sober and productive individuals, and good

    order of society. Thus we try to describe the embodiment of anti-alcoholic campaigns, to

    address the conceptions behind the anti-alcoholic fight, representations about the alcoholics,

    knowing the difficulties encountered by psychiatrists in the pretense of carrying its abstainers

    principles in the population of Recife. The analysis of medical records of alcoholics admitted

    to Hospital de Alienados (Psychiatric Hospital) allowed to access information on the patients,

    the internment process, diagnoses, the signs and symptoms of alcoholism, therapeutical

    methods used, among other informations.

    Keywords: alcoholism, psychiatric, degeneration, social control, Hospital de Alienados

    (Psychiatric Hospital).

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Cartaz produzido para a 4 Semana Anti-Alcoolica ...........................................93

    Figura 2 Anncio da cerveja Antarctica ........................................................................104

    Figura 3 Anncio da cerveja Malzbier ..........................................................................105

    Figura 4 Anncio da cerveja Malzbier ...........................................................................105

    Figura 5 Anncio do Vinho Biogenico de Giffoni ........................................................106

    Figura 6 Anncio do Vinho Reconstituinte Granado ......................................................106

    Figura 7 Anncio do Vinho e Xarope de Dusart ..........................................................107

    Figura 8 Anncio do Vinho Reconstituinte Silva Araujo .............................................108

    Figura 9 Anncio do Vinho Reconstituinte Silva Araujo .............................................109

    Figura 10 Anncio da Cafiaspirina ................................................................................111

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 A idade dos alcoolistas .........................................................................................125

    Tabela 2 O estado civil dos alcoolistas ...............................................................................127

    Tabela 3 Procedncia dos alcoolistas ..................................................................................131

    Tabela 4 Diagnsticos .........................................................................................................137

    Tabela 5 Diagnsticos e causas de morte ............................................................................142

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    AA Alcolicos Annimos

    ABHM Archivos Brasileiros de Hygiene Mental.

    APEJE Arquivo Pblico Estadual Jordo Emereciano

    BEPCB Biblioteca Estadual Presidente Castelo Branco

    CID 10 Classificao Internacional de Doenas

    DOU Dirio Oficial da Unio

    DSM IV Manual Diagnstico e Estatstico da Associao Psiquitrica Norte-Americana.

    FUNDAJ Fundao Joaquim Nabuco

    LBHM Liga Brasileira de Hygiene Mental

    OMS Organizao Mundial de Sade

    UFPE Universidade Federal de Pernambuco

  • SUMRIO

    INTRODUO .....................................................................................................................13

    CAPTULO 1 LCOOL E PRTICAS ETLICAS .......................................................20

    1.1 Os usos do lcool................................................................................................................20

    1.2 O processo de construo da doena alcoolismo................................................................31

    CAPTULO 2 PRODUZINDO DISCURSOS E HIGIENIZANDO OS ESPAOS E OS

    COMPORTAMENTOS .........................................................................................................54

    2.1 A ameaa etlica .................................................................................................................54

    2.2 Os protetores da ptria: a psiquiatria da Liga Brasileira de Hygiene Mental .................71

    CAPITLO 3 UMA CRUZADA CONTRA O FLAGELO DA HUMANIDADE: AS

    CAMPANHAS ANTIALCOLICAS...................................................................................81

    3.1 As propostas de combate ao alcoolismo.............................................................................81

    3.2 As campanhas antialcolicas no Recife..............................................................................87

    3.3 Fronteiras no consumo de lcool: tenses entre discursos ...............................................102

    CAPTULO 4 OUVINDO VOZES: OS ALCOOLISTAS ABREM AS CORTINAS DO

    HOSPITAL PSIQUITRICO.............................................................................................116

    4.1 Cartografias dos alcoolistas..............................................................................................116

    CONSIDERAES FINAIS ..............................................................................................149

    FONTES DE PESQUISA ....................................................................................................151

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..............................................................................154

    ANEXOS................................................................................................................................160

  • 13

    INTRODUO

    A implementao da Lei 11.705/2008 - Lei Seca - que alterou o Cdigo de Trnsito

    Brasileiro, proibindo a ingesto de bebidas alcolicas por condutor de veculos automotores,

    despertou-nos a relevncia de se historiar, problematizar a questo da alcoolizao na nossa

    sociedade. Naquele ano, o discurso mdico serviu de base para a formulao dessa Lei ao

    justificar que o consumo de tais bebidas comprometia as habilidades e percepes dos

    motoristas. A associao lcool e direo foram divulgadas na mdia como um grave dano

    sociedade, uma questo de sade pblica, tendo em vista os custos financeiros e sociais

    decorrentes do aumento do nmero de acidentes, violncia e bitos, passando essa

    combinao a ser incorporada agenda de polticas pblicas brasileira. As discusses, nesse

    momento, relacionavam o consumo excessivo das bebidas alcolicas a uma srie de

    problemticas sociais: absentesmo ao trabalho, acidentes de trnsito, agresses fsicas,

    homicdios e suicdios, problemas de sade, entre outros. Questes no s especficas da

    sociedade contempornea como veremos nos captulos subsequentes, mas tambm uma

    preocupao de outros tempos.

    Dado interesse despertado pela Lei supracitada e um convite do professor da

    Universidade Federal de Pernambuco, Carlos Miranda, que na poca coordenava o trabalho

    de catalogao e preservao da documentao do Hospital de Alienados, atualmente

    denominado Hospital Ulisses Pernambucano, para conhecer a referida instituio e o seu

    acervo documental, iniciamos nossa trajetria, pois, foi folheando os pronturios que

    tomamos conhecimento que durante a anamnese havia uma insistncia dos psiquiatras em

    saber sobre o consumo de lcool pelo paciente e seus ascendentes. Concomitantemente, foram

    surgindo indagaes: por que inquirir sobre esse aspecto? Qual a relao lcool-loucura? A

    descoberta de pronturios com o diagnstico alcoolismo impulsionou ainda mais a

    curiosidade. O que fazia o alcoolista em uma instituio psiquitrica? Que tratamento recebia?

    Essas dvidas iniciais aos poucos foram sendo desvendas pelo dialogo com as fontes, as quais

    possibilitaram compreender que o alcoolismo estava diretamente correlacionado ao tema da

    loucura, no somente era considerado o elemento que a conduzia como tambm um dos mais

    temveis males sociais.

    O acervo do Hospital Ulisses Pernambucano realou a necessidade de um estudo mais

    aprofundado sobre essa temtica no Recife, considerando, especialmente, a existncia de uma

    expressiva quantidade de documentos pouqussimos explorados, como o caso dos

  • 14

    pronturios dos alcoolistas e a prpria carncia de obras historiogrficas a respeito do assunto

    em Pernambuco.

    O objetivo central que nos propomos analisar a historicidade de uma prtica, que em

    determinado contexto histrico passou a ser construda como uma patologia, procurando

    entender como o discurso mdico, mais notadamente o psiquitrico, formula um discurso

    sobre o alcoolismo e de que modo ele interferia nas aes polticas e sociais no que refere um

    comportamento, ato e/ou efeito de beber, transformado em doena, tendo como lcus

    principal a cidade do Recife, nos anos de 1930, esmiuando a histria das intervenes

    psiquitricas, da tentativa de moldar e constranger comportamentos individuais, de alterar os

    valores culturais e sociais da populao, onde o alcoolismo ou at mesmo a ingesto fortuita

    de lcool apresentava-se como grande malfeitor que deveria ser proibido ou ter seu acesso

    dificultado.

    Ao privilegiar os discursos psiquitricos da temtica em questo, buscamos

    compreender as estratgias que lanaram os psiquiatras na construo da doena alcoolismo

    e na luta antialcolica, as teorias cientficas que embasavam seus conhecimentos, a tessitura e

    legitimidade dos seus discursos, o lugar social desses enunciadores, os receptores, o lugar do

    alcoolista: hospcio ou priso, o contexto em que emergiu a condenao moral e social do

    consumo de bebidas alcolicas. Tambm direcionamos um olhar s pessoas classificadas

    como alcoolistas internadas no Hospital de Alienados, conhecer suas histrias de vida,

    perceber como se articulavam no ambiente asilar, , sem dvida, tentar incorporar outras falas

    alm da fala legitimada do psiquiatra anlise historiogrfica.

    A escolha do recorte temporal foi pensada levando em considerao at que ponto um

    governo antiliberal, moralista, xenofbico como foi o perodo varguista atenderia os anseios

    da psiquiatria em virtude da compatibilidade de princpios.

    No que diz respeito ao material bibliogrfico utilizado para confeco deste trabalho,

    recorremos a diversas obras, fazendo o intercmbio com outras reas do saber, passamos

    pelos estudos do antroplogo Sidney Mintz (2001) dedicado histria da alimentao, cuja

    abordagem dos hbitos alimentares perpassa as necessidades orgnicas para uma

    compreenso de comportamentos apreendidos socialmente, trazendo em si significaes

    identitrias ou diferenciaes sociais e culturais. Dessa forma, aquilo que se come (ou se

    bebe), com quem, em que lugar, em que quantidade, tudo isto representa uma srie de atos de

    cultura que jamais so neutros ou desprovidos de significados.

