Fobia Social

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL

A Emergncia da Categoria Fobia Social no Contexto da Rebiologizao da Psiquiatria

Ana Paula Silva Cavalcante

Orientadora: Profa. Dra. Jane Arajo Russo

Rio de Janeiro 2006

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL

A Emergncia da Categoria Fobia Social no Contexto da Rebiologizao da Psiquiatria

Ana Paula Silva Cavalcante

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Sade Coletiva, Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva, rea de concentrao em Cincias Humanas e Sociais em Sade, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Profa. Dra. Jane Arajo Russo

Rio de Janeiro 2006

C A T A L O G A O N A F O N T E U E R J / R E D E S I R I U S / C B C C376 Cavalcante, Ana Paula Silva. A emergncia da categoria fobia social no contexto da rebiologizao da psiquiatria / Ana Paula Silva Cavalcante. 2006. 145f. Orientadora: Jane Arajo Russo. Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. 1. Psiquiatria biolgica Teses. 2. Fobias Teses. 3. Doenas mentais Diagnstico Teses. 4. Doenas mentais Classificao Teses. I. Russo, Jane Araujo. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Ttulo. CDU 616.89 ________________________________________________________________________________

Ana Paula Silva Cavalcante

A Emergncia da Categoria Fobia Social no Contexto da Rebiologizao da Psiquiatria Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Sade Coletiva, Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva, rea de concentrao em Cincias Humanas e Sade, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Aprovado em: __________________________________________________________

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________________ Profa. Dra. Jane Arajo Russo (Orientadora) Professora Adjunta do Instituto de Medicina Social - UERJ

_____________________________________________________________________ Profa Dr. Kenneth Rochel de Camargo Jr Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social - UERJ

_____________________________________________________________________ Profa. Dra. Cristiana Facchinetti Pesquisador Assistente da Fundao Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

_____________________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Teresa Acatauass Venancio Pesquisador Assistente da Fundao Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

Rio de Janeiro 2006

Ao meu av Hilton Silva (in memoriam). Aos meus pais Miguel e Lecy Cavalcante, pelo apoio incondicional de toda uma vida; e aos meus sobrinhos, Nanda; Clarinha; Israel; Marcelinho; Gabi e Bia; esperana de futuro.

AGRADECIMENTOS

Agradeo Professora Jane Russo pela orientao firme e criteriosa e Coordenao da Psgraduao do IMS.

Pela oportunidade de discusses frutferas, agradeo aos meus colegas do IMS Bruno Zilli e Ceclia Chaves. A Karla Coelho, Alzira Jorge e Conceio Gomes, pelo apoio e compreenso nos momentos finais.

Ana Slvia Gesteira foi fundamental para a finalizao deste trabalho com sua cuidadosa reviso dos originais, agradeo a sua colaborao. Impossvel deixar de mencionar algumas figuras como, Gislaine Afonso, Daniel Canavese, Denise Scofano, Rafaela Zorzanelli, Grazielle Rievrs e Clber Ferreira pelo carinho e apoio em vrios momentos. Agradeo a Paulo Henrique Zuzarte, mais do que um amigo e a Cristiane Oliveira, pela grande fora e ajuda na reta final.

Finalmente, agradeo minha famlia, que sempre me acolheu e apoiou em todos os momentos: Miguel e Lecy, meus pais; Rita, minha segunda me; minha tia Bela (Amlia) e a minha av querida, Antonieta (Iai). A meus irmos Hilton Marinho, Ana Cludia e Srgio Augusto, companheiros na vida. E a amiga-irm Mnica Lima, que j faz parte desta famlia.

Agradeo a todas as pessoas que, de alguma forma, contriburam para que este trabalho fosse realizado.

The work of making, maintaining, and analyzing classifications systems is richly textured. It is one of central kinds of work of modernity, including science and medicine. It is, we argue, central to social life. (Bowker & Star, 2002)

RESUMOEste trabalho expe um estudo de caso da entidade clnica fobia social, como exemplar da ampliao numrica do espectro de diagnsticos psiquitricos, e identifica alguns dos elementos constituintes da construo da psiquiatria biolgica nos ltimos 26 anos, destacando aspectos que conduziram sua hegemonia. Buscou-se refletir sobre o aumento do nmero das categorias diagnsticas psiquitricas a partir da descrio da emergncia da categoria nosolgica fobia social, bem como das transformaes nos critrios classificatrios que propiciaram tal ampliao. A dissertao tem como objetivo descrever historicamente a construo de um novo diagnstico na psiquiatria com alvo no tratamento farmacolgico, a fobia social, com caractersticas at ento pertinentes esfera da personalidade ou abordada atravs das psicoterapias, comparando a abordagem das fobias em situaes sociais nas diferentes verses do DSM. Atravs da reconstruo do surgimento da fobia social como entidade distinta, pesquisou-se a produo cientfica sobre fobia social, atravs de reviso bibliogrfica em peridicos cientficos internacionais de 1966 a 1988 sobre o tema. Realizou-se, ainda, estudo comparativo entre as mudanas classificatrias acerca das fobias nas edies do DSM, culminando com a introduo da fobia social a partir do DSMIII. Conclui-se que a psiquiatria biolgica tornou-se a principal vertente na psiquiatria a partir de 1980, sendo a incluso da fobia social no DSM-III exemplar dessa transformao, com conseqente mudana de abordagem, de psicologizada para farmacologizada. Palavras-chave: fobia social; psiquiatria biolgica; sade coletiva; sade mental, classificaes mdicas.

ABSTRACTThis work presents a case study on the clinical entity social phobia, as example of the numerical amplification of the range of psychiatric diagnoses, identifying some elements which build the biological psychiatrics in the past 26 years, highlighting some aspects that led to its hegemony. It tried to reflect on the growing number of psychiatric diagnostic categories, based on the description of the emergence of the nosological category social phobia, as well as the changes in the classification criteria which made this amplification possible. The dissertation aims to describe the history of the construction of a new diagnosis in Psychiatrics, targeted at the pharmacological treatment, the social phobia, whose features, until then pertaining to the sphere of personality or approached by psychotherapies, as compared to the approach of phobias in social situations in the several versions of the DSM. Through the reconstruction of the emergence of the social phobia as distinct entity, the author assessed the scientific production on social phobia, through a bibliographical review of international scientific journals, published from 1966 to 1988. The author also carried out a comparative study between classification changes on phobias in DSM, ending with the inclusion of social phobia in DSM-III. The work concludes that biological psychiatrics became the main trend in Psychiatrics from 1980 on, and the inclusion of social phobia in DSM-III was an example of this, and consequently changed the approach from psychologized to pharmacologized. Key words: social phobia; biological psychiatrics; collective health; mental health, medical classifications.

SUMRIO

PGINA RESUMO ABSTRACT APRESENTAO INTRODUO A hegemonia da psiquiatria biolgica 1 MARCO TERICO-METODOLGICO 1.1. A medicina enquanto sistema cultural 1.2. Bourdieu e o conceito de campo 1.3. Teoria sobre as Classificaes 2 A VIRADA BIOLGICA NA PSIQUIATRIA 2.1. Consideraes gerais 2.2. Psiquiatria psicodinmica: a hegemonia das explicaes psicognicas 2.3. A psiquiatria biolgica 3 - O DSM: A BBLIA DA PSIQUIATRIA BIOLGICA 3.1. O histrico do DSM 3.2. A grande disputa pela hegemonia do campo psiquitrico na dcada de 1980 3.3. Classificar humano 4 DO DIAGNSTICO POLIMRFICO AO CRITERIAL: MUDANAS DOS PARMETROS CLASSIFICATRIOS DAS FOBIAS NO DSM 4.1. A fobia social 4.2. Diagnstico polimrfico x criterial 4.3 A forma de abordagem da Fobias nos DSM 4.3.1 Fobias nos DSM-I e DSM-II: classificaopolimrfica e critrios de causalidade 4.3.2 Fobias nos DSM-III; III-R e IV: classificao criterial e abordagem descritiva 5 DELINEANDO A FOBIA SOCIAL 5.1. A construo de uma nova categoria diagnstica 5.1.1 Consideraes metodolgicas 5.2. Mensurao e quantificao da ansiedade: 1966 a 1969 5.3. Os deslocamentos terminolgicos na constituio de uma nova categoria diagnstica: 1970 a 1979, a competio entre a ansiedade social e a fobia social 5.4. Delineando a fobia social 5.4.1. Diagnstico diferencial 5.4.2 A abordagem medicamentosa CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS ANEXO

10 14 14 24 24 28 30 32 32 34 39 46 46 58 65 73 73 78 81 81 89 100 100 100 105 112 118 120 122 127 132 137

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APRESENTAOO presente trabalho expe um estudo de caso da entidade clnica fobia social, como exemplar da ampliao do espectro de diagnsticos psiquitricos. Alm disso, a pesquisa identifica alguns elementos constituintes da construo da psiquiatria biolgica nos ltimos 25 anos, destacando aspectos que conduziram sua hegemonia. O interesse pela temtica surgiu durante vivncia pessoal da autora: psiquiatra, praticante da biomedicina em servios pblicos e privados de sade na cidade de Salvador, Bahia. Desde o incio de sua formao, foi possvel observar que as linhas de fora que entrecruzam o campo psiquitrico brasileiro deixavam transparecer uma disputa acirrada. Essa disputa de hegemonia gerou na autora certa curiosidade acadmica, que a levou a investigar os inmeros pontos de vista e explicaes, das mais diversas linhas tericas, sobre os transtornos mentais. primeira vista, o que levava adeso do residente ou psiquiatra a determinada construo terica era sua viso subjacente do ser humano. A compreenso da subjetividade humana parecia mais relevante do que a lgica interna de cada teoria ou sua validao cientfica na definio da postura profissional. Diante destas primeiras observaes, intensificou-se a necessidade de compreender as condies e possibilidade da ascenso da psiquiatria biolgica, como vertente hegemnica na psiquiatria. Ao estruturar o produto final da pesquisa aqui exposta, procurou-se descrever e situar historicamente o desenvolvimento da categoria fobia social, enquanto entidade clnica distinta nas classificaes psiquitricas atuais. A investigao pode contribuir com a compreenso da ampliao do nmero das categorias diagnsticas psiquitricas e a conseqente biologizao e farmacologizao de aspectos da subjetividade humana, at ento considerados pertinentes esfera da personalidade normal ou tratados com psicoterapia. O

