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 ESPECIAL STANISLÁVSKI ENSAIOS SOBRE TEATRO Angela Leite Lopes Béatrice Picon-V allin Elena Vássina Marvin Carlson Ricardo Gomes Vanessa Teixeira de Oliveira ENTREVISTAS COM Adolf Shapiro Celina Sodré Esta edição é dedicada a Stanislávski  e traz ensaios que analisam seu legado, tanto do ponto de vista histórico quanto ético e estético. Elena Vássina apresenta o sistema de Stanislávski como um work in progress na elaboração de uma teoria da arte do ator. Béatrice Picon-Vallin abor- da a amizade e os conitos entre Stanislávski e Meyerhold, projetando-os contra o pano de fundo político de sua época e destacando os traços mar- cantes da obra de cada um deles. Vanessa Teixeira de Oliveira analisa a ligação entre Stanislávski, Meyerhold e Eisenstein a partir da representação do demônio criada pelo pintor Vrúbel. Ricardo Go- mes recupera a relação de liação e também as tensões entre Grotowski e Stanislávski. Marvin Carlson e Angela Leite Lopes distinguem ecos stanislavskianos em criações contemporâneas – respectivamente o espetáculo Bauerntheater , de David Levine e os trabalhos dramatúrgicos e cêni- cos de Valère Novarina. Duas entrevistas completam este número: a primei- ra realizada pelos atores da mundana companhia com Adolf Shapiro, que os dirigiu em Pais e lhos, de Turguêniev; a segunda com Celina Sodré, cria- dora do Studio Stanislavski, que conversou com Daniel Schenker sobre as inuências de Stanislávski e Grotowski em seu trabalho como diretora.       f     o       l       h     e      t      i     m         3         0         2         0         1         3 2  0 1  3 E  S P E  C I   A L  S T A N I    S L Á   V  S K I   30   f    o  l   h   e  t   i   

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  • ESPECIALSTANISLVSKI

    ensaios sobre teatroangela Leite Lopes

    batrice Picon-Vallin

    elena Vssina

    Marvin Carlson

    ricardo Gomes

    Vanessa teixeira de oliveira

    entreVistas CoM

    adolf shapiro

    Celina sodr

    Esta edio dedicada a Stanislvski e traz ensaios que analisam seu legado, tanto do ponto de vista histrico quanto tico e esttico.

    Elena Vssina apresenta o sistema de Stanislvski como um work in progress na elaborao de uma teoria da arte do ator. Batrice Picon-Vallin abor-da a amizade e os conflitos entre Stanislvski e Meyerhold, projetando-os contra o pano de fundo poltico de sua poca e destacando os traos mar-cantes da obra de cada um deles. Vanessa Teixeirade Oliveira analisa a ligao entre Stanislvski, Meyerhold e Eisenstein a partir da representao do demnio criada pelo pintor Vrbel. Ricardo Go-mes recupera a relao de filiao e tambm as tenses entre Grotowski e Stanislvski. MarvinCarlson e Angela Leite Lopes distinguem ecos stanislavskianos em criaes contemporneas respectivamente o espetculo Bauerntheater, de David Levine e os trabalhos dramatrgicos e cni-cos de Valre Novarina.

    Duas entrevistas completam este nmero: a primei-ra realizada pelos atores da mundana companhia com Adolf Shapiro, que os dirigiu em Pais e filhos, de Turguniev; a segunda com Celina Sodr, cria-dora do Studio Stanislavski, que conversou com Daniel Schenker sobre as influncias de Stanislvski e Grotowski em seu trabalho como diretora.

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    Folhetim ISSN 1415-370XUma publicao do Teatro do Pequeno Gesto

    Revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa (Decreto n 6583/2008)

    A transliterao dos nomes russos foi feita por Elena Vssina a partir da tabela de correspondncias elaborada pelo curso de

    Letras Russas da USP.

    Capa: Stanislvski por Antonio Sodr Schreiber Coleo do Instituto do Ator

    Editora geral Ftima Saadi

    Conselho editorial Angela Leite Lopes Antonio Guedes Walter Lima Torres

    Editor assistente Pedro Florim

    Colaboraram nesta edio Adolf Shapiro Alina Dzhamgaryan Angela Leite Lopes

    Batrice Picon-Vallin Celina Sodr Cludia Tatinge Nascimento Daniel Schenker Elena Vssina Ftima Saadi

    Marvin Carlson mundana companhia Ricardo Gomes Vanessa Teixeira de Oliveira

    Capa, projeto grfico e editorao Bigodes Luiz Henrique S e Brbara Emanuel

    Produo de imagem Pedro Florim

    Reviso Paulo Telles

    Agradecimentos Kleber Tatinge Nascimento Marcel Gonnet Marlene Salgado

    Valre Novarina Zsfia Rideg

    Teatro do Pequeno Gesto www.pequenogesto.com.br7Letras www.7letras.com.br fo

    lhet

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    sumrio editorial

    Editorial

    Stanislvski e Meyerhold. Solido e revolta

    Batrice Picon-Vallin

    Nenhum manual ou gramtica da arte teatral:

    alguns apontamentos sobre a formao do

    sistema de Stanislvski

    Elena Vssina

    Como encarnar demnios

    Vanessa Teixeira de Oliveira

    De Stanislvski a Grotowski

    Ricardo Gomes

    O teatro e seu avesso

    Angela Leite Lopes

    Bauerntheater de David Levine: Stanislvski de cabea para baixo

    Marvin Carlson

    Em foco:

    Entrevista de Adolf Shapiro

    mundana companhia

    Em foco:

    Entrevista de Celina Sodr

    a Daniel Schenker

    O n 30 de Folhetim assinala o incio de uma nova fase. A partir de agora a revista passa a ser digital e inaugura um novo design / lay out. A verso em papel desta edio po-

    der ser adquirida na editora 7Letras, que a imprimir sob

    demanda.

    Esta edio dedicada a Stanislvski e traz ensaios que

    analisam seu legado tanto do ponto de vista histrico quan-to esttico.

    Elena Vssina apresenta o sistema elaborado por

    Stanislvski como um work in progress, um ponto de partida para a criao de uma teoria da arte do ator. Batrice Picon-

    Vallin aborda a relao entre Stanislvski e Meyerhold, pro-

    jetando-a contra o pano de fundo poltico de sua poca e

    sublinhando os traos marcantes da obra de cada um deles.

    A partir da anlise da representao do demnio pelo pintor Vrbel, Vanessa Teixeira de Oliveira traz baila trs gera-

    es de criadores, Stanislvski, Meyerhold e Eisenstein, e

    seu modo de relao com a representao do real. Ricardo

    Gomes recupera a relao de filiao e tambm as tenses entre Grotowski e Stanislvski. Marvin Carlson e Angela

    Leite Lopes distinguem, em criaes contemporneas res-pectivamente o espetculo Bauerntheater de David Levine e os trabalhos dramatrgicos e cnicos de Valre Novarina , ecos stanislavskianos.

    Na seo Em foco, apresentamos duas entrevistas: a pri-

    meira realizada pelos atores da mundana companhia com o diretor russo Adolf Shapiro, quando da elaborao do es-

    petculo Pais e filhos, em So Paulo. A segunda concedida por Celina Sodr, criadora do Studio Stanislavski, a Daniel

    Schenker. Em ambas so tematizados os princpios, arts-

    ticos e ticos, do mestre russo.

    Desejamos a todos boa leitura!

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    Stanislvski e Meyerhold

    Solido e revolta

    Batrice Picon-Vallin Traduo de Ftima Saadi

    Batrice Picon-Vallin diretora de pesquisas no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Cientfica), em Paris e diretora das colees Arts du spectacle (CNRS), thXX (Lge dHomme, Lausanne) e Mettre en scne (Actes Sud-papiers, Arles). Foi professora de histria do teatro no Conservatrio Nacional Superior de Arte Dramtica de Paris entre 1999 e 2008.

    Ftima Saadi tradutora e dramaturgista do Teatro do Pequeno Gesto, no mbito do qual edita a revista Folhetim e a coleo Folhetim/Ensaios.

    A histria do teatro russo e sovitico cheia de paixo, de

    furor sanguinrio, de exlios: Aleksandr Pchkin foi morto

    em duelo tramado pelo poder imperial; Evguini Vakhtngov morreu prematuramente em decorrncia de um cncer;

    Nikolai Evrinov, Aleksei Granvski, Mikhail Tchkhov fo-ram exilados, Vsevlod Meyerhold e Lies Kurbs foram fuzi-

    lados, Solomon Mikhels assassinado, Nikolai rdman proi-

    bido de viver em Moscou... E isso vai continuar com o exlio

    e a destituio de Iri Liubmov e inmeras outras fugas

    depois da perestroika... Mas se Konstantin Stanislvski p-de morrer em sua cama, o destino de sua obra no deixou de

    ser trgico. Personalidade magntica, que atraiu tanta gen-

    te para perto de si, que foi cercado por um nmero impres-

    sionante de alunos, e que a historiografia oficial do sculo XXI (constituda pelas equipes que trabalham no Teatro de

    Arte de Moscou) se empenha em apresentar como o pai ab-soluto do conjunto do teatro russo, Stanislvski sofreu de solido e foi vtima de incompreenses. Trado por alunos

    que divulgam precocemente e mal aquilo que acreditam ter compreendido das pesquisas e do sistema de Stanislvski,

    o mestre no escapar de ser mumificado pelo culto que se construiu em torno dele nos anos 1930 e pela assimilao

    ao realismo socialista de sua abordagem do teatro: sua in-

    tegridade fsica foi preservada, mas a deturpao de seu legado, com a chancela oficial, matou-o como artista.

    A solido de Stanislvski1 o ttulo de um vigoroso ar-tigo publicado por V. Meyerhold em 1921, no perodo do

    Outubro Teatral, do qual ele foi o lder inconteste. O Teatro

    de Arte estava sendo veementemente atacado pelos ar-tistas de esquerda, como excrescncia burguesa e intil e

    1 In: V. Meyerhold. crits sur le thtre 1917-1930, traduo, prefcio e notas de Batrice Picon-Vallin, nova edio, revista e aumentada, tomo II. Lausanne: Lge dHomme, 2009, p. 85-90.

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    deveu sua salvao, naquele momento, interveno e

    defesa do Narkom (equivalente ao ministro da educao)

    Anatli Lunatchrski, e, depois, a uma longa turn pela

    Europa e pelos Estados Unidos, entre 1922 e 1924. Mas no disso que Meyerhold trata prioritariamente em seu artigo, mas do isolamento de Stanislvski no interior de seu

    prprio teatro, solido que comeou cedo. Cada vez mais

    incompreendido pela trupe do Teatro de Arte que fundou com Vladmir Nemirvitch-Dntchenko em 1898, decide

    abrir seu primeiro Estdio, o Teatro-Estdio, em 1905, pa-

    ra aprofundar suas pesquisas recolocando-se sempre em

    questo. A solido do Stanislvski encenador do Teatro de

    Arte tambm a solido do pesquisador e do explorador

    do teatro, em meio a seus alunos e a todos aqueles que co-nheceu ao longo de sua atividade de encenador-pedagogo,

    ou simplesmente de pedagogo, entre 1911 e 1938, ano de

    sua morte, nos mltiplos lugares em que fez experincias,

    para se apropriar das bases do domnio da cena ou, como ele disse, bem no incio, em 1909, de uma gramtica da ar-

    te dramtica.