    Enveredamos pela Sociologia de Erving Goffman, na sua obra Estigma: notas sobre

    a manipulao da identidade deteriorada (1988), para entender o processo de

  • 15

    estigmatizao como uma criao social, que isola certos atributos, que os classifica como

    indesejveis e desvaloriza as pessoas que os possuem. O estigma tende a se tornar

    predominantemente importante sobrepujando outras caractersticas da identidade da pessoa,

    que assim, fica deteriorada. Ao situar o alcoolismo dentro de um quadro assustador de

    degeneraes de todas as ordens, os discursos mdicos sobre o alcoolismo foram responsveis

    pela construo de um estigma muito forte, gerador da situao de excluso social e auto-

    excluso do alcoolista, ao consider-lo um doente, um vagabundo, um criminoso em potencial

    que deveria ser policiado, adestrado ou isolado do convvio social.

    Em outra obra Manicmios, prises e conventos (2005), o mesmo autor dar uma

    contribuio fundamental para a consecuo desta dissertao ao apresentar uma anlise do

    mundo das instituies totais, isto , das instituies fechadas em regime de confinamento

    (manicmios, prises e conventos); ao promover uma crtica ao mundo do internado; a equipe

    dirigente; aos objetivos institucionais, inter-relacionando-os e, referindo as diversas fases de

    vida do sujeito institucionalizado, possibilitando-nos compreender no desenvolvimento do

    quarto captulo a relao que se estabelece entre as instituies psiquitricas e os indivduos

    enclausurados, no caso, os alcoolistas, indicando olhares sobre a vida desses pacientes, as

    estratgias de dominao, a produo de subjetividade, os focos de resistncia, as tticas de

    subverso do institudo, entre outros aspectos.

    Como referencial historiogrfico, utilizamos as contribuies de Fernand Braudel, em

    Civilizao material e capitalismo: As estruturas do cotidiano (1970) o historiador

    trabalhou o conceito de cultura material abrangendo os aspectos do cotidiano entre os sculos

    XV-XVIII, entre os quais, dedicou uma anlise das bebidas alcolicas durante a expanso

    europeia na poca moderna, que foi essencial para compreender as prticas de consumo

    alcolico e o simbolismo que as circundam, pois, como afirma o autor, o consumo de bebidas

    alcolicas no , exclusivamente, determinado pelos valores nutricionais, biolgicos, so

    objetos culturais extremamente ricos em termos simblicos, na medida em que, ao serem

    ingeridas, tornam-se uma forma de cultura material corporificada. Alm de serem, elas

    prprias, fontes de energia e de nutrientes, de valor econmico, possui uma caracterstica

    singular, a funo de excitantes e de evases.

    Outra obra fundamental para entender as dimenses assumidas pelas bebidas

    alcolicas foi a obra de Alencastro O Trato dos Viventes: formao do Brasil no Atlntico

    Sul (2000), o autor destaca a importncia das bebidas alcolicas destiladas na economia

    mercantilista que passando da produo do mbito domstico fabricao em srie tornaram-

    se estimados produtos de exportao, realando o papel fundamental da produo de cachaa

  • 16

    na manuteno do sistema colonial, especialmente a brasileira na conquista sobre o mercado

    africano.

    Uma abordagem mais especfica sobre o alcoolismo e de suma importncia ao trabalho

    foi a dissertao de Mestrado do historiador Fernando Dumas dos Santos, Alcoolismo: a

    inveno de uma doena (1995), o autor dedica seu estudo entre as dcadas de 1830 e 1920,

    traando um painel da tradio de uso teraputico do lcool nas sociedades ocidentais,

    concluindo que o alcoolismo foi um instrumento que a Medicina apropriou para intervir em

    antigos hbitos e formas culturais enraizados no modo de vida das classes populares em nome

    da produtividade capitalista, adaptando assim os indivduos aos padres sociais que

    consolidaria o modo de vida burgus.

    Vale ressaltar os trabalhos das historiadoras Magali Engel, com sua obra Os Delrios

    da Razo: Mdicos, Loucos e Hospcios (Rio de Janeiro, 1830-1930) e Maria Clementina

    Cunha, com O espelho do mundo-Juquery, a Histria de um asilo (1986) para conhecer a

    institucionalizao da psiquiatria no Brasil. Embora as autoras tenham desenvolvido seus

    trabalhos em realidades distintas, Magali Engel analisou o Hospcio de Pedro II, no Rio de

    Janeiro, e Maria Clementina, o Hospcio Juquery, em So Paulo, no final do sculo XIX at

    os anos de 1930, ambas compartilham a ideia de que a psiquiatria brasileira constituiu-se

    enquanto conjunto de saberes e de prticas para legitimar e consolidar a interveno e o

    controle do espao social.

    As fontes, por sua vez, constituem-se de jornais locais, artigos e discusses publicados

    em peridicos especializados em Medicina Mental, obras de psiquiatras e juristas, teses da

    Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, teses e dissertaes da Escola Medico-

    Cirurgica do Porto.

    Alm dessas fontes essenciais, utilizamos os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental,

    peridico responsvel pela difuso e propaganda dos preceitos eugenistas e das atividades

    profilticas da LBHM e instrumento de intercmbio cientfico tanto em mbito regional,

    nacional e mesmo internacional, cuja publicao foi iniciada em 1925. Os ABHM so

    importantes para conhecer a atuao da psiquiatria no Brasil e sua insero nas questes

    sociais, uma vez que fornecem artigos, conferncias, resenhas e anlises, relatrios, atas e

    anais de reunies, assemblias, congressos sobre temas alvos da profilaxia mental. Neles

    havia uma seo permanente intitulada: Trabalhos de anti-alcoolismo, na qual podemos

    encontrar diversos tipos de informaes relacionadas ao alcoolismo e profilaxia

    antialcolica da LBHM.

  • 17

    Um peridico importante para conhecer as estratgias e os artifcios utilizados pela

    psiquiatria pernambucana para legitimar e consolidar sua interveno e controle sobre a

    populao recifense, os discursos a respeito do alcoolismo nessa cidade, as representaes

    sobre os alcoolistas e a materializao das campanhas antialcolicas, Boletim de Higiene

    Mental, editado pela Diretoria de Higiene Mental da Assistncia a Psicopatas de Pernambuco,

    publicado em dezembro de 1933, com tiragem inicial de 2 mil exemplares, mensal, com

    distribuio gratuita junto a jornais e rdios ou remetido diretamente para residncia de

    particulares mediante uma solicitao direcionada redao do Servio de Higiene Mental.

    Essa publicao pretendia ser o elo entre as atividades do setor psiquitrico recifense e a

    populao em geral, tendo como objetivo combater as causas e os meios de propagao da

    doena mental bem como difundir as prticas e os ideais eugnicos. Esse peridico deixou

    de ser publicado em 1947.

    Os Arquivos da Assistncia a Psicopatas de Pernambuco, publicao semestral,

    iniciada em 1931, sob a orientao do diretor geral da Assistncia a Psicopatas, o professor e

    psiquiatra Ulisses Pernambucano, foram importantes para compreender as diretrizes

    desenvolvidas pelo Servio de Higiene Mental no meio social, a estrutura fsica e

    administrativa do Hospital de Alienados, os problemas enfrentados pela instituio, as

    teraputicas e o quadro de doentes existentes no hospital, os exames realizados e os perfis dos

    internados.

    Dentre as principais fontes que ditam e conduz esta dissertao, dedicamos ateno

    especial aos pronturios dos alcoolistas, localizados no Hospital Psiquitrico Ulisses

    Pernambucano, que se encarregam de mostrar diferentes aspectos de vida desses pacientes

    dentro e fora da instituio manicomial. Nessas fichas mdicas comum o emprego de trs

    palavras para definir os indivduos que consumiam excessivamente bebidas alcolicas; os

    dependentes do lcool ou que sofriam da doena chamada alcoolismo: alcolatra, alcoolista

    e etilista, j na literatura especfica sobre o tema, as duas primeiras palavras so mais

    frequentes. Os termos alcoolista e alcolatra continuam a ser usados, quase que

    indistintamente, por diferentes autores, sempre equivalendo a "dependente de lcool". No

    nosso estudo, optamos pelo emprego do termo alcoolista no lugar de alcolatra, em funo

    que o primeiro alude a ideia de dependncia do uso de lcool, ou seja, que se bebe por

    necessidade do organismo em oposio ao segundo que significa adorador do lcool.

    A anlise dessa temtica tem sido facilitada em virtude do cruzamento da Histria com

    reas de conhecimentos que se inserem no campo da Medicina e/ou Sade Pblica, evidncia

    maior deste fato a proliferao, nos ltimos anos, de estudos histricos cujos temas so

  • 18

    claramente buscados no mbito destas: epidemias, enfermidades, educao e prticas

    sanitrias, discursos mdicos e relaes de gnero, loucura, entre outros. Apoiada pelas

    propostas da Escola dos Annales e pelos estudos foucaultianos a produo historiogrfica,

    nesse circuito de anlise, tem fugido do vis apologtico que confere protagonismo e

    centralidade aos grandes mdicos e projetos, ideias e descobertas da Medicina para

    contemplar perspectivas e abordagens que reconheam que sade e enfermidade so algo

    mais que fenmenos biolgicos, so componentes que nos permitem interpelar as mltiplas

    instncias da vida social.

