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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
FLAGELO DA HUMANIDADE: SABERES E PRTICAS
ACERCA DO ALCOOLISMO (RECIFE 1930 - 1939)
ELIANA VIEIRA SALES
RECIFE-PE
2011
ELIANA VIEIRA SALES
FLAGELO DA HUMANIDADE: SABERES E PRTICAS ACERCA DO
ALCOOLISMO (RECIFE 1930 - 1939)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria, da Universidade Federal
de Pernambuco, como requisito parcial para
obteno do ttulo de Mestre em Histria, sob
orientao do Prof. Dr. Carlos Alberto Cunha
Miranda.
RECIFE-PE
2011
AGRADECIMENTOS
Este trabalho pde ser escrito graas a Deus por conceder-nos discernimento e foras
para superar as dificuldades que se fizeram no percurso desta trajetria e a contribuio direta
ou indireta de muitas pessoas.
Agradeo ao orientador professor Carlos Miranda, mestre, amigo, incentivador,
sempre pronto e a disposio para contribuir de forma agradvel e compromissada.
Agradeo ao professor Fernando Dumas, por suas reflexes e pela concesso de seus
artigos, os quais foram fundamentais para a realizao deste trabalho.
Sou imensamente grata a Natlia Conceio Silva Barros pela enorme ajuda prestada,
pelo tempo e esforo que dedicou e por todo o auxlio dado para desenvolvimento desta
dissertao.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao da UFPE que, de alguma forma,
contriburam com este trabalho, especialmente ao professor Hoffnagel, por suas crticas ao
projeto de mestrado, que se fizeram essenciais para o refinamento da pesquisa e para
determinaes de meus objetivos.
querida chefamiga Gildete Pisarro pelo auxlio na construo do abstract.
Igualmente a Maria Rosemere pelo apoio logstico, a Nadir de Sales, uma eterna e amada
guardi e a Sandra Lopes pela ateno e disponibilidade em ajudar.
CAPES pelo incentivo e crdito na pesquisa.
Aos funcionrios da Biblioteca Pblica do Estado de Pernambuco, da Faculdade
Direito, do Arquivo Pblico Estadual Jordo Emereciano, do setor de microfilmagem da
Fundao Joaquim Nabuco, pela solicitude prestada durante a realizao da pesquisa. Em
especial, ngela, bibliotecria do Hospital Ulisses Pernambucano.
professora Luciene De Colti e ao professor Marcus Carvalho por suas valiosas
crticas e sugestes durante a qualificao, as quais contriburam sobremaneira para o
amadurecimento de importantes questes nesta dissertao.
Sandra, secretria do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFPE, sempre
atenciosa e bem-humorada.
Aos colegas do Mestrado, pela boa convivncia e pelo incentivo durante todo o curso.
Um agradecimento especial ao meu marido, Nivaldo de Sales, grande incentivador e
sustentculo para mais uma de minhas realizaes.
Por fim, aos meus filhos Marcos Fernandes, Luiz Eduardo e Ana Carolina por terem
compreendido os momentos de ausncias nestes ltimos anos.
"As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o esprito.
Essa jurisdio soberana e temvel exercida com vossa razo.
Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sbios, dos
governos, adorna a psiquiatria de no sei que luzes sobrenaturais. O
processo da vossa profisso j recebeu seu veredito. No pretendemos
discutir aqui o valor de vossa cincia nem a duvidosa existncia das
doenas mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se
desencadeia a confuso da matria e do esprito, para cada cem
classificaes das quais as mais vagas ainda so as tentativas nobres
de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos
prisioneiros? [...] A represso dos atos anti-sociais to ilusria
quanto inaceitvel seu fundamento. Todos os atos individuais so anti-
sociais. Os loucos so as vtimas individuais por excelncia da
ditadura social; em nome dessa individualidade intrnseca ao homem,
exigimos que sejam soltos esses encarcerados da sensiblidade, pois
no est ao alcance das leis prender todos os homens que pensam e
agem."
Antonin Artaud
Trecho da Carta aos mdicos chefes dos manicmios
RESUMO
O consumo das bebidas alcolicas considerado uma prtica bastante antiga na histria da
humanidade, o beber um ato social que deve ser compreendido no contexto de valores,
normas e atitudes de cada cultura e poca. Desde tempos remotos, essa prtica esteve
assentada em uma srie de disposies simblicas, restritivas e permissivas de diferentes
grupos sociais que impunham estratgias de controle social do uso do lcool, definindo a
forma, como e o momento de beber, priorizando os espaos e as situaes adequadas nas
quais a bebida era preconizada. No entanto, com o advento da Revoluo Industrial e das
modificaes estruturais por ela provocadas na sociedade, o relacionamento das pessoas com
o lcool passou por mudanas profundas. O equilbrio, at ento existente, foi rompido em
funo de um conjunto de fatores trazidos pelas transformaes socioeconmicas ocorridas na
poca. A crescente produo de bebidas e de maior teor alcolico, as transformaes oriundas
da dinmica capitalista, a intensificao do processo de urbanizao com uma tendncia de
criar espaos cada vez mais civilizados, oportunizaram o deslocamento de uma prtica
conveniada pelos grupos sociais a uma normatizada pelo saber mdico. O presente trabalho
analisa o discurso cientfico, particularmente o psiquitrico, no processo de construo da
doena alcoolismo, uma patologia de alta periculosidade merecedora de todos os cuidados,
no contexto do Recife, durante os anos de 1930. A partir da produo discursiva do perodo,
elaborada pelos prprios psiquiatras tanto com fins cientficos como instrutivos, o alcoolismo
foi sendo apresentado como um problema intimamente associado malandragem, loucura,
criminalidade, desordem, fator de debilidade moral e social. Com base na convico de que
falavam em nome da verdade e da cincia, desempenhando seus papis de
especialistas/cientistas, os psiquiatras nomearam-se os nicos com plenos direitos de
disciplinar, controlar, higienizar os comportamentos das pessoas no que se refere ao hbito de
consumir bebidas alcolicas, harmonizando-se com o programa estatal do governo varguista
que investia numa srie de representaes enaltecedoras do trabalhador idealizado como um
bom cidado e chefe de famlia, cultivador do lar e dos bons costumes, ou seja, em prol de
indivduos sbrios e produtivos, e da boa ordem do corpo social. Dessa forma, procuramos
descrever a materializao das campanhas antialcolicas, abordar as concepes norteadoras
do combate antialcolico, as representaes acerca dos alcoolistas, conhecer as dificuldades
encontradas pelos psiquiatras na pretenso de efetivar seus princpios abstmios sobre a
populao recifense. A anlise dos pronturios mdicos dos alcoolistas internados no Hospital
de Alienados possibilitou acessar informaes sobre os pacientes, o processo de internao,
diagnsticos, sinais e sintomas do alcoolismo, teraputica utilizada, entre outras.
PALAVRAS-CHAVE: alcoolismo, psiquiatria, degenerescncia, controle social, Hospital de
Alienados.
ABSTRACT
The consumption of alcohol is considered a very old practice in human history the drinking is
a social act that should be comprehended in the context of values, norms and attitudes of each
culture and epoch. Since ancient times this practice was built on a series of symbolic,
restrictive and permissive measures of different social groups who impose social control
strategies of alcohol use, setting the way, how and when to drink, prioritizing the spaces and
in appropriate situations which the beverage was recommended. However, with the advent of
the Industrial Revolution and the structural changes caused by it in society, people's
relationship with alcohol has undergone profound changes. The balance, up to then existing,
was broken due to a combination of factors brought about by socioeconomic changes that
occurred at the time. The increased production of beverages and higher alcohol content, the
changes arising from the capitalist dynamic, the intensification of the urbanization process,
with a tendency to create more "civilized" spaces opportune to the displacement of a practice
by the private social groups to a normalized by medical knowledge. This paper examines the
scientific discourse, especially of psychiatrists in the process of alcoholism as a disease, a
highly dangerous disease that deserves all the care in context Recife, during the 1930s. From
the discursive production of the period, drafted by psychiatrists themselves both for scientific
purposes as instructive, alcoholism was being presented as an issue intimately related to the
mischief, madness, crime, disorder, factor of social and moral weakness. Based on the belief
that speaking in the name of truth and science, performing their roles as experts,
scientists/psychiatrists have named themselves the only ones with full rights to discipline,
control, sanitize the conduct of persons in relation to the habit of alcoholic beverages
consumption, harmonizing with Vargas state program of government that invested in a series
of uplifting representations of idealized worker as a good citizen and head of family,
cultivator of home and morality, or in favor of sober and productive individuals, and good
order of society. Thus we try to describe the embodiment of anti-alcoholic campaigns, to
address the conceptions behind the anti-alcoholic fight, representations about the alcoholics,
knowing the difficulties encountered by psychiatrists in the pretense of carrying its abstainers
principles in the population of Recife. The analysis of medical records of alcoholics admitted
to Hospital de Alienados (Psychiatric Hospital) allowed to access information on the patients,
the internment process, diagnoses, the signs and symptoms of alcoholism, therapeutical
methods used, among other informations.
Keywords: alcoholism, psychiatric, degeneration, social control, Hospital de Alienados
(Psychiatric Hospital).
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Cartaz produzido para a 4 Semana Anti-Alcoolica ...........................................93
Figura 2 Anncio da cerveja Antarctica ........................................................................104
Figura 3 Anncio da cerveja Malzbier ..........................................................................105
Figura 4 Anncio da cerveja Malzbier ...........................................................................105
Figura 5 Anncio do Vinho Biogenico de Giffoni ........................................................106
Figura 6 Anncio do Vinho Reconstituinte Granado ......................................................106
Figura 7 Anncio do Vinho e Xarope de Dusart ..........................................................107
Figura 8 Anncio do Vinho Reconstituinte Silva Araujo .............................................108
Figura 9 Anncio do Vinho Reconstituinte Silva Araujo .............................................109
Figura 10 Anncio da Cafiaspirina ................................................................................111
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 A idade dos alcoolistas .........................................................................................125
Tabela 2 O estado civil dos alcoolistas ...............................................................................127
Tabela 3 Procedncia dos alcoolistas ..................................................................................131
Tabela 4 Diagnsticos .........................................................................................................137
Tabela 5 Diagnsticos e causas de morte ............................................................................142
LISTA DE ABREVIATURAS
AA Alcolicos Annimos
ABHM Archivos Brasileiros de Hygiene Mental.