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advento da categoria fobia social exemplar desse processo e por isso constituiu o foco principal da pesquisa. Foi realizado estudo comparativo entre as diversas mudanas classificatrias referentes ansiedade e s fobias ocorridas nas vrias edies do Manual Diagnstico e Estatstico dos Transtornos Mentais (DSM), da Associao Psiquitrica Americana (APA), desde sua criao, culminando com o advento de vrias novas categorias diagnsticas a partir da sua terceira verso, o DSM-III, em 1980. Alm disso, foi realizada pesquisa de artigos cientficos em diversos peridicos internacionais, de 1966 a 1988, focalizando, especificamente, a emergncia da categoria fobia social. Neste trabalho constam cinco captulos inter-relacionados. A introduo traz uma discusso acerca do surgimento da psiquiatria biolgica e a conseqente ampliao numrica das categorias diagnsticas ocorridas, bem como os critrios de classificao. O primeiro captulo traz a descrio do marco terico, com a explanao de conceitos dos autores que subsidiaram a anlise dos dados. O conceito de campo de Bourdieu foi particularmente destacado de sua obra para dar suporte ao entendimento da luta de foras que perpassaram a psiquiatria ao longo de sua construo, permitindo que, na atualidade, a psiquiatria biolgica se coloque como a vertente de maior prestgio no campo. Autores como Bowker; Star; Mauss e Durkheim, que se debruaram sobre a questo das classificaes sob diferentes abordagens foram utilizados para iluminar o caminho traado nesta anlise, bem como ampliar o entendimento da classificao psiquitrica atualmente utilizada. O segundo captulo caracteriza a psiquiatria biolgica como atual vertente mais importante. Para tal, foi traado inicialmente um panorama histrico da psiquiatria, remontando alternncia entre as explicaes biolgicas e psicolgicas dos transtornos

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mentais. Subseqentemente, procurou-se centrar a discusso sob a hegemonia da psicanlise por quase todo o sculo XX, sendo substituda pela psiquiatria biolgica a partir da dcada de 1970. A psicanlise influenciou decisivamente a psiquiatria e sua classificao nosogrfica, atravs de autores como Jung e Bleuler, alm do florescimento das explicaes psicognicas dos transtornos mentais, nos EUA, durante o ps-guerra, culminando com as edies do DSM-I e DSM-II pela Associao Psiquitrica Americana. Buscou-se priorizar ainda a descrio do advento da psiquiatria biolgica no final da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970, tornando-se a principal vertente no interior da psiquiatria, a partir de 1980, com as mudanas nas classificaes diagnsticas do DSM-III. Na terceira verso do DSM houve grande ampliao do nmero de diagnsticos, alm de mudanas na lgica classificatria e na nomenclatura. Dando continuidade explanao histrica da psiquiatria e ao mesmo tempo destacando a entidade fobia social, por ser foco do presente estudo, o terceiro captulo tambm faz um breve relato sobre o histrico do DSM, bem como da fobia social. Ainda no terceiro captulo, a propsito da luta empreendida entre a psiquiatria biolgica e a psiquiatria psicodinmica poca da edio da terceira verso do DSM, feita uma articulao entre essa disputa e os conceitos de Bourdieu acerca de campo social. Alm disso, feita uma articulao entre as caractersticas da atual classificao psiquitrica com as teorias sobre classificaes em dois trabalhos especficos. O primeiro, Sorting things out: classifications and its consequences, de autoria de Bowkker e Star. O segundo trabalho abordado foi o de Marcel Mauss e Durkheim intitulado Algumas Formas Primitivas de Classificao. O quarto captulo busca, inicialmente, situar e historicizar a emergncia da fobia social como entidade nosolgica distinta. Posteriormente compara os critrios

classificatrios implementados antes e depois do DSM-III pela psiquiatria. Traz, ainda, uma anlise dos dados coletados atravs da comparao da forma como as diferentes categorias de

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fobia em situaes sociais so abordadas nas diversas edies do DSM, relacionando essas mudanas com as transformaes sofridas no modelo utilizado como parmetro para classificao das patologias mentais. No quinto e ltimo captulo, feita a descrio do mtodo empregado na pesquisa dos artigos, bem como realizada uma anlise dos artigos cientficos sobre o tema, selecionados de 1966 a 1988, comparando-se a forma que os diferentes peridicos abordaram a questo da fobia em situaes sociais em trs perodos de tempo: de 1966 a 1969; de 1970 a 1979 e de 1980 a 1988. Nas consideraes finais fez-se um apanhado dos principais achados da pesquisa, bem como foram levantadas questes acerca da temtica da rebiologizao e

farmacologizao crescente da psiquiatria atualmente em curso.

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INTRODUOEste trabalho busca refletir sobre o aumento do nmero das categorias diagnsticas psiquitricas, a partir da descrio da emergncia da categoria nosolgica fobia social, bem como as transformaes nos critrios classificatrios que propiciaram tal ampliao. Para tal, procurou-se identificar os parmetros classificatrios, a nomenclatura utilizada e a descrio dos quadros nosogrficos relacionados s fobias utilizados pela psiquiatria nas diversas verses do DSM. Alm disso, foi realizado um levantamento sobre a produo cientfica em peridicos internacionais acerca das fobias em situao social no perodo de 1966 a 1988. A tendncia de criao de novas categorias diagnsticas um fenmeno comum na psiquiatria biolgica, vertente atualmente hegemnica e que se configurou a partir dos anos de 1960 e 1970, tendo como marco a publicao da terceira verso do Manual Diagnstico e Estatstico dos Transtornos Mentais (DSM-III), em 1980. A hegemonia da psiquiatria biolgica A psiquiatria se constituiu como especialidade muito precocemente, embora no tenha conseguido ao longo dos sculos a mesma legitimao cientfica da clnica mdica e de suas inmeras especialidades, assim como da clnica cirrgica. Para alguns autores, particularmente psiquiatras biolgicos, a marginalizao da psiquiatria, em relao s demais especialidades mdicas, decorreu de alguns aspectos importantes, tais como: a dificuldade encontrada para a definio da fisiopatologia dos transtornos mentais, o fato de a psiquiatria apresentar, at pouco tempo, incipiente arsenal farmacolgico e sua impreciso etiolgica. Nesta perspectiva, a psiquiatria biolgica teria surgido como redentora da psiquiatria, enquanto ramo da medicina. (LOUZ-NETO et al., 1995). O fragmento abaixo, encontrado

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facilmente em manuais de psiquiatria voltados para a formao de estudantes de medicina e residentes em psiquiatria, ilustra adequadamente a referida idia:Depois de um perodo de descrena no diagnstico psiquitrico e at na prpria Psiquiatria enquanto especialidade mdica capaz de tratar o doente mental v-se no momento atual um movimento de consolidao do conhecimento psiquitrico, a partir do estudo das alteraes biolgicas nas doenas mentais. A chamada psiquiatria biolgica sofreu um avano importante com o advento de novas tecnologias que permitem o estudo do sistema nervoso central in vivo. As neurocincias tambm trouxeram contribuies inestimveis para a compreenso do sistema nervoso, seus aspectos fisiolgicos, bioqumicos e moleculares. A dcada de 90 foi considerada pela Organizao Mundial de Sade como a dcada do crebro, h a esperana de que o aprofundamento dos estudos leve a uma compreenso da fisiopatologia e at da etiologia das doenas mentais. (LOUZ-NETO et al., 1995, p. 21).

Segundo Kirk e Kutchins (1992), a psiquiatria do final do sculo XX apresentava dois pontos de fragilidade. O primeiro se referia a uma competio acirrada entre os psiquiatras e os outros profissionais que atuavam na rea de sade mental e o segundo ponto, a uma desqualificao da Psiquiatria entre os colegas mdicos de outras especialidades devido a uma suposta inconsistncia cientfica. Desse ponto e vista, o que estimulou um maior reconhecimento do psiquiatra entre seus pares e entre os outros profissionais da rea da sade mental foi o advento da chamada psiquiatria biolgica, pois esta ajudou a diferenciar o conhecimento do psiquiatra, em relao aos outros profissionais de sade mental, e propiciou certa legitimao cientfica da especialidade (KIRK; KUTCHINS, 1992; MARTNEZHERNEZ, 2000). A psiquiatria pode ser considerada a primeira especialidade mdica desde que Pinel, no sculo XIX, resolveu desacorrentar os loucos, consider-los responsabilidade do campo mdico e passveis de tratamento. O alienismo, como uma forma de medicina especial, passou a se incumbir dos loucos encerrados nos asilos, introduzindo um enfoque clnico sobre a loucura (TEIXEIRA, 1987; CASTEL, 1978). A psiquiatria se consolidou com a interveno pineliana nos hospitais gerais franceses.

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Entretanto, desde o seu incio, a psiquiatria constituiu-se a partir de duas concepes opostas sobre os transtornos mentais: a fsica e a moral1:Se com o alienismo francs do incio do sculo XIX, cujos principais representantes foram Pinel e Esquirol, a vertente moral de fato prevalecia, a concepo moreliana de degenerescncia e, posteriormente, a nosografia Kraepeliniana fazem o pndulo oscilar na direo do fisicalismo mais estrito. E essa oscilao enraza-se num dilema que acompanha a medicina mental entre ser de fato parte integrante da medicina, ou assumir-se enquanto uma medicina especial. (RUSSO; HENNING, 1999, p. 43).

Kraepelin e Morel buscavam um substrato orgnico da doena mental e desejavam transformar a psiquiatria num ramo da medicina stricto sensu. (RUSSO; HENNING, 1999, p. 43). No sculo XX, com o surgimento da psicanlise, mais uma vez a vertente moral, ou psicolgica, voltou a dominar a cena, passando a denominar-se psiquiatria psicodinmica e, atrelada ao sucesso da psicanlise, tornou-se hegemnica durante quase todo o sculo passado. Categorias analticas como o inconsciente e transferncia passaram a influenciar tanto a teoria como a prtica no campo da sade mental. Com isso reforado o carter suigeneris da psiquiatria, enquanto uma especialidade mdica, tendo como pano de fundo a velha dualidade corpo/mente, ou somtico/psquico. (RUSSO; HENNING, 1999, p. 44). A partir da dcada de 1980, aps as mudanas ocorridas no DSM-III, a vertente fisicalista volta a prevalecer, conseguindo ainda maior penetrao nos anos 1990. A hegemonia fisicalista retorna, agora j com sua atual denominao de psiquiatria biolgica, que se impe como modelo hegemnico e hoje em dia invade a mdia com seus sucessos teraputicos. O velho dualismo mente/corpo deixado de lado em favor de um monismo fisicalista radical (RUSSO; HENNING, 1999, p. 44). Nas ltimas dcadas, a psiquiatria passou a privilegiar formas diagnsticas mais quantitativas e objetivas, como as escalas de avaliao, com pontuaes para se constituir um

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Neste contexto, o termo moral utilizado no sentido de oposto s causas fsicas. Moral, em Pinel, refere-se aos transtornos da alma e das paixes, em oposio s causas biolgicas.