    Maria Clementina Cunha e Magali Engel, utilizando os documentos mdico-

    psiquitricos para delinear o trajeto da psiquiatria no Brasil, destacam a importncia dos

    pronturios como nova maneira de conhecer o paciente, as prticas de rotina das instituies

    psiquitricas, as atividades dos profissionais de sade, os diagnsticos e as teraputicas etc. A

    primeira afirma que ao dar voz aos pacientes, sujeitos tradicionalmente silenciados, os

    documentos clnicos permitem-nos apreciar as contradies e os embates que moldaram o

    saber cientfico representado pelo corpo mdico mental brasileiro, responsvel pela

    institucionalizao da psiquiatria no pas. A segunda destaca a imprescindibilidade da

    utilizao de documentos clnicos psiquitricos para revelar seus atores como personagens "de

    carne e osso, com suas angstias, suas contradies, suas ambiguidades, suas sujeies e

    rebeldias". (Engel, 2001:12).

    Os referenciais terico-metodolgicos valeram-se das contribuies de diversos

    autores, os quais mostraram a necessidade da anlise criteriosa das fontes. Desse processo,

    depende a qualidade da histria que produzimos. Nesse sentido, as principais fontes dessa

    dissertao so pensadas, no como dados verdicos da realidade, mas como construes

    discursivas crivadas de vontades e estratgias de poder que acaba por elaborar verses cuja

    marca justamente o carter interessado que permeia sua produo. Foucault proporciona-nos

    um mtodo de pesquisa que pondera a necessidade de estar atento s rupturas operadas nos

    discursos e nas prticas, inferindo-nos a questionar a produo do conhecimento, inventariar

    as condies histricas que permitiram em dada circunstncia que um problema emergisse;

    que uma verdade se colocasse; que um saber se produzisse; que uma dada experincia fosse

    organizada. De seu arcabouo metodolgico depreendemos que os objetos tratados nesse

    trabalho no so naturalmente dados, so produzidos por uma composio de foras

    consoante aos interesses dos grupos que os forjam.

    A presente dissertao, considerando-se o exposto, estrutura-se da seguinte forma: no

    primeiro captulo, reconstrumos o panorama histrico do uso de lcool em determinadas

  • 19

    culturas e sociedades, delineando os modos de produo, circulao e consumo, os

    referenciais simblicos, permissivos e restritivos que circundavam a prtica do beber, as

    implicaes econmicas, as relaes do consumo de bebidas alcolicas nas diferentes classes

    sociais mostrando suas aproximaes e tenses e as mudanas ocorridas nos hbitos etlicos a

    partir do surgimento das bebidas destiladas. Sondando ainda, o processo de formao da

    doena alcoolismo, os dispositivos empregados pelos psiquiatras para intervirem sobre os

    hbitos das populaes e as medidas profilticas adotadas em alguns pases europeus e norte-

    americanos que constituram o paradigma das discusses antialcolicas no Brasil.

    No segundo captulo, trataremos do processo de urbanizao do pas e notadamente da

    cidade do Recife, onde os espaos e hbitos da populao tiveram que ser remodelados, a fim

    de tornar a velha cidade antiquada em uma cidade civilizada, dotada dos novos atributos que a

    modernidade passara a exigir. Problematizamos a Liga Brasileira Hygiene Mental como uma

    entidade central da psiquiatria brasileira, que ajudou na formulao de um projeto ampliado

    de interveno social baseado no princpio da preveno via eugenia e higiene mental,

    configurando suas aes na gesto da sociedade.

    No terceiro captulo, entraremos na discusso a respeito das campanhas antialcolicas,

    buscando destacar as medidas visionadas pelos psiquiatras no combate ao alcoolismo e

    materializao das campanhas antialcolicas. Nosso olhar se deteve tambm na efetividade

    dos discursos antialcolicos no Recife, considerando que expurgar o consumo de lcool no

    foi uma tarefa fcil, pois nas manchetes dos Boletins de Higiene Mental os editores

    questionavam quanto permanncia do costume de ingerir bebidas alcolicas apesar das

    campanhas de preveno, assim, trazemos os paradoxos que se impem a produo discursiva

    institucionalizada pelos psiquiatras outra que conferia qualidades s bebidas alcolicas

    manifesta na literatura de cordel e anncios de revigorantes base de lcool presentes nos

    jornais locais que, de modo geral, corroborava para a no efetividade das campanhas

    antialcolicas como desejavam seus patrocinadores.

    Por fim, no quarto captulo, buscamos demonstrar que esta dissertao no um

    estudo centrado apenas na produo da doena alcoolismo e das medidas profilticas

    propostas pelos psiquiatras, mas , tambm, um esforo de trazer tona a histria de vida dos

    alcoolistas internados no Hospital de Alienados.

  • 20

    CAPTULO 1 LCOOL E PRTICAS ETLICAS

    1.1 Os usos do lcool.

    Em que reino, em que sculo, sob que silenciosa

    Conjuno dos astros, em que dia secreto

    Que o mrmore no salvou, surgiu a valorosa

    E singular idia de inventar a alegria?

    Com outonos de ouro a inventaram.

    O vinho flui rubro ao longo das geraes

    Como o rio do tempo e no rduo caminho

    Nos invada sua msica, seu fogo e seus lees.

    Na noite do jbilo ou na jornada adversa

    Exalta a alegria ou mitiga o espanto

    E a exaltao nova que este dia lhe canto

    Outrora a cantaram o rabe e o persa.

    Vinho, ensina-me a arte de ver minha prpria histria

    Como se esta j fora cinza na memria.

    Soneto do Vinho, de Jorge Luis Borges.

    Esse soneto corrobora para asseverar que o uso de lcool nas sociedades e culturas

    ocorre desde os tempos mais remotos, bem verdade que no se pode precisar sua origem

    exata, mas sua presena constante nos versos, msicas, poesias, pinturas, mitologias, lendas e

    obras literrias demonstram o quanto essa prtica esteve intimamente associada ao ser

    humano em suas mltiplas dimenses, ora como veculo de remdios, de perfumes, de

    expresso artstica e intelectual ora como lquido extasiante capaz de provocar reaes de

    prazer, de olvidao das tenses, de distino social, e principalmente, sendo o componente

    essencial de bebidas consumidas como parte da alimentao, das cerimnias religiosas, de

    divertimento e confraternizao de diferentes povos ao longo da Histria da humanidade.

    Desde a poca antiga contempornea, h relatos de povos que conheceram tcnicas

    de produo e uso de algum tipo de bebida alcolica. Os egpcios, por exemplo, deixaram

    registrados nos papiros as etapas de fabricao, produo e comercializao da cerveja e

    vinho. A primeira fez-se produto fundamental na vida social, religiosa, econmica e nos

    sistemas medicais das antigas civilizaes do Egito e da Mesopotmia, que a consideravam

    um presente dos deuses, por sua capacidade mgica de provocar um estado de conscincia

    alterada. No Cdigo de Hamurbi, a civilizao babilnica teve a preocupao de

  • 21

    regulamentar as tabernas, a comercializao de bebidas alcolicas e impor medida de coao

    aos excessos.1

    O lcool ocupou uma posio de destaque na cultura ocidental, na Grcia e em Roma,

    o consumo de vinho j era bem difundido e elemento importante nas atividades

    socioeconmicas e religiosas, sendo ainda reconhecido e referendado por suas propriedades

    curativas, usado como energtico, cicatrizante, purgativo, antitrmico, calmante, antissptico,

    remdio contra doenas crnicas e agudas. O mdico grego Hipcrates foi o primeiro a

    reconhecer as propriedades diurticas do vinho branco, assegurava que no s fortificava, mas

    alimentava o organismo, indicando que, desde que fosse administrado a propsito e na medida

    certa, poderia ser utilizado tanto na sade como na doena, advertindo o uso inadequado da

    substncia como fator predisponente a vrias enfermidades: epilepsias, convulses, febre etc.2

    A tradio de uso do lcool se estendeu a Idade Mdia. Durante esse perodo, em

    conformidade com medicina hipocrtica, bebia-se gua com o hbito sistemtico de mistur-

    la com vinho, mais do que um sinal de bom gosto, uma medida de preveno sanitria 3

    dado os riscos por quem se aventurasse a consumir a gua disponvel antes do advento dos

    sistemas de tratamento. Sobre este ponto poderamos acrescentar ainda que na era crist o

    vinho difundiu-se junto com a converso religiosa e, com as navegaes modernas a religio

    que fazia do vinho o sangue do seu deus levou o hbito para as Amricas e para todo o

    mundo.4

    Como se pode perceber, tanto o uso de lcool como a preocupao com embriaguez

    so aspectos que acompanham a humanidade desde longas datas. Basta lembrarmos uma

    passagem do Antigo Testamento da Bblia (Gnesis 9.21). No, aps o Dilvio, plantou uma

    videira e produziu vinho. Fez uso da bebida a ponto de embriagar-se, e acabou sem decoro em

    sua tenda ao pr a mostra as suas vergonhas".

    A distino entre beber moderadamente e a embriaguez reprovvel foi marcada por

    atitudes morais desde a Antiguidade. Os excessos eram censurados por expor as fraquezas

    humanas como as atitudes desmedidas, a falta de lucidez e o autocontrole, mas se confiava

    que o consumo moderado conduzia a serenidade, longevidade e sabedoria.

    1 FLANDRlN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs.) Histria da alimentao. So Paulo: Eslao

    Liberdade, 1998. 2 Idem. Ibidem, p.144.