APEJE Arquivo Pblico Estadual Jordo Emereciano
BEPCB Biblioteca Estadual Presidente Castelo Branco
CID 10 Classificao Internacional de Doenas
DOU Dirio Oficial da Unio
DSM IV Manual Diagnstico e Estatstico da Associao Psiquitrica Norte-Americana.
FUNDAJ Fundao Joaquim Nabuco
LBHM Liga Brasileira de Hygiene Mental
OMS Organizao Mundial de Sade
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
SUMRIO
INTRODUO .....................................................................................................................13
CAPTULO 1 LCOOL E PRTICAS ETLICAS .......................................................20
1.1 Os usos do lcool................................................................................................................20
1.2 O processo de construo da doena alcoolismo................................................................31
CAPTULO 2 PRODUZINDO DISCURSOS E HIGIENIZANDO OS ESPAOS E OS
COMPORTAMENTOS .........................................................................................................54
2.1 A ameaa etlica .................................................................................................................54
2.2 Os protetores da ptria: a psiquiatria da Liga Brasileira de Hygiene Mental .................71
CAPITLO 3 UMA CRUZADA CONTRA O FLAGELO DA HUMANIDADE: AS
CAMPANHAS ANTIALCOLICAS...................................................................................81
3.1 As propostas de combate ao alcoolismo.............................................................................81
3.2 As campanhas antialcolicas no Recife..............................................................................87
3.3 Fronteiras no consumo de lcool: tenses entre discursos ...............................................102
CAPTULO 4 OUVINDO VOZES: OS ALCOOLISTAS ABREM AS CORTINAS DO
HOSPITAL PSIQUITRICO.............................................................................................116
4.1 Cartografias dos alcoolistas..............................................................................................116
CONSIDERAES FINAIS ..............................................................................................149
FONTES DE PESQUISA ....................................................................................................151
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..............................................................................154
ANEXOS................................................................................................................................160
13
INTRODUO
A implementao da Lei 11.705/2008 - Lei Seca - que alterou o Cdigo de Trnsito
Brasileiro, proibindo a ingesto de bebidas alcolicas por condutor de veculos automotores,
despertou-nos a relevncia de se historiar, problematizar a questo da alcoolizao na nossa
sociedade. Naquele ano, o discurso mdico serviu de base para a formulao dessa Lei ao
justificar que o consumo de tais bebidas comprometia as habilidades e percepes dos
motoristas. A associao lcool e direo foram divulgadas na mdia como um grave dano
sociedade, uma questo de sade pblica, tendo em vista os custos financeiros e sociais
decorrentes do aumento do nmero de acidentes, violncia e bitos, passando essa
combinao a ser incorporada agenda de polticas pblicas brasileira. As discusses, nesse
momento, relacionavam o consumo excessivo das bebidas alcolicas a uma srie de
problemticas sociais: absentesmo ao trabalho, acidentes de trnsito, agresses fsicas,
homicdios e suicdios, problemas de sade, entre outros. Questes no s especficas da
sociedade contempornea como veremos nos captulos subsequentes, mas tambm uma
preocupao de outros tempos.
Dado interesse despertado pela Lei supracitada e um convite do professor da
Universidade Federal de Pernambuco, Carlos Miranda, que na poca coordenava o trabalho
de catalogao e preservao da documentao do Hospital de Alienados, atualmente
denominado Hospital Ulisses Pernambucano, para conhecer a referida instituio e o seu
acervo documental, iniciamos nossa trajetria, pois, foi folheando os pronturios que
tomamos conhecimento que durante a anamnese havia uma insistncia dos psiquiatras em
saber sobre o consumo de lcool pelo paciente e seus ascendentes. Concomitantemente, foram
surgindo indagaes: por que inquirir sobre esse aspecto? Qual a relao lcool-loucura? A
descoberta de pronturios com o diagnstico alcoolismo impulsionou ainda mais a
curiosidade. O que fazia o alcoolista em uma instituio psiquitrica? Que tratamento recebia?
Essas dvidas iniciais aos poucos foram sendo desvendas pelo dialogo com as fontes, as quais
possibilitaram compreender que o alcoolismo estava diretamente correlacionado ao tema da
loucura, no somente era considerado o elemento que a conduzia como tambm um dos mais
temveis males sociais.
O acervo do Hospital Ulisses Pernambucano realou a necessidade de um estudo mais
aprofundado sobre essa temtica no Recife, considerando, especialmente, a existncia de uma
expressiva quantidade de documentos pouqussimos explorados, como o caso dos
14
pronturios dos alcoolistas e a prpria carncia de obras historiogrficas a respeito do assunto
em Pernambuco.
O objetivo central que nos propomos analisar a historicidade de uma prtica, que em
determinado contexto histrico passou a ser construda como uma patologia, procurando
entender como o discurso mdico, mais notadamente o psiquitrico, formula um discurso
sobre o alcoolismo e de que modo ele interferia nas aes polticas e sociais no que refere um
comportamento, ato e/ou efeito de beber, transformado em doena, tendo como lcus
principal a cidade do Recife, nos anos de 1930, esmiuando a histria das intervenes
psiquitricas, da tentativa de moldar e constranger comportamentos individuais, de alterar os
valores culturais e sociais da populao, onde o alcoolismo ou at mesmo a ingesto fortuita
de lcool apresentava-se como grande malfeitor que deveria ser proibido ou ter seu acesso
dificultado.
Ao privilegiar os discursos psiquitricos da temtica em questo, buscamos
compreender as estratgias que lanaram os psiquiatras na construo da doena alcoolismo
e na luta antialcolica, as teorias cientficas que embasavam seus conhecimentos, a tessitura e
legitimidade dos seus discursos, o lugar social desses enunciadores, os receptores, o lugar do
alcoolista: hospcio ou priso, o contexto em que emergiu a condenao moral e social do
consumo de bebidas alcolicas. Tambm direcionamos um olhar s pessoas classificadas
como alcoolistas internadas no Hospital de Alienados, conhecer suas histrias de vida,
perceber como se articulavam no ambiente asilar, , sem dvida, tentar incorporar outras falas
alm da fala legitimada do psiquiatra anlise historiogrfica.
A escolha do recorte temporal foi pensada levando em considerao at que ponto um
governo antiliberal, moralista, xenofbico como foi o perodo varguista atenderia os anseios
da psiquiatria em virtude da compatibilidade de princpios.
No que diz respeito ao material bibliogrfico utilizado para confeco deste trabalho,
recorremos a diversas obras, fazendo o intercmbio com outras reas do saber, passamos
pelos estudos do antroplogo Sidney Mintz (2001) dedicado histria da alimentao, cuja
abordagem dos hbitos alimentares perpassa as necessidades orgnicas para uma
compreenso de comportamentos apreendidos socialmente, trazendo em si significaes
identitrias ou diferenciaes sociais e culturais. Dessa forma, aquilo que se come (ou se
bebe), com quem, em que lugar, em que quantidade, tudo isto representa uma srie de atos de
cultura que jamais so neutros ou desprovidos de significados.
Enveredamos pela Sociologia de Erving Goffman, na sua obra Estigma: notas sobre
a manipulao da identidade deteriorada (1988), para entender o processo de
15
estigmatizao como uma criao social, que isola certos atributos, que os classifica como
indesejveis e desvaloriza as pessoas que os possuem. O estigma tende a se tornar
predominantemente importante sobrepujando outras caractersticas da identidade da pessoa,
que assim, fica deteriorada. Ao situar o alcoolismo dentro de um quadro assustador de
degeneraes de todas as ordens, os discursos mdicos sobre o alcoolismo foram responsveis
pela construo de um estigma muito forte, gerador da situao de excluso social e auto-
excluso do alcoolista, ao consider-lo um doente, um vagabundo, um criminoso em potencial
que deveria ser policiado, adestrado ou isolado do convvio social.
Em outra obra Manicmios, prises e conventos (2005), o mesmo autor dar uma
contribuio fundamental para a consecuo desta dissertao ao apresentar uma anlise do
mundo das instituies totais, isto , das instituies fechadas em regime de confinamento
(manicmios, prises e conventos); ao promover uma crtica ao mundo do internado; a equipe
dirigente; aos objetivos institucionais, inter-relacionando-os e, referindo as diversas fases de
vida do sujeito institucionalizado, possibilitando-nos compreender no desenvolvimento do
quarto captulo a relao que se estabelece entre as instituies psiquitricas e os indivduos
enclausurados, no caso, os alcoolistas, indicando olhares sobre a vida desses pacientes, as
estratgias de dominao, a produo de subjetividade, os focos de resistncia, as tticas de
subverso do institudo, entre outros aspectos.
Como referencial historiogrfico, utilizamos as contribuies de Fernand Braudel, em
Civilizao material e capitalismo: As estruturas do cotidiano (1970) o historiador
trabalhou o conceito de cultura material abrangendo os aspectos do cotidiano entre os sculos
XV-XVIII, entre os quais, dedicou uma anlise das bebidas alcolicas durante a expanso
europeia na poca moderna, que foi essencial para compreender as prticas de consumo
alcolico e o simbolismo que as circundam, pois, como afirma o autor, o consumo de bebidas
alcolicas no , exclusivamente, determinado pelos valores nutricionais, biolgicos, so
objetos culturais extremamente ricos em termos simblicos, na medida em que, ao serem
ingeridas, tornam-se uma forma de cultura material corporificada. Alm de serem, elas
prprias, fontes de energia e de nutrientes, de valor econmico, possui uma caracterstica
singular, a funo de excitantes e de evases.
Outra obra fundamental para entender as dimenses assumidas pelas bebidas
alcolicas foi a obra de Alencastro O Trato dos Viventes: formao do Brasil no Atlntico
Sul (2000), o autor destaca a importncia das bebidas alcolicas destiladas na economia
mercantilista que passando da produo do mbito domstico fabricao em srie tornaram-
se estimados produtos de exportao, realando o papel fundamental da produo de cachaa
16
na manuteno do sistema colonial, especialmente a brasileira na conquista sobre o mercado
africano.