    Essa solido o reverso de sua busca apaixonada por alunos, na medida em que sua pedagogia parte integran-te de sua concepo da funo de encenador. Animado pelo

    desejo de transformar profundamente o teatro de seu tem-po, Stanislvski multiplica adeptos e proslitos, estimulado tambm pela vontade de disseminar seu trabalho e cobrir a Rssia com uma rede de filiais do Teatro de Arte. Para isso,

    ele estimula seus melhores alunos Evguini Vakhtngov

    e Mikhail Tchkhov a, por sua vez, se tornarem professo-

    res, e autoriza ainda outras pessoas a transmitirem o sa-

    ber adquirido com ele. Mas, baseados nesses exemplos, nu-

    merosos alunos de Stanislvski tambm divulgaro seus

    ensinamentos sem sua permisso, num processo que se acelera nos anos 1920 com a teatromania que toma o pas

    e com a grande necessidade de instrutores para as mira-des de pequenos teatros que so criados em toda parte.

    Pessoas que tiveram um breve contato com o trabalho de Stanislvski vo anunciar sua palavra, generalizando uma

    experincia passageira, orientaes de momento ou que se

    destinavam a uma determinada pessoa, em circunstncias precisas, por exemplo, num ensaio ao qual tiveram oportu-

    nidade de assistir sem que fossem levadas em conta as contradies que existem no pensamento de Stanislvski

    entre sua imaginao transbordante e a tirania da verdade

    da vida, da vida viva2 que preciso colocar em cena; essas pessoas petrificam seu sistema numa etapa determinada de sua evoluo. Ora, sabido que o sistema foi evoluindo e

    o mtodo de Stanislvski, que comeou por um real despo-

    tismo em relao aos atores, desembocou, nos anos 1930,

    na pesquisa de mxima liberdade para atores capazes, ide-

    almente, de trabalhar sem encenador.3 Tomemos o exemplo

    de Boris Zon, encenador no Teatro do Jovem Espectador de Leningrado: ele tomou conhecimento do sistema por inter-

    mdio de um aluno de Vakhtngov portanto, em tercei-ra mo e, ao assistir, por volta de 1933, ao trabalho do

    Estdio de pera de Stanislvski, defrontou-se com uma

    total revoluo: nada de sentimento, de reviver (pere-jivnie, isto , o ator sente as mesmas emoes do per-sonagem), mas aes fsicas. E Stanislvski, diante de seu

    espanto, lhe respondeu: Durante todos estes anos, foi ne-

    cessrio rever tudo e recusar muitas das coisas que antes nos pareciam indiscutveis.4

    2 Expresso redundante utilizada por Stanislvski.

    3 Cf. Trechos de um estenograma de aula..., 19 de outubro, in: Stanislvski repetruet. Moskva: STD, 1987, p. 53.

    4 B. Zon. Encontros com Stanislvski, in: K. Stanislvski. Teatrlhnoe naslidstvo. Moskva: Ak. Nauk SSSR, 1955, p. 452.

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    Os alunos dos alunos so de fato, muito frequentemente,

    pseudoalunos que, por terem trabalhado por algum tempo em contato carismtico com Stanislvski, Vakhtngov ou

    M. Tchkhov, se arrogam o direito de se tornarem trans-

    missores de seus ensinamentos. So eles que Meyerhold

    fustiga em 1935:

    Quando vou ao teatro de Stanislvski ver o trabalho

    de seus pseudoalunos, percebo com frequncia que

    eles no so em nada seus alunos. No Renascimento,

    chamava-se aluno o autntico discpulo de um grande

    mestre: Michelangelo tinha talvez 80 pessoas em seu

    ateli, mas seus alunos podem ser contados nos dedos

    de uma das mos.5

    Por meio desses pseudoalunos, o sistema se difunde depois da Revoluo como um rastilho de plvora, apesar dos ataques da esquerda artstica; nos estdios amadores,

    ele simplificado, deformado, ridicularizado, desacredi-

    tado: Em todos os bazares teatrais, escreve o historiador V. Volkenstein, traficam-se os paramentos de Stanislvski.6 Horrorizado com o que fazem aqueles que dizem apli-

    car seu mtodo, tornando-o, na verdade, irreconhecvel,

    Stanislvski precisa se demarcar deles. Seu mtodo, es-

    pcie de bssola inventada para se livrar do diletantismo

    no teatro caiu nas mos de diletantes.

    ***

    5 V. Meyerhold. Entretien avec des metteurs en scne de province, 11 de janeiro de 1935, in: crits sur le thtre 1936-1940, tomo IV, traduo, prefcio e notas de B. Picon-Vallin. Lausanne: Lge dHomme, 1992, p. 25.

    6 V. Volkenstein. Stanislvski. Moskva: Sipovnik, 1922, p. 87.

    No apenas se ensina o sistema, mas surgem publicaes

    a respeito, antes mesmo de Stanislvski, que toma muitas

    notas, se decidir a entregar seus manuscritos a um edi-tor. Em 1918, por exemplo, Stanislvski est com um tex-

    to pronto, mas recua, retarda o momento da publicao,7 o momento em que o impresso fixa por longo tempo um sa-

    ber cuja caracterstica estar em perptua evoluo. Ele

    se interroga, alis, diante de Serafima Brman e Evguini

    Vakhtngov, em junho de 1918, a respeito da legitimida-

    de de escrever. Outros se questionam bem menos. Valentin

    Smychliiev, membro do Primeiro Estdio do Teatro de Arte

    desde 1915, publica, nas edies do Proletkult e tendo co-

    mo pblico preferencial os estdios e os clubes de oper-

    rios, Tcnica de elaborao do espetculo, que teve duas edies, a primeira em 1921,8 a segunda em 1922 (ao to-

    do, cinco mil exemplares). Nesse livro, cuja primeira edio

    praticamente no faz referncia explcita a Stanislvski,

    apesar de ser nele totalmente inspirado, no h nenhuma teoria de conjunto; em seu lugar, certo nmero de receitas

    apresentadas em 23 curtos captulos, repletos de exemplos

    concretos e de quadros-modelo. Baseado no sistema, esse

    livro, que lhe atribui um verniz coletivista, suprimindo-lhe

    tanto o l quanto as perspectivas, o empobrece e o reduz,

    torna-o absurdo pela triturao excessivamente analtica

    que prope para a anlise do texto e para o trabalho do ator.

    Ele utiliza a terminologia de Stanislvski e a divulga sem

    explic-la. Stanislvski o condena sem atenuantes: Ele se revela um mau aluno, pssimo mesmo. Deformou minhas

    7 Cf. N. Efros. K. Stanislvski. pyt kharakterstiki. Petersburg: Hud. Svetozar, 1918, p. 116.

    8 Tikhnika obrabtki spektklia, Ijevsk, Izd. Ijvskogo Proletklhta, 1921.

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    ideias. Tudo o que ele escreveu est errado.9

    Mas Mikhail Tchkhov fez a mesma coisa. Ele cedeu, an-

    tes de Stanislvski, ao demnio da escrita. Em 1919, pu-

    blica em Gorn, a revista do Proletkult, dois longos artigos: o primeiro, Sobre o sistema de Stanislvski, o segundo,

    O trabalho do ator sobre si mesmo segundo o sistema de

    Stanislvski, oferecendo um conjunto de definies e indi-

    cando uma srie de exerccios prticos para o trabalho do

    aluno no tocante ateno e aos objetivos. No nem um

    resumo terico nem um verdadeiro guia prtico e, apesar de suas precaues, Tchkhov tambm d uma viso trun-

    cada e, portanto, falsa, do sistema, cujo carter cientfico ele sublinha,10 mas cuja utilizao ele paradoxalmente limita apenas aos atores de talento que j possuam algo que pos-sa ser sistematizado. Esses nmeros da revista Gorn es-to nos arquivos de Stanislvski e as inmeras anotaes

    margem dos artigos de Tchkhov so um tema de pesquisa

    apaixonante... No mesmo ano, E. Vakhtngov reage contra

    esse fenmeno e assina um artigo furioso intitulado Aos

    que escrevem sobre o sistema de Stanislvski.11 Para ele, o sistema no um apanhado de regras. E acrescenta: No

    se pode aprender num livro a escrever versos, pilotar um avio, educar em si as qualidades necessrias a um ator e muito menos a ensinar a arte cnica.

    Chega-se ento a esta contradio, eu diria mesmo, a es-

    te absurdo: antes de 1926, ano da publicao, em russo, de

    Minha vida na arte, o sistema foi difundido por meio de pu-blicaes de outros que no o seu autor; foi resumido antes

    9 K. Stanislvski. A respeito do livro de V. Smychliiev, in: Sobrnie sotchinini v 8 tomakh. Moskva: Iskusstvo, tomo VI, 1959, p. 114-115.

    10 M. Tchkhov. Sobre o sistema de Stanislvski, in: Gorn, 1919, n. 2-3, p. 81.

    11 In: Vistnik teatra, TEO, 1919, 23 de maro.

    de existir como totalidade, se que essa totalidade pode

    existir fora de um pensamento utpico, e foi criticado, a par-

    tir desses textos, antes de ser conhecido de modo objetivo!

    Alm do mais, os discpulos e, antes dos demais, Vakhtngov, o mais devotado, aquele que demonstrava mais

    f na religio stanislavskiana celebrada durante a dcada

    de 1910 vo progressivamente se afastando. Em primeiro

    lugar, o que Stanislvski lhes ensinou transformado por

    eles segundo sua prpria perspectiva criativa e assim eles o transmitem, o que, alis, segundo Volkenstein, a nica

    maneira de ensinar o que foi assimilado. Stanislvski reco-

    nhece que isso um direito deles. Assim, M. Tchkhov no

    constranger jamais seu ator a extrair de si sentimentos

    pessoais. , diz ele, difcil, torturante, no nem belo, nem

    profundo. Mas a crtica dos discpulos pode ir alm, tornar-

    se feroz, chegar at a negao. Em 1921, em anotaes fei-

    tas no Sanatrio de Todos os Santos, em Moscou, e que s

    foram publicadas na URSS em 1988, Vakhtngov afirma que

    O teatro de Stanislvski j est morto e, graas a Deus,

    no renascer nunca mais.12 Nessas notas iconoclastas, ele

    apresenta Stanislvski como um encenador banal, natura-

    lista, burgus, bom para o museu, e fala de seus esforos

    desesperados para se subtrair sua influncia.

    Nos anos 1930, a solido de Stanislvski se torna ain-

    da mais concreta, em funo de seu estado de sade e da

    recluso qual seus mdicos o condenam, trancando-o em

    sua manso, privando-o tanto de ar como de espetculos.

    Depois de sua morte, em 1939, Meyerhold criticar veemen-

    temente esse tratamento, garantindo que se os doutores ti-vessem deixado Stanislvski sair, ele ainda estaria vivo. Por

    outro lado, paralisados pelo culto que pouco a pouco foi se

    12 Cf., para a primeira traduo francesa, a revista Thtre en Europe, 1988, n. 18, p. 56-58.

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    instaurando em volta do nome do mestre, os alunos chegam a outro estgio da traio, a seu grau zero, que a conservao

    medrosa da obra dele. Tambm a esse respeito, Meyerhold,

    pouco antes de ser preso, d sua opinio e critica, na pera

    Stanislvski (para a qual havia sido convidado depois que

    seu teatro foi fechado), aqueles que pretendem congelar Stanislvski, transformar seus princpios em dogmas, pren-der-se letra do legado e esconder-se, na qualidade de alu-

    nos, para no ter que assumir suas responsabilidades, para no ter que decidir com a segurana que caracteriza o ver-

    dadeiro criador.13 preciso ter em mente todas essas deformaes en-

    gendradas pela circulao, pela transmisso das ideias de Stanislvski, no s na URSS, mas tambm nos EUA e na

    Europa, onde mltiplas verses truncadas, deformadas de

    suas obras vo se espalhar a partir de verses em ingls, e

    no a partir do russo, mas isso uma outra histria... im-

    portante lembrar ainda a esterilizao de sua obra produzida

    sob Stalin. Citei aqui apenas alguns casos, seria necessrio

    acrescentar o nome de Fidor Komissarjvski que, em A arte do ator e a teoria de Stanislvski descreve, em 1916, o siste-ma como um naturalismo psicolgico14 (em 1913, o prprio

    Stanislvski falava de duchvny naturalism ou naturalismo da alma). Nas margens do livro, o acusado anota raivosamen-

    te seus desmentidos: Komissarjvski no entendeu nada.