    3 Idem. Ibidem, p.287.

    4 CARNEIRO, Henrique. Bebidas alcolicas e outras drogas na poca moderna. Economia e embriaguez do

    sculo XVI ao XVIII. Disponvel em: < http://www.historiadoreletronico.com.br/faces/03120801.htm> Acesso

    em: 23/10/2009.

    http://www.historiadoreletronico.com.br/faces/03120801.htm

  • 22

    Jean Charles Sournia5 analisando a questo do consumo de bebidas alcolicas sob o

    ponto de vista das religies, entre elas o judasmo, o cristianismo e o islamismo concluiu que

    elas apresentam uma posio contraditria, ora enaltecendo as virtudes das bebidas,

    especialmente o vinho, ora condenando o abuso das mesmas. O autor tambm associa a

    expanso do cristianismo com a do vinho na Europa Ocidental, observando o envolvimento

    da Igreja Catlica no consumo da bebida.

    Segundo evidncias antropolgicas e documentos histricos, os amerndios e africanos

    faziam uso de bebidas alcolicas antes da chegada dos colonizadores europeus. Essas bebidas

    consistiam em fermentados, de produo domstica e de contedo alcolico em quantidade

    reduzida. Trs principais bebidas eram consumidas na frica: o vinho de palma, da palmeira

    do dend; uma feita da infuso, maceramento de sementes, sorgo e milhetos e os vinhos do

    mel de abelha. Os indgenas, por sua vez, produziam uma diversidade de fermentados obtidos

    de frutas, sementes, razes, seiva de palmeiras e mel de abelha. O pulque no Mxico, o

    guarapo e o sinisco na Amrica Central, a chicha no Peru, a aloja na Argentina e o cauim no

    Brasil, constituem exemplos dos fermentados para as celebraes, no havia entre esses povos

    o consumo cotidiano que dirimiam os ritmos da vida normal, a bebida era sempre funo

    grupal, solenidade especial, como em comemorao colheita e festas sagradas, portanto,

    dentro de uma pauta cultural bem definida.6

    Apesar das especificidades de cada poca e contexto, o que se percebe que a ingesto

    de bebidas alcolicas constitui-se prtica convencionada por uma srie de regras de consumo

    e comportamento etlico prprias a cada cultura, as quais so aprendidas e reproduzidas, e

    que, geralmente, funcionam como estratgias de controle social do uso do lcool, dada a

    imposio de um padro do beber e as condies e os contextos nos quais a bebida

    preconizada. Alm disso, as bebidas servem de instrumento para a construo de identidades

    ou diferenas. Assim sendo, seu consumo7agrega valores justificados culturalmente por um

    conjunto de qualidades conferidas s bebidas alcolicas, parafraseando o antroplogo Sidney

    Mintz (2001) o que se bebe, onde, como e em que circunstncia e em que quantidade,

    representa uma srie de atos de cultura que materializam a nossa identidade sociocultural.

    O historiador Fernand Braudel (1970) analisando aspectos do cotidiano, entre os

    sculos XV-XVIII, destacou as distines nos regimes etlicos da Europa, posta em evidncia

    5 SOURNIA, Jean Charles. Histoire de LAlcoolisme. Paris: Famarion, 1986.

    6 CASCUDO, Luis da Cmara. Histria da Alimentao no Brasil. 3 ed.- So Paulo: Global, 2004, p.129-141;

    p. 769-782. 7 Certeau define consumo como uma produo de significados variados em torno dos referentes da vida

    cotidiana: a rua, a casa, o bairro, os objetos, os alimentos, dentre outros. In: CERTEAU, Michel de. A Inveno

    do Cotidiano: 1 artes de fazer. Petrpolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

  • 23

    desde a antiguidade clssica, como referencial simblico capaz de corporificar identidades

    e/ou diferenas culturais. Embora a circulao das bebidas alcolicas tenha se processado em

    toda a Europa, houve reas delimitadas geograficamente de consumao, sendo predominante

    nas regies Norte e Leste, as cervejas e no Sul e Oeste, os vinhos. A saber, na regio Sul, o

    vinho estava embevecido de indicativos culturais que definiam um modelo de vida

    civilizado atravs dos quais se reivindicava uma supremacia em relao ao Norte, onde a

    cerveja que se tornou no Ocidente a bebida dos pobres e dos Brbaros8 era predominante e

    smbolo da cultura germnica, os pagos usavam-na em seus rituais para indicar sua oposio

    sacralidade crist do vinho.

    Influam de maneira decisiva nessa diferenciao, os cdigos de comportamento social

    do beber: as diferenas em relao ao que se bebia, e como se bebia constituem o mago

    dessa questo. Algumas normas de consumo eram essenciais, como diluir o vinho em gua e

    ter sobriedade, os gregos antigos no consumiam regularmente vinho puro, a nica ocasio

    em que se permitia esse uso era durante o desjejum quando embebia o po nessa bebida9 bem

    como compreendiam a satisfao das necessidades e prazeres do corpo pela comida, bebida e

    o sexo como indcios de sabedoria aos que conseguiam fazer com temperana.10

    O fato de no

    estar em conformidade com a regulamentao cultural e social que regulava a consumao,

    possibilitou aos bebedores do Sul embasar a sua suposta superioridade.

    Ao deslocarmos da Europa para os regimes etlicos do Brasil colonial, respeitando as

    diferenas culturais entre o Brasil e a Europa, podemos atestar que essas contradies, mais

    culturais do que propriamente geogrficas, serviram para demarcar as relaes sociais e

    fundamentar preconceitos. No h dvida de que, numa sociedade rigidamente hierarquizada

    como a que existia na Amrica portuguesa, os alimentos ou as bebidas assumiam significados

    diferentes conforme as condies de quem os consumiam.

    A cachaa, por exemplo, fazia parte da composio bsica da alimentao das

    camadas menos favorecidas, independente do gnero e da condio legal dos indivduos

    (livres ou escravos). Embora tenha sido apreciada pelos efeitos prprios das bebidas

    espirituosas, no se deve desprezar o nvel calrico existente nas bebidas alcolicas e a

    importncia que esse aspecto apresentava em dietas pobres e insatisfatrias como a dos

    escravos. Os mais humildes usavam-na junto ao alimento dirio, quase sempre como um

    complemento alimentar, enquanto os mais abastados consumiam-na como aperitivo nos

    8 BRAUDEL, Fernand. Civilizao Material e Capitalismo, sculos XV- XVIII. Volume. I: As estruturas do

    cotidiano. Rio de Janeiro: Edies Cosmos, 1970, p.191. 9 FLANDRlN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs). Op. cit., p. 155.

    10 FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade: o uso dos prazeres. 10 ed.- So Paulo: Graal. Vol.2. 2003.

  • 24

    momentos de relaxamento e convvio social, ainda que fizesse ou preferissem os vinhos

    portugueses.11

    Alm de participar dos rituais indgenas e africanos, meizinhas, a cachaa era usada

    tambm como oferenda e gentileza, como estimulante para manuteno dos nveis de

    produtividade dos trabalhadores e como remdio, utilizada com razes medicinais dava

    origem as garrafadas que serviam para debelar diversas enfermidades das pessoas da zona

    rural, alm disso, foi representada como bebida de macho, de heris. Estava presente nas

    refeies domsticas, na culinria nordestina, acompanhou quase que obrigatoriamente os

    pratos considerados pesados como a buchada, a rabada, a mo-de-vaca, o cozido e outros.12

    Apesar de ser apreciada por pessoas de diferentes segmentos sociais, geralmente

    esteve associada s camadas mais humildes da populao, chegando o seu consumo adquirir

    certo preconceito (bebida de pobre, de negro, sendo inclusive menos valorizada em relao a

    outros tipos de bebidas), o que segundo Alencastro (2000) est correlacionado ao seu papel de

    mercadoria-escambo de escravos africanos e pela associao que se estabeleceu entre a

    cachaa e So Benedito, o santo negro, essa representao racial do santo se agregou ao uso

    da bebida que at o incio do sculo XX foi considerada no Brasil como uma bebida quase

    exclusivamente de negros.13

    O processo de fabricao das bebidas alcolicas fermentadas, predominantemente na

    forma de vinhos e alguns tipos de cerveja, em virtude da produo artesanal, da conservao

    que requeria consumao breve14

    , dos obstculos da comercializao pelo transporte, da

    restrio de disponibilidade do lcool e das oportunidades para o abuso da substncia

    contribuiu para que no houvesse um consumo generalizado entre as pessoas, estando o uso

    do lcool como que ritual ligado sempre s festas e a magia,15

    o advento da destilao na

    Europa, no sculo XIV, pelos alquimistas europeus, provocou uma revoluo, pois no

    somente surgiram bebidas de elevado teor alcolico, cerca de 40 a 50%, aos 4 a 12% dos

    fermentados16

    como tambm, em contraste a situao anterior, seu consumo no possua as

    11

    VENNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. lcool e drogas na histria do Brasil. So Paulo:

    Alameda; Belo Horizonte: Editora PUCMinas, 2005. 12

    SOUTO, Maior. Dicionrio folclrico da cachaa. 3 ed. - Recife: FUNDAJ. Editora Massangana, 1985. 13

    ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op.cit., p.314. 14

    De acordo com Braudel, no havia um mtodo de conservao do vinho, sendo o engarrafamento e o uso

    regular de rolhas de cortias ainda desconhecidos no sculo XVII. (BRAUDEL, 1970, p. 189). 15

    SANTOS, Fernando Dumas dos. Alcoolismo: a inveno de uma doena. Dissertao de Mestrado.

    Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

    Campinas, So Paulo, 1995, p. 3, 16

    MASUR, Jandira. O que alcoolismo. So Paulo: Brasiliense, 1991.