Uma abordagem mais especfica sobre o alcoolismo e de suma importncia ao trabalho
foi a dissertao de Mestrado do historiador Fernando Dumas dos Santos, Alcoolismo: a
inveno de uma doena (1995), o autor dedica seu estudo entre as dcadas de 1830 e 1920,
traando um painel da tradio de uso teraputico do lcool nas sociedades ocidentais,
concluindo que o alcoolismo foi um instrumento que a Medicina apropriou para intervir em
antigos hbitos e formas culturais enraizados no modo de vida das classes populares em nome
da produtividade capitalista, adaptando assim os indivduos aos padres sociais que
consolidaria o modo de vida burgus.
Vale ressaltar os trabalhos das historiadoras Magali Engel, com sua obra Os Delrios
da Razo: Mdicos, Loucos e Hospcios (Rio de Janeiro, 1830-1930) e Maria Clementina
Cunha, com O espelho do mundo-Juquery, a Histria de um asilo (1986) para conhecer a
institucionalizao da psiquiatria no Brasil. Embora as autoras tenham desenvolvido seus
trabalhos em realidades distintas, Magali Engel analisou o Hospcio de Pedro II, no Rio de
Janeiro, e Maria Clementina, o Hospcio Juquery, em So Paulo, no final do sculo XIX at
os anos de 1930, ambas compartilham a ideia de que a psiquiatria brasileira constituiu-se
enquanto conjunto de saberes e de prticas para legitimar e consolidar a interveno e o
controle do espao social.
As fontes, por sua vez, constituem-se de jornais locais, artigos e discusses publicados
em peridicos especializados em Medicina Mental, obras de psiquiatras e juristas, teses da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, teses e dissertaes da Escola Medico-
Cirurgica do Porto.
Alm dessas fontes essenciais, utilizamos os Archivos Brasileiros de Hygiene Mental,
peridico responsvel pela difuso e propaganda dos preceitos eugenistas e das atividades
profilticas da LBHM e instrumento de intercmbio cientfico tanto em mbito regional,
nacional e mesmo internacional, cuja publicao foi iniciada em 1925. Os ABHM so
importantes para conhecer a atuao da psiquiatria no Brasil e sua insero nas questes
sociais, uma vez que fornecem artigos, conferncias, resenhas e anlises, relatrios, atas e
anais de reunies, assemblias, congressos sobre temas alvos da profilaxia mental. Neles
havia uma seo permanente intitulada: Trabalhos de anti-alcoolismo, na qual podemos
encontrar diversos tipos de informaes relacionadas ao alcoolismo e profilaxia
antialcolica da LBHM.
17
Um peridico importante para conhecer as estratgias e os artifcios utilizados pela
psiquiatria pernambucana para legitimar e consolidar sua interveno e controle sobre a
populao recifense, os discursos a respeito do alcoolismo nessa cidade, as representaes
sobre os alcoolistas e a materializao das campanhas antialcolicas, Boletim de Higiene
Mental, editado pela Diretoria de Higiene Mental da Assistncia a Psicopatas de Pernambuco,
publicado em dezembro de 1933, com tiragem inicial de 2 mil exemplares, mensal, com
distribuio gratuita junto a jornais e rdios ou remetido diretamente para residncia de
particulares mediante uma solicitao direcionada redao do Servio de Higiene Mental.
Essa publicao pretendia ser o elo entre as atividades do setor psiquitrico recifense e a
populao em geral, tendo como objetivo combater as causas e os meios de propagao da
doena mental bem como difundir as prticas e os ideais eugnicos. Esse peridico deixou
de ser publicado em 1947.
Os Arquivos da Assistncia a Psicopatas de Pernambuco, publicao semestral,
iniciada em 1931, sob a orientao do diretor geral da Assistncia a Psicopatas, o professor e
psiquiatra Ulisses Pernambucano, foram importantes para compreender as diretrizes
desenvolvidas pelo Servio de Higiene Mental no meio social, a estrutura fsica e
administrativa do Hospital de Alienados, os problemas enfrentados pela instituio, as
teraputicas e o quadro de doentes existentes no hospital, os exames realizados e os perfis dos
internados.
Dentre as principais fontes que ditam e conduz esta dissertao, dedicamos ateno
especial aos pronturios dos alcoolistas, localizados no Hospital Psiquitrico Ulisses
Pernambucano, que se encarregam de mostrar diferentes aspectos de vida desses pacientes
dentro e fora da instituio manicomial. Nessas fichas mdicas comum o emprego de trs
palavras para definir os indivduos que consumiam excessivamente bebidas alcolicas; os
dependentes do lcool ou que sofriam da doena chamada alcoolismo: alcolatra, alcoolista
e etilista, j na literatura especfica sobre o tema, as duas primeiras palavras so mais
frequentes. Os termos alcoolista e alcolatra continuam a ser usados, quase que
indistintamente, por diferentes autores, sempre equivalendo a "dependente de lcool". No
nosso estudo, optamos pelo emprego do termo alcoolista no lugar de alcolatra, em funo
que o primeiro alude a ideia de dependncia do uso de lcool, ou seja, que se bebe por
necessidade do organismo em oposio ao segundo que significa adorador do lcool.
A anlise dessa temtica tem sido facilitada em virtude do cruzamento da Histria com
reas de conhecimentos que se inserem no campo da Medicina e/ou Sade Pblica, evidncia
maior deste fato a proliferao, nos ltimos anos, de estudos histricos cujos temas so
18
claramente buscados no mbito destas: epidemias, enfermidades, educao e prticas
sanitrias, discursos mdicos e relaes de gnero, loucura, entre outros. Apoiada pelas
propostas da Escola dos Annales e pelos estudos foucaultianos a produo historiogrfica,
nesse circuito de anlise, tem fugido do vis apologtico que confere protagonismo e
centralidade aos grandes mdicos e projetos, ideias e descobertas da Medicina para
contemplar perspectivas e abordagens que reconheam que sade e enfermidade so algo
mais que fenmenos biolgicos, so componentes que nos permitem interpelar as mltiplas
instncias da vida social.
Maria Clementina Cunha e Magali Engel, utilizando os documentos mdico-
psiquitricos para delinear o trajeto da psiquiatria no Brasil, destacam a importncia dos
pronturios como nova maneira de conhecer o paciente, as prticas de rotina das instituies
psiquitricas, as atividades dos profissionais de sade, os diagnsticos e as teraputicas etc. A
primeira afirma que ao dar voz aos pacientes, sujeitos tradicionalmente silenciados, os
documentos clnicos permitem-nos apreciar as contradies e os embates que moldaram o
saber cientfico representado pelo corpo mdico mental brasileiro, responsvel pela
institucionalizao da psiquiatria no pas. A segunda destaca a imprescindibilidade da
utilizao de documentos clnicos psiquitricos para revelar seus atores como personagens "de
carne e osso, com suas angstias, suas contradies, suas ambiguidades, suas sujeies e
rebeldias". (Engel, 2001:12).
Os referenciais terico-metodolgicos valeram-se das contribuies de diversos
autores, os quais mostraram a necessidade da anlise criteriosa das fontes. Desse processo,
depende a qualidade da histria que produzimos. Nesse sentido, as principais fontes dessa
dissertao so pensadas, no como dados verdicos da realidade, mas como construes
discursivas crivadas de vontades e estratgias de poder que acaba por elaborar verses cuja
marca justamente o carter interessado que permeia sua produo. Foucault proporciona-nos
um mtodo de pesquisa que pondera a necessidade de estar atento s rupturas operadas nos
discursos e nas prticas, inferindo-nos a questionar a produo do conhecimento, inventariar
as condies histricas que permitiram em dada circunstncia que um problema emergisse;
que uma verdade se colocasse; que um saber se produzisse; que uma dada experincia fosse
organizada. De seu arcabouo metodolgico depreendemos que os objetos tratados nesse
trabalho no so naturalmente dados, so produzidos por uma composio de foras
consoante aos interesses dos grupos que os forjam.
A presente dissertao, considerando-se o exposto, estrutura-se da seguinte forma: no
primeiro captulo, reconstrumos o panorama histrico do uso de lcool em determinadas
19
culturas e sociedades, delineando os modos de produo, circulao e consumo, os
referenciais simblicos, permissivos e restritivos que circundavam a prtica do beber, as
implicaes econmicas, as relaes do consumo de bebidas alcolicas nas diferentes classes
sociais mostrando suas aproximaes e tenses e as mudanas ocorridas nos hbitos etlicos a
partir do surgimento das bebidas destiladas. Sondando ainda, o processo de formao da
doena alcoolismo, os dispositivos empregados pelos psiquiatras para intervirem sobre os
hbitos das populaes e as medidas profilticas adotadas em alguns pases europeus e norte-
americanos que constituram o paradigma das discusses antialcolicas no Brasil.
No segundo captulo, trataremos do processo de urbanizao do pas e notadamente da
cidade do Recife, onde os espaos e hbitos da populao tiveram que ser remodelados, a fim
de tornar a velha cidade antiquada em uma cidade civilizada, dotada dos novos atributos que a
modernidade passara a exigir. Problematizamos a Liga Brasileira Hygiene Mental como uma
entidade central da psiquiatria brasileira, que ajudou na formulao de um projeto ampliado
de interveno social baseado no princpio da preveno via eugenia e higiene mental,
configurando suas aes na gesto da sociedade.
No terceiro captulo, entraremos na discusso a respeito das campanhas antialcolicas,
buscando destacar as medidas visionadas pelos psiquiatras no combate ao alcoolismo e
materializao das campanhas antialcolicas. Nosso olhar se deteve tambm na efetividade
dos discursos antialcolicos no Recife, considerando que expurgar o consumo de lcool no
foi uma tarefa fcil, pois nas manchetes dos Boletins de Higiene Mental os editores
questionavam quanto permanncia do costume de ingerir bebidas alcolicas apesar das
campanhas de preveno, assim, trazemos os paradoxos que se impem a produo discursiva
institucionalizada pelos psiquiatras outra que conferia qualidades s bebidas alcolicas
manifesta na literatura de cordel e anncios de revigorantes base de lcool presentes nos
jornais locais que, de modo geral, corroborava para a no efetividade das campanhas
antialcolicas como desejavam seus patrocinadores.