    So mentiras e calnias pelas quais seria necessrio abrir

    contra ele um processo.15

    13 Cf. V. Meyerhold. Interventions lOpra dtat Stanislavski, 4 abr. 1939, in: crits sur le thtre 1936-1940, tomo IV, op. cit., p. 271-276.

    14 Tvrtchestvo aktiora i teriia Stanislvskogo. Petrograd: Svobdnoe Iskusstvo, 1917.

    15 Cf. I. Vinogrdskaia, Jizn i tvrtchestvo Stanislvskogo v 3 t. Moskva: VTO, 1973, Tomo 3, p. 93.

    Por sua amplitude e por suas contradies, pelo fato de ser inseparvel de uma prtica efmera e cambiante e tam-

    bm por seus fracassos, a obra de Stanislvski divide en-

    cenadores (V. Sakhnvski, A. Tarov) e crticos (N. fros, V.

    Volkenstein) que avaliam em seus artigos ou livros a obra de

    Stanislvski. Alguns deles a confinam em um dos estgios

    de seu desenvolvimento, outros a valorizam em suas poten-

    cialidades, considerando o caminho de Stanislvski mais do

    que os resultados. Stanislvski parece ter conscincia de

    que prisioneiro de sua terminologia, e que h, desde antes de 1922, problemas de vocabulrio que prejudicam a divul-

    gao clara de seus resultados.16 V. Volkenstein observa,

    em sua obra Stanislvski,17 publicada em 1922 (e reedita-da em 1927), que toda prudncia pouca na pedagogia do

    sistema. Prudncia com a qual a poca de Stalin e depois

    a de Brjnev no se preocuparo nem um pouco, fazendo

    da obra aberta uma doutrina cuja escria est longe de ser eliminada, mesmo se pesquisadores como Maria Knbel e

    depois Anatli Vassliev trabalharam com eficincia para

    devolver-lhe o vio.

    ***

    Remontando s fontes represadas pela lama do stalinis-

    mo, so as relaes Stanislvski-Meyerhold que vamos

    tentar interrogar, porque a que se encontra, na minha opinio, um dos ns da histria do teatro moderno e a resposta questo paradoxal da solido de Stanislvski.

    Com efeito, sabe-se que em 1938 aconteceram vrios

    16 Em A respeito do livro de V. Smychliiev, artigo citado, p. 115, Stanislvski fala de sua terminologia pouco feliz que, paulatina-mente, ele tenta corrigir.

    17 Cf. supra, nota 6.

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    Batrice Picon-Vallin

    encontros entre os dois artistas, Stanislvski e Meyerhold:

    trancados numa sala, sem testemunhas, conversam, enfim, no ocaso da vida, a respeito de tudo o que os preocupa, sem que nada desses encontros tenha transpirado. Fora,

    loucura, cegueira desses dois homens? Fora, loucura, ce-gueira do teatro? De todo modo, a troca aconteceu, m-tica, nesses encontros finais, em pleno recrudescimento do terror stalinista. Mas ela permanece misteriosa. Pode-

    se, entretanto, tentar esclarec-la pela anlise da histria

    das relaes entre ambos. Talvez o teor dessas conversas

    esclarea o mistrio Stanislvski do qual fala o crtico

    Pvel Mrkov em um artigo de 1921.18

    A histria das relaes entre essas duas grandes figu-ras da encenao moderna, tanto russa quanto europeia, entre essas duas personalidades arquetpicas que tudo ou quase tudo ope, longa e complicada. Apresentarei aqui

    apenas algumas rotas e propostas de leitura. Comecemos

    por alguns marcos histricos, no intuito de esboar o rotei-ro de um dilogo entre o mestre e o aluno, que durar at o fim da vida deles. Em 1902, o ator Vsevlod Meyerhold,

    uma das mais brilhantes personalidades do Teatro de Arte, que ele integrava desde sua fundao, quatro anos antes, deixa Stanislvski para fundar sua prpria trupe. Depois

    de ter, de incio, retomado as encenaes de Stanislvski,

    retrabalhando-as segundo seu prprio modelo, Meyerhold

    segue seu caminho, rejeitando o naturalismo psicolgico e dando ateno ao aspecto plstico do espetculo, s linhas,

    aos movimentos, s cores capazes de sugerir, de revelar o

    interior, o invisvel. Em 1905, Stanislvski o chama de vol-

    ta para que colabore na busca de solues para a crise de impotncia que acomete o Teatro de Arte s voltas com o

    18 P. Mrkov, A respeito de Stanislvski, in: Masterstv teatra, n. 1, Vrimennik Kmemogo Teatra, 1922, p. 95.

    repertrio simbolista. Eles criam juntos o primeiro labora-

    trio teatral da Rssia, o Teatro-Estdio. Em seguida, fun-

    daro outros, cada qual por seu lado. No Teatro-Estdio a

    ruptura logo sobrevm. Stanislvski no aceita as solues

    de Meyerhold para A morte de Tintagiles, de Maeterlinck. verdade que os atores estavam muito pouco preparados

    para todas as novas tarefas plsticas, corporais e vocais que lhes so impostas pelo que Meyerhold vai denominar de teatro da conveno:19 um teatro no ilusionista no qual no se trata de fazer entrar a vida, mas de submet-la a uma

    transformao artstica, considerando-se o espectador, ati-

    vo, como o quarto criador.

    Eles s voltaro a trabalhar juntos em maro de 1938, em circunstncias trgicas. Stanislvski convida

    Meyerhold, proscrito e cujo teatro havia sido fechado por um decreto de Stalin de 8 de janeiro desse ano, para o

    Teatro de pera Stanislvski. Mas, ao longo das trs dca-

    das anteriores, cada um acompanha o outro mais ou menos de perto, e a Revoluo que os lana brutalmente em cam-pos opostos, um no teatro engajado, outro no teatro apol-tico, no capaz de separ-los totalmente. Meyerhold to-

    ma o cuidado de sempre distinguir Stanislvski do Teatro

    de Arte, que ele critica com a mxima violncia. Em julho

    de 1921, quando ressoam os ataques do Outubro Teatral

    execrando o Teatro de Arte, Meyerhold manifesta seu res-

    peito por Stanislvski por ocasio de um debate pblico

    que o ope a Tarov. A notcia no publicada nos jornais

    de Moscou, onde teria causado escndalo, mas aparece nos jornais da provncia. Meyerhold faz um apanhado de

    vinte anos de histria do teatro russo e nele no concede

    19 Cf. Meyerhold. crits sur le thtre 1891-1917, traduo, prefcio e notas B. Picon-Vallin, nova edio, revista e aumentada, tomo I. Lausanne: Lge dHomme, 2001, p. 112-117.

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    Stanislvski e Meyerhold.

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    nenhum papel a Tarov, mal o cita, reservando a parte do leo a um monumental Stanislvski: No h nada ou pra-

    ticamente nada, na atualidade de nosso mundo teatral russo, que no esteja, de um modo ou de outro, ligado a Stanislvski, que estudou a cincia da encenao.20

    Em 1936, num contexto poltico diferente, duran-

    te a ofensiva contra o formalismo, cujo alvo principal Meyerhold, este reitera o que havia dito em 1921. Em sua

    conferncia Meyerhold contra o meyerholdismo, defende

    o compositor Dmtri Chostakvitch que o Pravda tinha aca-bado de atacar, sustenta a forma em arte, na medida em que ela se liga de modo indissolvel ao contedo, e fustiga seus

    epgonos, porque suas pesquisas, reproduzidas e deforma-

    das, sofrem sorte idntica s de Stanislvski. E afirma de-

    ver tudo o que fez de grande a seu mestre excepcional. E

    reitera que, se algum dia ele no tivesse mais nada, teria sempre as leis necessrias, as regras necessrias recebi-

    das de Stanislvski e nunca profanadas.21

    Que leis so essas? A observao minuciosa da realidade, a tica de um teatro no comercial que Meyerhold concreti-za nas longas turns realizadas a cada ano pelas provncias

    russas, o questionamento e a experimentao como com-

    portamento de base do encenador, a busca da verdade em cena segundo as frmulas de Pchkin, sobre as quais tanto Stanislvski quanto Meyerhold se apoiam, interpretando-

    as, entretanto, de formas diferentes, do mesmo modo que, para ambos, Fidor Chalipin e Mikhail Tchkhov represen-

    tam modelos de ator, modelos para os quais os dois se in-clinam por meios diferentes. Eu acrescentaria enfim que,

    20 Cf. Moskvic. Meyerhold sobre Stanislvski, in: NVYI PUT, Riga, 2 ago. 1921, n. 148, citado por A. Fevrlski, Stanislvski i Meyerhold, in: Tarsskie strantsi, Kaluga, 1961, p. 289.

    21 Meyerhold contre le meyerholdisme, in: crits sur le thtre 1936-1940, tomo IV, op. cit., p. 43.

    no Teatro de Arte, em 1901, Stanislvski dirige Meyerhold,

    intrprete de Tusenbach em As trs irms, segundo princ-pios que j so os das aes fsicas. Em 1936, Meyerhold

    rememora, diante de seus atores, um momento no qual ele no conseguia exprimir o frmito que lhe estava sendo pe-

    dido; Stanislvski o fez ento desarrolhar uma garrafa e, a

    partir dos movimentos de seu corpo, das tenses implica-das por essa ao, algo brotou, semelhante ao sentimento buscado, que no era o sentimento, mas podia ser percebido como tal pelos observadores.22 A atuao do exterior para

    o interior, que caracteriza a pesquisa meyerholdiana, lhe

    foi de alguma forma revelada por Stanislvski, mesmo se,

    entre as solues que experimentava, Stanislvski tenha

    optado, na poca, pela via contrria. No entanto, ele voltar

    a esse tipo de atuao em vrios momentos de sua carrei-ra, antes de fazer a respeito uma investigao sistemtica

    entre 1935 e 1938.

    De 1902 a 1938, pode-se notar entre Stanislvski e

    Meyerhold pontos precisos de acordo ou desacordo, com um interesse vivamente marcado de Stanislvski por Meyerhold

    por volta dos anos 1924-1926. Em 1904, Meyerhold ataca

    ponto por ponto a interpretao realista, analtica, fatia de vida por fatia de vida, que Stanislvski fez de O jardim das cerejeiras. Meyerhold enfatiza a composio musical da pe-a numa carta clebre que escreveu a Anton Tchkhov.23 Em 1913, Stanislvski condena o trabalho de Meyerhold, seus

    atores mentirosos, seu teatro de manequins. Nos anos 1920,

    Meyerhold critica o Caim de Byron encenado por Stanislvski (1920), mas solicita sua opinio e o convida repetidamente

    22 Cf. Rptitions de Boris Godounov, 28 nov. 1936, in: crits sur le thtre 1936-1940, tomo IV, op. cit., p. 132.

    23 Lettre Anton Tchekhov, 8 mai 1904, in: crits sur le thtre 1874-1917, tomo 1, op. cit., p. 62.

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    para seus espetculos: Mistrio-Bufo, depois de sua volta dos EUA, D.E., A floresta, O cornudo magnfico. Depois que Meyerhold veio ao Teatro de Arte para assistir ao espetculo A desgraa de ter esprito, Stanislvski assiste em 1925 ao Mandato e exclama a respeito do terceiro ato: Meyerhold conseguiu aquilo com que eu sonho.24 A presena excepcio-

    nal de Stanislvski no GosTIM no passou desapercebida e, naquela noite, o espetculo foi duplo: no palco e na plateia,

    onde o pblico acompanhou o tempo todo suas reaes... E

    se Stanislvski viu poucas das encenaes de Meyerhold,

    pedia, no entanto, que as descrevessem para ele, como fez,

    durante um dia inteiro, com o assistente de Meyerhold, que teve que contar em detalhes A dama de espadas, pera de Tchaikvski, que Meyerhold havia montado, de forma radical

    no MALEGOT de Leningrado (1935).