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determinado diagnstico. Alm disso, houve mudana significativa nas categorias nosolgicas, com as novas verses das classificaes diagnsticas internacionais, como a Classificao Internacional de Doenas da Organizao Mundial de Sade (CID), atualmente em sua dcima verso, e o Manual Diagnstico e Estatstico dos Transtornos Mentais DSM (RUSSO; HENNING, 1999). Nesta direo, houve um retorno a uma abordagem de influncia kraepeliniana, que prope uma anlise mais descritiva e sem aluses etiologia das patologias. Este dado influenciou de forma expressiva as mudanas de nomenclatura na psiquiatria, principalmente quando da edio da DSM-III, em 1980, pela Associao Psiquitrica Americana. (KIRK; KUTCHINS, 1992; RUSSO; HENNING, 1999; RUSSO, 2004). A nova hegemonia torna-se evidente quando se avalia as mudanas de nomenclatura nas classificaes acima citadas: termos e conceitos psicanalticos foram substitudos por termos e conceitos supostamente neutros e puramente descritivos. Essa forma classificatria se presta perfeitamente aos interesses de uma concepo estritamente biolgica da psiquiatria, fundamentada numa cincia que se pretende neutra e imparcial (YOUNG, 1995; RUSSO; HENNING, 1999). A dcada de 1980 identificada como o perodo a partir do qual se impe hegemonicamente esta verso re-medicalizada da psiquiatria, concebida como um ramo das cincias mdicas, na qual predomina a interpretao fisicalista das perturbaes mentais. H uma psiquiatrizao de aspectos at ento referenciados psicologia e psicanlise, atravs da aproximao da psiquiatria com a biologia e a gentica, bem como uma crescente farmacologizao do cotidiano (BEZERRA-JNIOR, 2000). Essa rebiologizao aqui vista a exemplo do conceito de "medicalizao", utilizado por Donnangelo e Pereira (1979), quando analisaram a generalizao no consumo dos servios de sade, atravs do processo de:

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[...] ampliao quantitativa e a incorporao crescente da populao aos cuidados mdicos e, como segundo aspecto, a extenso do campo da normatividade da medicina por referncia s representaes ou concepes de sade e dos meios para se obt-la, bem como s condies gerais de vida. (DONNANGELO; PEREIRA, 1979, p. 33).

Foi a partir a terceira verso do DSM em 1980 que ocorreram as mais importantes modificaes na terminologia psiquitrica, como a extino da classe de doenas designada at ento como neuroses. Alm disso, termos como mecanismos de defesa, neurose, conflitos neurticos, comuns nas duas primeiras verses do DSM, principalmente no DSMII, desapareceram do DSM-III (HENNING, 2000). O DSM-III apresentou, portanto, vrias diferenas em relao s classificaes anteriores, o que reflete um esforo dos seus idealizadores em construrem uma classificao considerada aterica e descritiva, evitando consideraes etiolgicas, eliminando, desta forma, teorias anteriormente dominantes como a psicanlise e os modelos psicossociais. Alm disso, a substituio de termos como neurose e doena pelo termo transtorno, disorder, em ingls, aparentemente sem maiores conseqncias, amplia o que passvel de ser concebido como uma doena, j que transtorno uma circunscrio de um conjunto sintomatolgico relativo a comportamentos observveis e mensurveis considerados inadaptativos. Com isso, toda uma gama de comportamentos se torna objeto da psiquiatria. (HENNNG, 2000; RUSSO, 2004).A possibilidade de designar como transtorno qualquer tipo de comportamento ou conjunto de comportamento [...] j que se est apenas descrevendo de forma neutra e objetiva comportamentos, a nica exigncia para que um conjunto de comportamentos seja descrito como um transtorno que ele seja de fato um transtorno, isto , que ele seja um distrbio da ordem, uma falta de ordem. (RUSSO; HENNING, 1999, p. 48-49).

Com a mudana de hegemonia dentro da psiquiatria, no incio dos anos 1980, e a mudana radical da nomenclatura, na qual os termos e conceitos psicanalticos foram substitudos por termos e conceitos supostamente neutros, qualquer aluso a uma possvel etiologia foi suprimida e as designaes anteriores, influenciadas pela psicanlise, foram

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sendo substitudas por uma nomenclatura essencialmente descritiva (RUSSO; HENNING, 1999). Com a utilizao desta abordagem descritiva, a possibilidade de ampliao dos diagnsticos tornou-se mais efetiva. Para alguns autores, entretanto, no existe tal neutralidade e o que est embutido neste processo uma crescente farmacologizao de aspectos, que anteriormente eram psicologizados (RUSSO; HENNING, 1999; RUSSO, 2004). Alm disso, o controle dos indivduos e a domesticao dos corpos so mais do que nunca legitimados pelo saber mdico (FOUCAULT, 1993, 2003). Esta mudana de foco do psicoligizado para o farmacologizado dectada atravs do engendramento de alguns mecanismos, como o papel do aumento numrico das entidades clnicas e suas subsegmentaes, a forma descritiva e fenomnica de descrio destas entidades, bem como uma aproximao da psiquiatria da biologia e da gentica. Essa mudana, evidentemente, teve muitas implicaes, como o aumento do poder normativo da psiquiatria biolgica. O trecho abaixo sustenta a idia de que h um aumento da ingerncia da psiquiatria na vida cotidiana.The new diagnostic manual provides the official justification for psychiatrys expanding control over what some labeled the medicalization of deviance. The influence of the manual radiates out beyond the state asylum or the private physicians office, affecting many sectors of American life in subtle and at times controversial ways2 (KIRK; KUTCHINS, 1992, p. 8).

Um exemplo bastante discutido da expanso do nmero de indivduos enquadrados em uma categoria diagnstica at ento considerada rara, mas que tem aumentado sua prevalncia vertiginosamente, o TDA/H, o Transtorno do Dficit de Ateno com Hiperatividade, considerado at uma verdadeira epidemia pela psiquiatria atual. Lima (2005) discute esse

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O novo manual diagnstico fornece a justificativa oficial para a expanso do controle pblico da psiquiatria, que alguns tm rotulado de medicalizao do desvio. A influncia do manual irradia-se para alm do asilo estadual e dos consultrios mdicos privados, afetando muitos setores da vida da Amrica de formas sutis e, s vezes, controvertida.

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fenmeno e aponta para a ampliao do poder normativo da psiquiatria e para algumas de suas conseqncias:Como entender a exploso atual desse transtorno? Pela verso oficial, o nmero crescente de diagnsticos apenas faria justia a crianas e adultos que vinham sendo subdiagnosticados e que agora estariam sendo beneficirios do avano e da disseminao do saber psiquitrico. A cincia mdica, desse ponto de vista, estaria finalmente mostrando a verdade sobre o que os pacientes realmente tm e que antes poucos conseguiam enxergar (LIMA, 2005, p. 16).

Fica evidenciado que a retomada das teorias biolgicas dentro da psiquiatria atravs da edio de DSM-III, de inspirao kraepeliniana (KIRK; KUTCHINS, 1992; YOUNG, 1995), agora com muito mais fora e argumentaes cientificistas, tem aproximado cada vez mais esta especialidade mdica do restante da biomedicina e conseqentemente de sua racionalidade, como se destaca abaixo:A concepo biolgica da doena mental aponta para uma racionalidade estrita, na medida em que cabe razo humana, atravs da objetividade cientfica, desvendar o funcionamento do crebro de modo a controlar/erradicar os transtornos mentais. (RUSSO, 1997, p. 11).

Nesta perspectiva, segundo Bezerra-Jnior (1999), quase tudo passa a poder ser quantificado e classificado, passando-se a considerar que aquilo que ainda no foi desvendado em decorrncia das limitaes atuais do saber mdico. Esta crena est fundamentada em uma viso progressivista da cincia; portanto, espera-se que futuramente o crebro seja completamente desvelado, resolvendo-se todas as questes da sade mental. Desta forma, a psiquiatria biolgica reduz a mente a um subproduto do crebro, como sugere o comentrio abaixo:A chave de tudo est no funcionamento do crebro. E isto no significa afirmar apenas que qualquer expresso da vida mental, seja ela normal ou patolgica, implica na existncia de um estado ou de eventos cerebrais correlatos [...] e sim que estes estados nada mais so do que eventos e estados materiais (BEZERRA-JNIOR, 1999, p. 137).

Segundo ainda Bezerra-Jnior (1999, p. 137), no h maiores problemas quando se concorda com a existncia de estados cerebrais correlatos s expresses da vida mental, pois a

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idia compatvel com descries do mental, elaborada em vocabulrios psicolgicos irredutveis ao vocabulrio fisicalista, sem a necessidade da postulao cartesiana de uma mente ou uma psique imaterial. apenas quando se considera que os eventos mentais nada mais so do que eventos cerebrais e estados materiais, que se tende a tomar as outras abordagens como desnecessrias ou apenas acessrias e de modo algum comparveis ao conhecimento produzido pela psiquiatria biolgica ou por outras prticas dela decorrentes. O que parece estar subjacente disputa entre psiquiatras biolgicos e psicodinmicos, a antiga discusso entre corpo e mente. A psiquiatria nascente no sculo XVIII foi fortemente influenciada pelo pensamento cartesiano, no qual o ser humano constitudo por duas substncias, duas ordens ontolgicas distintas a mente e o corpo ou o esprito e a matria. Ou seja, a res cogitans, cuja existncia, no sendo material, se daria no tempo, e a res extensa, que se apresentaria no plano espacial da materialidade (BEZERRA-JNIOR, 2000). Essa polaridade tem acompanhado a psiquiatria ao longo de duzentos anos, possibilitando uma concepo do comportamento humano, da vida psicolgica e das doenas mentais, atravs de uma dupla dimenso: a biolgica ou orgnica; e a moral ou psicolgica. Esta concepo redundou em um duplo horizonte terico-prtico, comportando as dimenses biolgica e psicolgica. Embora sempre tenham se apresentado com certa tenso, os dois projetos tm, de algum modo, convivido na teoria e na prtica clnica. Cada um deles acentuando as dimenses que lhes parecem fundamentais nos fenmenos subjetivos e psicopatolgicos, refletindo uma disputa sobre o estatuto epistemolgico da psiquiatria. Estas vertentes tm-se alternado em hegemonia, como abordado no incio desta introduo, mas, ainda assim, tm convivido na prtica dos profissionais (BEZERRA-JNIOR, 2000). interessante perceber que cada um dos pontos de vista enseja em si mesmo diferentes e contraditrias vises de ser humano, o que nem sempre est claro para os praticantes da especialidade, que, muitas vezes, so formados paralelamente nos dois planos

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tericos e os consideram, de forma simplificada, apenas como diferentes ferramentas utilizadas em situaes, nas quais melhor se adaptem. Entretanto, no chega a ser tematizada, nem pelos jovens psiquiatras em formao, nem pelos seus mestres, a dimenso ontolgica diametralmente diferente que se encontra subjacente em cada uma das vertentes estudadas. (LUHRMANN, 2000). A mudana de paradigma na abordagem taxionmica das patologias na poca da reviso do DSM em 1980 foi justificada por uma insatisfao com relao impreciso presente tanto na atividade classificatria quanto na teraputica. O que parece evidenciar-se, no entanto, a decrescente legitimidade do modelo psicanaltico, deixando de ser um consenso na rea e passando a competir com outros modelos de compreenso dos transtornos mentais (HENNING, 2000). Com o uso na Psiquiatria de uma nomenclatura e uma classificao mais descritiva como a atualmente utilizada, a possibilidade de multiplicao dos diagnsticos tornou-se muito maior. Comportamentos que antes seriam no mximo considerados alteraes subclnicas ou caractersticas da personalidade, tratados com psicoterapia, so hoje largamente divulgados pela mdia como transtornos mentais passveis de tratamento medicamentoso. Para alguns autores verifica-se, portanto, o estreitamento do que considerado normal, e o alargamento daquilo que considerado doena (KIRK; KUTCHINS, 1992; LIMA, 2005; HENNING, 1998). Como conseqncia disso, mais facilmente qualquer pessoa pode fugir norma e ser classificada como portadora de algum transtorno diagnosticvel e o que mais significativo, passvel de ser tratado por drogas. A questo : quem tem a legitimidade para afirmar que tal ou qual comportamento fora da ordem, desadaptativo, ou seja, quem estabelece o padro de normatividade? (RUSSO, 1997; HENNING, 1998).