Por fim, no quarto captulo, buscamos demonstrar que esta dissertao no um
estudo centrado apenas na produo da doena alcoolismo e das medidas profilticas
propostas pelos psiquiatras, mas , tambm, um esforo de trazer tona a histria de vida dos
alcoolistas internados no Hospital de Alienados.
20
CAPTULO 1 LCOOL E PRTICAS ETLICAS
1.1 Os usos do lcool.
Em que reino, em que sculo, sob que silenciosa
Conjuno dos astros, em que dia secreto
Que o mrmore no salvou, surgiu a valorosa
E singular idia de inventar a alegria?
Com outonos de ouro a inventaram.
O vinho flui rubro ao longo das geraes
Como o rio do tempo e no rduo caminho
Nos invada sua msica, seu fogo e seus lees.
Na noite do jbilo ou na jornada adversa
Exalta a alegria ou mitiga o espanto
E a exaltao nova que este dia lhe canto
Outrora a cantaram o rabe e o persa.
Vinho, ensina-me a arte de ver minha prpria histria
Como se esta j fora cinza na memria.
Soneto do Vinho, de Jorge Luis Borges.
Esse soneto corrobora para asseverar que o uso de lcool nas sociedades e culturas
ocorre desde os tempos mais remotos, bem verdade que no se pode precisar sua origem
exata, mas sua presena constante nos versos, msicas, poesias, pinturas, mitologias, lendas e
obras literrias demonstram o quanto essa prtica esteve intimamente associada ao ser
humano em suas mltiplas dimenses, ora como veculo de remdios, de perfumes, de
expresso artstica e intelectual ora como lquido extasiante capaz de provocar reaes de
prazer, de olvidao das tenses, de distino social, e principalmente, sendo o componente
essencial de bebidas consumidas como parte da alimentao, das cerimnias religiosas, de
divertimento e confraternizao de diferentes povos ao longo da Histria da humanidade.
Desde a poca antiga contempornea, h relatos de povos que conheceram tcnicas
de produo e uso de algum tipo de bebida alcolica. Os egpcios, por exemplo, deixaram
registrados nos papiros as etapas de fabricao, produo e comercializao da cerveja e
vinho. A primeira fez-se produto fundamental na vida social, religiosa, econmica e nos
sistemas medicais das antigas civilizaes do Egito e da Mesopotmia, que a consideravam
um presente dos deuses, por sua capacidade mgica de provocar um estado de conscincia
alterada. No Cdigo de Hamurbi, a civilizao babilnica teve a preocupao de
21
regulamentar as tabernas, a comercializao de bebidas alcolicas e impor medida de coao
aos excessos.1
O lcool ocupou uma posio de destaque na cultura ocidental, na Grcia e em Roma,
o consumo de vinho j era bem difundido e elemento importante nas atividades
socioeconmicas e religiosas, sendo ainda reconhecido e referendado por suas propriedades
curativas, usado como energtico, cicatrizante, purgativo, antitrmico, calmante, antissptico,
remdio contra doenas crnicas e agudas. O mdico grego Hipcrates foi o primeiro a
reconhecer as propriedades diurticas do vinho branco, assegurava que no s fortificava, mas
alimentava o organismo, indicando que, desde que fosse administrado a propsito e na medida
certa, poderia ser utilizado tanto na sade como na doena, advertindo o uso inadequado da
substncia como fator predisponente a vrias enfermidades: epilepsias, convulses, febre etc.2
A tradio de uso do lcool se estendeu a Idade Mdia. Durante esse perodo, em
conformidade com medicina hipocrtica, bebia-se gua com o hbito sistemtico de mistur-
la com vinho, mais do que um sinal de bom gosto, uma medida de preveno sanitria 3
dado os riscos por quem se aventurasse a consumir a gua disponvel antes do advento dos
sistemas de tratamento. Sobre este ponto poderamos acrescentar ainda que na era crist o
vinho difundiu-se junto com a converso religiosa e, com as navegaes modernas a religio
que fazia do vinho o sangue do seu deus levou o hbito para as Amricas e para todo o
mundo.4
Como se pode perceber, tanto o uso de lcool como a preocupao com embriaguez
so aspectos que acompanham a humanidade desde longas datas. Basta lembrarmos uma
passagem do Antigo Testamento da Bblia (Gnesis 9.21). No, aps o Dilvio, plantou uma
videira e produziu vinho. Fez uso da bebida a ponto de embriagar-se, e acabou sem decoro em
sua tenda ao pr a mostra as suas vergonhas".
A distino entre beber moderadamente e a embriaguez reprovvel foi marcada por
atitudes morais desde a Antiguidade. Os excessos eram censurados por expor as fraquezas
humanas como as atitudes desmedidas, a falta de lucidez e o autocontrole, mas se confiava
que o consumo moderado conduzia a serenidade, longevidade e sabedoria.
1 FLANDRlN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs.) Histria da alimentao. So Paulo: Eslao
Liberdade, 1998. 2 Idem. Ibidem, p.144.
3 Idem. Ibidem, p.287.
4 CARNEIRO, Henrique. Bebidas alcolicas e outras drogas na poca moderna. Economia e embriaguez do
sculo XVI ao XVIII. Disponvel em: < http://www.historiadoreletronico.com.br/faces/03120801.htm> Acesso
em: 23/10/2009.
http://www.historiadoreletronico.com.br/faces/03120801.htm
22
Jean Charles Sournia5 analisando a questo do consumo de bebidas alcolicas sob o
ponto de vista das religies, entre elas o judasmo, o cristianismo e o islamismo concluiu que
elas apresentam uma posio contraditria, ora enaltecendo as virtudes das bebidas,
especialmente o vinho, ora condenando o abuso das mesmas. O autor tambm associa a
expanso do cristianismo com a do vinho na Europa Ocidental, observando o envolvimento
da Igreja Catlica no consumo da bebida.
Segundo evidncias antropolgicas e documentos histricos, os amerndios e africanos
faziam uso de bebidas alcolicas antes da chegada dos colonizadores europeus. Essas bebidas
consistiam em fermentados, de produo domstica e de contedo alcolico em quantidade
reduzida. Trs principais bebidas eram consumidas na frica: o vinho de palma, da palmeira
do dend; uma feita da infuso, maceramento de sementes, sorgo e milhetos e os vinhos do
mel de abelha. Os indgenas, por sua vez, produziam uma diversidade de fermentados obtidos
de frutas, sementes, razes, seiva de palmeiras e mel de abelha. O pulque no Mxico, o
guarapo e o sinisco na Amrica Central, a chicha no Peru, a aloja na Argentina e o cauim no
Brasil, constituem exemplos dos fermentados para as celebraes, no havia entre esses povos
o consumo cotidiano que dirimiam os ritmos da vida normal, a bebida era sempre funo
grupal, solenidade especial, como em comemorao colheita e festas sagradas, portanto,
dentro de uma pauta cultural bem definida.6
Apesar das especificidades de cada poca e contexto, o que se percebe que a ingesto
de bebidas alcolicas constitui-se prtica convencionada por uma srie de regras de consumo
e comportamento etlico prprias a cada cultura, as quais so aprendidas e reproduzidas, e
que, geralmente, funcionam como estratgias de controle social do uso do lcool, dada a
imposio de um padro do beber e as condies e os contextos nos quais a bebida
preconizada. Alm disso, as bebidas servem de instrumento para a construo de identidades
ou diferenas. Assim sendo, seu consumo7agrega valores justificados culturalmente por um
conjunto de qualidades conferidas s bebidas alcolicas, parafraseando o antroplogo Sidney
Mintz (2001) o que se bebe, onde, como e em que circunstncia e em que quantidade,
representa uma srie de atos de cultura que materializam a nossa identidade sociocultural.
O historiador Fernand Braudel (1970) analisando aspectos do cotidiano, entre os
sculos XV-XVIII, destacou as distines nos regimes etlicos da Europa, posta em evidncia
5 SOURNIA, Jean Charles. Histoire de LAlcoolisme. Paris: Famarion, 1986.
6 CASCUDO, Luis da Cmara. Histria da Alimentao no Brasil. 3 ed.- So Paulo: Global, 2004, p.129-141;
p. 769-782. 7 Certeau define consumo como uma produo de significados variados em torno dos referentes da vida
cotidiana: a rua, a casa, o bairro, os objetos, os alimentos, dentre outros. In: CERTEAU, Michel de. A Inveno
do Cotidiano: 1 artes de fazer. Petrpolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
23
desde a antiguidade clssica, como referencial simblico capaz de corporificar identidades
e/ou diferenas culturais. Embora a circulao das bebidas alcolicas tenha se processado em
toda a Europa, houve reas delimitadas geograficamente de consumao, sendo predominante
nas regies Norte e Leste, as cervejas e no Sul e Oeste, os vinhos. A saber, na regio Sul, o
vinho estava embevecido de indicativos culturais que definiam um modelo de vida
civilizado atravs dos quais se reivindicava uma supremacia em relao ao Norte, onde a
cerveja que se tornou no Ocidente a bebida dos pobres e dos Brbaros8 era predominante e
smbolo da cultura germnica, os pagos usavam-na em seus rituais para indicar sua oposio
sacralidade crist do vinho.
Influam de maneira decisiva nessa diferenciao, os cdigos de comportamento social
do beber: as diferenas em relao ao que se bebia, e como se bebia constituem o mago
dessa questo. Algumas normas de consumo eram essenciais, como diluir o vinho em gua e
ter sobriedade, os gregos antigos no consumiam regularmente vinho puro, a nica ocasio
em que se permitia esse uso era durante o desjejum quando embebia o po nessa bebida9 bem
como compreendiam a satisfao das necessidades e prazeres do corpo pela comida, bebida e
o sexo como indcios de sabedoria aos que conseguiam fazer com temperana.10
O fato de no
estar em conformidade com a regulamentao cultural e social que regulava a consumao,
possibilitou aos bebedores do Sul embasar a sua suposta superioridade.
Ao deslocarmos da Europa para os regimes etlicos do Brasil colonial, respeitando as
diferenas culturais entre o Brasil e a Europa, podemos atestar que essas contradies, mais
culturais do que propriamente geogrficas, serviram para demarcar as relaes sociais e
fundamentar preconceitos. No h dvida de que, numa sociedade rigidamente hierarquizada
como a que existia na Amrica portuguesa, os alimentos ou as bebidas assumiam significados
diferentes conforme as condies de quem os consumiam.