    Em 1926, Stanislvski reconhece a importncia do tra-

    balho realizado por Meyerhold sobre o espao cnico, sua

    abertura, a unio com a plateia, a simplificao do cen-rio pelo uso de biombos, a fora da iluminao bem foca-da, em meio a uma semiobscuridade, inovaes que con-duzem destruio de uma vez por todas da moldura da

    cena que atrapalha o encenador e o ator em algumas en-cenaes intimistas.25 Quanto a Meyerhold, no momento de apresentar, em janeiro de 1926, o ensaio geral de Urra, China!, de S. Tretiakov, montado por um de seus assisten-tes, V. Fidorov, ele faz inopinada e publicamente, em seu

    prprio teatro, elogios ao Corao ardente de Ostrvski, cuja estreia acabara de acontecer no Teatro de Arte e que era como que uma resposta sua Floresta. E correu naquele

    24 Cf. P. Mrkov. Sobre Stanislvski, in: Teatr, Moskva, 1962, n. 1.

    25 Cf. C. Stanislavski. Ma vie dans lart. Lausanne: Lge dHomme, 1980, p. 484-485. Trata-se de um trecho acrescentado em 1926 para a edio russa. A edio americana foi publicada em 1924.

    ano um boato: Meyerhold faria uma encenao no Teatro de Arte... Entretanto, em 1932, ele criticar As almas mortas, e, em 1936, Molire obras respectivamente adaptada e escrita por M. Bulgkov, que jamais o perdoar por isso. E

    mais: Meyerhold implorou a Stanislvski que fosse ver em

    1935 seu trabalho com trs farsas curtas de Tchkhov ou

    que permitisse que o espetculo fosse mostrado no teatro de sua casa!26 Mas Stanislvski no foi...

    Fora essas opinies que cada um expressa a respeito do

    trabalho do outro, algumas tentativas concretas de apro-ximao acontecem a partir de 1924: por exemplo, um pro-

    jeto para transformar o Terceiro Estdio do Teatro de Arte

    em uma plataforma de colaborao entre Stanislvski e

    Meyerhold que ali ensaiava, na poca, Boris Godunov, de Pchkin, com os atores formados por Vakhtngov. As tra-

    tativas acontecem por intermdio do ator Boris Zakhava.27 A iniciativa , sem dvida, prematura e mesmo se ela pa-

    rece tentar Stanislvski no tocante ao trabalho, ele a re-

    cusa. Porque esse tipo de colaborao-aproximao com

    Meyerhold, mesmo num plano experimental, equivaleria a

    uma ruptura declarada com Nemirvitch-Dntchenko, com o

    qual ele faz questo de preservar a concrdia para salvar o

    Teatro de Arte. Salvar o Teatro de Arte: refro angustiado

    que, de 1898 at hoje, acompanha a longa existncia desse

    Teatro cuja histria aparece, alis, ao analista atento como uma sequncia de crises e de resgates que so tanto da or-

    dem do milagre quanto da ordem dos conchavos.28

    26 Lettre Stanislavski, 25 mar. 1935, in: crits sur le thtre 1930-1935, traduo, prefcio e notas de B. Picon-Vallin, tomo 3, nova edio revista e aumentada, no prelo.

    27 Cf. Meyerhold. crits sur le thtre 1917-1930, tomo II, op. cit., p. 376.

    28 Cf. A. Smelinski. O que significa Teatro de Arte?, in: Sovitskaja kultura, p. 4, 27 out. 1988.

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    Mas a necessidade de intercmbio real: nos anos 1930,

    Meyerhold vai assistir aos atores do Teatro de Arte (ele admira

    Moskvin) e eles tambm vm aos espetculos de Meyerhold,

    assistem aos ensaios pblicos e alguns como Hmeliov gosta-

    riam de trabalhar com Meyerhold. Enfim, em 1931-1932 os

    dois encenadores se dedicam ao mesmo tempo segunda pe-

    a de N. rdman, O suicidado. Meyerhold fala de uma compe-tio socialista entre o GosTIM e o Teatro de Arte a respeito

    desse espetculo, mas O suicidado ser proibido e a compe-tio, por mais socialista que seja, no vai adiante.

    Numa interveno de dezembro de 1933, intitulada

    Ideologia e tecnologia no teatro, Meyerhold se alegra com

    o fato de que o TRAM (Teatro da Juventude Operria) que,

    at ali, tinha seguido com tal ardor a escola meyerholdiana, que chegava s vezes a desfigurar seus princpios, tenha

    convidado alguns atores stanislavskianos porque, diz ele:

    uma coisa muito boa que os integrantes do TRAM te-

    nham sentido necessidade de examinar o que , na prti-

    ca, o sistema de Stanislvski em lugar de se contentar com

    aproximaes. Mas, acrescenta, o sistema uma coisa e

    o homem que ensina esse sistema outra,29 chamando a ateno para possveis deformaes. E se reconhece que

    Stanislvski soube se afastar do naturalismo de sua primei-

    ra fase, da fotografia da vida, Meyerhold sublinha, compa-rando os dois mtodos, o seu e o de Stanislvski: Embora

    realistas, somos diferentes. E Meyerhold oferece sua pr-

    pria frmula: realismo poderoso, realismo sobre a base

    da conveno.30 Ele, alis, j havia utilizado em outro mo-

    mento a expresso realismo musical e corrigido o termo

    29 Cf. Idologie et technologie au thtre, dez. 1933, in: crits sur le thtre 1930-1936, traduo, prefcio e notas de B. Picon-Vallin, tomo III. Lausanne: Lge dHomme, 1980, p. 138 e 147.

    30 Idologie et technologie au thtre (dez. 1933), idem, p. 142-143.

    naturalismo acrescentando-lhe o prefixo svierkh (super): supernaturalismo.31 Nunca Stanislvski, que apreciava

    muito esse prefixo, a ponto de aplic-lo a vrios concei-

    tos relativos atuao (svierkhsoznnie: supraconscien-te, svierkhfantzia: superimaginao, svierkhzadtcha: superobjetivo), o teria utilizado com um termo que se rela-

    cionasse ao estilo de encenao. Basta comparar o trata-

    mento dado ao material de Ggol pelos dois encenadores em O inspetor geral (1926) e As almas mortas (1932). No primeiro caso, estamos diante de uma encenao meta-frica e anti-ilusionista, que amplia O inspetor geral, por meio de poderosas imagens visuais e sonoras, projetando-o

    em direo obra de Ggol como um todo e prpria figu-

    ra de Ggol, enquanto que, no segundo caso, o espetcu-lo busca criar a iluso da vida em cena: no se encontram

    em As almas mortas do Teatro de Arte as especificidades da escrita gogoliana, essa gogoliana da qual fala o poeta A. Bily, grande conhecedor da obra de Ggol.

    Apesar do interesse, do respeito, da aproximao volun-

    tria em meados dos anos 1920 e nos anos 1930 (em que

    outros fatores, polticos, no caso, complicam a anlise), as diferenas entre os dois homens continuam a ser radicais:

    um humanista, tem f, possui uma cultura pictrica e liter-ria limitada ao sculo XIX; o outro utopista, versado no ro-

    mantismo alemo e no simbolismo russo, muito bom msico,

    violinista, e dono de uma imensa cultura plstica e musical, tanto clssica quanto contempornea. As estticas de seus

    espetculos so inconciliveis, e vou me deter aqui em alguns traos particulares que os opem em sua prtica teatral.

    31 A primeira expresso foi utilizada em 1927 a respeito da encena-o de O inspetor geral. Cf. crits sur le thtre 1917-1930, tomo II, op. cit., p. 268. A segunda utilizada em 1931, cf. A Alemanha. Entrevista com Meyerhold, in: Tvrtcheskoe naslidie V. Meyerholda. Moskva: VTO, 1978, p. 80.

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    O pblico: como se Stanislvski tivesse medo dele,32 construindo uma quarta parede entre a cena e o despenha-deiro que a plateia, instando os espectadores a no aplau-dir, protegendo a fragilidade do ator da violncia de suas re-

    aes. Ao contrrio, Meyerhold tem curiosidade a respeito da plateia, desejo de conhecer a atividade do pblico, que

    faz parte do espetculo, no qual se integra organicamente;

    Meyerhold incita o pblico a reagir, mesmo que a desordem

    se instale e a plateia acabe dividida em faces opostas. Em

    1936, imagina o pblico no papel de um coro antigo desti-

    nado a criticar o espetculo durante o seu desenrolar. O

    pblico definido como a grande caixa de ressonncia do

    espetculo, e conta-se que Meyerhold, em seu teatro, em

    vez de dirigir o olhar para o palco, assistia, das coxias, ao

    espetculo da plateia, interessado em avaliar a eficcia dos seus atores na construo das emoes do pblico.

    A cena: para Stanislvski, ela um lugar cuja autentici-dade criada imagem dos lugares da vida (da vida viva,

    expresso que gostava de utilizar). Ele procura oferecer

    dela a exposio mais clara, acessvel e detalhada poss-

    vel, com o objetivo de suscitar a identificao e de criar a iluso. Para Meyerhold, a cena o lugar do artifcio, ela tem

    suas regras e a criao teatral faz a observao rigorosa e

    precisa passar pela mediao das artes plsticas e musi-cais. Em vez de convencer, essa cena deve evocar, sugerir,

    comunicar ao espectador uma energia fsica ou psquica, deve toc-lo, provocar nele o espanto, propor-lhe questes,

    at mesmo enigmas.

    32 A. Smelinski em interveno no Colquio sobre Stanislvski organi-zado pelo Thtre Nacional de Chaillot e por Antoine Vitez, nos dias 5 e 6 de outubro de 1988, mostrou que esse medo se originara em experincias teatrais de adolescncia.

    O ator: durante os ensaios, Stanislvski manifesta sua sa-tisfao dizendo: Viriu (Acredito). Meyerhold a exprime por um forte Khoroch (Bom.). Dirigido por Stanislvski, o ator deve, quer se trate de memria afetiva, de sentimen-tos pessoais ou de aes fsicas, dominar todo o arsenal dos mtodos tcnicos de criao acessveis conscincia para

    tocar nos labirintos secretos do supraconsciente no qual repousa a inspirao.33 O ator meyerholdiano, bem treina-

    do fisicamente pela biomecnica, pensa cada movimento de seu corpo em vista de uma expressividade mxima e dos

    efeitos a serem produzidos sobre o pblico, de acordo com

    os jogos de cena que o encenador construiu para ele. Um vi-

    ve em cena numa continuidade natural, dada pela imagem da atuao como um movimento sobre trilhos,34 o outro se serve das descobertas da neurocincia da poca (I. Pvlov,

    William James), constri seu papel em facetas que ele exi-

    be alternadamente, como advogado ou procurador de seu personagem.

    O texto: mesmo analtica, a aproximao stanislavskia-na do texto visa a um desenvolvimento contnuo da psico-

    logia dos personagens. Meyerhold, ao contrrio, procede a

    uma decupagem do texto e a uma montagem em fragmentos

    contrastados.

    O espao cnico: Stanislvski teme a tirania do cengra-fo e condena suas prprias experincias de teatro simbo-

    lista na medida em que elas privaram o ator de um cho real onde viver em cena. No limite, ele gostaria que o cen-

    grafo no fosse convocado a no ser no fim dos ensaios e que se adaptasse forma interior criada pelo trabalho do

    33 Cf. C. Stanislavski. Ma vie dans lart, op. cit., p. 49.

    34 V. Volkenstein. Stanislvski. Moskva: Chipvnik, 1922, p. 18.

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    ator.35 Os problemas relativos ao espao so, ao contrrio,

    prioritrios para Meyerhold. O cenrio, o dispositivo cni-

    co, a construo so concebidos de tal modo que, por seus planos ou volumes, por suas formas, suas dimenses, pelas dificuldades que apresentam ao ator e que este deve supe-rar, colaboram com o desenvolvimento de sua atuao de maneira muito expressiva e eficaz, sob as melhores condi-

    es psicolgicas.