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H um impacto do aumento do nmero de categorias das doenas mentais e da crescente farmacologizao de caractersticas de personalidade dos indivduos. Tendo em vista a ampla adoo mundial do sistema diagnstico proposto em 1980 pelo DSM-III, considera-se relevante neste estudo buscar subsdios para a compreenso da repercusso da atual ampliao numrica das categorias diagnsticas psiquitricas e das transformaes na forma de classific-las. Neste trabalho, a compreenso desse fenmeno foi abordada a partir do caso especfico da emergncia da categoria fobia social incorporada s classificaes pelo DSM-III.

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1 - MARCO TERICO-METODOLGICO

1.1. A medicina enquanto sistema cultural A partir de uma viso da medicina como modelo de explicao da doena, especfico de certo universo cultural (KLEINMAN, 1978), deu-se o incio da realizao do trabalho de anlise comparativa das mudanas de nomenclatura engendradas pela Associao Psiquitrica Americana (APA), no Manual de Diagnstico e Estatstica dos Transtornos Mentais (DSM), desde sua primeira verso at a atual, o DSM-IV, atravs das mudanas ocorridas em relao abordagem das fobias, bem como a elaborao da histria do surgimento da categoria nosolgica fobia social, realizada atravs da reviso de artigos cientficos levantados na literatura mdica internacional, de 1966 a 1988. O trabalho de investigao focalizou o estudo especfico da nova entidade nosolgica, a fobia social, como caso exemplar da biologizao de aspectos da subjetividade humana, antes considerados pertinentes esfera do psicolgico, normal ou patolgico. Do ponto de vista da antropologia mdica interpretativa e da chamada nova psiquiatria transcultural, qualquer sistema de sade cultural, no mesmo sentido em que se compreende a religio, a linguagem, o parentesco. A biomedicina considerada tambm um sistema de significados simblicos ancorados em arranjos particulares de instituies sociais e de padres de interaes interpessoais (KLEINMAN, 1978 e 1979). A medicina no vista sob uma perspectiva mecanicista e estritamente tcnica, mas como parte integrante da cultura entendida aqui como teias de significados simblicos construdos socialmente (GEERTZ, 1978). No final da dcada de 1970, sob a influncia dos trabalhos de Arthur Kleinman, sobretudo seu artigo publicado em 1977, sob a no-universalidade dos transtornos mentais

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depressivos, no qual questionou os pressupostos psiquitricos da poca, inaugurou-se a Era da Nova Psiquiatria Transcultural. Kleinman contrariou a abordagem convencional, que buscava em sociedades no-ocidentais padres idnticos queles encontrados no Ocidente. Considerou ainda, como categoria falaciosa, a idia que as categorias diagnsticas seriam entidades livres de influncias culturais. Contrariamente, ele as considera modelos explicativos especficos do contexto cultural ocidental. Modelos explicativos so as interpretaes construdas pelos indivduos e seus familiares a partir das suas prprias experincias de sofrimento, bem como dos profissionais de sade. Esses modelos so elaborados de acordo com as noes especficas de etiologia, dos sintomas, do curso da doena e dos tratamentos utilizados em determinado contexto cultural (KLEINMAN, 1978). Na tradio dos estudos da antropologia mdica, comum o uso da diferenciao entre as noes de disease e illness, de modo a ressaltar as peculiaridades entre as explicaes biomdicas e as explicaes dos pacientes sobre as doenas. A primeira, disease, significa um mau funcionamento biolgico ou psicolgico. J a ltima, illness, representa as reaes pessoais, interpessoais e culturais s doenas (KLEINMAN, 1978). Em discusses posteriores, Young (1990) critica as referidas categorias, considerando que em contextos mdicos pluralsticos, como o caso do Brasil, por exemplo, ambas as noes so altamente limitantes para a compreenso da complexidade que envolve as concepes de doena, assim como a deciso de busca de tratamento. Keyes (1985) defendeu que disease constitui uma interpretao de um praticante, por exemplo, um psiquiatra, que percebe e rotula uma anormalidade dentro de seu sistema nosolgico especfico e no, necessariamente, um mau funcionamento biolgico. A partir dessas consideraes, tanto disease como illness so consideradas construes socioculturais, podendo ser aceitas

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como extradas de contextos sociais diferentes. No caso de disease, atravs do contexto social da biomedicina. Fora do contexto especfico da Psiquiatria, Peitzman (1992), em seu artigo sobre o surgimento da categoria doente renal em estgio terminal, demonstra que, em todas as reas da medicina, a moldura que dada a um conjunto de sintomas historicamente determinada, modificando-se ao longo dos sculos.Disease begins with perceived symptoms. And each generation of physicians has found ways to explain, and in that sense control, the fear and uncertainty such symptoms may provoke. The pain and dysfunction may not have changed over time, but the framework within which they are explained has changed with succeeding generations3 (PEITZMAN, 1992, p. 3).

Outro autor importante, que j no incio do sculo XX questionava a naturalizao das categorias diagnsticas da medicina, foi Ludwik Fleck (1981), que, atravs de sua anlise histrica sobre o surgimento da sfilis como entidade nosogrfica demonstrou como a cincia e seus pressupostos no esto livres de influncias culturais. Pelo contrrio, os conceitos cientficos, para Fleck (1981), esto submetidos ao que ele chama de coletivo de pensamento e se transformam a partir das mudanas ocorridas historicamente no estilo de pensamento. Coletivo de pensamento deve ser entendido aqui como uma instncia social, a qual no pode ser localizada de nenhuma maneira no mbito individual, no podendo ser comparado simples adio de foras individuais como quando um grupo de pessoas se rene para carregar um objeto pesado. Ainda para Fleck (1981), a cincia, por fazer parte da cultura, est submetida aos constrangimentos do estilo de pensamento de determinado momento histrico. Portanto,

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As doenas comearam a partir da percepo dos sintomas. E cada gerao de mdicos tem encontrado formas para explicar e, em certo sentido, controlar os medos e as incertezas que tais sintomas podem provocar. A dor e a disfuno podem no ter mudado ao longo do tempo, mas a moldura com a qual elas so explicadas tm mudado em sucessivas geraes.

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descreve a cincia como uma atividade coletiva complexa, que deve ser estudada por filsofos, historiadores, socilogos, antroplogos e lingistas. Segundo Fleck (1981), todos os caminhos para uma epistemologia positiva e frutfera conduzem ao conceito de coletivo de pensamento, ou seja, a variveis que so mutuamente comparveis e podem ser investigadas como resultado do desenvolvimento histrico. O estilo de pensamento pode ser visto como uma determinada disponibilidade ou disposio para uma percepo direta com sua correspondente assimilao objetiva e mental, caracterizando-se pelos aspectos comuns das questes de interesse para determinado coletivo de pensamento, atravs do julgamento que este mesmo coletivo de pensamento considera evidente. O estilo de pensamento de determinado coletivo submete-se ao reforo social. Tal reforo caracterstico de toda estrutura social. Ademais, o estilo de pensamento est sujeito ao desenvolvimento atravs de geraes. Ele constrange o espectro de pensamento individual, determinando o que pode e o que no pode ser pensado em determinado momento histrico. Desta maneira, para este autor, pocas inteiras so regidas por regras de determinado estilo de pensamento (FLECK, 1981). Fleck tambm questionou as entidades nosolgicas da medicina, e as considerou, em grande parte, fictcias, no sentido de construdas socialmente, chegando mesmo a questionar o prprio conceito de entidade nosolgica. Nesta perspectiva, essas categorias, portanto, so revistas constantemente e modificadas de acordo com as novas concepes vigentes (FLECK, 1981). Neste trabalho no sero comparados modelos explicativos sobre o processo sade/doena oriundos de diferentes contextos culturais, como comum nos trabalhos da psiquiatria transcultural. Diferentemente, ser realizada uma anlise comparativa entre modelos explicativos inerentes prpria cultura ocidental, gestados no interior da biomedicina.

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Bourdieu um autor importante para auxiliar na compreenso deste processo, atravs do seu conceito de campo (1983; 1989). Este conceito subsidiou a reflexo da alternncia de hegemonia dentro da psiquiatria, particularmente do momento de ampliao das categorias nosolgicas em 1980, com a ascenso da psiquiatria biolgica e de seus parmetros classificatrios. Esse conceito relevante para a compreenso das linhas de fora que atravessam o campo da medicina para alm do conhecimento tcnico-cientfico. Autores que refletiram sobre a questo das classificaes serviro de subsdio para a anlise e para a relativizao das atuais classificaes psiquitricas.

1.2. Bourdieu e o conceito de campo No intuito de entender a luta de foras antagnicas dentro do campo da psiquiatria, como a viso psicognica e a viso biolgica dos transtornos mentais, que, ao longo dos sculos, tm disputado o poder e a legitimidade cientfica, relevante o uso do conceito de campo social, tomados de emprstimo da obra do autor francs Pierre Bourdieu. Campo social um conceito particularmente rico na interpretao das mudanas de hegemonia, dentro de uma disciplina, como a psiquiatria, uma especialidade da medicina, rea de aplicao da cincia. Bourdieu descreve o campo como estrutura de relaes objetivas, levando em considerao no apenas as relaes imediatamente visveis entre os agentes envolvidos, mas, sobretudo, as relaes objetivas entre as posies ocupadas por esses agentes, que determinam a forma de tais interaes (BOURDIEU, 1989). Segundo Bourdieu (1983), o campo cientfico um universo relativamente autnomo, um sistema de relaes objetivas entre posies anteriormente adquiridas, tambm estabelecidas atravs de lutas. um espao de jogo, de uma luta de concorrncia, na qual o que est em disputa o monoplio da competncia cientfica.

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O campo da cincia, no s um campo de concorrncia, como tambm tem suas peculiares formas de interesses, diferentes de outros campos. Portanto, aqui no cabe fazer distines entre o que estaria relacionado com a competncia cientfica e se enquadraria em uma hipottica pura capacidade tcnica e aquilo que estaria no mbito das representaes sociais e do poder simblico. Assim, toda a liturgia acadmica, com seus ttulos e hierarquias, modificam a percepo social da capacidade propriamente tcnica, nas palavras do prprio Bourdieu:Os julgamentos sobre a capacidade cientfica de um estudante ou de um pesquisador esto sempre contaminados, no transcurso de sua carreira, pelo conhecimento que ele ocupa nas hierarquias institudas (BOURDIEU, 1983, p. 124).

Logo, uma anlise que tentasse isolar somente uma das dimenses presentes nos conflitos, quer pela dominao do campo cientfico, quer pela dimenso poltica, ou ainda pela dimenso puramente intelectual, estaria incorrendo em uma postura reducionista e limitada. Para Bourdieu essas dimenses esto sempre imbricadas, como esclarece no trecho abaixo: o campo cientfico, enquanto lugar de luta poltica pela dominao cientfica, que designa cada pesquisador, em funo da posio que ele ocupa, seus problemas, indissociavelmente polticos e cientficos, e seus mtodos, estratgias cientficas que, pelo fato de se definirem expressa ou objetivamente pela referncia ao sistema de posies polticas e cientficas constitutivas do campo cientfico, so ao mesmo tempo estratgias polticas. (BOURDIEU, 1983, p. 126).