A cachaa, por exemplo, fazia parte da composio bsica da alimentao das
camadas menos favorecidas, independente do gnero e da condio legal dos indivduos
(livres ou escravos). Embora tenha sido apreciada pelos efeitos prprios das bebidas
espirituosas, no se deve desprezar o nvel calrico existente nas bebidas alcolicas e a
importncia que esse aspecto apresentava em dietas pobres e insatisfatrias como a dos
escravos. Os mais humildes usavam-na junto ao alimento dirio, quase sempre como um
complemento alimentar, enquanto os mais abastados consumiam-na como aperitivo nos
8 BRAUDEL, Fernand. Civilizao Material e Capitalismo, sculos XV- XVIII. Volume. I: As estruturas do
cotidiano. Rio de Janeiro: Edies Cosmos, 1970, p.191. 9 FLANDRlN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (Orgs). Op. cit., p. 155.
10 FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade: o uso dos prazeres. 10 ed.- So Paulo: Graal. Vol.2. 2003.
24
momentos de relaxamento e convvio social, ainda que fizesse ou preferissem os vinhos
portugueses.11
Alm de participar dos rituais indgenas e africanos, meizinhas, a cachaa era usada
tambm como oferenda e gentileza, como estimulante para manuteno dos nveis de
produtividade dos trabalhadores e como remdio, utilizada com razes medicinais dava
origem as garrafadas que serviam para debelar diversas enfermidades das pessoas da zona
rural, alm disso, foi representada como bebida de macho, de heris. Estava presente nas
refeies domsticas, na culinria nordestina, acompanhou quase que obrigatoriamente os
pratos considerados pesados como a buchada, a rabada, a mo-de-vaca, o cozido e outros.12
Apesar de ser apreciada por pessoas de diferentes segmentos sociais, geralmente
esteve associada s camadas mais humildes da populao, chegando o seu consumo adquirir
certo preconceito (bebida de pobre, de negro, sendo inclusive menos valorizada em relao a
outros tipos de bebidas), o que segundo Alencastro (2000) est correlacionado ao seu papel de
mercadoria-escambo de escravos africanos e pela associao que se estabeleceu entre a
cachaa e So Benedito, o santo negro, essa representao racial do santo se agregou ao uso
da bebida que at o incio do sculo XX foi considerada no Brasil como uma bebida quase
exclusivamente de negros.13
O processo de fabricao das bebidas alcolicas fermentadas, predominantemente na
forma de vinhos e alguns tipos de cerveja, em virtude da produo artesanal, da conservao
que requeria consumao breve14
, dos obstculos da comercializao pelo transporte, da
restrio de disponibilidade do lcool e das oportunidades para o abuso da substncia
contribuiu para que no houvesse um consumo generalizado entre as pessoas, estando o uso
do lcool como que ritual ligado sempre s festas e a magia,15
o advento da destilao na
Europa, no sculo XIV, pelos alquimistas europeus, provocou uma revoluo, pois no
somente surgiram bebidas de elevado teor alcolico, cerca de 40 a 50%, aos 4 a 12% dos
fermentados16
como tambm, em contraste a situao anterior, seu consumo no possua as
11
VENNCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique. lcool e drogas na histria do Brasil. So Paulo:
Alameda; Belo Horizonte: Editora PUCMinas, 2005. 12
SOUTO, Maior. Dicionrio folclrico da cachaa. 3 ed. - Recife: FUNDAJ. Editora Massangana, 1985. 13
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op.cit., p.314. 14
De acordo com Braudel, no havia um mtodo de conservao do vinho, sendo o engarrafamento e o uso
regular de rolhas de cortias ainda desconhecidos no sculo XVII. (BRAUDEL, 1970, p. 189). 15
SANTOS, Fernando Dumas dos. Alcoolismo: a inveno de uma doena. Dissertao de Mestrado.
Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
Campinas, So Paulo, 1995, p. 3, 16
MASUR, Jandira. O que alcoolismo. So Paulo: Brasiliense, 1991.
25
formas coletivas ritualizadas de controle de usos abusivos e de investimento de significados
culturais na experincia inebriante.17
A questo da descoberta do lcool destilado constitui um ponto controverso entre
estudiosos dessa temtica, comumente atribui-se a Arnaud de Villeneuve (1250-1313),
mdico valenciano, a descoberta do lcool nos lquidos fermentados, mas presume que os
chineses prepararam essa substncia h muito tempo. Alm disso, diz-se que Albucassis,
mdico rabe, no sculo XI, foi o primeiro que falou da destilao de vinho, enquanto que
outros asseveram que a honra da descoberta pertence ao alquimista catalo, Ramon Llull
(1232 - 1316).
Para Braudel essas dedues so fantasiosas, pois, segundo ele, o lcool destilado foi
descoberto por volta do ano 1100, na Itlia meridional, pela Escola de Medicina de Salerno
que foi o mais importante centro qumico da poca.18
No entanto, o autor reconhece que
Arnaud de Villeneuve generalizou as aplicaes desse agente atravs de seu trabalho A
conservao da juventude, onde propagou que aguardente... realiza este milagre, dissipa os
humores suprfluos, reanima o corao, cura a clica, a hidropisia, a paralisia, o paludismo,
calma as dores de dentes, preserva das pestes, ilumina o esprito, conserva a mocidade e
retarda a velhice.19
Sendo ento, uma espcie de elixir para a conservao ou recuperao da
sade.
As bebidas destiladas, tambm chamadas de aguardentes acquavites ou eaux-de-vie
foram reconhecidas pelas suas virtudes mgicas, ou seja, pela capacidade de dissiparem mais
rapidamente as preocupaes; de produzirem alvio, mais eficiente, s dores; de prolongarem
a euforia. At o sculo XV, eram preparadas em pequenas quantidades pelos boticrios e
mdicos, sendo comumente utilizadas para conservar e obter essncias de ervas e frutos,
servindo ainda de matria prima para suas poes teraputicas. Raras e caras no estavam ao
alcance de todos os bolsos. Desde que tomadas com moderao ou diludas em gua, eram
recomendadas como tnico para combater doenas e infeces, como analgsico para
aliviarem as dores de clica e dentes, como cicatrizantes das feridas e lceras, e como
estimulantes para melhorar o rendimento no trabalho, para facilitar a digesto e para resistir
ao frio.
Nos ltimos anos desse sculo e os primeiros do XVI, esse panorama alterou-se
significativamente, ocorrendo uma mudana na manipulao das aguardentes, que escaparam
17
CARNEIRO, Henrique. Pequena Enciclopdia da Historia das Drogas e Bebidas: histria e curiosidades
sobre as mais variadas drogas e bebidas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p.52. 18
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 196. 19
Idem. Ibidem.
26
lentamente da esfera daqueles manipuladores direo de corporaes de comerciantes. O
incio da industrializao dos destilados ampliou a produo, provocou reduo dos preos ao
consumidor e consequente aumento do consumo por parte de um maior nmero de pessoas.20
Os destilados foram introduzidos na Amrica durante o sculo XVI e XVII, foi
quando, tambm, os europeus trouxeram o alambique para esse continente. Sobre esse aspecto
Braudel acrescenta que:
O alambique deu Europa uma superioridade sobre todos estes povos, a
possibilidade de fabricar um licor superalcolico, escolha: rum, usque,
Kornbrand, vodca, calvados, bagaceira, aguardente, gim: que que se deseja tirar do
tubo refrigerado do alambique? [...] inegvel que a aguardente, o rum e a agua
ardiente (o lcool da cana) tenham sido presentes envenenados da Europa para as
civilizaes da Amrica. [...] Os povos indgenas sofreram enormemente com este
alcoolismo que se lhes oferecia.21
De fato, os destilados contriburam para o declnio no consumo das bebidas
fermentadas locais no apenas dos amerndios, mas tambm dos africanos, a grande oferta e o
maior poder de inebriedade vo concorrer para sua preferncia, o que causou um impacto
drstico no regime alcolico desses povos na medida em que destituiu os referenciais
simblicos e interditos que circundavam o consumo das bebidas alcolicas, dando lugar a
episdios rotineiros de intoxicao alcolica.
Alm disso, os destilados desempenharam um papel importante no processo de
dominao colonial, os europeus utilizaram-nos como mtodos para que os nativos se
sujeitassem a sua dependncia,22
quer na frica, na Amaznia, no Estado do Brasil a cachaa
se afirmou como um produto essencial no contato inicial do colonizador e de seus agentes
com os nativos.23
Em 1786, Bernardo de Galvz, vice-rei do Mxico, ficara deslumbrado
com os efeitos do lcool destilado sobre os indgenas, recomendando que o levasse queles
que ainda no o conhecia, pois no existia mtodo mais bem sucedido que a consecuo de
uma nova necessidade que os obrigue estreitamente a reconhecer a sua dependncia forada
em relao a ns.24
Os depoimentos de viajantes, cronistas e jesutas europeus, que estiveram no Brasil,
durante o perodo colonial, do demonstrao, como fez o jesuta Jos de Anchieta, que
20
Idem. Ibidem. 21
Idem. Ibidem, p. 220-221. 22
FILHO, Miguel Costa. A cana de- acar em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Instituto do Acar e do lcool.
Rio de Janeiro, 1963. 23
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p.317. 24
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p.202.
27
aguardente da terra era a peste das aldeias, embriagando os ndios e levando-os aos
tumultos, insubordinao e homicdios.25
Num artigo, da Revista do Instituto Arqueolgico Histrico e Geogrfico
Pernambucano, intitulado: O alcoolismo na Histria de Pernambuco Antigo, o Cnego
Carmo Barata reafirma que os maus exemplos dos colonizadores no pouparam os ndios e
africanos do vcio da bebedeira.26
Esse alarde dos religiosos a respeito dos malefcios do
lcool na convivncia social revela seu carter contraditrio ao observarmos que a montagem
de destilarias de aguardente, nos aldeamentos indgenas, pelos missionrios, era fato
corriqueiro e aceitvel. O processo de catequese nos aldeamentos indgenas valeu-se do
progresso da indstria de derivados da cana-de-acar, dentre os quais se sobressaa
cachaa.27
Uma das opes possveis para entender a preocupao desses eclesisticos
parece assentar-se nos excessos e seus efeitos, ou seja, quando o consumo da bebida escapava
de seus controles.