  • 25

    formas coletivas ritualizadas de controle de usos abusivos e de investimento de significados

    culturais na experincia inebriante.17

    A questo da descoberta do lcool destilado constitui um ponto controverso entre

    estudiosos dessa temtica, comumente atribui-se a Arnaud de Villeneuve (1250-1313),

    mdico valenciano, a descoberta do lcool nos lquidos fermentados, mas presume que os

    chineses prepararam essa substncia h muito tempo. Alm disso, diz-se que Albucassis,

    mdico rabe, no sculo XI, foi o primeiro que falou da destilao de vinho, enquanto que

    outros asseveram que a honra da descoberta pertence ao alquimista catalo, Ramon Llull

    (1232 - 1316).

    Para Braudel essas dedues so fantasiosas, pois, segundo ele, o lcool destilado foi

    descoberto por volta do ano 1100, na Itlia meridional, pela Escola de Medicina de Salerno

    que foi o mais importante centro qumico da poca.18

    No entanto, o autor reconhece que

    Arnaud de Villeneuve generalizou as aplicaes desse agente atravs de seu trabalho A

    conservao da juventude, onde propagou que aguardente... realiza este milagre, dissipa os

    humores suprfluos, reanima o corao, cura a clica, a hidropisia, a paralisia, o paludismo,

    calma as dores de dentes, preserva das pestes, ilumina o esprito, conserva a mocidade e

    retarda a velhice.19

    Sendo ento, uma espcie de elixir para a conservao ou recuperao da

    sade.

    As bebidas destiladas, tambm chamadas de aguardentes acquavites ou eaux-de-vie

    foram reconhecidas pelas suas virtudes mgicas, ou seja, pela capacidade de dissiparem mais

    rapidamente as preocupaes; de produzirem alvio, mais eficiente, s dores; de prolongarem

    a euforia. At o sculo XV, eram preparadas em pequenas quantidades pelos boticrios e

    mdicos, sendo comumente utilizadas para conservar e obter essncias de ervas e frutos,

    servindo ainda de matria prima para suas poes teraputicas. Raras e caras no estavam ao

    alcance de todos os bolsos. Desde que tomadas com moderao ou diludas em gua, eram

    recomendadas como tnico para combater doenas e infeces, como analgsico para

    aliviarem as dores de clica e dentes, como cicatrizantes das feridas e lceras, e como

    estimulantes para melhorar o rendimento no trabalho, para facilitar a digesto e para resistir

    ao frio.

    Nos ltimos anos desse sculo e os primeiros do XVI, esse panorama alterou-se

    significativamente, ocorrendo uma mudana na manipulao das aguardentes, que escaparam

    17

    CARNEIRO, Henrique. Pequena Enciclopdia da Historia das Drogas e Bebidas: histria e curiosidades

    sobre as mais variadas drogas e bebidas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p.52. 18

    BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 196. 19

    Idem. Ibidem.

  • 26

    lentamente da esfera daqueles manipuladores direo de corporaes de comerciantes. O

    incio da industrializao dos destilados ampliou a produo, provocou reduo dos preos ao

    consumidor e consequente aumento do consumo por parte de um maior nmero de pessoas.20

    Os destilados foram introduzidos na Amrica durante o sculo XVI e XVII, foi

    quando, tambm, os europeus trouxeram o alambique para esse continente. Sobre esse aspecto

    Braudel acrescenta que:

    O alambique deu Europa uma superioridade sobre todos estes povos, a

    possibilidade de fabricar um licor superalcolico, escolha: rum, usque,

    Kornbrand, vodca, calvados, bagaceira, aguardente, gim: que que se deseja tirar do

    tubo refrigerado do alambique? [...] inegvel que a aguardente, o rum e a agua

    ardiente (o lcool da cana) tenham sido presentes envenenados da Europa para as

    civilizaes da Amrica. [...] Os povos indgenas sofreram enormemente com este

    alcoolismo que se lhes oferecia.21

    De fato, os destilados contriburam para o declnio no consumo das bebidas

    fermentadas locais no apenas dos amerndios, mas tambm dos africanos, a grande oferta e o

    maior poder de inebriedade vo concorrer para sua preferncia, o que causou um impacto

    drstico no regime alcolico desses povos na medida em que destituiu os referenciais

    simblicos e interditos que circundavam o consumo das bebidas alcolicas, dando lugar a

    episdios rotineiros de intoxicao alcolica.

    Alm disso, os destilados desempenharam um papel importante no processo de

    dominao colonial, os europeus utilizaram-nos como mtodos para que os nativos se

    sujeitassem a sua dependncia,22

    quer na frica, na Amaznia, no Estado do Brasil a cachaa

    se afirmou como um produto essencial no contato inicial do colonizador e de seus agentes

    com os nativos.23

    Em 1786, Bernardo de Galvz, vice-rei do Mxico, ficara deslumbrado

    com os efeitos do lcool destilado sobre os indgenas, recomendando que o levasse queles

    que ainda no o conhecia, pois no existia mtodo mais bem sucedido que a consecuo de

    uma nova necessidade que os obrigue estreitamente a reconhecer a sua dependncia forada

    em relao a ns.24

    Os depoimentos de viajantes, cronistas e jesutas europeus, que estiveram no Brasil,

    durante o perodo colonial, do demonstrao, como fez o jesuta Jos de Anchieta, que

    20

    Idem. Ibidem. 21

    Idem. Ibidem, p. 220-221. 22

    FILHO, Miguel Costa. A cana de- acar em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Instituto do Acar e do lcool.

    Rio de Janeiro, 1963. 23

    ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p.317. 24

    BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p.202.

  • 27

    aguardente da terra era a peste das aldeias, embriagando os ndios e levando-os aos

    tumultos, insubordinao e homicdios.25

    Num artigo, da Revista do Instituto Arqueolgico Histrico e Geogrfico

    Pernambucano, intitulado: O alcoolismo na Histria de Pernambuco Antigo, o Cnego

    Carmo Barata reafirma que os maus exemplos dos colonizadores no pouparam os ndios e

    africanos do vcio da bebedeira.26

    Esse alarde dos religiosos a respeito dos malefcios do

    lcool na convivncia social revela seu carter contraditrio ao observarmos que a montagem

    de destilarias de aguardente, nos aldeamentos indgenas, pelos missionrios, era fato

    corriqueiro e aceitvel. O processo de catequese nos aldeamentos indgenas valeu-se do

    progresso da indstria de derivados da cana-de-acar, dentre os quais se sobressaa

    cachaa.27

    Uma das opes possveis para entender a preocupao desses eclesisticos

    parece assentar-se nos excessos e seus efeitos, ou seja, quando o consumo da bebida escapava

    de seus controles.

    A funo econmica do lcool mostrava-se mais explcita medida que o processo de

    industrializao avanava, j dizia Immanuel Wallerstein, estudioso da formao do sistema

    mundial, referindo-se ao final do sculo XVI, que a indstria mais prspera era

    indubitavelmente a que produzia o perptuo refgio do pobre que se fazia cada vez mais

    pobre: o lcool.28

    Na segunda metade do sculo XVII, ser a indstria dos destilados, a opo segura

    recesso econmica causada pela crise agrcola, que provocou a queda dos preos do trigo e

    do centeio, sobretudo na Inglaterra, na Frana e na Alemanha na medida em que se colocara

    ao alcance das populaes pobres tanto das cidades como do campo.29

    Essa situao

    possibilitou que cada pas colocasse em circulao seus destilados tpicos: o whiskey escocs,

    o gim ingls e holands, a vodka russa, o marc francs, a bagaceira portuguesa, o absinto

    espanhol, a grappa italiana, o obranntwein alemo se fizeram artigos de primeira

    necessidades, dado que atravs dos sculos e em todos os pases, a bebida alcolica, alm do

    prazer bquico e da intoxicao, oferece a caloria mais barata que os pobres podem

    comprar.30

    25

    FILHO, Miguel Costa. Op. cit., p.360. 26

    BARATA, Cnego Carmo. O alcoolismo na histria de Pernambuco antigo. Revista do Instituto

    Arqueolgico Histrico e geogrfico Pernambucano. Recife, janeiro de 1933 a dezembro de 1935. Vol.XXXIII,

    n. 155-158, p. 193-199. 27

    AMOROSO, Marta. Crnios e cachaa: colees amerndias e exposies no sculo XIX. Revista de

    Histria. N. 154. Departamento de Antropologia-FFLCH/USP, 2006, p.126. 28

    CARNEIRO, Henrique. Op. cit., p. 4. 29

    ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., 2002. 30

    Idem. Ibidem, p.308.

  • 28

    At mesmo as Amricas passaram a produzir seus destilados prprios: caso do pisco

    (aguardente de uva) do Peru, do chinquirito (aguardente de cana) do Mxico, do rum das

    Antilhas e da cachaa do Brasil, esses dois ltimos caracterizam as condies materiais e

    espirituais da formao do moderno sistema mercantil31

    na medida em que se fizeram os

    circuitos de trocas do antigo sistema colonial, tanto no Brasil, como no Caribe e nos Estados

    Unidos, esses produtos foram chaves na integrao do sistema das plantations de cana-de-

    acar, do trfico de escravos.32

    Conforme Henrique Carneiro (2009), o lcool alm da sua importncia como gnero

    bsico no estabelecimento do sistema moderno do comrcio mundial, desempenhou um papel

    decisivo na organizao de um sistema tributrio, fornecendo aos Estados modernos uma das

    suas maiores rendas, as quais tornaram-se crescentes na medida em que os estados modernos

    constituam seu sistema fiscal centralizado.33

    Entretanto, as pretenses de exclusividades

    encontraram os obstculos dos contrabandos, os brasileiros, por exemplo, fizeram forte

    concorrncia aguardente e ao vinho portugus na frica e na prpria colnia. O Reino de

    Portugal imps medidas draconianas fabricao da aguardente de cana de acar, preferida

    em relao s bebidas portuguesas por ser bem mais barata, exigindo a derrubada das

    engenhocas, as cassaes das licenas e a aplicao de multas.