Deste modo, a autoridade cientfica que possui um poder simblico, assegura o poder sobre o campo. Como o campo cientfico um campo fortemente autnomo, um produtor de cincia sempre espera o reconhecimento de seus pares, que so tambm seus concorrentes, atravs de reputao, prestgio, autoridade e competncia. H um reconhecimento propriamente tcnico e um reconhecimento simblico implicados. Pensando nas diferentes linhas de fora que disputam a hegemonia no campo psiquitrico, particularmente, h duas vertentes que tm se alternado na histria da disciplina,

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a vertente biolgica ou fisicalista e a vertente moral ou psicolgica. O conceito de campo e suas aplicaes se mostram importantes instrumentos de avaliao e de apreciao do momento que foi recortado, isto , do final de dcada de 1960 at o incio da dcada de 1980. Para cada uma das linhas de pensamento, a reputao, o prestgio e a legitimidade da competncia cientfica foram essenciais na disputa.

1.3 Teorias sobre as Classificaes Em Sorting things out: classification and its consequences, Bowker e Star (2002) elaboraram uma discusso sobre as classifcaes em geral, atravs de uma discusso sobre a classificao mdica da Organizao Mundial de Sade - OMS, a Classificao Internacional de Doenas e Problemas Relacionados Sade - CID. Para tanto, alm de diferenciar alguns conceitos como Classificao e Padronizao, os autores ressaltam ainda algumas caractersticas das mesmas em nosso cotidiano: como seu poder coercitivo; sua invisibilidade e utilizao automtica pelos indivduos, que em geral, no se do conta de que se trata de construes sociais e histricas, no necessariamente ruins. Os autores advertem que embora as classificaes no sejam em si, nem boas nem ms, comportam uma dimenso tica que podem se tornar em um instrumento perigoso se utilizado acriticamente. (BOWKER; STAR, 2002). Outros autores destacados nesta anlise so: Marcel Mauss e mile Durkheim, que atravs da anlise de algumas classificaes primitivas conseguem relacionar as suas caractersticas s atuais classificaes cientficas. Mauss e Durkheim (2001) relativizam o estatuto de verdade e a naturalizao das classificaes modernas, demonstrando que o prprio fato do ser humano classificar no inato, sendo a prpria noo de categorias como espcies e gnero, uma construo cultural.

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Estes dois trabalhos acima citados foram utilizados para substanciar a discusso sobre as categorias psiquitricas do DSM, manual atualmente amplamente aceito e adotado mundialmente. Deste modo, possvel relativizar e elucidar melhor o surgimento da categoria nosogrfica fobia social como entidade distinta.

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2 - A VIRADA BIOLGICA NA PSIQUIATRIA

2.1. Consideraes gerais Atravs da sistematizao dos principais momentos da histria da psiquiatria, pode-se perceber uma alternncia de hegemonia dentro da disciplina, por vezes sobressaindo os aspectos morais ou psicolgicos dos transtornos mentais, e por vezes, as explicaes fisicalistas, tomando uma dimenso mais importante. Fez-se uma pequena amostra da alternncia histrica, com o intuito de contextualizar e facilitar o entendimento do momento pelo qual passa a psiquiatria deste incio de sculo XXI, uma vez que, desde seu surgimento, teve que se haver com o dilema da etiologia da doena mental, como demonstra Birman (1978) no trecho abaixo:Em suas origens, a teoria da alienao mental girou fundamentalmente em torno da determinao dos lugares dos fenmenos fsicos e morais, procurando circunscrev-los, definindo desta forma o que seria da ordem do corpo e o que seria da ordem das paixes. Pretendia-se uma caracterizao destas noes para o campo emprico da loucura, enquanto elementos centrais para fundamentao de sua causalidade (BIRMAN, 1978, p. 41).

Hoje ainda existem, de forma contra-hegemnica, mas ainda com bastante fora, os adeptos de uma psiquiatria que no exclua os aspectos psicolgicos do ser humano e que no reduza a mente a um mero produto do crebro. Entretanto, a chamada psiquiatria biolgica cada vez mais forte, com uma tendncia a excluir todas as outras abordagens no-biolgicas dos transtornos mentais (BEZERRA-JNIOR, 2000). Entende-se aqui, por psiquiatria biolgica, a vertente mais atual das explicaes fisicalistas desse campo, a qual tem como projeto a pesquisa das bases fisiolgicas, genticas e qumicas dos transtornos mentais, alm do desenvolvimento e do uso de psicofrmacos no seu tratamento (KIRK; KUTCHINS, 1992).

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Nesta direo, as contribuies histricas de disciplinas como a psicanlise e as abordagens psicossociais, ou seja, as abordagens subjetivas dos problemas mentais tm pouca importncia heurstica para a psiquiatria biolgica. O que antes se localizava na esfera do psicolgico pode perfeitamente ser interpretado, a partir do avano da neurocincia, como uma disfuno do sistema nervoso detectvel por exames e tratvel por psicofrmacos (RUSSO; HENNING, 1999, p.44). Deste sobrevo pela histria da psiquiatria, puderam-se destacar quatro momentos de importante inflexo, que embora no sejam estanques, so exemplares de alternncia da hegemonia dentro da psiquiatria (RUSSO, 1997; HENNING, 1999 e 2000). O alienismo, primeira vertente da psiquiatria, que se confunde com a prpria constituio do campo psiquitrico enquanto especialidade mdica se caracterizou pelas explicaes morais como as principais causas das doenas mentais. Pinel e Esquirol foram seus principais expoentes. Costuma-se se considerar o alienismo como a primeira especialidade mdica, tendo se constituindo no final do sculo XVIII como uma forma de medicina especial (CASTEL, 1978; BIRMAN, 1978; RUSSO, 1997; BERCHERIE, 1989). Um segundo momento ocorreu com o declnio progressivo das teorias de cunho moral na psiquiatria, em meados do sculo XIX, e se caracterizou por uma busca de explicaes biolgicas dos transtornos mentais e um realinhamento da psiquiatria ao modelo da medicina geral, que, nessa poca, j se encontrava fundado no paradigma antomo-clnico (BIRMAN, 1978; BERCHERIE, 1989; FOUCAULT, 2003). A descoberta da etiologia da paralisia geral progressiva, por Bayle, em 1822, as teorias sobre hereditariedade e degenerescncia no final do sculo XIX, e tambm um olhar nosolgico diferente, inaugurado por Kraepelin no final do sculo XIX e incio do XX, constituram um novo paradigma na psiquiatria, no qual a busca por um substrato biolgico, como base dos transtornos mentais, se tornou objetivo principal da rea (BERCHERIE, 1989).

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O terceiro momento surgiu com o advento da psicanlise, que revolucionou a psicologia da poca e influenciou decisivamente a psiquiatria. Houve, nessa fase, um retorno a explicaes de cunho psicognico, que perdurou durante quase todo o sculo XX. Nesse momento, configurou-se o que ficou conhecido como a psiquiatria psicodinmica, na qual se utilizavam os conceitos freudianos numa tentativa de explicar as alteraes psicopatolgicas dos transtornos mentais (BERCHERIE, 1989; KIRK; KUTCHINS, 1992). Freud, o pai da psicanlise, influenciou no apenas a psiquiatria, mas tambm o curso do moderno pensamento sobre a psicologia humana. Suas teorias sobre os transtornos mentais so psicodinmicas e baseadas nas experincias infantis. Para Freud, tais experincias so registradas numa instncia que ele denominou de inconsciente e modelam a forma de pensar, sentir e agir do ser humano ao longo de toda a sua vida. Embora Freud tenha sido inicialmente marginalizado e rejeitado pela comunidade mdica de Viena, suas teorias e descries de cura capturaram a imaginao do pblico em geral e, finalmente, a teoria psicanaltica passou a dominar a moderna psicologia no Ocidente (KIRK; KUTCHINS, 1992). No incio do sculo XX, nomes como os de Jung e Bleuler se destacaram na tentativa de explicar a doena mental luz das teorias psicanalticas.

2.2. Psiquiatria psicodinmica: a hegemonia das explicaes psicognicas O advento da psicanlise no incio do sculo XX revolucionou a psicologia da poca e influenciou decisivamente a psiquiatria, com o retorno s explicaes de cunho psicognico, como j mencionado, instituindo a chamada psiquiatria psicodinmica. Esta vertente da psiquiatria tornou-se hegemnica durante boa parte do sculo XX, passando a privilegiar as explicaes psicognicas dos transtornos mentais em detrimento da causalidade orgnica. De todo modo, costuma-se defini-la como:O conjunto das correntes e escolas que associam uma descrio das doenas da alma (loucura), dos nervos (neurose) e do humor (melancolia) a um

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tratamento psquico de natureza dinmica, isto , que faa intervir uma relao transferencial entre o mdico e o doente (ROUDINESCO, 2000, p. 37).

Na dcada de 1900 surgiram na Alemanha e na Sua duas correntes de pensamento psicodinmicas na psiquiatria como forma de reao s concepes de Kraepelin, principalmente contra a noo de entidade mrbida que ele havia tomado de Falret e Kahlbaum. A psicanlise leva para a psiquiatria a noo de inconsciente, resgatando a dimenso psicolgica como forma de explicao para a doena mental, como sugere Henning na passagem abaixo:Com a psicanlise que o plano psicolgico se automatiza definitivamente. Freud se afasta da importncia dada ao substrato orgnico, introduzindo a noo de conflito inconsciente como chave para a compreenso das doenas mentais. Ou seja, a dimenso psicolgica autonomiza-se em relao ao orgnico ao mesmo tempo em que ganha um ndice de indeterminao. O determinismo inconsciente surge no lugar do biodeterminismo (HENNING, 1998, p. 50).

A primeira corrente psicodinmica na psiquiatria surgiu atravs das concepes de Moebius e a segunda se constituiu em Zurique atravs dos trabalhos de Jung e Bleuler. Moebius props, em 1888, uma concepo da histeria prxima da que Babinski desenvolveu posteriormente, em 1901, que foi paulatinamente ganhando espao. Podemos considerar histricas todas as modificaes malficas do corpo causadas pelas representaes (MOEBIUS apud BERCHERIE, 1989, p. 225). Desta forma, ele tentava explicar a suposta sugestionabilidade e auto-sugesto atribuda aos histricos, assim como sua propenso a desenvolver sndromes nervosas e mentais, uma vez que para ele as representaes exerciam grande influncia sobre as funes psquicas e corporais na histeria, tanto no sentido da inibio, como no de excitao. Esta uma das primeiras explicaes psicognicas dos sintomas da histeria. Moebius enfatizou ainda a importncia das reaes aos acontecimentos e s situaes vitais nas patologias

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mentais, assim como da predisposio atravs dos caracteres degenerativos, como condio prvia ao desencadeamento da doena (BERCHERIE, 1989). A psicose dos prisioneiros tambm se tornou objeto de estudo pela escola psicognica. Alunos de Moebius, como Siefert, Bonhoeffer e Birnbaum, retomaram explicaes desses estados psicticos agudos, a partir de uma viso psicogenicista. Para eles, a reao acarretada pelo choque psicolgico do aprisionamento e as prprias condies desfavorveis da vida carcerria desencadeariam o aparecimento de sndromes agudas. E o grande argumento da hiptese reacional era o fato de que, em geral, os sintomas desapareciam quando se mudava o indivduo do meio carcerrio para um hospital, por exemplo, ou ainda quando se relaxava o regime de priso. Esses autores consideravam as psicoses dos prisioneiros um estado intermedirio entre a parania e a histeria (BERCHERIE, 1989). A segunda corrente psicodinmica na psiquiatria surgiu a partir de 1904, em Zurique, com Bleuler e Jung, sob a influncia das idias de Freud no meio psiquitrico. Em 1906, foram editadas duas obras que objetivavam explicar a psicose atravs de conceitos psicanalticos. Jung escreveu sobre a demncia precoce e Bleuler sobre a parania. Ambos enfatizaram a partir dos primeiros trabalhos de Freud a importncia da afetividade na regulao ou na perturbao da vida psquica e do pensamento. Bleuler aplicou tais conceitos parania de Kraepelin (BERCHERIE, 1989). O trecho abaixa elucida como Bleuler fez esta articulao:O nico sintoma da parania, a formao delirante, demonstra ser uma forma de reao a algumas situaes externas e internas [...]. Invariavelmente, encontramos na raiz da doena uma situao que os pacientes no podem assumir e qual reagem por meio da doena (BLEULER apud BERCHERIE, 1989, p. 227).