    Se um desenho visual linear, plano, parece predominar

    na obra de Stanislvski, em Meyerhold encontramos uma

    vontade (que lhe vem das artes plsticas contemporneas

    e do cinema) de verticalizar, levantar, inchar e at mesmo,

    segundo sua expresso, empinar a cena (variaes sobre as escadas). Enfim, se Stanislvski utiliza a metfora em sua direo de atores, esta constitui a prpria estrutura do pensamento do encenador Meyerhold. Um exemplo basta:

    quando, depois da morte de Stanislvski, Meyerhold con-

    clui o Rigoletto (1938-39) iniciado pelo velho mestre, d s indicaes de Stanislvski para o fim do ato III uma soluo cnica muito vigorosa. Em vez de exprimir de modo cotidia-

    no, por meio do furor dos bufes aclitos de Rigoletto, a revolta verdadeira que, segundo Stanislvski, deve carac-

    terizar essa cena, Meyerhold a expressa por uma dana, a dana dos bufes, montada por Zlbin, seu melhor biomec-nico, que Stanislvski havia chamado sua casa j em 1933. E, sobretudo, ele a expressa por um nico gesto concentra-

    do. De p, ao lado da cortina dourada, Rigoletto acaba de

    cantar seu papel: no l bemol, ele pega a borda do pesado

    tecido, e o puxa correndo em direo s coxias. Com um es-

    talido, a rica cortina se rasga segundo uma linha oblqua, e o

    35 B. Zingerman. Depois da leitura do livro, in: Stanislvski repetruet. Moskva: STD, 1987, p. 587.

    deslizar dessa cauda improvisada prolonga sua enraivecida

    desapario.36 preciso, claro, enfatizar que Stanislvski afirmou, em diversas ocasies: O nico encenador que eu

    conheo Meyerhold.37

    Cada um, de fato, estabelece pontes, aberturas em dire-o ao outro. Pelo jogo com as facetas, pela montagem, pela

    distncia, o ator meyerholdiano nunca se perde nem se es-quece de si mesmo no personagem. Mas Meyerhold subli-

    nha em 1933 os limites do reviver no pensamento stanis-

    lavskiano, e, analisando a atuao irnica de Moskvin em As almas mortas, considera que ser advogado ou procurador de seu personagem no est em contradio com o sistema de Stanislvski.38 A interveno do encenador no interior do tex-

    to de um autor, justificada no trabalho de Meyerhold pelo im-perativo social, pela reflexo sobre a censura, pela vontade

    de montar no uma pea isolada, mas as obras completas do autor em questo, no caracteriza apenas o encenador revo-

    lucionrio. Ela assume outras formas na obra de Stanislvski.

    Basta pensar nos conflitos que o opem a Bulgkov ao lon-

    go dos ensaios de Molire e nas indicaes que d ao escri-tor para que reescreva seu texto. Quanto criao de um

    espao cnico totalmente reestruturado sem recurso pin-

    tura, Stanislvski reconhece sem rodeios a contribuio de Meyerhold, nica em sua audcia e em sua simplicidade.

    Ento: anttese ou complementaridade? Em 1935,

    Meyerhold declara:

    36 P. Rumintsev. Na pera Stanislvski, in: Vstritchi s Meyerholdom. Moskva, VTO, 1967, p. 599.

    37 Idem, p. 593, G. Kristi. Stanislvski e Meyerhold, in: Oktiabr, n. 3, p. 183, 1963.

    38 Cf. arquivos do Museu do Teatro de Arte, citado por K. Rudntski, Rejissior Meyerhold. Moskva: Nauka, 1969, p. 487.

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    No se deve dizer que Meyerhold e Stanislvski so

    antpodas, que so contrrios absolutos. falso por-

    que o itinerrio de Stanislvski implicou numa srie

    de evolues, porque, como sbio e grande artista de

    nosso tempo, ele acolheu as mais diversas influncias

    e esteve atento a tudo. No estrangeiro, para onde via-

    jou, observou muitos teatros com um olhar penetrante

    [...] Stanislvski mudou com frequncia, modificou suas

    concepes, suas formulaes e eu, por meu lado, fiz

    outro tanto [...] A arte magnfica porque, a cada etapa,

    ns nos surpreendemos em posio de aprendizes. [...]

    Situar-nos nos antpodas um do outro seria um ponto

    de vista limitado. Nem Meyerhold nem Stanislvski so

    algo de acabado, eles mudam constantemente.39

    Contrrios absolutos, no, mas, de todo modo, contrrios...

    Onde apreender seu parentesco seno nesse movimento

    e nessa autorreforma? Numa tenso rumo a um teatro do

    futuro, um teatro por fazer, numa experimentao, numa

    pesquisa de bases cientficas para o teatro, que no uma cincia, e na hesitao de ambos em publicar seus resulta-

    dos publicao tardia no caso de Stanislvski, nenhuma

    publicao por parte de Meyerhold nos anos 1930, embora

    ele sonhasse em estabelecer um ABC da encenao. No fim

    de 1937, Meyerhold repete e esmia sua ideia:

    preciso acabar com essa bobagem, com essa estupi-

    dez de que Konstantin Serguievitch e eu seramos o

    antpoda um do outro. falso. Ns representamos dois

    sistemas complementares. Stanislvski excluiu de seu

    39 Entretien avec des metteurs en scne de province, 11 jan. 1935, in: crits sur le thtre 1936-1940, tomo IV, op. cit., p. 25-26.

    sistema muitos elementos que vinham dos Meininger.

    Quanto a mim, integrei no meu uma srie de elemen-

    tos que eu havia rejeitado no incio de minha ativida-

    de, que eu no tinha querido aceitar de Stanislvski.40

    Ao fim dos anos 1930, a radicalidade de suas diferenas

    se atenua, porque a poca e seus perigos assim o exigem.

    Meyerhold se protege, claro, mas nunca pisar na gargan-

    ta de sua prpria cano, para usar as palavras de seu ami-

    go Maiakvski. Talvez porque Meyerhold precise encontrar

    aliados para lutar contra o realismo socialista que ele to-ma o cuidado de distinguir do sistema de Stanislvski e que

    identifica com o naturalismo que invade as cenas soviticas com sua monotonia e sua falta de brilho. Entretanto, se as

    aes fsicas (que, como vimos, no so inveno do ltimo

    perodo de Stanislvski, mas o ltimo objeto sobre o qual

    se concentram suas pesquisas) se aproximam da biomec-

    nica j em 1933, como vimos, Stanislvski convida para ir

    sua casa Z. Zlbin, o melhor biomecnico de Meyerhold , as duas no se identificam de modo algum e as diferenas so de princpio. No trabalho de Stanislvski, as aes fsi-

    cas permanecem ligadas s aes da vida, executadas como

    na vida, enquanto Meyerhold fala de movimento antes de falar de aes. Por seu lado, Meyerhold enriquece os perso-nagens com uma anlise psicolgica que ele nunca deixa de

    realizar, nem para O cornudo magnfico, mas seu mtodo de direo de atores, montagem de referncias que remete o

    ator a imagens mltiplas e heterogneas, suscita neste um

    outro tipo de criatividade.

    40 Intervention au GosTIM aprs larticle de P. Kerjentsev Un thtre tranger, 25 dez. 1937, in: crits sur le thtre 1936-1940, tomo IV, op. cit., p. 196.

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    folhetim 30

    Stanislvski e Meyerhold.

    Solido e revolta

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    folhetim 30

    Batrice Picon-Vallin

    Depois da morte de Stanislvski, Meyerhold enfatiza

    ao mesmo tempo a universalidade e a abertura do sis-tema que no inveno somente de Stanislvski, mas

    tambm de outras prticas de outros companheiros de trabalho artstico, Nemirvitch-Dntchenko e Vakhtngov

    e eu prprio, confesso-o humildemente. Assim como

    Meyerhold, Stanislvski deixou muito material ainda no elaborado, notas, projetos, cadernos: Dispomos de

    um grande tesouro e, tomando-o por base, poderemos

    avanar.41 Para Meyerhold, a herana de Stanislvski,

    o tesouro no para ser pilhado, de modo algum, mas

    enriquecido, desenvolvido. preciso lembrar que S.

    Eisenstein, aluno de Meyerhold no incio dos anos 1920,

    que teve a coragem de conservar os arquivos do mestre em sua casa, depois da morte deste, tambm chamava as malas onde estavam guardados os papis e fotos do GosTIM de o tesouro...

    Por que Stanislvski convida Meyerhold para traba-lhar em sua pera em maro de 1938? A verso lacrimo-

    sa da mo estendida ao filho prdigo por um velho co-rajoso no de forma alguma verdadeira. Nessa poca,

    Stanislvski objeto de um culto que o torna intocvel,

    ele pode se permitir o que quiser, no corre nenhum risco.

    Ele no corre realmente nenhum risco, ainda mais porque o Teatro de Arte d, nessa ocasio, todas as garantias ao poder, organizando uma reunio especial para come-

    morar o fechamento forado do GosTIM.42 O apelo que

    Stanislvski faz a Meyerhold no , portanto, apenas di-

    tado pela moral, mas por um desejo de colaborao real,

    41 Confrence aux Cours pour metteurs en scne, 17 jan. 1939, in: crits sur le thtre 1936-1940, op. cit., tomo IV, p. 268.

    42 Notemos que em 1936 Stanislvski no tinha assinado a petio em favor do fechamento do Teatro de Arte II, cujos membros eram, no entanto, como Meyerhold, seus antigos alunos, e portanto, perigosos.

    que vem desde 1936, data de um projeto segundo o qual

    Stanislvski quer confiar uma filial a Meyerhold e, alm

    disso, pedir-lhe que ensine a biomecnica e crie ence-

    naes em seu Estdio.43 De fato, na prtica, em maro de 1938, Stanislvski designa Meyerhold seu sucessor

    na pera; convida-o a trabalhar com ele e, depois, a as-

    sumir seu lugar polindo as peras j ensaiadas. Esta a

    grande lio de Stanislvski: abrir sua cena, a da pera,

    da qual ele o nico senhor (diferentemente do Teatro de

    Arte, totalmente governado pela poltica no fim dos anos 1930), no a um Meyerhold arrependido e diminudo por

    no se sabe que Canossa, o que ele absolutamente no , mas a um criador capaz de operar uma grande sntese ex-

    perimental entre os gneros (nesse caso, teatro e pera)

    e de propor outros mtodos. Porque essa pesquisa no

    levada a cabo, porque ela tragicamente interrompi-da, ela vai estimular mais ou menos subterraneamente o trabalho de Tovstongov, Liubmov, Vassliev, Fomenko,

    cada qual a seu modo.

    Se no soubssemos agora que a priso de Meyerhold

    se inclua num projeto mais amplo, o de atingir, em 1939,

    certo nmero de membros da intelligentsia artstica, po-deramos pensar que sua condenao morte correspon-

    deu a uma vontade de ltima hora de fazer desaparecer a

    nota em falso que ameaava contradizer, comprometer, a interpretao jdanoviana do sistema stanislavskiano.

    Mesmo se essa condenao no foi apenas isso, ela foi tambm isso. A desapario de Meyerhold, cujo nome fi-

    car por muito tempo banido dos manuais, dos livros e no qual ningum falar, esconde a ltima mensagem de

    43 Cf. arquivos do Museu do Teatro de Arte, citado em V. Meyerhold, in: Stat, psma, ritchi, bessidy. Moskva: Iskusstvo, 1968, tomo 2, p. 578.

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    folhetim 30

    Stanislvski e Meyerhold.