A funo econmica do lcool mostrava-se mais explcita medida que o processo de
industrializao avanava, j dizia Immanuel Wallerstein, estudioso da formao do sistema
mundial, referindo-se ao final do sculo XVI, que a indstria mais prspera era
indubitavelmente a que produzia o perptuo refgio do pobre que se fazia cada vez mais
pobre: o lcool.28
Na segunda metade do sculo XVII, ser a indstria dos destilados, a opo segura
recesso econmica causada pela crise agrcola, que provocou a queda dos preos do trigo e
do centeio, sobretudo na Inglaterra, na Frana e na Alemanha na medida em que se colocara
ao alcance das populaes pobres tanto das cidades como do campo.29
Essa situao
possibilitou que cada pas colocasse em circulao seus destilados tpicos: o whiskey escocs,
o gim ingls e holands, a vodka russa, o marc francs, a bagaceira portuguesa, o absinto
espanhol, a grappa italiana, o obranntwein alemo se fizeram artigos de primeira
necessidades, dado que atravs dos sculos e em todos os pases, a bebida alcolica, alm do
prazer bquico e da intoxicao, oferece a caloria mais barata que os pobres podem
comprar.30
25
FILHO, Miguel Costa. Op. cit., p.360. 26
BARATA, Cnego Carmo. O alcoolismo na histria de Pernambuco antigo. Revista do Instituto
Arqueolgico Histrico e geogrfico Pernambucano. Recife, janeiro de 1933 a dezembro de 1935. Vol.XXXIII,
n. 155-158, p. 193-199. 27
AMOROSO, Marta. Crnios e cachaa: colees amerndias e exposies no sculo XIX. Revista de
Histria. N. 154. Departamento de Antropologia-FFLCH/USP, 2006, p.126. 28
CARNEIRO, Henrique. Op. cit., p. 4. 29
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., 2002. 30
Idem. Ibidem, p.308.
28
At mesmo as Amricas passaram a produzir seus destilados prprios: caso do pisco
(aguardente de uva) do Peru, do chinquirito (aguardente de cana) do Mxico, do rum das
Antilhas e da cachaa do Brasil, esses dois ltimos caracterizam as condies materiais e
espirituais da formao do moderno sistema mercantil31
na medida em que se fizeram os
circuitos de trocas do antigo sistema colonial, tanto no Brasil, como no Caribe e nos Estados
Unidos, esses produtos foram chaves na integrao do sistema das plantations de cana-de-
acar, do trfico de escravos.32
Conforme Henrique Carneiro (2009), o lcool alm da sua importncia como gnero
bsico no estabelecimento do sistema moderno do comrcio mundial, desempenhou um papel
decisivo na organizao de um sistema tributrio, fornecendo aos Estados modernos uma das
suas maiores rendas, as quais tornaram-se crescentes na medida em que os estados modernos
constituam seu sistema fiscal centralizado.33
Entretanto, as pretenses de exclusividades
encontraram os obstculos dos contrabandos, os brasileiros, por exemplo, fizeram forte
concorrncia aguardente e ao vinho portugus na frica e na prpria colnia. O Reino de
Portugal imps medidas draconianas fabricao da aguardente de cana de acar, preferida
em relao s bebidas portuguesas por ser bem mais barata, exigindo a derrubada das
engenhocas, as cassaes das licenas e a aplicao de multas.
Alm dos prejuzos que causava a renda real dos dzimos, julgava-se a nossa cachaa
responsvel pela desordem e rebeldia dos escravos. A associao do consumo de aguardente
de cana, como causa da rebeldia por parte dos escravos, foi um assunto bastante discutido na
vigncia do sistema escravista. No se pode negar que ela esteve relacionada a contextos de
resistncias, contudo no podemos credenciar que tenha sido a causa desencadeadora das
mesmas. A embriaguez dos escravos acompanhadas muitas vezes das brigas, das cantorias, da
prostituio era uma das principais queixas da populao s autoridades policiais, sendo
compreendida como elemento propiciador das desordens, estando o escravo e o taberneiro
sujeitos a priso, alm de multas aplicadas aos proprietrios das tabernas, exigia-se o
fechamento desses estabelecimentos mais cedo, assim que a noite ia chegando.34
De acordo com a historiadora Leila Mezan Alengranti (2009), em artigo denominado
Aguardente de cana e outras aguardentes: por uma histria da produo e do consumo de
licores na Amrica portuguesa, a crena na tendncia embriaguez e ao vcio da bebida, por
parte dos escravos, notria na documentao da polcia do Rio de Janeiro no incio do
31
CARNEIRO, Henrique. Op. cit., p.2, 2009. 32
Idem. Ibidem. 33
Idem. Ibidem, p.5. 34
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p.116; FILHO, Miguel Costa. Op. cit., p.146.
29
sculo XIX, sendo o escravo preso por estar provocando desordens, bebendo. Para a autora, a
bebida, ou a embriaguez dos afro-descendentes, parece ser, nesses casos, mais uma das
responsveis pelas prises e ameaas que a comunidade de origem africana despertava entre a
populao branca.35
As restries impostas produo, ao consumo e venda da aguardente brasileira no
foram aceitas de forma passiva, tendo, inclusive, provocado a Revolta da Cachaa, na
capitania do Rio de Janeiro em 1660,36
at porque sob os efeitos da crise geral do sculo XVII
sobre os produtos brasileiros (os preos do pau-brasil, do tabaco e acar despencaram) nos
mercados europeus e a concorrncia das Antilhas (para o acar), a cachaa brasileira tornou-
se importante gerador de riquezas na medida em que conquistando as feiras africanas
proporciona lucros aos senhores de engenhos, aumenta a oferta de escravo e assegura a
preeminncia brasileira sobre o trato negreiro na frica Central.37
Segundo Alencastro (2000), a intoxicao e morte dos soldados reinis em Angola, em
1679, depois de terem bebido a aguardente do Brasil, resultou na proviso rgia proibindo por
10 anos sua importao. Essa medida no se fez em favor da sade dos soldados portugueses
ou mesmo dos africanos, o que estava em jogo era o dano que a cachaa causava na
contabilidade dos revendedores de aguardente europia.38
Resolvida essa contenda em 1695,
passou a cachaa brasileira a ser dominante no mercado africano, entre os anos de 1699 -
1703, ela representava 78,4% do total das bebidas alcolicas legalmente importadas em
Luanda.39
Em desfavor da cachaa nacional, instituiu-se no s o argumento econmico, poltico,
social, como tambm, o mdico. O Errio Mineral, um dos primeiros tratados de Medicina
escrito em portugus no Brasil, de autoria de Lus Gomes Ferreira, mdico europeu que
residiu em Minas, de 1708 a 1730, expunha os malefcios resultante do uso e abuso dessa
bebida, responsabilizada como causa da morte de inmeros escravos em decorrncia de
doenas do bao, do mesentrio e do fgado. Aos brancos que apreciavam a cachaa
35
ALENGRANTI, Leila Mezan. Aguardente de cana e outras aguardentes: por uma histria da produo e do
consumo de licores na Amrica portuguesa. In: VENANCIO, Renato Pinto; CARNEIRO, Henrique (Orgs).
lcool e Drogas na histria do Brasil. So Paulo: Alameda, Belo Horizonte: Editora PUCMinas, p. 87, 2005. 36
CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Entre a sombra e o sol - a revolta da cachaa, a Freguesia de So
Gonalo de Amarante e a crise poltica fluminense (Rio de Janeiro, 1640-1667). Dissertao de Mestrado,
Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, 2003. 37
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p.310. 38
Idem. Ibidem, p.318. 39
Idem. Ibidem, p.318-322.
30
preconizava-se que morriam hidrpicos. Em contrapartida, conjecturava os benefcios da
aguardente portuguesa como boa para a sade, em certos casos, circunstancias e ocasies.40
Em virtude de um processo bem simples de fabricao da aguardente de cana de
acar e da difuso da lavoura aucareira (o gosto pela cachaa foi mais difundido em reas
produtoras de cana, pois teria sido resultado da produo do melao, uma das etapas da
fabricao do acar), houve uma tendncia da expanso da produo do produto, quer seja
para consumo domstico, quer para comrcio local ou externo. Essa crescente produo da
bebida demonstra que as providncias tomadas pelas autoridades rgias locais no surtiram os
efeitos desejados, afinal, um dos produtos mais importados para a colnia foram os
alambiques de cobre vindo da Europa.41
No buscamos aqui, necessariamente, enveredar por uma histria econmica da
produo das bebidas alcolicas. Ao contrrio, decidindo por essa trajetria, a pretenso foi
perceber os papis que desempenharam ao longo dos tempos, seus valores simblicos, as
percepes relacionadas ao seu uso, ou seja, o desejo foi realizar um histrico do consumo das
bebidas alcolicas, e assim apreender como em determinado contexto histrico, essa prtica
passou a ser vista sob um novo olhar que a revestiu de um carter patolgico, responsvel
pelo alcoolismo.
40
FILHO, Miguel Costa. Op. cit., p. 121. 41
Idem. Ibidem.
31
1.2 O processo de construo da doena alcoolismo
A partir da Revoluo Industrial, verificam-se alguns fatores que contriburam para
mudar o carter do uso de lcool: modernizao das tcnicas de produo com predominncia
da forma industrial sobre a artesanal, modificao do tipo de bebida fabricada em decorrncia
de tecnologia para produzir destilados com teor alcolico maior, aumento da produo,
reduo dos preos, maior acessibilidade ao produto. Deve-se considerar, ainda, o fato de que,
a maior parte da populao, comeou a viver em grandes concentraes urbanas, o que mudou
o perfil das relaes sociais. O consumo de bebidas alcolicas nessa conjuntura passou a ser
um tipo de subterfgio s transformaes experimentadas pelas pessoas no espao urbano,
uma espcie de lubrificante social. Essas condies favoreceram o uso indiscriminado e
generalizado das bebidas alcolicas.