Desta forma, Bleuer considerava que o modelo da formao delirante era fornecido pelo estado passional do homem normal.

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Tratava-se de uma situao vital (profissional ou sexual) desfavorvel, que humilhava o sujeito e o atingia afetivamente de maneira muito intensa. Ele reagia rejeitando a realidade ou atribuindo a seu fracasso uma m-vontade externa, constituindo assim as linhas mestras do delrio, que ento passava a se alimentar da interpretao de todos os acontecimentos enfrentados pelo sujeito e do falseamento de suas lembranas em prol de uma atividade ruminativa permanente, mantida pelo complexo (BERCHERIE, 1989, p. 227).

Outra importante contribuio de Bleuler, que perdura at hoje, a mudana na denominao da demncia precoce de Kraepelin, passando a design-la de esquizofrenia. Inicialmente, Bleuler empregou o termo no plural, grupo das esquizofrenias. A partir de 1906, passou a empregar o termo esquizofrenia porque acreditava que no se tratava de uma demncia e que nem sempre o desencadeamento era precoce. Para ele, esse termo fazia aluso a mecanismos da psicopatologia. Ele fez um esforo terico para aplicar os conceitos freudianos, a fim de explicar a ento demncia precoce.Assim, as perturbaes do fluxo do pensamento (bloqueios, estereotipias, estagnaes), as perturbaes de seu contedo (associaes estranhas, discursos hermticos, verbigerao, ambivalncia), as bizarrices afetivas ou volitivas, os sintomas catatnicos, os delrios e alucinaes, etc. encontraram sentido na psicologia dos complexos e nos mecanismos (condensao, deslocamento, simbolizao, etc) evidenciados por Freud no estudo dos sonhos e dos atos falhos. Tudo aquilo que, para os autores precedentes, parecia decorrer do acaso ou da leso, tornou-se assim a expresso de um movimento psicolgico: desejo, em particular sexual, averso, medo, recusa de uma realidade penosa, ou reao a um acontecimento vivido ou esperado, a uma relao interpessoal ou a um meio especfico (BERCHERIE, 1989, p. 230).

Durante todo o sculo XX, a psicanlise se disseminou pela Europa e penetrou nos Estados Unidos, sobretudo aps a Segunda Guerra Mundial. Com a ascenso do nazismo na Alemanha, houve uma imigrao compulsria dos analistas judeus para a Inglaterra e principalmente para os Estados Unidos, gerando grande impulso psicanlise anglo-saxnica. O fenmeno propiciou uma mudana de sede da psicanlise, levando o ingls a se tornar a principal lngua da psicanlise, em lugar do alemo, e Londres o principal centro psicanaltico, no lugar de Viena. Em geral, a psicanlise mantinha com a medicina uma relao de atrao e repulsa. Nos EUA, entretanto, essa relao se estreitou muito por conta

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da vinculao entre a psiquiatria americana com a psicanlise. Com a grande entrada de mdicos para o campo psicanaltico nos EUA, passou a haver grande questionamento da chamada anlise leiga, no praticada por mdicos naquele pas. Apesar de Freud (1976) terse colocado pessoalmente contra o monoplio mdico da psicanlise, a Associao Mdica Americana optou por banir a chamada anlise leiga, sendo este um grande motivo de crises e dissidncias na International Psychoanalytical Association. (CARRARA; RUSSO, 2002). A hegemonia da psicanlise anglo-saxnica coincidiu com o aumento da vinculao da psicanlise com a psiquiatria, sobretudo nos EUA. Desta maneira, a formao psicanaltica tornou-se praticamente obrigatria para a formao do jovem psiquiatra (CARRARA; RUSSO, 2002). O trecho abaixo refora a idia de que a psicanlise passou a ser a vertente mais importante no campo psiquitrico, sobretudo nos EUA a partir da segunda metade do sculo XX, influenciando, decisivamente, as duas primeiras verses do DSM editadas pela APA.A penetrao da psicanlise no meio psiquitrico americano, por exemplo, foi notvel, a ponto de, nos anos 1950 e 1960, tornar indispensvel ao futuro psiquiatra uma formao em psicanlise. Sua influncia nas duas primeiras verses do DSM (Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders) produzido pela American Psychiatric Association foi inquestionvel (CARRARA; RUSSO, 2002, p. 276).

Com a experincia dos psiquiatras, durante a guerra, produziu-se nos EUA uma mudana na nosologia psiquitrica corporificada no primeiro Manual de Diagnstico e Estatstica dos Transtornos Mentais, publicado em 1952, pela Associao Psiquitrica Americana, atualmente conhecido como DSM-I (KIRK; KUTCHINS, 1992). A primeira edio do DSM refletiu a mudana poltica e terica ocorrida na psiquiatria americana. A tradio somtica deu lugar a uma perspectiva psicodinmica e psicanaltica. O novo ponto de vista, diferentemente das teorias biolgicas, enfatizava o papel do ambiente e apontava para a direo de uma variedade de formas menos severas de transtornos que passaram a chamar a ateno dos psiquiatras. Psiquiatras de instituies militares, que em

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geral trabalharam durante a guerra, tinham dificuldade em usar as velhas nomenclaturas para descrever os novos quadros desencadeados pelo stress, uma vez que muitos quadros novos se beneficiavam de breves tratamentos no-institucionais. Aps a Segunda Guerra, principalmente nos EUA, h grande crescimento do nmero de psiquiatras e uma mudana radical do local de atuao dos mesmos, que migram cada vez mais dos hospitais para clnicas e consultrios privados (KIRK; KUTCHINS, 1992). O DSM-II, segunda verso da atual classificao americana, publicado pela APA dezesseis anos mais tarde, em 1968, expandiu o nmero de categorias diagnsticas, mantendo a tradio psicodinmica do DSM-I. Embora algumas mudanas tenham ocorrido, o DSM-II difundiu o uso de mltiplos diagnsticos para um mesmo paciente, alm de ter abandonado o termo reao, comum no DSM-I, por influncia do psiquiatra suo Adolf Meyer, radicado nos EUA. Entretanto, a tradio psicanaltica permaneceu at o final da dcada de 1970 (KIRK; KUTCHINS, 1992). A partir da dcada de 1970, comea a se configurar uma disputa pelo controle da psiquiatria entre a tradicional psiquiatria psicodinmica e a emergente psiquiatria biolgica, aproveitando possivelmente a onda biolgica que tomou conta do cenrio cientfico. Os avanos no campo de genrica, a partir da dcada de 1960, e uma tendncia apontada por vrios autores, do crescimento de importncia da biologia molecular e das pesquisas nas neurocincias, deram novo impulso viso fisicalista dos transtornos mentais (SERPAJNIOR, 1997; HENNING, 1998).

2.3. A psiquiatria biolgica Durante quase todo o sculo XX, as teorias psicodinmicas prevaleceram. Todavia, no final da dcada de 1970 e incio dos anos 1980, ocorreram vrios embates entre os

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representantes da psiquiatria biolgica e os da psiquiatria psicodinmica, culminando com a vitria dos psiquiatras biolgicos, que se intitularam nos EUA de neokraepelinianos. A hegemonia da chamada Psiquiatria Biolgica se concretizou com as mudanas realizadas nas classificaes nosogrficas. Com a justificativa de se retirar qualquer aluso etiolgica da terminologia utilizada, foi reeditada a nova verso do DSM e logo depois a da CID, suprimindo-se todos os termos e expresses oriundos da psicanlise. Desta forma, iniciase a fase de rebiologizao da psiquiatria (KIRK; KUTCHINS, 1992; HENNING, 2000; MARTNEZ-HERNEZ, 2000). Esse retorno s teorias biolgicas na psiquiatria pode ser considerado o quarto momento de alternncia de hegemonia. Esta alternncia de hegemonia; da Psiquiatria Psicodinmica para a Psiquiatria Biolgica constituiu o contexto no qual surgiu a entidade clnica fobia social. Ou seja, no processo de luta pelo domnio do campo psiquitrico, que a partir da dcada de 1980 passou a ser ocupado pela chamada psiquiatria biolgica, a mudana dos critrios de classificao das doenas, bem como o surgimento de vrias entidades clnicas novas foram decisivos para a constituio do novo modelo classificatrio que se configurou a partir da edio da terceira verso do DSM nos EUA. Desta forma, este trabalho centra-se nesse perodo histrico, particularmente no surgimento da fobia social enquanto entidade nosolgica. Segundo Bezerra Jr. (2000), a partir de 1970 o modelo da fsica enquanto paradigma cientfico perdeu espao para um modelo de organismo baseado na biologia. A psiquiatria biolgica emergiu no final dos anos 1960 e j na dcada seguinte houve crescente interesse por mtodos empricos. Entretanto, diversos autores consideram a dcada de 1980 como o marco de tomada da hegemonia efetiva da psiquiatria biolgica, termo que se refere ao campo de pesquisa desenvolvido principalmente a partir dos anos 1970, com a seguinte meta:A tentativa de descobrir o correlato biolgico das desordens psiquitricas, com o objetivo de estabelecer a sua etiologia, terapia e diagnstico desenvolve-se a partir de reas fronteirias, onde a psiquiatria e as cincias

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biolgicas cruzam-se, tais como, endocrinologia, neuroqumica e bioqumica clnica. Posteriormente ela se ramifica, constituindo um campo autnomo, desenvolvendo seus prprios jornais, teorias, prtica e provas (HENNING, 1998, p. 55).