    Alm dos prejuzos que causava a renda real dos dzimos, julgava-se a nossa cachaa

    responsvel pela desordem e rebeldia dos escravos. A associao do consumo de aguardente

    de cana, como causa da rebeldia por parte dos escravos, foi um assunto bastante discutido na

    vigncia do sistema escravista. No se pode negar que ela esteve relacionada a contextos de

    resistncias, contudo no podemos credenciar que tenha sido a causa desencadeadora das

    mesmas. A embriaguez dos escravos acompanhadas muitas vezes das brigas, das cantorias, da

    prostituio era uma das principais queixas da populao s autoridades policiais, sendo

    compreendida como elemento propiciador das desordens, estando o escravo e o taberneiro

    sujeitos a priso, alm de multas aplicadas aos proprietrios das tabernas, exigia-se o

    fechamento desses estabelecimentos mais cedo, assim que a noite ia chegando.34

    De acordo com a historiadora Leila Mezan Alengranti (2009), em artigo denominado

    Aguardente de cana e outras aguardentes: por uma histria da produo e do consumo de

    licores na Amrica portuguesa, a crena na tendncia embriaguez e ao vcio da bebida, por

    parte dos escravos, notria na documentao da polcia do Rio de Janeiro no incio do

    31

    CARNEIRO, Henrique. Op. cit., p.2, 2009. 32

    Idem. Ibidem. 33

    Idem. Ibidem, p.5. 34

    ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p.116; FILHO, Miguel Costa. Op. cit., p.146.

  • 29

    sculo XIX, sendo o escravo preso por estar provocando desordens, bebendo. Para a autora, a

    bebida, ou a embriaguez dos afro-descendentes, parece ser, nesses casos, mais uma das

    responsveis pelas prises e ameaas que a comunidade de origem africana despertava entre a

    populao branca.35

    As restries impostas produo, ao consumo e venda da aguardente brasileira no

    foram aceitas de forma passiva, tendo, inclusive, provocado a Revolta da Cachaa, na

    capitania do Rio de Janeiro em 1660,36

    at porque sob os efeitos da crise geral do sculo XVII

    sobre os produtos brasileiros (os preos do pau-brasil, do tabaco e acar despencaram) nos

    mercados europeus e a concorrncia das Antilhas (para o acar), a cachaa brasileira tornou-

    se importante gerador de riquezas na medida em que conquistando as feiras africanas

    proporciona lucros aos senhores de engenhos, aumenta a oferta de escravo e assegura a

    preeminncia brasileira sobre o trato negreiro na frica Central.37

    Segundo Alencastro (2000), a intoxicao e morte dos soldados reinis em Angola, em

    1679, depois de terem bebido a aguardente do Brasil, resultou na proviso rgia proibindo por

    10 anos sua importao. Essa medida no se fez em favor da sade dos soldados portugueses

    ou mesmo dos africanos, o que estava em jogo era o dano que a cachaa causava na

    contabilidade dos revendedores de aguardente europia.38

    Resolvida essa contenda em 1695,

    passou a cachaa brasileira a ser dominante no mercado africano, entre os anos de 1699 -

    1703, ela representava 78,4% do total das bebidas alcolicas legalmente importadas em

    Luanda.39

    Em desfavor da cachaa nacional, instituiu-se no s o argumento econmico, poltico,

    social, como tambm, o mdico. O Errio Mineral, um dos primeiros tratados de Medicina

    escrito em portugus no Brasil, de autoria de Lus Gomes Ferreira, mdico europeu que

    residiu em Minas, de 1708 a 1730, expunha os malefcios resultante do uso e abuso dessa

    bebida, responsabilizada como causa da morte de inmeros escravos em decorrncia de

    doenas do bao, do mesentrio e do fgado. Aos brancos que apreciavam a cachaa

    35

    ALENGRANTI, Leila Mezan. Aguardente de cana e outras aguardentes: por uma histria da produo e do

    consumo de licores na Amrica portuguesa. In: VENANCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique (Orgs).

    lcool e Drogas na histria do Brasil. So Paulo: Alameda, Belo Horizonte: Editora PUCMinas, p. 87, 2005. 36

    CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Entre a sombra e o sol - a revolta da cachaa, a Freguesia de So

    Gonalo de Amarante e a crise poltica fluminense (Rio de Janeiro, 1640-1667). Dissertao de Mestrado,

    Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, 2003. 37

    ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p.310. 38

    Idem. Ibidem, p.318. 39

    Idem. Ibidem, p.318-322.

  • 30

    preconizava-se que morriam hidrpicos. Em contrapartida, conjecturava os benefcios da

    aguardente portuguesa como boa para a sade, em certos casos, circunstancias e ocasies.40

    Em virtude de um processo bem simples de fabricao da aguardente de cana de

    acar e da difuso da lavoura aucareira (o gosto pela cachaa foi mais difundido em reas

    produtoras de cana, pois teria sido resultado da produo do melao, uma das etapas da

    fabricao do acar), houve uma tendncia da expanso da produo do produto, quer seja

    para consumo domstico, quer para comrcio local ou externo. Essa crescente produo da

    bebida demonstra que as providncias tomadas pelas autoridades rgias locais no surtiram os

    efeitos desejados, afinal, um dos produtos mais importados para a colnia foram os

    alambiques de cobre vindo da Europa.41

    No buscamos aqui, necessariamente, enveredar por uma histria econmica da

    produo das bebidas alcolicas. Ao contrrio, decidindo por essa trajetria, a pretenso foi

    perceber os papis que desempenharam ao longo dos tempos, seus valores simblicos, as

    percepes relacionadas ao seu uso, ou seja, o desejo foi realizar um histrico do consumo das

    bebidas alcolicas, e assim apreender como em determinado contexto histrico, essa prtica

    passou a ser vista sob um novo olhar que a revestiu de um carter patolgico, responsvel

    pelo alcoolismo.

    40

    FILHO, Miguel Costa. Op. cit., p. 121. 41

    Idem. Ibidem.

  • 31

    1.2 O processo de construo da doena alcoolismo

    A partir da Revoluo Industrial, verificam-se alguns fatores que contriburam para

    mudar o carter do uso de lcool: modernizao das tcnicas de produo com predominncia

    da forma industrial sobre a artesanal, modificao do tipo de bebida fabricada em decorrncia

    de tecnologia para produzir destilados com teor alcolico maior, aumento da produo,

    reduo dos preos, maior acessibilidade ao produto. Deve-se considerar, ainda, o fato de que,

    a maior parte da populao, comeou a viver em grandes concentraes urbanas, o que mudou

    o perfil das relaes sociais. O consumo de bebidas alcolicas nessa conjuntura passou a ser

    um tipo de subterfgio s transformaes experimentadas pelas pessoas no espao urbano,

    uma espcie de lubrificante social. Essas condies favoreceram o uso indiscriminado e

    generalizado das bebidas alcolicas.

    De acordo com Thompson (1987), entre 1820 e 1840, houve na Inglaterra, um

    acentuado aumento do consumo de gim e de usque, enquanto o consumo de cerveja, entre

    1800 e 1830, decaiu devido a um imposto sobre o malte altamente impopular, o que levou

    criao de inmeras cervejarias clandestinas, at o imposto ser revogado em 1830, gerando o

    surgimento, em cinco anos, de 35 mil cervejarias.42

    O uso abusivo, particularmente das bebidas destiladas nas grandes cidades europias e

    norte-americanas deflagrou um debate intenso, envolvendo diversos atores sociais, entre os

    quais escritores, religiosos, mdicos, para a definio de formas de controle sobre o uso de

    lcool e, especialmente, sobre os bebedores. A resposta da Medicina deu-se no campo da

    patologizao desse hbito, os mdicos que trabalhavam nos hospitais psiquitricos foram

    rpidos em abraar a causa, demonstrando a partir de suas observaes clnicas que grande

    nmero de pessoas que ali se encontravam hospitalizadas eram vtimas do abuso de bebidas

    alcolicas.

    O psiquiatra Benjamin Rush, j no final do sculo XVIII, foi um dos mentores do

    comeo da resposta da Medicina s inquietaes da sociedade burguesa norte-americana ao

    considerar o uso de bebidas alcolicas e, sobretudo, o beber excessivo como uma doena da

    vontade, uma espcie de doena mental capaz de conduzir o indivduo que se expunha ao

    consumo de bebidas alcolicas a um beber contnuo e, consequentemente, a perda de

    controle sobre o consumo de lcool.

    42

    THOMPSON, Edward. P. A formao da classe operria inglesa. Rio de janeiro: Paz e Terra. Volume II,

    1987, p. 183.

  • 32

    Na Europa, a primeira referncia do consumo de lcool enquanto doena surge na

    Inglaterra na obra do mdico ingls Thomas Troter, intitulada: Essay Medical Philosophical

    and Chemical on Drukenness de 1804, que indicava o hbito da embriaguez como uma

    doena da mente. Definies similares surgiram em outras regies. Na Rssia, em 1819,

    Carl Von Bruhl-Cramer realizou um estudo com bebedores e concluiu que a embriaguez

    resultava de uma doena do sistema nervoso que produzia um desejo irreprimvel pelo

    consumo de lcool, a qual denominou de dipsomania.