    Solido e revolta

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    Batrice Picon-Vallin

    Stanislvski. Para estudar realmente Stanislvski, pre-

    ciso, portanto, passar por seus principais alunos em primeiro lugar V. Meyerhold, mas tambm E. Vakhtngov e M. Tchkhov, aqueles que transformaram as ideias de

    Stanislvski e o levaram a evoluir. preciso restabele-cer, compreender e analisar o dilogo vivo no qual, recu-

    sa, incompreenso, sucede o intercmbio, estabelecido,

    por um lado, entre eles e Stanislvski, e, por outro, entre

    os trs, dilogo que os acontecimentos da histria pri-

    vada e pblica encerraram com brutalidade. Stanislvski est, antes de mais nada, a caminho, como escreveu J. Grotowski,44 e seu valor est, sem dvida, numa abertu-

    ra constante, num certo inacabamento, ligado aos suces-sivos convites de Stanislvski, que sentia a necessidade

    profunda de um revoltado a seu lado. Citarei ainda uma vez Meyerhold, que foi o primeiro dentre esses revoltados,

    convidado em 1905 a fundar com Stanislvski o Teatro

    Estdio, laboratrio para a explorao de novos caminhos.

    Lembremos que Vakhtngov morreu prematuramente e M.

    Tchkhov emigrou. Meyerhold foi ento o nico que con-

    tinuou a trabalhar na Rssia. O texto de 1939 e foi pro-

    nunciado diante da trupe da pera Stanislvski:

    Ele tinha necessidade de ter junto de si um revolta-

    do que, para trabalhar, arregaaria as mangas. Era um

    magnfico pedagogo, um inventor, um artista dotado

    de grande iniciativa. Ele amava a arte. Na arte ele ti-

    nha colocado toda a sua vida. E ns, ns vamos querer

    conservar suas quatro colunas? Elas que vo pro dia-

    bo! Eu no farei aliana com vocs para defender essas

    44 Rponse Stanislavski, traduzido em Le journal de Chaillot, n. 11, abr. 1983, por K. Osinska e M. Borie. (Resposta a Stanislvski, em traduo de Ricardo Carlos Gomes, foi publicado no Folhetim n. 9. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, p. 2-21, jan.-abr. 2001.)

    quatro colunas. Estou acostumado a ser escorraado.

    Podem me mandar embora, se quiserem. Eu vou. Mas

    no tenho nenhuma inteno de virar conservador de

    colunas.45

    Meyerhold, o primeiro e o ltimo dos revoltados de que

    Stanislvski necessitava, o nico encenador que este

    reconhecia...

    45 V. Meyerhold. Interventions lpera dtat Stanislavski, 4 abr. 1939, in: crits sur le thtre 1936-1940, op. cit. tome IV, p. 276. Trata-se das colunas do cenrio de Eugnio Oniguin, de P. Tchaikvski.

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    folhetim 30

    A criao deve conter alegria.

    Em que se encontra alegria?

    Antes de tudo, a alegria est na verdade.

    Konstantin Stanislvski

    Passados quase 75 anos da morte de seu criador, o sistema

    de Stanislvski continua a ser um fenmeno vivo, aberto a

    reflexes e debates, um caminho de investigao e busca

    que leva a novas descobertas. Ou seja, o sistema comple-

    tamente contrrio ao clssico manual que pretende ditar a verdade absoluta. J nas primeiras anotaes sobre a arte

    do ator feitas em 1906, Stanislvski escreveu que no po-

    de existir e no deveria existir nenhum manual ou gramtica

    da arte teatral. Quando for possvel encaixar nossa arte nos

    limites entediantes e rgidos de uma gramtica ou manual, teremos que admitir que ela deixou de existir.1

    Anatli Smelinski, diretor da Escola de Arte Dramtica

    do Teatro de Arte de Moscou e um dos mais profundos co-nhecedores da herana artstica de Stanislvski, anota que

    graas aos esforos conjuntos dos profissionais de teatro,

    pesquisadores e pedagogos muito se fez para o estudo da

    herana de Stanislvski, para a edio de suas obras, mas,

    apesar disso, temos de admitir que em relao ao desenvol-vimento do sistema e compreenso de seus pontos mais

    difceis ainda estamos no jardim de infncia.2 Contudo, vrias vezes os seguidores de Stanislvski ten-

    taram congelar um ou outro aspecto do sistema, reduzi-

    lo a certo nmero de regras e receitas para o trabalho do

    1 K. S. Stanislvski. Iz zapsnykh knjek (Dos cadernos de anotaes). Vol. 1. Moscou: VTO, 1986, p. 208-209.

    2 K.S. Stanislvski. Sobrnie sotchinni v 9 t. (Coletnea das obras em 9 volumes). Vol. 2. Moscou: Isksstvo, 1989, p. 34.

    Nenhum manual ou gramtica da

    arte teatral: alguns

    apontamentos sobre a formao

    do sistema de Stanislvski

    Elena Vssina Elena Vssina teatrloga e pesquisadora russa, autora, tradutora e organizadora de ensaios e livros dedicados potica do drama moderno e histria do teatro russo. Atualmente trabalha como professora do curso de Letras Russas da USP.

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    folhetim 30

    Nenhum manual ou gramtica da arte

    teatral

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    Elena Vssina

    ator. E isso sempre provocou irritao em Stanislvski, que,

    mais do que tudo, temia uma compreenso simplificadora de seu sistema.

    Em 1917, o autor do sistema estava lendo o livro O traba-lho criador do ator e a teoria de Stanislvski, publicado na ento Petrogrado pela editora Svobdnoe Isksstvo (Arte

    Livre).3 Com a dedicatria Para Konstantin Serguievitch,

    como uma prova de respeito e amor, o livro, escrito pelo

    diretor, pedagogo e terico teatral Fidor Komissarjvski,

    foi a primeira tentativa de expor as teses bsicas da teoria

    de Stanislvski. Mas a compreenso superficial e simpli-

    ficada de Komissarjvski da teoria do trabalho criador do

    ator, que ainda estava em processo de elaborao, revoltou Stanislvski profundamente. O exemplar do livro, guardado

    no arquivo de Stanislvski, est repleto de notas e comen-

    trios enfurecidos que demonstram bem tanto o engaja-mento com a leitura, quanto seu temperamento apaixonado.

    Entre sinais de interrogao e exclamao, h notas do tipo:

    Quanta asneira, Eis uma filosofice. Se o ator se saturar de

    leitura ser o fim. Ele se tornar filsofo, e deixar de ser

    ator, Que absurdo, Mentira...

    Reiterada e categoricamente Stanislvski refuta as afir-

    maes de Komissarjvski de que o sistema prega um natu-

    ralismo psicolgico, ou de vida cotidiana, e exige do ator

    a repetio de suas revivescncias (perejivnie) pessoais em cena. Stanislvski faz observaes furiosas: Mentira,

    eu no digo isso! Pelo contrrio, aquilo que o ator pode sen-tir complexo demais. Komissarjvski confunde compaixo

    com sentimento. E, mais adiante: Todo o meu trabalho de

    diretor e a prtica do ator ensinam a trabalhar baseando-se

    3 F. F. Komissarjvski. Tvrtchestvo aktira i teria Stanislvskogo (O trabalho criador do ator e a teoria de Stanislvski). Petrogrado: Svobdnoe Isksstvo, 1916.

    exclusivamente na imaginao. Que calnia revoltante e

    que falta de compreenso!... Toda a minha vida dedicada

    revivescncia.

    afirmao de Komissarjvski de que o naturalismo de

    Stanislvski priva a nossa conscincia de suas possibilida-

    des mais complexas e criativas, Stanislvski devolve uma

    rplica irada: Quando? Onde? Mentira. Mas que baixeza. Eu

    falo exatamente o contrrio. Preciso da naturalidade para

    uma superfantasia. 4

    Este episdio foi somente o primeiro mal-entendido

    (entre tantos outros no futuro) em relao ao sistema de

    Stanislvski, que discutiu e defendeu seu sistema o quanto

    pde. No entanto, isso nem sempre foi fcil para ele, por-

    que suas abordagens da arte do ator se desenvolviam e mu-davam constantemente, acompanhando o processo de sua evoluo e amadurecimento como ator, encenador e peda-gogo teatral. Stanislvski elaborava e punha prova o sis-

    tema por meio de sua prtica teatral e de sua prpria ex-

    perincia, sempre com ardentes debates com seus crticos.

    Parece-nos importante ressaltar que Stanislvski nunca

    declarou ter conseguido chegar verso definitiva e final

    do sistema; ao contrrio, vemos o sistema como um work in progress, ou seja, um ponto de partida de elaborao da teoria da arte do ator ao qual cada criador possa adicionar novos elementos. Por isso no se pode absolutizar nenhuma

    parte separada do sistema, pois o todo perderia seu senti-do. O sistema funciona somente nas correlaes de todos

    os componentes, como um tipo de encadeamento tal como se apresenta a prpria vida e/ou natureza. Enfim, o siste-

    ma no somente d respostas para o ator, mas, sobretudo,

    4 I. N. Vinogrdskaia. Jizn i tvrtchestvo Stanislvskogo: Litopis (Vida e obra de Stanislvski: Anais). 2 ed. Moscou: MKHT, 2003, v. 2, p. 577 -579.

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    Nenhum manual ou gramtica da arte

    teatral

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    Elena Vssina

    coloca algumas das mais importantes perguntas que provo-cam uma busca contnua por respostas. Talvez nisso resida

    seu poder instigante.

    No captulo final do livro O trabalho do ator sobre si mes-mo no processo criador da encarnao, intitulado Como empregar o sistema, Stanislvski expe seu enfoque do

    sistema com uma clareza mpar:

    O sistema um guia. Abra e leia. O sistema um livro

    de referncia e no uma filosofia. Assim que comea a

    filosofia o sistema termina. [...]

    No existe sistema nenhum. Existe a natureza.

    A preocupao da minha vida inteira me aproximar

    o mximo possvel daquilo que se chama sistema, ou

    seja, da natureza da criao.

    As leis da arte so as leis da natureza.5

    Uma das atrizes do Teatro de Arte de Moscou e aluna

    de Stanislvski, Nadijda Btova, escreve em uma carta de

    1910 (perodo da primeira etapa de elaborao do sistema),

    que Stanislvski, por meio de exerccios que seguiam o sis-

    tema, estava buscando caminhos que levassem os atores

    fuso com a natureza da vida.6 Como anota a brilhante estu-diosa da obra de Stanislvski, Inna Soloviva, o fato de que

    a criao e a natureza possuem as mesmas leis uma das

    mais importantes e caras ideias de Stanislvski.7 Portanto, um dos principais pilares do sistema ergue-se da profun-

    da crena de Stanislvski na infinita vastido da prpria

    5 K. S. Stanislvski. Sobrnie sotchinni v 9 t. (Coletnea das obras em 9 volumes). Vol. 3. Moscou: Isksstvo, 1990, p. 371.

    6 I. N. Vinogrdskaia. Jizn i tvrtchestvo Stanislvskogo: Litopis (Vida e obra de Stanislvski: Anais). 2 ed. Moscou: MKHT, 2003, v. 2, p. 226.

    7 Ibid., vol. 1. Moscou: Isksstvo, 1990, p. 31.

    natureza humana, que deve ser revelada e aproveitada no

    ato criador.