Embora a dcada de 1980 tenha sido decisiva para a psiquiatria biolgica, isso no implica a inexistncia de interesse anterior em formas biolgicas de tratamento, que remontam, inclusive ao sculo XIX (SERPA JR, 1997). O que tanto Serpa Jr (1997) quanto Henning (1998) enfatizaram em seus respectivos trabalhos foi que o advento e a hegemonia da psiquiatria biolgica no foi um fato isolado e se deu em um contexto amplo, no qual as descobertas no campo da biologia e seu redimensionamento, resultando em novas concepes de natureza, assim como a ampliao das tecnologias, especificamente no campo de gentica, so como que panos de fundo para as mudanas engendradas no entendimento e nas pesquisas em torno dos transtornos mentais. Nesse sentido, Henning afirma:restringindo ao campo da psiquiatria, podemos dizer que, como decorrncia destes desenvolvimentos tecnolgicos, toda uma nova gama de aspectos muito mais sutis do comportamento humano tornam-se objeto de interveno por meio da administrao farmacolgica (HENNING, 1998, p. 61).

Desse modo, a transformao na compreenso e, conseqentemente, na classificao dos transtornos mentais, faz parte, segundo Russo (2004), de um processo social mais amplo de rebiologizao de vrios temas, entre os quais gnero e raa, anteriormente abordados pelas cincias humanas, com as mudanas da psiquiatria fazendo parte de um embate poltico mais geral. A onda biolgica tornou-se de tal forma contundente, que alguns historiadores da psiquiatria j anunciam que a partir da dcada da de 1970, com o advento da psiquiatria biolgica, tenha se dado o fim de uma era da psiquiatria sem nenhuma fundamentao cientfica, como o caso do historiador da psiquiatria, Edward Shorter (1997), em seu livro A History of Psychiatry: from the era of the asylum to the Age of Prozac. Este autor chega a afirmar quando descreve o que ele chama de Hiato Psicanaltico na psiquiatria, que Freud

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poderia ser visto mais como um aventureiro do que propriamente um cientista (SHORTER, 1997). Shorter (1997) anunciou o incio do que ele considera a fase da Segunda Psiquiatria Biolgica, iniciada na dcada de setenta como um retorno bem sucedido das explicaes biolgicas dos transtornos mentais e da busca por um substrato orgnico, bem como o retorno da psiquiatria ao seio da medicina. Segue abaixo um trecho do prprio Shorter que aponta para esta idia.In the 1970s, biological psychiatry came roaring back on stage, displacing psychoanalysis as the dominant paradigm and returning psychiatry to the fold of the other medical specialties. This triumph of the biological, the view that major psychiatric illness rested on a substance of disordered brain chemistry and development, meant a return to themes that had resounded in the nineteenth century at the time of the first biological psychiatry4 (SHORTER, 1997, p. 239).

A publicao da terceira verso do DSM, em 1980, pela Associao Psiquitrica Americana, foi um grande marco para a psiquiatria biolgica. A mudana da nomenclatura oficial americana dos transtornos mentais consolidou a fora da viso organicista para as explicaes de tais transtornos. O DSM, inicialmente uma alternativa Classificao Internacional das Doenas, da Organizao Mundial de Sade, tornou-se paulatinamente a classificao mais usada internacionalmente, influenciando inclusive as edies subseqentes do captulo sobre os transtornos mentais da CID (HENNING, 1998, RUSSO, 2004). Descries e classificaes a respeito da loucura existem desde a Grcia antiga. At o final do sculo XX, muitas e amplas categorias tentaram dar conta dessa difcil tarefa. Na dcada de 1990, chegou-se a cerca de trezentas categorias diagnsticas e esse nmero tem crescido muito rapidamente (KIRK; KUTCHINS, 1992).

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Nos anos setenta, a psiquiatria biolgica teve um retorno bem sucedido deslocando a psicanlise da posio de paradigma dominante e devolvendo a psiquiatria ao conjunto de outras especialidades mdicas. Este triunfo do biolgico e da viso de que as principais doenas mentais repousam sobre uma desorganizao qumica do crebro e do desenvolvimento, significou um retorno a temas que tinham ressonncia no sculo XIX, na poca da primeira psiquiatria biolgica.

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Nesse perodo, as teorias psicodinmicas de Freud, que vinham dominando a cena h dcadas, passaram a ser contrastadas com a abordagem de Kraepelin, descritiva e pragmtica. Kraepelin, autor alemo do sculo XIX relativamente desconhecido nos EUA, foi redescoberto pelos psiquiatras biolgicos nos anos 1980, consolidando e legitimando, assim, uma abordagem descritiva dos transtornos mentais (KIRK; KUTCHINS, 1992). Enquanto Freud estava preocupado com a etiologia psicodinmica das doenas mentais, Kraepelin se dedicou basicamente a classificar, categorizar e descrever os transtornos mentais como entidades nosolgicas. O esforo terico de Kraepelin para descrever tais transtornos se tornou a base da atual abordagem da psiquiatria biolgica para descrev-los e categoriz-los. Tal adeso a uma abordagem kraepeliniana foi uma estratgia da moderna psiquiatria, no intuito de eclipsar a influncia de Freud e da psicanlise na psiquiatria (KIRK; KUTCHINS, 1992). Consolida-se assim, de forma oficial, um movimento dentro da psiquiatria, que vinha buscando fundamentar as explicaes dos transtornos mentais na biologia e reduzir seu tratamento ao uso de psicofrmacos. O DSM-III desenvolveu critrios especficos de incluso e excluso para estabelecer determinado diagnstico, com a pretenso de homogeneizar a forma de diagnosticar em diferentes pases e em diferentes contextos culturais (HENNING, 1998). Tem-se ento uma viso globalizada dos transtornos mentais, como nos sugere Henning no trecho abaixo:A partir do DSM-III (e esta tendncia intensifica-se cada vez mais) as definies e os critrios das categorias passam a referir-se a uma essncia patolgica, transistrica e transcultural, da qual sinais e sintomas seriam a face visvel. O plano biolgico tomado como ncleo estvel, pertencente a toda a humanidade, passvel de ser conhecido e que seria determinante de valores e subjetividades (HENNING, 1998, p. 71).

A partir de ento, ampliou-se o nmero de sndromes, alm de ter aumentado em muito a abrangncia da psiquiatria em farmacologizar questes que diziam respeito ao malestar existencial ou mesmo a aspectos da personalidade, at ento no considerados aspectos

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psicolgicos dos indivduos e, portanto, considerados no passveis de tratamentos medicamentos. o caso da distimia e da fobia social, entre outras categorias, que aparecem pela primeira vez como entidades clnicas a partir do DSM-III (HENNING, 1998). Nos EUA, publicaes direcionadas a um pblico leigo proclamaram a ascenso oficial da psiquiatria cientfica a partir da publicao do DSM-III, pondo um fim na tradio de mais de cinqenta anos da adoo de bases psicanalticas para os diagnsticos (KIRK; KUTCHINS, 1992). Entretanto, interessante atentar para o fato de que, na chamada revoluo na psiquiatria da dcada de 80, nenhuma nova doena havia sido verdadeiramente descoberta, nenhum tratamento novo estava sendo divulgado e nenhuma explicao nova sobre as causas dos transtornos mentais estava na pauta da nova classificao. Ao contrrio, seus autores foram extremamente cuidadosos para no se referirem a nenhuma etiologia dos transtornos mentais, a no ser aqueles que tivessem causas orgnicas bem estabelecidas (KIRK; KUTCHINS, 1992). A mudana classificatria realizada pela APA chamou a ateno do pblico em geral, tendo sido considerada um dos eventos mais significativos na psiquiatria do final do sculo XX, tanto pela mdia quanto por seus elaboradores como sugere o trecho abaixo, retirado de uma publicao sobre o tema de um dos principais autores do DSM-III:The adoption of DSM-III by the American Psychiatric Association (APA) has been viewed as marking a signal achievement for psychiatry. Not only did the new diagnostic manual represent an advance toward the fulfillment of the scientific aspirations of the profession, but it indicated an emergent professional consensus over procedures that would eliminate the disarray that has characterized psychiatric diagnosis5 (BAYER; SPITZER, 1985, apud KIRK; KUTCHINS, 1992, p. 6).

Segundo Kirk e Kutchins (1992), entretanto, nenhuma dessas revises nos DSM foram motivadas ou estimuladas por necessidades advindas da clnica; da mesma forma, as5

A adoo do DSM-III pela Associao Psiquitrica Americana (APA) tem sido vista como um sinal marcante de desenvolvimento da psiquiatria. No apenas o novo manual representa um avano em direo s aspiraes cientficas da profisso, mas tambm indica um emergente consenso profissional sobre procedimentos, eliminando a confuso que caracterizava o diagnstico psiquitrico.

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justificativas de mudanas foram baseadas, implcita ou explicitamente, na necessidade de melhorar a credibilidade cientfica do sistema classificatrio psiquitrico, sem levar em considerao que as prprias bases cientficas dos atuais sistemas classificatrios tm sido freqentemente questionadas. Em resumo, esta idia reforada por Henning (1998), quando afirma que a maior mudana ocorrida com a instaurao da nova forma classificatria em 1980 com o DSM-III, mantidas nas verses seguintes, expandindo-se ao influenciar a classificao da OMS, atravs da CID 10, foi to somente reforar o modelo descritivo de classificao, eximindo-se assim da busca de interpretao do sofrimento. Desta forma, expandiu enormemente o que atributo da psiquiatria, farmacologizando cada vez mais o comportamento das pessoas, como demonstra o trecho a seguir:Podemos dizer que, na passagem do DSM-I para o DSM-III, operaram-se basicamente duas transformaes mais fundamentais, uma decorrente da outra. A redefinio da atividade de diagnosticar, cuja base passa a derivar da identificao de sinais e sintomas pr-estabelecidos e no mais da interpretao de smbolos de sofrimento, implica por sua vez numa redefinio do conceito de doena e como conseqncia, numa expanso daquilo que se torna passvel de ser entendido como uma doena [...] Tratase da expanso do modelo bioqumico esfera da medicalizao da vida cotidiana, do mal estar existencial ou, segundo Castel, esfera da gesto das fragilidades individuais. Com isso, toda uma gama de comportamentos torna-se objeto da psiquiatria (HENNING, 1998, p. 73).