    Em 1838, na Frana, o alienista Esquirol criou o conceito de monomania instintiva,

    no qual incluiu o vcio alcolico salientando seu carter irresistvel, mas foi na obra do

    mdico sueco Magnus Huss publicada em 1849, Alcoholismus chronicus, eller chronisk

    alkoholsjukdom, ett bidrag till dyskrasiernas Knnedom, enligt egen och andras erfarenhet -

    Alcoolismo crnico ou a doena alcolica crnica, uma contribuio ao conhecimento das

    discrasias sob o meu ponto de vista e de outros autores -, que se utilizou, pela primeira vez,

    no somente o termo alcoolismo para designar um conjunto de intoxicaes alcolicas que se

    apresentava com sintomas fsicos e/ou mentais pelo uso excessivo e prolongado das bebidas

    alcolicas como tambm a classificao desse hbito como doena.43

    No entanto, a incluso do alcoolismo na classificao mdica no se deu de forma

    imediata, sucedeu gradativamente, pois era recorrente o uso teraputico do lcool. O prprio

    Magnus Huss considerava o alcoolismo como um problema proveniente das bebidas

    destiladas, reconhecendo as virtudes teraputicas dos fermentados, entre os quais os vinhos

    tinto, branco e doce ocuparam lugar de destaque, eram usados pelos mdicos para preparar

    diversos medicamentos, estando em conformidade com crena comum na poca que a gua e

    o lcool que eles continham, eram extremamente teis porque a gua lhes d a propriedade

    de dissolver as matrias salinas, gomosas e extrativas; o lcool dissolve aquelas oleosas e

    resinosas.44

    O surgimento da teoria do lcool-alimento, desenvolvida nos anos de 1840, pelo

    qumico alemo Liebig, comprova o quanto ainda era muito presente o uso das bebidas

    alcolicas nas prticas mdicas. Liebig acreditava nas propriedades energticas do lcool

    concebendo-o como alimento termognico, estimulante do funcionamento respiratrio e

    digestivo do organismo.

    As prprias bebidas destiladas tambm entravam na composio de medicamentos

    prescritos pelos mdicos como a Poo Todd, formulada pelo mdico ingls Bentley por volta

    43

    CARNEIRO, 2OO2; CASTRO, 1902; SANTOS, 1995; 2007. 44

    SANTOS, Fernando Dumas dos. Op. cit., p.2, 1995.

  • 33

    de 1860, que consistia numa mistura de gua e aguardente indicada para tratar depresso,

    fraqueza fsica, febres, inflamaes, pneumonia, escarlatina, erisipela, varola, sarampo etc.45

    Na Frana, o mdico Behier foi o que mais contribuiu para demonstrar os bons efeitos

    da medicao alcolica em certas afeces como no reumatismo agudo, dores e feridas

    (servindo de coagulante, cicatrizante e antisptico).46

    De acordo com o historiador Fernando

    dos Santos Dumas (1995), esse composto influenciou a produo de outras poes em vrios

    pases europeus, apoiado nas pesquisas da fisiologia, da teraputica, da experincia e das

    observaes cotidianas na clnica, propagando-se para outras regies abrangidas pela

    medicina ocidental, inclusive para o Brasil, que o utilizou em vrios hospitais para combater

    diversas enfermidades.

    Os mdicos partidrios da teraputica do lcool defendiam que ela exigia precaues

    quanta dosagem prescrita, regularidade do uso e o estado de sade do doente, pois o lcool

    poderia servir ao mesmo tempo como remdio e veneno,47

    advogando para si a exclusividade

    da prescrio, justificando que ao medico pertence em cada caso particular estabelecer bem

    as indicaes para auxiliar o doente na evoluo dos pheno-menos mrbidos.48

    Dessa forma

    vo atuando a favor de que o seu uso no pode, no deve ser discricionrio; pelo contrrio,

    deve somente ser prescrito por aquelles que conhecem as suas propriedades physiologicas e

    therapeuticas.49

    Logo, o alcoolismo interpe-se em meio a um discurso divergente que oscilava entre

    uso teraputico e a nocividade das bebidas alcolicas. Essa uma particularidade interessante

    nos discursos sobre o consumo de lcool, quer seja mdico, religioso, filosfico, poltico e

    econmico, a aparente falta de nexo ou de lgica em que situa o objeto em questo, que se

    inscreve na ambivalncia entre remdio e veneno, prazer e desprazer, moderao e excesso.

    importante observar que alcoolismo manteve estreita correlao com a concepo de

    degenerescncia que impregnava a Medicina, desde o incio do sculo XIX, a qual podia ser

    reconhecida na diversidade de trabalhos que tratavam das doenas classificadas como

    degenerativas como a prpria cirrose heptica, uma doena alcolica do fgado.

    45

    VILHENA, Mathias Antnio Moinhos de. O uso de bebidas alcolicas. These - Cadeira de Hygiene e Histria

    da Medicina da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1882. 46

    Idem. Ibidem, p.26. 47

    Ao administrar a teraputica pelo lcool, deveria associar a dosagem prescrita ao perfil do paciente, levando

    em conta o tipo de atividade que exercia, seu temperamento, seu bitipo, seus hbitos alimentares. Usada em um

    paciente com fraqueza levaria a embriaguez, poderia causar a asfixia, ansiedade etc. In: SAMPAIO, Antnio

    Augusto da Costa. Do lcool: sua aco physiologiga e seu emprego no tratamento das doenas agudas e no

    curativo das feridas. Dissertao apresentada a Escola Medico-Cirurgica do Porto, 1873, p, 47. 48

    Idem. Ibidem. 49

    VILHENA, Mathias Antnio Moinhos de. Op. cit., p.32.

  • 34

    Em O Nascimento da Clnica (2004), Foucault investiga a constituio da

    racionalidade anatomoclnica que proporcionou a construo do saber mdico nas sociedades

    modernas, saber que tem por objeto a doena ou o indivduo como corpo doente. Conforme o

    autor, no final sculo XVIII, houve uma organizao de uma linguagem racional, objetiva,

    experimental da Medicina sobre o seu objeto de ateno, criando a possibilidade de uma

    experincia clnica. Atravs da anatomia patolgica, emergente no sculo XIX, pode-se

    localizar, com o olhar criterioso da racionalizao cientfica, a enfermidade no organismo. a

    poca em que se instaura a supremacia do olhar e a articulao do visto com o dito (a

    verbalizao do patolgico se d a partir da maneira com que se olha o objeto de estudo).

    poca que marca a soberania do olhar, visto que no mesmo campo perceptivo,

    seguindo as mesmas continuidades ou as mesmas falhas, a experincia l, de uma s

    vez, as leses visveis do organismo e a coerncia das formas patolgicas; o mal se

    articula exatamente com o corpo e sua distribuio lgica se faz, desde o comeo,

    por massas anatmicas. O golpe de vista precisa apenas exercer sobre a verdade,

    que ele descobre no lugar onde ela se encontra, um poder que, de pleno direito, ele

    detm.50

    mediante esse olhar qualitativo que percorre a superfcie dos corpos que um saber

    sobre a doena e o doente vai se configurando. A medicina projeta seu olhar ao microscpio

    ou ao leito dos hospitais, a fim de encontrar uma explicao para a doena. O corpo, como

    sede das doenas e a doena como algo objetivado, reificado prenuncia as bases nas quais a

    Medicina moderna se consolidou.

    No entanto, o conhecimento mdico no se restringiu apenas o corpus de tcnicas de

    cura e do saber sobre a doena, ocupar-se- tambm, da dimenso coletiva da existncia

    humana, atravs de uma poltica de sade que visava interferir nas condies de vida, para

    modific-las e impor-lhes normas. Ao considerar que sade dos indivduos inclua

    necessariamente as condies do espao social, a Medicina incorporou para si objetos

    explicitamente sociais, como a poltica, o meio, a cultura, a cidade, os comportamentos e

    hbitos humanos.

    Dessa forma, o sculo XIX ver emergir a Medicina Social, que estabelecer prticas

    coletivas de sade, assentadas em concepes moralizadoras, que buscavam a civilizao

    dos indivduos dentro dos preceitos mdicos, isto , normalizar o homem e o meio em que

    vive (inclusive suas instituies), com o propsito de adequ-lo culturalmente s regras

    sanitaristas da medicina e a um modelo de indivduo saudvel estabelecido por essas regras.

    50

    FOUCAULT, Michel. O nascimento da clnica. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004, p.2.

  • 35

    De acordo com Foucault (1979), trs modelos so considerados constituintes da

    Medicina Social e suas premissas foram estimuladoras dos processos de interveno estatal

    sobre as condies de vida da populao: a medicina de Estado (Alemanha), desenvolvida no

    comeo do sculo XVIII, caracterizada por uma prtica mdica centrada na melhoria do nvel

    de sade da populao, a fim de fortalecer o Estado.

    A medicina do espao urbano (Frana), que emerge em fins do sculo XVIII,

    juntamente com o fenmeno da urbanizao das grandes cidades, sobretudo, de Paris,

    estruturada no controle do espao urbano (anlise de lugares que poderiam se formar e

    reproduzir doenas), tornando-o orgnico e desodorizado por meio da higiene pblica, uma

    tcnica de controle e conservao do estado de salubridade, de conservao da sade atravs

    do controle material e social. Essa higiene pblica, base da Medicina Social francesa do

    sculo XIX, tornou-se tcnica para conservar a sade, desenvolvendo um projeto tcnico-

    cientfico de controle sobre o meio em busca do aperfeioamento da organizao social

    (sanear esgotos, alargamentos das avenidas, controle de circulao de fatores patognicos

    (miasmas): gua e ar, preveno s doenas etc.).