    H milhares de pginas de anotaes sobre o sistema stanislavskiano. Como se sabe, Stanislvski conseguiu reu-

    nir e mandar para a editora somente a primeira parte de O trabalho do ator sobre si mesmo no processo criador da revivescncia (1938), que foi uma publicao pstuma. Os dois volumes seguintes, O trabalho do ator sobre si mes-mo no processo criador da encarnao (1948) e O trabalho do ator sobre o papel (1957), foram reconstrudos pelos pesquisadores com base nos materiais de arquivo e orga-nizados segundo as ideias e o plano que Stanislvski tinha

    deixado e tinha exposto vrias vezes. Seus cadernos de

    anotaes, observaes e apontamentos artsticos, uma vasta correspondncia, registros de ensaios e memrias de

    vrios atores, colegas e alunos guardam informaes pre-ciosas sobre as principais vertentes e etapas de elaborao do sistema, refletindo todo o dinamismo do pensamento

    vivo de Stanislvski e seu desejo de ir sempre mais e mais

    adiante. Ou, como ele prprio confessa na carta a Vladmir

    Nemirvitch-Dntchenko de 11 de agosto de 1916:

    No meu sistema, eu no paro de pensar somente no

    seguinte: como chegar aos sentimentos sublimes e

    beleza, no atravs da beleza falsa, e nem atravs de

    sentimentalismo, exaltao e clichs. Se, em minha

    vida, eu conseguir colocar a pedra angular, slida e

    segura, vou me considerar feliz e acreditar que nos-

    sos netos vero o ator com o qual eu sonho... Tenho

    a convico de que meu caminho nico, mas, justa-

    mente por ser verdadeiro, ele muito longo.8

    8 K. S. Stanislvski. Sobrnie sotchinni v 9 t. (Coletnea das obras em 9 volumes). Vol. 8. Moscou: Isksstvo, 1998, p. 449.

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    Nenhum manual ou gramtica da arte

    teatral

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    Elena Vssina

    Nas primeiras observaes sobre a tcnica da arte dram-

    tica, feitas em 1906, durante as frias de vero com a fam-

    lia na Finlndia, Stanislvski reflete sobre a necessidade de

    fazer, antes do espetculo, no somente a toilette corporal, mas, principalmente, a toilette espiritual. Antes da criao, preciso entrar em uma atmosfera espiritual que, nica, torna

    possvel o mistrio criativo.9 impressionante como, logo no

    incio, Stanislvski j define aquilo que ser uma linha trans-

    versal no processo da elaborao do sistema: a busca pelo

    elemento transformador para criar a atmosfera espiritual

    da arte do ator. Em primeiro lugar aparecem questes ligadas

    criao da vida do esprito humano no palco um conceito-chave de toda a busca artstica de Stanislvski. Vinte e qua-

    tro anos depois, em uma carta de 24 de dezembro de 1930,

    dirigida amiga, colaboradora e editora de seus livros Liubov

    Gurivitch (1866-1940), ao apresentar o esboo do futuro li-

    vro A criao do papel, o autor esclarece sua ideia principal sobre o Estado criador (Tvrtcheskoe samotchvstvie) sic! sempre com maiscula, como insiste Stanislvski:

    O Estado criador, assim como uma cidade litornea, est

    bem na fronteira do infinito oceano do subconsciente.

    A cada momento, a criao pode mergulhar neste mar e,

    depois, de novo, voltar Elevada Conscincia Criativa.

    Resumo do sistema: Subconsciente por meio do cons-ciente. [...] A meu ver, o maior perigo para o livro est em a criao da vida do esprito humano (sobre o esprito

    no se pode falar). Outro perigo est em subconscien-

    te, irradiao, absoro da irradiao, na palavra alma.

    Ser que por causa disso podem proibir o livro?10

    9 I. N. Vinogrdskaia. Jizn i tvrtchetvo Stanislvskogo. Vol. 2, p. 33.

    10 K. S. Stanislvski. Sobrnie sotchinni v 9 t. (Coletnea das obras em 9 volumes). Vol. 9. Moscou: Isksstvo, 1999, p. 442 (itlico do autor).

    Stanislvski fala em perigo, isto : seu livro no ser pu-

    blicado... Sabemos que na poca sovitica, no processo de

    edio dos manuscritos de Stanislvski, vrios conceitos

    importantes foram considerados pela censura estatal como idealistas e nebulosos, ou seja, no materialistas, e, por-

    tanto, acabaram sendo eliminados e modificados: a ideolo-

    gia materialista era a nica permitida pelo estado todos

    os outros conceitos filosficos eram considerados errados, burgueses e hostis aos interesses do proletariado. bvio

    que, alm do lpis vermelho dos censores, que eliminava dos textos repetidas ocorrncias de noes idealistas

    como esprito e espiritual, intuio, subconsciente etc., o

    prprio Stanislvski sentiu que, se no seguisse uma rgida

    autocensura, seria impossvel ver suas obras publicadas na Unio Sovitica. Assim, por exemplo, encontramos no seu

    caderno uma anotao lacnica: Em vez de criao da vi-

    da do esprito humano, ser criao do mundo interior de

    personagens no palco...11 Um abismo histrico separou a poca pr-revolucionria, quando Stanislvski comeou a

    elaborar seu sistema, do tempo sovitico, momento em que os escritos do mestre viram a luz. Somente depois do fim da

    Unio Sovitica foi possvel publicar muitos materiais que

    tinham sido guardados no arquivo de Stanislvski. Por isso

    to importante reconstruir algumas lacunas no processo da formao do sistema stanislavskiano.

    Por exemplo, a partir da dcada de 1930, a ideologia

    vigente da Unio Sovitica comeou a guerrear contra a

    psicologia do inconsciente (Freud foi declarado o inimigo

    nmero um da cincia sovitica). Dessa forma, muitos en-

    foques importantes do sistema foram modificados: a pe-

    dagogia teatral na Unio Sovitica preferia no se arriscar

    11 K. S. Stanislvski. Iz zapsnykh knjek (Dos cadernos de anotaes). Vol. 2. Moscou: VTO, 1986, p. 323.

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    Nenhum manual ou gramtica da arte

    teatral

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    Elena Vssina

    falando sobre o inconsciente e/ou o subconsciente na teoria de Stanislvski... Mas sabemos que o mestre sempre dava

    a maior importncia ao inconsciente no trabalho criador do ator, pois, para ele, era evidente que o inconsciente tinha uma ligao indissolvel com a prpria natureza humana.

    No incio de maro de 1909, durante uma conversa com

    os delegados do Congresso nacional de encenadores, Stanislvski esboa sua teoria da arte cnica e defende que

    a criao inconsciente. O mais precioso nela so exata-

    mente esses arroubos da inspirao inconsciente. No bas-

    ta se inspirar. preciso saber fixar essas inspiraes.12 Nas

    anotaes de 1916, lemos: Somente as tarefas da criao

    devem ser conscientes, mas, os meios de sua realizao

    inconscientes. O inconsciente atravs do consciente. Eis o lema que deve guiar o nosso futuro trabalho.13 Em 11 de

    dezembro de 1914, Stanislvski escreve, em carta a Liubov

    Gurivitch: o trabalho sobre a arte continua. Elaboramos

    muitas coisas novas. Sobretudo na rea do subconsciente

    e supraconsciente e sobre os meios de alimentao e tra-balho dos sentimentos inconscientes.14

    Podemos afirmar que no perodo sovitico o sistema foi obrigado a se tornar muito mais racional e materialista do que fora concebido e idealizado nas anotaes de Stanislvski e

    no trabalho prtico dos ensaios. Foi justamente o que aconte-

    ceu com o esquecimento de importantes fontes do sistema

    de Stanislvski que, a partir dos anos 1920, do ponto de vista

    do regime sovitico, passaram a ser consideradas msticas.

    Foi o que aconteceu com a ioga, que desempenhou um pa-pel importantssimo na formao da teoria stanislavskiana.

    O primeiro contato de Stanislvski com a ioga foi em 1911:

    12 I. N. Vinogrdskaia. Jizn i tvrtchetvo Stanislvskogo. Vol. 2, p. 175.

    13 Ibid., p. 496.

    14 K. S. Stanislvski, op. cit., p. 393.

    durante as frias no sul da Frana, Nikolai Demdov, tutor do

    filho de Stanislvski e estudante de medicina tibetana, no-

    tou que muitas ideias sobre o sistema coincidiam com ensina-mentos de ioga e recomendou que Stanislvski lesse os livros

    Hhatha yoga e Raja yoga (mais tarde, em 1917, Stanislvski vai ler o livro Concentrao uma aproximao meditao, de Ernest Wood). A partir da, a prtica dos exerccios de ioga

    e, inclusive, alguns termos tcnicos, como irradiao, concen-trao, crculo, pranayama, supraconscincia etc., comeam a ser frequentemente aplicados nos ensaios de Stanislvski.

    Pincelamos aqui somente alguns aspectos do sistema que, a nosso ver, so de extrema importncia para sua com-

    preenso em sua completude artstica, pois, como afirma Anatli Smelinski, o sistema, antes de qualquer coisa,

    uma cultura inteira, que, alm de tudo, se dirige ao infinito aprimoramento do homem que se dedica arte, ampliao

    de sua experincia espiritual e emocional, ao conhecimento

    do outro como a si mesmo.15 Dessa forma, o sistema abre as portas para a contnua aprendizagem do trabalho do ator,

    para a incessante formao e educao da personalidade criativa do ator como ator e como ser humano.

    15 K. S. Stanislvski. Sobrnie sotchinni v 9 t. (Coletnea das obras em 9 volumes). Vol. 2, op. cit., p. 19.

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    A obra do pintor Mikhail Vrbel, vinculado ao simbolismo,

    marcou toda uma gerao de artistas na Rssia da virada

    do sculo XIX para o XX. Desde o fim dos anos 1880, Vrbel

    tinha como um dos temas centrais de seu trabalho o poema O demnio de Mikhail Lirmontov. No poema, Lirmontov apresenta nos primeiros versos o Demnio melanclico,

    que se recorda dos dias em que nos sales de luz / ele bri-

    lhou em meio ao esplendor dos anjos.1 A aquarela Cabea de demnio (1890-91) impressiona pela intensa melanco-lia. So trs os planos de sua composio: ao fundo, uma

    grande montanha coberta de neve; na faixa central, rochas

    cinzentas que vo de um lado a outro da aquarela; e no pri-

    meiro plano, ligeiramente descentralizada, a cabea de um

    demnio. Seu cabelo farto e preto marca o pice da varia-

    o cromtica da obra. O rosto do demnio, por sua vez,

    tem a mesma tonalidade das rochas, o que nos d a im-presso de ele ser como uma espcie de continuao do terreno rochoso. Seu rosto parece uma mscara composta

    de carne e pedra. uma figura no limite da humanidade

    uma criatura.

    O tema demnio foi uma obsesso at o final da vida

    de Vrbel, um desafio contnuo quanto encarnao de

    uma figura solitria, to contraditria e ambgua, uma espcie de mscara hamletiana (outro dos temas do ar-

    tista), uma figura em permanente tenso com uma ori-gem luminosa que lhe foi interdita. Vrbel faleceu cego

    em So Petersburgo, internado numa clnica psiquitri-

    ca. No seu funeral, o poeta Aleksandr Blok dedicou-lhe as seguintes palavras: S posso tremer diante do que

    Vrbel e aqueles como ele deram humanidade: um claro

    1 Mikhail Lermontov. The Demon. Disponvel em: http://www.friends-partners.org/friends/literature/19century/lermontov2.html. Acesso em fevereiro de 2010.

    Como encarnar demnios

    Vanessa Teixeira de Oliveira Vanessa Teixeira de Oliveira Doutora em Artes Cnicas (PPGAC/Unirio), pesquisadora e professora do Departamento de Teoria do Teatro da Unirio. Em 2008, seu livro Eisenstein ultrateatral: movimento expressivo e montagem de atraes na teoria do espetculo de Serguei M. Eisenstein foi publicado pela Editora Perspectiva.

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    fugaz em todo um sculo. Esses mundos que eles viram,

    ns no vemos.2 Essas criaturas vrubelianas, personagens de mundos

    ocultos, atravessam a obra de Konstantin Stanislvski,

    Vsevlod Meyerhold e Serguei Eisenstein, e encarnam uma

    disputa sobre a criao de imagens no teatro e no cinema russo e sovitico.