De acordo com Thompson (1987), entre 1820 e 1840, houve na Inglaterra, um
acentuado aumento do consumo de gim e de usque, enquanto o consumo de cerveja, entre
1800 e 1830, decaiu devido a um imposto sobre o malte altamente impopular, o que levou
criao de inmeras cervejarias clandestinas, at o imposto ser revogado em 1830, gerando o
surgimento, em cinco anos, de 35 mil cervejarias.42
O uso abusivo, particularmente das bebidas destiladas nas grandes cidades europias e
norte-americanas deflagrou um debate intenso, envolvendo diversos atores sociais, entre os
quais escritores, religiosos, mdicos, para a definio de formas de controle sobre o uso de
lcool e, especialmente, sobre os bebedores. A resposta da Medicina deu-se no campo da
patologizao desse hbito, os mdicos que trabalhavam nos hospitais psiquitricos foram
rpidos em abraar a causa, demonstrando a partir de suas observaes clnicas que grande
nmero de pessoas que ali se encontravam hospitalizadas eram vtimas do abuso de bebidas
alcolicas.
O psiquiatra Benjamin Rush, j no final do sculo XVIII, foi um dos mentores do
comeo da resposta da Medicina s inquietaes da sociedade burguesa norte-americana ao
considerar o uso de bebidas alcolicas e, sobretudo, o beber excessivo como uma doena da
vontade, uma espcie de doena mental capaz de conduzir o indivduo que se expunha ao
consumo de bebidas alcolicas a um beber contnuo e, consequentemente, a perda de
controle sobre o consumo de lcool.
42
THOMPSON, Edward. P. A formao da classe operria inglesa. Rio de janeiro: Paz e Terra. Volume II,
1987, p. 183.
32
Na Europa, a primeira referncia do consumo de lcool enquanto doena surge na
Inglaterra na obra do mdico ingls Thomas Troter, intitulada: Essay Medical Philosophical
and Chemical on Drukenness de 1804, que indicava o hbito da embriaguez como uma
doena da mente. Definies similares surgiram em outras regies. Na Rssia, em 1819,
Carl Von Bruhl-Cramer realizou um estudo com bebedores e concluiu que a embriaguez
resultava de uma doena do sistema nervoso que produzia um desejo irreprimvel pelo
consumo de lcool, a qual denominou de dipsomania.
Em 1838, na Frana, o alienista Esquirol criou o conceito de monomania instintiva,
no qual incluiu o vcio alcolico salientando seu carter irresistvel, mas foi na obra do
mdico sueco Magnus Huss publicada em 1849, Alcoholismus chronicus, eller chronisk
alkoholsjukdom, ett bidrag till dyskrasiernas Knnedom, enligt egen och andras erfarenhet -
Alcoolismo crnico ou a doena alcolica crnica, uma contribuio ao conhecimento das
discrasias sob o meu ponto de vista e de outros autores -, que se utilizou, pela primeira vez,
no somente o termo alcoolismo para designar um conjunto de intoxicaes alcolicas que se
apresentava com sintomas fsicos e/ou mentais pelo uso excessivo e prolongado das bebidas
alcolicas como tambm a classificao desse hbito como doena.43
No entanto, a incluso do alcoolismo na classificao mdica no se deu de forma
imediata, sucedeu gradativamente, pois era recorrente o uso teraputico do lcool. O prprio
Magnus Huss considerava o alcoolismo como um problema proveniente das bebidas
destiladas, reconhecendo as virtudes teraputicas dos fermentados, entre os quais os vinhos
tinto, branco e doce ocuparam lugar de destaque, eram usados pelos mdicos para preparar
diversos medicamentos, estando em conformidade com crena comum na poca que a gua e
o lcool que eles continham, eram extremamente teis porque a gua lhes d a propriedade
de dissolver as matrias salinas, gomosas e extrativas; o lcool dissolve aquelas oleosas e
resinosas.44
O surgimento da teoria do lcool-alimento, desenvolvida nos anos de 1840, pelo
qumico alemo Liebig, comprova o quanto ainda era muito presente o uso das bebidas
alcolicas nas prticas mdicas. Liebig acreditava nas propriedades energticas do lcool
concebendo-o como alimento termognico, estimulante do funcionamento respiratrio e
digestivo do organismo.
As prprias bebidas destiladas tambm entravam na composio de medicamentos
prescritos pelos mdicos como a Poo Todd, formulada pelo mdico ingls Bentley por volta
43
CARNEIRO, 2OO2; CASTRO, 1902; SANTOS, 1995; 2007. 44
SANTOS, Fernando Dumas dos. Op. cit., p.2, 1995.
33
de 1860, que consistia numa mistura de gua e aguardente indicada para tratar depresso,
fraqueza fsica, febres, inflamaes, pneumonia, escarlatina, erisipela, varola, sarampo etc.45
Na Frana, o mdico Behier foi o que mais contribuiu para demonstrar os bons efeitos
da medicao alcolica em certas afeces como no reumatismo agudo, dores e feridas
(servindo de coagulante, cicatrizante e antisptico).46
De acordo com o historiador Fernando
dos Santos Dumas (1995), esse composto influenciou a produo de outras poes em vrios
pases europeus, apoiado nas pesquisas da fisiologia, da teraputica, da experincia e das
observaes cotidianas na clnica, propagando-se para outras regies abrangidas pela
medicina ocidental, inclusive para o Brasil, que o utilizou em vrios hospitais para combater
diversas enfermidades.
Os mdicos partidrios da teraputica do lcool defendiam que ela exigia precaues
quanta dosagem prescrita, regularidade do uso e o estado de sade do doente, pois o lcool
poderia servir ao mesmo tempo como remdio e veneno,47
advogando para si a exclusividade
da prescrio, justificando que ao medico pertence em cada caso particular estabelecer bem
as indicaes para auxiliar o doente na evoluo dos pheno-menos mrbidos.48
Dessa forma
vo atuando a favor de que o seu uso no pode, no deve ser discricionrio; pelo contrrio,
deve somente ser prescrito por aquelles que conhecem as suas propriedades physiologicas e
therapeuticas.49
Logo, o alcoolismo interpe-se em meio a um discurso divergente que oscilava entre
uso teraputico e a nocividade das bebidas alcolicas. Essa uma particularidade interessante
nos discursos sobre o consumo de lcool, quer seja mdico, religioso, filosfico, poltico e
econmico, a aparente falta de nexo ou de lgica em que situa o objeto em questo, que se
inscreve na ambivalncia entre remdio e veneno, prazer e desprazer, moderao e excesso.
importante observar que alcoolismo manteve estreita correlao com a concepo de
degenerescncia que impregnava a Medicina, desde o incio do sculo XIX, a qual podia ser
reconhecida na diversidade de trabalhos que tratavam das doenas classificadas como
degenerativas como a prpria cirrose heptica, uma doena alcolica do fgado.
45
VILHENA, Mathias Antnio Moinhos de. O uso de bebidas alcolicas. These - Cadeira de Hygiene e Histria
da Medicina da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1882. 46
Idem. Ibidem, p.26. 47
Ao administrar a teraputica pelo lcool, deveria associar a dosagem prescrita ao perfil do paciente, levando
em conta o tipo de atividade que exercia, seu temperamento, seu bitipo, seus hbitos alimentares. Usada em um
paciente com fraqueza levaria a embriaguez, poderia causar a asfixia, ansiedade etc. In: SAMPAIO, Antnio
Augusto da Costa. Do lcool: sua aco physiologiga e seu emprego no tratamento das doenas agudas e no
curativo das feridas. Dissertao apresentada a Escola Medico-Cirurgica do Porto, 1873, p, 47. 48
Idem. Ibidem. 49
VILHENA, Mathias Antnio Moinhos de. Op. cit., p.32.
34
Em O Nascimento da Clnica (2004), Foucault investiga a constituio da
racionalidade anatomoclnica que proporcionou a construo do saber mdico nas sociedades
modernas, saber que tem por objeto a doena ou o indivduo como corpo doente. Conforme o
autor, no final sculo XVIII, houve uma organizao de uma linguagem racional, objetiva,
experimental da Medicina sobre o seu objeto de ateno, criando a possibilidade de uma
experincia clnica. Atravs da anatomia patolgica, emergente no sculo XIX, pode-se
localizar, com o olhar criterioso da racionalizao cientfica, a enfermidade no organismo. a
poca em que se instaura a supremacia do olhar e a articulao do visto com o dito (a
verbalizao do patolgico se d a partir da maneira com que se olha o objeto de estudo).
poca que marca a soberania do olhar, visto que no mesmo campo perceptivo,
seguindo as mesmas continuidades ou as mesmas falhas, a experincia l, de uma s
vez, as leses visveis do organismo e a coerncia das formas patolgicas; o mal se
articula exatamente com o corpo e sua distribuio lgica se faz, desde o comeo,
por massas anatmicas. O golpe de vista precisa apenas exercer sobre a verdade,
que ele descobre no lugar onde ela se encontra, um poder que, de pleno direito, ele
detm.50
mediante esse olhar qualitativo que percorre a superfcie dos corpos que um saber
sobre a doena e o doente vai se configurando. A medicina projeta seu olhar ao microscpio
ou ao leito dos hospitais, a fim de encontrar uma explicao para a doena. O corpo, como
sede das doenas e a doena como algo objetivado, reificado prenuncia as bases nas quais a
Medicina moderna se consolidou.
No entanto, o conhecimento mdico no se restringiu apenas o corpus de tcnicas de
cura e do saber sobre a doena, ocupar-se- tambm, da dimenso coletiva da existncia
humana, atravs de uma poltica de sade que visava interferir nas condies de vida, para
modific-las e impor-lhes normas. Ao considerar que sade dos indivduos inclua
necessariamente as condies do espao social, a Medicina incorporou para si objetos
explicitamente sociais, como a poltica, o meio, a cultura, a cidade, os comportamentos e
hbitos humanos.
Dessa forma, o sculo XIX ver emergir a Medicina Social, que estabelecer prticas
coletivas de sade, assentadas em concepes moralizadoras, que buscavam a civilizao
dos indivduos dentro dos preceitos mdicos, isto , normalizar o homem e o meio em que
vive (inclusive suas instituies), com o propsito de adequ-lo culturalmente s regras
sanitaristas da medicina e a um modelo de indivduo saudvel estabelecido por essas regras.