    O outro modelo trata da medicina da fora de trabalho (Inglaterra), que surgiu com o

    desenvolvimento industrial ingls, principalmente no sculo XIX, caracterizando-se por ser

    essencialmente um controle da sade e do corpo das classes mais pobres para torn-las mais

    aptas ao trabalho e menos perigosas s classes mais ricas.51

    E foi segundo Foucault, o que

    mais se disseminou no mundo ocidental do sculo XIX e XX, pois permitiu uma observao

    mdica mais completa ao apoiar de um lado na assistncia mdica ao pobre, controle de

    sade da fora de trabalho e esquadrinhamento geral da sade pblica, permitindo s classes

    mais ricas se protegerem dos perigos gerais.52

    E, por outro lado, porque permitiu a uma

    medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma medicina administrativa encarregada de

    problemas gerais como a vacinao, controle das epidemias etc., e uma medicina privada que

    beneficiava quem tinha meios para pag-la.53

    Os alienistas, nesse perodo, estavam empenhados na pesquisa do substrato

    anatomopatolgico da alienao mental, acompanhando a racionalidade anatomoclnica que

    orientava os modelos mdicos vigentes. Nos asilos, dessecavam os cadveres, e procurava na

    formao do crnio ou nas leses cerebrais alteraes biolgicas capazes de dar

    inteligibilidade aos transtornos mentais. Esse movimento pode ser compreendido como uma

    51

    FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.80 52

    Idem. Ibidem, p. 97. 53

    Idem. Ibidem.

  • 36

    maneira de legitimar a nascente Psiquiatria54

    enquanto cincia e, mais especificamente, como

    um ramo autnomo da Medicina. A ideia de um fator biolgico de natureza hereditria ou de

    leses orgnicas como causas da alienao mental era destacado por Pinel, em seu Trait

    mdico-philosophique sur lalination mentale, de 1801.

    O surgimento das disciplinas como a Frenologia55

    e a Antropometria, em meados do

    XIX, interpretando a capacidade humana pelo tamanho e proporo do crebro reforou o

    carter organicista do saber psiquitrico, dessa forma, os conhecimentos biolgicos foram

    utilizados para explicar comportamentos humanos, supostamente regidos por leis naturais.

    Surgem tabelas para identificar criminosos e loucos por meio de uma classificao baseada

    nas formas corporais.

    Com a Psiquiatria constituiu-se uma instituio especializada - o hospital psiquitrico -

    como espao teraputico, de observao e cura. O lcus donde se conhecia a verdade da

    doena, a qual podia ser observada, classificada, localizada clnica e experimentalmente sem

    as interferncias malficas do mundo externo. Ao considerar o hospital como lugar onde a

    doena desvelava seus segredos, o confinamento dos loucos do contato com todas as

    influncias da vida social, e de qualquer convvio que pudesse modificar o que era

    considerado o "desenvolvimento natural" da doena consagrou-se como medida mais

    apropriada, pois o isolamento atendia ao mesmo tempo ato teraputico, epistemolgico (ato

    de conhecimento) e social (medida de segurana frente periculosidade).

    O modelo organicista proeminente nas cincias e disciplinas mdicas nessa poca,

    influenciado pelo positivismo, tambm serviu de alicerce para explicar a ao das bebidas

    alcolicas sobre os rgos e sistemas do corpo humano. As observaes da neurofisiologia, da

    clnica serviram tanto para comprovar seus aspectos perniciosos quanto suas propriedades

    teraputicas. A anatomia patolgica possibilitou observaes detalhadas dos efeitos mrbidos

    54

    A obra Trait mdico-philosophique sur lalination mentale Tratado Mdico - Filosfico sobre a Alienao

    Mental ou Trait, de Pinel, publicada em 1801, inaugura a Psiquiatria como especialidade mdica dedicada

    loucura, construindo-se a noo de que loucura era igual doena mental, de que o espao para o louco era o

    hospital psiquitrico e de que o profissional habilitado para tratar a loucura era o psiquiatra. In: PESSOTTI,

    Isaias. A loucura e as pocas. So Paulo: Ed. 34, 1994, p.145. 55

    A Frenologia foi desenvolvida pelo mdico alemo Franz Joseph Gall, no sculo XIX, colocando-se como

    instrumento capaz de determinar o carter, as caractersticas da personalidade, o grau de criminalidade e o

    desenvolvimento das faculdades mentais e morais pelo formato externo do crnio. In: MIRANDA, Carlos

    Alberto Cunha. A fatalidade biolgica: a medio dos corpos, de Lombroso aos biotipologistas. In: Histria das

    prises no Brasil. Vol.2. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.282; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das

    raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil (1870-1930). 1 ed.- So Paulo: Companhia das Letras,

    1993, p.49.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Joseph_Gallhttp://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_XIX

  • 37

    das bebidas alcolicas em diversos rgos a partir de experincias clnicas e autopsias

    aplicadas em humanos e animais intoxicados pelo lcool (ces, sunos).56

    Os avanos no conhecimento da fisiologia da clula sobre os efeitos do lcool no

    sistema nervoso forneceram aos psiquiatras os meios necessrios para fundamentar suas

    arguies de que uso de bebidas alcolicas provocava anomalias cerebrais e outras sries de

    manifestaes mrbidas, profundamente perturbadoras do estado mental do indivduo

    alcoolizado, j que paralisava seus centros do juzo e da reflexo, privava-o da conscincia e

    da liberdade dos seus prprios atos, impelia-o agir de forma impulsiva por ideias que o lcool

    despertava e/ou elaborava. A alcoolizao era, assim, aproximada a loucura, na medida em

    que ambas distinguiam-se pela ausncia de conscincia nos atos praticados.

    Os suos Auguste Forel e Alberto Mahaim (1902), o francs Legrain (1925), cujos

    trabalhos foram referncias na produo discursiva brasileira sobre o alcoolismo, ressaltavam

    que desde o incio da intoxicao, o crebro de um alcoolista no poderia ser tido como

    normal.

    Forel e Mahaim pronunciaram o pensamento psiquitrico a respeito da alcoolizao da

    seguinte maneira:

    Narcotisando e paralysando o cerebro, o alcool nos iludde acerca de sua ao.

    Enfraquece a vontade, o sentimento, a razo, seja de uma frma aguda, na

    embriaguez, seja por maneira chronica, no alcoolismo chronico. Theoricamente se

    affirma que a vontade do homem lhe permitte dominar-se a tempo, quando o queira.

    Na realidade, isto falso, por que o alcool age precisamente sobre a vontade,

    encadeando-a e enfraquecendo-a. Os que param a tempo so os menos

    predispostos.57

    Os olhares perscrutadores dos psiquiatras no se restringiram ao corpo do indivduo

    embriagado, mas tambm ao corpo social, pois associaram o mau funcionamento dos rgos

    humanos ao mau comportamento dos indivduos,58

    os quais no seu ponto de vista

    necessitavam de ser examinados, controlados, classificados, afastados e isolados dos focos de

    56

    FONTES, Alberto da Costa. O alcoolismo: succintas consideraes sobre o papel em Nosologia e em

    Sociologia. Dissertao apresentada a Escola Medico-Cirurgica do Porto, 1908. 57

    FOREL, Auguste; MAHAIM, Albert. Crime et anomalies mentales constitutionnelles, 1902. In: MORAES,

    Evaristo de. A embriaguez e o alcoolismo perante o Direito Criminal e a Criminologia. Editores: Jacinto Ribeiro

    dos Santos & C. Rio de Janeiro, 1902, p.26. 58

    SANTOS, Fernando Dumas dos. Moderao e excesso; uso e abuso: os saberes mdicos acerca das bebidas

    alcolicas. Clio. Revista de Pesquisa Histrica. Recife. Programa de Ps- Graduao em Histria. Universidade

    Federal de Pernambuco. Centro de Filosofia e Cincias Humanas/ apresentao Carlos Alberto Cunha Miranda.

    Recife: Ed. Universitria da UFPE. N 24. Vol.2. 2007, p. 119.

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    contaminao, demonstrando claramente seu desejo de intervencionismo poltico e de

    fornecer estratgias de controle para problemas sociais.

    Com a teoria da degenerescncia do alienista francs Bndict Augustin Morel,

    apresentada no seu Trait ds Dgnrescences, publicado em 1857, que supe uma

    progressiva degenerao da espcie a partir de um tipo humano primordial idealizado, cuja

    transmisso se daria pela hereditariedade, mas que, poderia ser adquirida no curso de uma

    vida marcada por influncias nocivas de origem patolgica tuberculose, sfilis, paludismo,

    doenas da infncia etc. ou social industrializao, urbanismo, pauperismo, imoralidade

    dos costumes, conduta sexual desregrada, abuso de lcool e temperamentos mrbidos, a

    psiquiatra encontrou um slido referencial sobre o qual ancorar sua interveno59

    sobre a

    sociedade de modo impedir a propagao da degenerao da raa, pois, conforme a ideia

    moreliana, os efeitos da transmisso hereditria tenderiam acentuar os traos da tara, dos

    vcios e estados mrbidos adquiridos pelos predecessores nas geraes subsequentes. Dessa

    forma, uma linhagem acometida pela degener