    1Uma escultura... de estopa. Essa foi a sugesto que

    Stanislvski recebeu de um escultor inovador de tendncia

    esquerdista para a composio da esttua do pastor, per-sonagem da pea Os cegos de Maurice Maeterlinck, que foi

    2 Mikhail Guerman. Mikhail Vroubel: the artist of the eves. Trad. Paul Williams. Bournemouth: Parkstone Publishers, 1996, p. 163.

    apresentada em 1904 compondo uma trilogia com outras

    duas peas do mesmo autor, Interior e A intrusa. Como re-lata no livro autobiogrfico Minha vida na arte, Stanislvski no estava satisfeito com os planos de encenao para a montagem da pea, mas aquela resposta o fulminou mais pelo sentido que encerrava do que pela rudeza do tal es-

    cultor, que foi embora sem se despedir. Ou seja, a perso-

    nagem do pastor, guia espiritual e chefe de uma multido

    de cegos desamparados merecia uma escultura paradoxal,

    de estopa. Stanislvski que segundo Eisenstein era o en-

    cenador das mercadorias em sua forma original, do teatro

    naturalista como teatro de petits magasins foi instado nesse momento a pensar ao modo do teatro da Bolsa (do

    simbolismo e dos valores abstratos), ainda na metfora co-mercial usada por Eisenstein para diferenciar as propostas de Stanislvski do teatro da teatralidade de Meyerhold.3 Para Eisenstein, a pesquisa de Stanislvski se voltava para

    a verdade material das coisas, dos objetos, tantos gramas

    de farinha pagos em dinheiro vivo; j para Meyerhold a re-

    presentao de um palcio, por exemplo, poder-se-ia dar a

    partir de uma coluna e uma poltrona apenas, uma espcie de abstrao como a que ocorreria na Bolsa de valores (o

    dinheiro e a mercadoria em si esto presentes de forma abstrata).4 Diante da estopa, Stanislvski se reconhece en-

    to em crise e decide investigar o novo na arte:

    Acontecia-me parar diante das obras de Vrbel ou de

    outros inovadores de ento, e, movido pelo hbito

    3 Cf. Franois Albera em nota. In: Franois Albera; Naoum Kleiman (org.). Eisenstein: le mouvement de lart. Trad. B. Epstein, M. Iampolski, N. Noussinova e A. Zouboff. Paris: Les ditions du Cerf, 1986, p. 268.

    4 Serguei Eisenstein. Palestra no VGIK, 31 de dezembro de 1935. Trad. Diego Moschkovich. In: Vsvolod Meyerhold. Do teatro. Trad. e notas Diego Moschkovich. So Paulo: Iluminuras, 2012, p. 260.

    Cabea de demnio ( ), de Mikhail Vrbel, 1890/1891. Museu de Kiev de Arte Russa.

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    de ator ou diretor de cena, enfiar-me totalmente na

    moldura do quadro como se me metesse dentro dele,

    e dali, de dentro do prprio Vrbel ou das imagens

    por ele criadas, imbuir-me do seu estado de espri-

    to e incorporar-me fisicamente a ele. Entretanto, o

    contedo interior expresso no quadro indefinvel,

    imperceptvel conscincia, s o sentimos em mo-

    mentos isolados de iluminao e, mal o sentimos,

    tornamos a esquec-lo. Nesse vislumbre supracons-

    ciente de inspirao, parece que fazemos passar o

    prprio Vrbel por dentro de ns mesmos, do nosso

    corpo, dos nossos msculos, gestos e poses, que co-

    meam a expressar o que h de essencial no quadro.

    Fixamos na memria o fisicamente achado e tenta-

    mos lev-lo ao espelho e verificar com os prprios

    olhos as linhas encarnadas pelo corpo, mas, para

    surpresa, vemos no reflexo do espelho apenas uma

    caricatura de Vrbel, com afetao do trabalho de

    ator e, mais amide, com o velho, conhecido e des-

    gastado chavo da pera. Mais uma vez nos dirigi-

    mos ao quadro e mais uma vez paramos diante dele

    e sentimos traduzir a nosso modo o seu contedo

    interno. Dessa vez, verificamos a ns mesmos atra-

    vs do nosso estado geral, damos uma olhada para

    dentro de ns mesmos e que horror! outra vez o

    mesmo resultado.

    [...]

    No, dizia para mim mesmo o problema est

    acima das minhas foras, pois as formas de Vrbel so

    demasiado abstratas, imateriais. Esto longe demais

    do corpo nutrido e real do homem atual, com as suas

    linhas estabelecidas de uma vez por todas, imutveis.

    De fato, impossvel amputar os ombros ao corpo

    vivo para entort-los como no quadro, impossvel

    alongar os braos, pernas e dedos, ou deslocar a re-

    gio lombar como quer o pintor.5

    Se Kstia, personagem dos escritos futuros de

    Stanislvski sobre o sistema, se satisfaz com a imagem

    de Otelo refletida no espelho, lambuzada de chocolate e

    manteiga, o prprio Stanislvski confessa sua incapacida-

    de para encarnar Vrbel ou uma das criaturas vrubelianas.

    Como trazer o irreal para o palco, como lidar com a ma-

    terialidade do corpo do ator e compor um corpo abstra-

    to na cena? Como criar os mundos que apenas Vrbel via?

    Nesse perodo de dvidas e perquiries, encontrei-me

    por acaso com Vsevlod Emlievitch Meyerhold, ex-ator do

    Teatro de Arte de Moscou emenda Stanislvski em sua

    autobiografia.

    2Em 1902, Meyerhold havia se afastado do Teatro de Arte de

    Moscou (TAM). Ele foi um dos atores de destaque do gru-

    po fundador do TAM, sob a direo da dupla Stanislvski

    e Vladmir Nemirvitch-Dntchenko. Em cartas da poca em que ainda era ator do TAM, apesar de demonstrar en-tusiasmo com a fundao do teatro, Meyerhold faz crticas

    postura de Stanislvski como encenador, s suas esco-

    lhas dramatrgicas e ao tratamento dispensado aos atores.

    Meyerhold se sentia menosprezado achava que poderia

    contribuir mais na criao artstica dos espetculos des-prezava a leitura de mesa e a discusso das peas como

    um procedimento anterior ao trabalho corporal e pensava que a dramaturgia contempornea deveria ser valorizada.

    Quando o TAM se torna uma cooperativa, ele no participa

    5 Konstantin Stanislvski. Minha vida na arte. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999, p. 371-389.

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    dessa nova configurao e monta seu prprio grupo teatral na provncia: a Confraria do Drama Novo.

    Do reencontro entre Stanislvski e Meyerhold surge o

    Teatro-Estdio, cuja breve e lendria existncia (menos de

    um ano de funcionamento e sem espetculo algum apresen-tado ao pblico) marca uma vez mais a divergncia entre

    as investigaes artsticas dos dois encenadores. Criado

    em maio de 1905, o Teatro-Estdio teve a direo confia-

    da a Meyerhold em razo de sua experincia na encena-

    o de textos de autores simbolistas como Maeterlinck e

    Stanislaw Przybyszewski. a que o encenador inicia mais

    propriamente suas experincias no terreno do teatro da

    conveno, norte esttico de suas pesquisas cnicas at

    o final de sua vida.

    Um dos principais trunfos de Meyerhold na luta contra a

    reproduo imitativa da vida em cena e a tautologia do im-perativo stanislavskiano de vida viva,6 segundo Batrice Picon-Vallin, sua incurso na dramaturgia de Maeterlinck

    na qual, nas palavras de Meyerhold, tudo convencional.

    Nos ensaios de A morte de Tintagiles, uma das trs pe-as para marionetes de Maeterlinck que no chegou a ser

    apresentada, no frustrado espetculo preparado no Teatro Estdio, Meyerhold afirma ter se utilizado do mtodo da

    disposio dos personagens sobre a cena maneira dos

    baixos-relevos e dos afrescos, o mtodo de ressaltar o

    dilogo interior mediante a musicalidade do movimento plstico, a possibilidade de controlar com a experincia a

    fora dos acentos artsticos em lugar dos velhos acentos

    6 Batrice Picon-Vallin. No limiar do teatro: Meyerhold, Maeterlinck e A morte de Tintagiles. Trad. Ftima Saadi. In: ______. A arte do teatro: entre tradio e vanguarda. Meyerhold e a cena contempornea. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto; Letra e Imagem, 2006, p. 10.

    lgicos [...].7 Nessa citao podemos identificar as trs

    abordagens paradoxais que sero posteriormente eri-

    gidas em princpios para a potica meyerholdiana, como muito bem aponta Picon-Vallin em texto fundamental so-

    bre essas primeiras experincias do teatro da conveno:

    a revelao do movimento pela imobilidade, a expresso

    do dilogo interior por um gestual decomposto e no ilus-trativo, a abordagem do sentimento de vida pelo artifcio realado da arte.8

    Depois da experincia no Teatro-Estdio, Meyerhold

    foi encenador da companhia de teatro da atriz Vera

    Komissarjvskaia, na qual dirigiu, entre outras peas,

    Hedda Gabler (1906), de Ibsen, e Irm Beatriz (1906), de Maeterlinck. Nesta ltima montagem, as figuras de Vrbel

    serviram como inspirao para a composio dos rostos de trs jovens peregrinas que faziam parte da encenao.9 Ao final do ano de 1907, um novo rompimento. Ele foi dispen-

    sado da companhia da grande atriz que em carta para o en-

    cenador se queixava de ser manipulada como um fantoche

    em suas encenaes simbolistas.

    7 Vsevolod Meyerhold. Textos tericos. Trad. J. Delgado, M. Anos; R. Vicente, V. Cazcarra e J. L. Bello. Madrid: Alberto Corazn Editor, 1973 (vol. 1), p. 126.

    8 Picon-Vallin, op. cit., p. 20.

    9 Grard Abensour. Meyerhold et le symbolisme. In: Cahiers du Monde Russe, 45/3-4, juillet-dcembre, 2004, p. 602. Disponvel em: http://www.cairn.info/article.php?ID_REVUE=CMR&ID_NUMPUBLIE=CMR_453&ID_ARTICLE=CMR_453_0591. Acesso em fevereiro de 2010.

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    3O demnio est sempre em todas as partes, diz uma

    das personagens da pea Mascarada de Lirmontov.10 Meyerhold, juntamente com o pintor Aleksandr Golovin, de-

    dicou quase seis anos ao projeto de montagem dessa pea, cuja dramaturgia aborda o tema do demonaco presente na obra de Lirmontov e propicia uma abordagem metateatral que pe em cena algumas das reflexes de Meyerhold na-

    quele momento. A estreia ocorreu em 25 de fevereiro de

    1917, vspera das manifestaes de trabalhadores e dos

    motins em Petrogrado que resultaram na abdicao do tzar

    Nicolau II e na formao do Governo Provisrio. Eisenstein

    menciona essa montagem como decisiva para a sua opo de abandonar o estudo da engenharia e consagrar-se defi-

    nitivamente atividade artstica.

    Na tragdia de Lirmontov, Nina, esposa de Arbinin,

    perde uma pulseira num baile de mscaras. Essa pulseira

    encontrada no cho pela Baronesa Stral que, sem saber a

    quem pertence o adorno, oferece-a ao Prncipe Zviezdich

    como forma de identificao para que ele descubra, depois do baile, a identidade dela. Ainda durante o baile, Arbinin

    abordado por um desconhecido mascarado, que lhe anun-cia que nessa noite ocorrer uma tragdia. Arbinin des-

    cobre que o Prncipe est encantado pela mscara que lhe deu uma pulseira igual quela usada por sua esposa.

    Consumido de cimes, no acredita na fidelidade de Nina

    e a envenena. No entanto, no quarto e ltimo ato da pea,

    surge o Desconhecido. Ele se apresenta como um jovem

    cujos sonhos desmoronaram ao ser lanado ao mundo da jogatina por Arbinin, quando este era conhecido como um