50
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clnica. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004, p.2.
35
De acordo com Foucault (1979), trs modelos so considerados constituintes da
Medicina Social e suas premissas foram estimuladoras dos processos de interveno estatal
sobre as condies de vida da populao: a medicina de Estado (Alemanha), desenvolvida no
comeo do sculo XVIII, caracterizada por uma prtica mdica centrada na melhoria do nvel
de sade da populao, a fim de fortalecer o Estado.
A medicina do espao urbano (Frana), que emerge em fins do sculo XVIII,
juntamente com o fenmeno da urbanizao das grandes cidades, sobretudo, de Paris,
estruturada no controle do espao urbano (anlise de lugares que poderiam se formar e
reproduzir doenas), tornando-o orgnico e desodorizado por meio da higiene pblica, uma
tcnica de controle e conservao do estado de salubridade, de conservao da sade atravs
do controle material e social. Essa higiene pblica, base da Medicina Social francesa do
sculo XIX, tornou-se tcnica para conservar a sade, desenvolvendo um projeto tcnico-
cientfico de controle sobre o meio em busca do aperfeioamento da organizao social
(sanear esgotos, alargamentos das avenidas, controle de circulao de fatores patognicos
(miasmas): gua e ar, preveno s doenas etc.).
O outro modelo trata da medicina da fora de trabalho (Inglaterra), que surgiu com o
desenvolvimento industrial ingls, principalmente no sculo XIX, caracterizando-se por ser
essencialmente um controle da sade e do corpo das classes mais pobres para torn-las mais
aptas ao trabalho e menos perigosas s classes mais ricas.51
E foi segundo Foucault, o que
mais se disseminou no mundo ocidental do sculo XIX e XX, pois permitiu uma observao
mdica mais completa ao apoiar de um lado na assistncia mdica ao pobre, controle de
sade da fora de trabalho e esquadrinhamento geral da sade pblica, permitindo s classes
mais ricas se protegerem dos perigos gerais.52
E, por outro lado, porque permitiu a uma
medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma medicina administrativa encarregada de
problemas gerais como a vacinao, controle das epidemias etc., e uma medicina privada que
beneficiava quem tinha meios para pag-la.53
Os alienistas, nesse perodo, estavam empenhados na pesquisa do substrato
anatomopatolgico da alienao mental, acompanhando a racionalidade anatomoclnica que
orientava os modelos mdicos vigentes. Nos asilos, dessecavam os cadveres, e procurava na
formao do crnio ou nas leses cerebrais alteraes biolgicas capazes de dar
inteligibilidade aos transtornos mentais. Esse movimento pode ser compreendido como uma
51
FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.80 52
Idem. Ibidem, p. 97. 53
Idem. Ibidem.
36
maneira de legitimar a nascente Psiquiatria54
enquanto cincia e, mais especificamente, como
um ramo autnomo da Medicina. A ideia de um fator biolgico de natureza hereditria ou de
leses orgnicas como causas da alienao mental era destacado por Pinel, em seu Trait
mdico-philosophique sur lalination mentale, de 1801.
O surgimento das disciplinas como a Frenologia55
e a Antropometria, em meados do
XIX, interpretando a capacidade humana pelo tamanho e proporo do crebro reforou o
carter organicista do saber psiquitrico, dessa forma, os conhecimentos biolgicos foram
utilizados para explicar comportamentos humanos, supostamente regidos por leis naturais.
Surgem tabelas para identificar criminosos e loucos por meio de uma classificao baseada
nas formas corporais.
Com a Psiquiatria constituiu-se uma instituio especializada - o hospital psiquitrico -
como espao teraputico, de observao e cura. O lcus donde se conhecia a verdade da
doena, a qual podia ser observada, classificada, localizada clnica e experimentalmente sem
as interferncias malficas do mundo externo. Ao considerar o hospital como lugar onde a
doena desvelava seus segredos, o confinamento dos loucos do contato com todas as
influncias da vida social, e de qualquer convvio que pudesse modificar o que era
considerado o "desenvolvimento natural" da doena consagrou-se como medida mais
apropriada, pois o isolamento atendia ao mesmo tempo ato teraputico, epistemolgico (ato
de conhecimento) e social (medida de segurana frente periculosidade).
O modelo organicista proeminente nas cincias e disciplinas mdicas nessa poca,
influenciado pelo positivismo, tambm serviu de alicerce para explicar a ao das bebidas
alcolicas sobre os rgos e sistemas do corpo humano. As observaes da neurofisiologia, da
clnica serviram tanto para comprovar seus aspectos perniciosos quanto suas propriedades
teraputicas. A anatomia patolgica possibilitou observaes detalhadas dos efeitos mrbidos
54
A obra Trait mdico-philosophique sur lalination mentale Tratado Mdico - Filosfico sobre a Alienao
Mental ou Trait, de Pinel, publicada em 1801, inaugura a Psiquiatria como especialidade mdica dedicada
loucura, construindo-se a noo de que loucura era igual doena mental, de que o espao para o louco era o
hospital psiquitrico e de que o profissional habilitado para tratar a loucura era o psiquiatra. In: PESSOTTI,
Isaias. A loucura e as pocas. So Paulo: Ed. 34, 1994, p.145. 55
A Frenologia foi desenvolvida pelo mdico alemo Franz Joseph Gall, no sculo XIX, colocando-se como
instrumento capaz de determinar o carter, as caractersticas da personalidade, o grau de criminalidade e o
desenvolvimento das faculdades mentais e morais pelo formato externo do crnio. In: MIRANDA, Carlos
Alberto Cunha. A fatalidade biolgica: a medio dos corpos, de Lombroso aos biotipologistas. In: Histria das
prises no Brasil. Vol.2. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.282; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das
raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil (1870-1930). 1 ed.- So Paulo: Companhia das Letras,
1993, p.49.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Joseph_Gallhttp://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9culo_XIX
37
das bebidas alcolicas em diversos rgos a partir de experincias clnicas e autopsias
aplicadas em humanos e animais intoxicados pelo lcool (ces, sunos).56
Os avanos no conhecimento da fisiologia da clula sobre os efeitos do lcool no
sistema nervoso forneceram aos psiquiatras os meios necessrios para fundamentar suas
arguies de que uso de bebidas alcolicas provocava anomalias cerebrais e outras sries de
manifestaes mrbidas, profundamente perturbadoras do estado mental do indivduo
alcoolizado, j que paralisava seus centros do juzo e da reflexo, privava-o da conscincia e
da liberdade dos seus prprios atos, impelia-o agir de forma impulsiva por ideias que o lcool
despertava e/ou elaborava. A alcoolizao era, assim, aproximada a loucura, na medida em
que ambas distinguiam-se pela ausncia de conscincia nos atos praticados.
Os suos Auguste Forel e Alberto Mahaim (1902), o francs Legrain (1925), cujos
trabalhos foram referncias na produo discursiva brasileira sobre o alcoolismo, ressaltavam
que desde o incio da intoxicao, o crebro de um alcoolista no poderia ser tido como
normal.
Forel e Mahaim pronunciaram o pensamento psiquitrico a respeito da alcoolizao da
seguinte maneira:
Narcotisando e paralysando o cerebro, o alcool nos iludde acerca de sua ao.
Enfraquece a vontade, o sentimento, a razo, seja de uma frma aguda, na
embriaguez, seja por maneira chronica, no alcoolismo chronico. Theoricamente se
affirma que a vontade do homem lhe permitte dominar-se a tempo, quando o queira.
Na realidade, isto falso, por que o alcool age precisamente sobre a vontade,
encadeando-a e enfraquecendo-a. Os que param a tempo so os menos
predispostos.57
Os olhares perscrutadores dos psiquiatras no se restringiram ao corpo do indivduo
embriagado, mas tambm ao corpo social, pois associaram o mau funcionamento dos rgos
humanos ao mau comportamento dos indivduos,58
os quais no seu ponto de vista
necessitavam de ser examinados, controlados, classificados, afastados e isolados dos focos de
56
FONTES, Alberto da Costa. O alcoolismo: succintas consideraes sobre o papel em Nosologia e em
Sociologia. Dissertao apresentada a Escola Medico-Cirurgica do Porto, 1908. 57
FOREL, Auguste; MAHAIM, Albert. Crime et anomalies mentales constitutionnelles, 1902. In: MORAES,
Evaristo de. A embriaguez e o alcoolismo perante o Direito Criminal e a Criminologia. Editores: Jacinto Ribeiro
dos Santos & C. Rio de Janeiro, 1902, p.26. 58
SANTOS, Fernando Dumas dos. Moderao e excesso; uso e abuso: os saberes mdicos acerca das bebidas
alcolicas. Clio. Revista de Pesquisa Histrica. Recife. Programa de Ps- Graduao em Histria. Universidade
Federal de Pernambuco. Centro de Filosofia e Cincias Humanas/ apresentao Carlos Alberto Cunha Miranda.
Recife: Ed. Universitria da UFPE. N 24. Vol.2. 2007, p. 119.
38
contaminao, demonstrando claramente seu desejo de intervencionismo poltico e de
fornecer estratgias de controle para problemas sociais.
Com a teoria da degenerescncia do alienista francs Bndict Augustin Morel,
apresentada no seu Trait ds Dgnrescences, publicado em 1857, que supe uma
progressiva degenerao da espcie a partir de um tipo humano primordial idealizado, cuja
transmisso se daria pela hereditariedade, mas que, poderia ser adquirida no curso de uma
vida marcada por influncias nocivas de origem patolgica tuberculose, sfilis, paludismo,
doenas da infncia etc. ou social industrializao, urbanismo, pauperismo, imoralidade
dos costumes, conduta sexual desregrada, abuso de lcool e temperamentos mrbidos, a
psiquiatra encontrou um slido referencial sobre o qual ancorar sua interveno59
sobre a
sociedade de modo impedir a propagao da degenerao da raa, pois, conforme a ideia
moreliana, os efeitos da transmisso hereditria tenderiam acentuar os traos da tara, dos
vcios e estados mrbidos adquiridos pelos predecessores nas geraes subsequentes. Dessa
forma, uma linhagem acometida pela degener