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3 - O DSM: A BBLIA DA PSIQUIATRIA BIOLGICA

3.1. O histrico do DSM Com o fim de elucidar as mudanas ocorridas no DSM-III, foi elaborada uma breve reviso do histrico da criao e reformulaes do Manual Diagnstico e Estatstico dos Transtornos Mentais. Para este pesquisa, fundamental compreender como se desenvolveu essa classificao desde o seu incio at o momento presente, uma vez que sua terceira reviso foi o grande palco das disputas no campo empreendidas pelas duas principais vertentes da psiquiatria poca: a psiquiatria biolgica e a psicodinmica, oponentes histricas em relao forma de compreender e abordar as patologias mentais. Deste modo, atravs de um olhar retrospectivo, segue-se uma visada na elaborao das classificaes mdicas nos Estados Unidos, como forma de contextualizar o surgimento da necessidade de uma nomenclatura nica e com pretenses universalizantes na psiquiatria. Inicia-se esse histrico com o relato das primeiras tentativas de homogeneizao das nomenclaturas das doenas no contexto mdico geral dos Estados Unidos, e em particular a normatizao da nomenclatura dos transtornos mentais, at se chegar a atual verso do DSM. Diante da ausncia de uma unificao da nomenclatura das doenas no contexto mdico americano, em 1927, a Academia de Medicina de Nova York desencadeou um movimento pela unificao das nomenclaturas utilizadas na prtica mdica, questionando a desorganizao vigente at aquele momento. At o final da dcada de 1920, cada grande centro de ensino mdico nos Estados Unidos desenvolvia um sistema classificatrio prprio, a partir de suas necessidades locais, sem se preocupar com uma uniformizao. Esses sistemas acabavam se difundindo por todo o pas, principalmente atravs dos especialistas que faziam formao nas referidas instituies. A ausncia de uniformidade levava a uma grande

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confuso, dificultando a comunicao entre os profissionais da rea, como assinala a introduo do DSM em sua primeira verso: There resulted a polyglot of diagnostic labels and systems, effectively blocking communication and the collection of medical statistics (DSM, 1952: p. V).6 Em 1928 realizou-se nos Estados Unidos a primeira Conferncia Nacional sobre Nomenclaturas, organizada pela Academia de Cincias de Nova York, composta por representantes de agncias governamentais dos EUA e das Sociedades de Especialistas, inclusive da rea de psiquiatria. Esta conferncia deu origem a uma primeira verso piloto da classificao publicada em 1932 e distribuda como teste para alguns hospitais selecionados. Aps o sucesso da primeira edio preliminar, foi publicada, em 1933, a primeira edio oficial da Standard Classified Nomenclature of Disease, que passou a ser amplamente utilizada nos dois anos subseqentes, sofrendo posteriores revises (DSM, 1952). Neste particular, entretanto, a psiquiatria tinha caminhado, de certa maneira, na frente do restante da medicina nos Estados Unidos, tendo sido elaborada uma primeira classificao psiquitrica padronizada pelo Comit para Estatstica da Associao Mdico-Psicolgica Americana7, que formulou uma nomenclatura para as doenas mentais ainda em maio de 1917. De todo modo, desde 1840, devido necessidade de coleta de informaes estatsticas, foi criada uma nomenclatura nica para as doenas mentais, com o fim de registro da freqncia de uma categoria diagnstica: idiotismo ou insanidade, que aglutinava todas as doenas mentais. A denominao criada para o censo de 1840 pode ser considerada a grande precursora dos esforos de formulao de uma classificao padronizada dos transtornos mentais nos EUA. Em 1880, com a realizao de outro censo, j se categorizaram sete tipos

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Isto resultou em nveis e sistemas mltiplos de diagnstico, bloqueando efetivamente a comunicao e a coleo de estatsticas mdicas. 7 A Associao Mdico-Psicolgica Americana a precursora da atual Associao Psiquitrica Americana, que passou a ser reconhecida por esse nome a partir de 1921.

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de doenas mentais: mania, melancolia, monomania, paresia, demncia, dipsomania e epilepsia. (DSM IV, 1995). Subseqentemente, o censo americano passou a se preocupar, cada vez mais, com uma nomenclatura padro para os transtornos mentais e solicitou Associao Mdico-Psicolgica Americana, entidade precursora da APA, para formar um comit que facilitasse a coleta de dados. Em 1913, essa associao criou o Comit de Estatstica e em 1918, em cooperao com o Comit Nacional de Higiene Mental, surgiu a primeira nosologia psiquitrica padronizada nos EUA, o Manual de Estatstica para o Uso em Instituies de Insanos. Este continha 22 categorias principais, com uma orientao claramente somtica dos transtornos mentais. Esse paradigma somtico condizente com a situao da psiquiatria da poca, na qual a maioria dos psiquiatras trabalhava em instituies hospitalares com pacientes que apresentavam quadros mais severos. O manual passou a ser adotado pelo censo e para avaliao anual das instituies psiquitricas. Apesar de uma maior preocupao desta ltima classificao psiquitrica em relao s questes clnicas, seu principal objetivo continuou sendo a coleta de dados estatsticos (KIRK; KUTCHINS, 1992; DSM IV, 1995). Muitos criticaram o novo manual, sobretudo o psiquiatra Adolf Meyer; entretanto, esse manual foi reeditado dez vezes de 1918 at 1942, mantendo sua viso biolgica dos transtornos mentais (KIRK; KUTCHINS, 1992). Apenas em 1933 surgiu a j citada Standard Classified Nomenclature of Disease, classificao mdica de todas as doenas, inclusive com uma seco dedicada s doenas mentais, com a participao da APA. Esta classificao psiquitrica de 1933 tentou desenvolver mais uma nomenclatura, desta vez nacionalmente aceitvel e visando, principalmente, a servir prtica clnica e ao diagnstico de pacientes internados com transtornos mentais, mas tambm com objetivos estatsticos (DSM, 1953; DSM IV, 1995).

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O que se percebe que tais nomenclaturas eram demandas de necessidades administrativas e governamentais, sem grande repercusso na clnica, padro que, de certa forma, at hoje se mantm. Kirk e Kutchins (1992) acentuam que as vantagens para os clnicos eram muito pequenas, uma vez que as categorias eram bastante amplas e os tratamentos psiquitricos da poca, bastante inespecficos. Posteriormente, em 1944, devido ao nmero de casos psiquitricos decorrentes do stress da Segunda Guerra Mundial, a Marinha americana fez uma reviso parcial da nomenclatura, devido s deficincias encontradas nas classificaes anteriores,

principalmente para contemplar as novas sndromes com que os psiquiatras das Foras Armadas estavam se deparando8 entretanto, ainda dentro dos limites da Classificao Padro de Doenas. Em 1946, o Exrcito americano, com posteriores alteraes da Administrao dos Veteranos de Guerra, elaborou uma nomenclatura mais abrangente que as anteriores, incorporando as sndromes ambulatoriais apresentadas tanto pelos soldados em combate, como pelos veteranos da Segunda Guerra. Como exemplo, podem-se destacar os transtornos psicofisiolgicos; de personalidade; e agudos (DSM, 1953; DSM IV, 1985). Em 1948, uma grande confuso de nomenclaturas das doenas mentais estava instaurada nos EUA, similarmente ao que havia acontecido com as classificaes mdicas das doenas em geral nos anos 1920. Existiam pelo menos trs importantes classificaes sendo utilizadas concomitantemente: a Standard; a das Foras Armadas; e a da Administrao dos Veteranos de Guerra, nenhuma delas alinhada adequadamente Classificao Estatstica Internacional. A situao era de tal gravidade que se usava uma nomenclatura para a atividade clnica; outra para estatsticas; e uma outra para trabalhos cientficos. Alm disso, os centros de ensino faziam vrias modificaes na Standard (DSM, 1952).

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Com o retorno dos veteranos de guerra, os psiquiatras passaram a se deparar com mais freqncia de sndromes menos severas e de carter ambulatorial. (KIRK e KUTCHINS, 2002).

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Fora dos Estados Unidos, apenas na sexta edio da Classificao Internacional de Doenas (CID 6), em 1948, que foi includo, pela primeira vez, um captulo sobre os transtornos mentais. Classificaram-se as psicoses em dez categorias distintas, nove categorias foram descritas para as psiconeuroses e sete para os transtornos de carter; comportamento e inteligncia. Esta classificao foi bastante influenciada pela nomenclatura dos veteranos de guerra dos EUA (DSM, 1952). Finalmente, como alternativa CID-6 e numa tentativa de unificao das vrias classificaes dentro do prprio territrio americano, surgiu nos EUA, em 1952, a primeira verso do DSM Manual de Diagnstico e Estatstica de Transtornos Mentais. Esta classificao foi elaborada sob o argumento de que a CID-6, muito criticada pelos psiquiatras americanos, tinha uso limitado e era de pouca utilidade para os clnicos e pesquisadores. Alm disso, existiam crticas em relao ausncia de uma classificao para as sndromes cerebrais crnicas, de personalidade e principalmente para os quadros mais transitrios decorrentes de situaes de estresse, como a guerra, por exemplo, que interessavam diretamente aos psiquiatras americanos (DSM, 1952; DSM-IV, 1985; HENNING, 1998). A primeira verso do DSM continha, alm das sees classificatrias propriamente ditas, um glossrio com as descries das categorias diagnsticas e foi considerada, por seus autores, a primeira classificao a se ocupar prioritariamente da utilidade clnica de uma nomenclatura nos EUA (DSM, 1952; DSM-IV, 1985). Tanto o DSM-I, de 1952, quanto o DSM-II, de 1968, como j descrito no tpico anterior, tinham caractersticas que apontam para uma explicao dos transtornos mentais de base psicodinmica e psicossocial. Portanto, em relao ao advento da psiquiatria biolgica, tem-se considerado o DSM-III, editado em 1980, como um grande diferencial, no sentido de ter modificado a forma de classificao e por ter a pretenso de ser aterico e descritivo, sem

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nenhuma aluso etiolgica. Por isso, apresentou mudanas importantes em relao s edies anteriores. Entretanto, a pretenso do DSM-III de ser aterico tem sido questionada, uma vez que sua edio implicou na decrescente importncia do modelo psicodinmico dos transtornos mentais e na ascenso das explicaes biolgicas (HENNING, 1998), como demonstra o trecho seguinte: The explicit step away from theory and explanation in DSM-III was in reality a step toward the exclusive use of biological etiological models9 (GAINES apud HENNING, 1998, p. 66). Quase no mesmo perodo, o glossrio da CID-9, editado pela Organizao Mundial de Sade (OMS), em 1979, foi percebido pela psiquiatria americana como aqum do esperado, por no ter feito uso dos mais recentes desenvolvimentos metodolgicos j adotados por um grupo de psiquiatras americanos como critrios diagnsticos especficos e a abordagem multiaxial de avaliao. Alm das crticas ao captulo de sade mental da CID, para a equipe que trabalhou na reviso do DSM-III, os critrios diagnsticos das duas verses anteriores do DSM tambm careciam de sustentao cientfica, por isso consideravam que as categorias at ento utilizadas no tinham limites muito rgidos e eram muito fluidas (DSM-III, 1980).Since DSM-I, DSM-II, and ICD-9 explicit criteria are not provided, the clinician is largely on his or her own in defining the content and boundaries of the diagnostic categories. In contrast, DSM-III provides specific diagnostic criteria as guides for making each diagnosis since such criteria enhance interjudge diagnostic reliability10 (DSM-III, 1980, p. 8).

Uma fora-tarefa foi organizada para realizar as alteraes da terceira verso do DSM, que se baseou em dez objetivos especficos e todos os membros da fora-tarefa se comprometeram com sua realizao. Entre esses objetivos, vale ressaltar a nfase dada 9

O passo explcito dado para longe de teorias e explicaes pelo DSM-III foi na realidade um passo em direo ao uso exclusivo de modelos etiolgicos biolgicos. 10 Pelo fato de os DSM-I, DSM-II e CID-9 explicitarem critrios sem comprovao, os clnicos definem seus prprios contedos e limites para as categorias diagnsticas. Em contraste, o DSM III fornece critrios diagnsticos especficos como guias para se fazer cada diagnstico, porque tais critrios aumentam o julgamento de confiana no diagnstico.

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confiabilidade e validade das categorias diagnsticas, o que faz supor que as antigas no teriam essas caractersticas, alm da priorizao do uso de termos, os quais no pairassem controvrsias, evitando utilizar aqueles, os quais perderam sua validade dentro daquela perspectiva escolhida (DSM-III, 1980). Outro ponto que deve ser destacado a forma eufemstica e sinuosa utilizada pela fora-tarefa, para dizer que quebraria