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IX ENABED ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA Universidade Federal de Santa Catarina 06 a 08 de Julho Área Temática 3 Estudos Estratégicos Força Armada Fantasma: o uso do Poder Especioso na II Guerra Mundial Lucas Soares Portela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Florianópolis 2016

Força Armada Fantasma: o uso do Poder Especioso na II ... · Aliados produziram diversas informações falsas para convencer Hitler que ... recursos também pode ser utilizados para

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IX ENABED – ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA

Universidade Federal de Santa Catarina

06 a 08 de Julho

Área Temática 3 – Estudos Estratégicos

Força Armada Fantasma: o uso do Poder Especioso na II Guerra Mundial

Lucas Soares Portela

Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

Florianópolis

2016

Força Armada Fantasma: o uso do Poder Especioso na II Guerra Mundial

Resumo Expandido

A campanha realizada na Normandia, chamada de Dia-D, foi essencial para a vitória dos Aliados contra os alemães durante a II Guerra Mundial. Entretanto, o sucesso dessa batalha dependeu do estabelecimento de um exército fantasma no litoral inglês. Esse regimento era composto por balões infláveis em formato de tanques e efeitos sonoros. Além disso, os Aliados produziram diversas informações falsas para convencer Hitler que tal ofensiva aconteceria em outro local e o induzisse a remanejar tropas de tanques para aquela região. Essa pequena passagem nos recorda da importância do uso de estratégias compostas de estratagemas dentro da guerra. O uso da astúcia se revela, em alguns casos, tão poderoso quanto o emprego dos recursos militares tradicionais. Em virtude disso, o objetivo desse artigo é compreender como o uso predominante da astúcia em estratégias se enquadra dentro da Teoria do Poder. Para tal, o método de procedimento utilizado foi o histórico e a técnica de pesquisa foi a revisão bibliográfica. Para satisfazer o objetivo proposto, a pesquisa foi dividida em duas partes. A primeira lidou com a dimensão teórico-conceitual do poder, como também das categorias de poder adjacentes e da astúcia dentro da Teoria de Poder. Na segunda parte, alguns casos históricos do uso de estratagemas foram observados, como por exemplo, o uso de canhões falsos durante a II Guerra Mundial. Nessa parte também são analisadas, mais enfaticamente, as operações que deram suporte ao Dia-D. Dentre os autores utilizados para essa abordagem, vale citar Clausewitz (1984); Jervis (1970); Maquiavel (2011); e Joseph Nye (2012). Ao final do artigo, compreendemos que por moldar comportamentos, a projeção da astúcia por meio de estratagemas pode ser considerada como uma categoria poder, chamada aqui de “poder especioso”. Além disso, também foi concluído que esse poder pode utilizar dos recursos de poder militar e econômico.

Palavras-Chave: Poder Especioso; Estratégia; Força Armada Fantasma; II Guerra Mundial.

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Considerações Iniciais

O final da II Guerra Mundial apresentou alguns episódios que são conhecidos

por parte considerável das pessoas, como por exemplo, a explosão da primeira bomba

atômica. Outro marco histórico bastante conhecido foi a operação Overlord, comumente

conhecida como “Invasão da Normandia” ou “Dia-D”. Embora muitas pessoas interessadas

na temática de guerra conheçam esse episódio, poucos têm ciência das operações que

permitiram o Dia-D.

Entre o período da convenção que idealizou a invasão da Normandia, ocorrida

em Teerã no ano de 1943, e a operação Overlord, articulada no dia 06 de junho de 1944, os

Aliados empreenderam diversas operações para dissimular o exército alemão. O conjunto

dessas operações foi codificado como plano Bodyguard, cujo principal objetivo era fornecer

uma vantagem estratégica para o Dia-D, ou seja, intensificar a projeção de poder. A

característica basilar dessas operações era o uso de estratagemas, astúcia e ilusão para

enganar os alemães, ocultando o local da verdadeira invasão e transmitindo informações

falsas.

Os Aliados não foram os primeiros a utilizar esse tipo de estratégia, que pode ser

encontrada tanto nos escritos de Clausewitz, como também encontrada em acontecimentos

históricos anteriores, como por exemplo, a Batalha de Santiago de Cuba, no século XIX, e a

Guerra de Independência dos Estados Unidos. Além disso, essas estratégias são

constantemente abordadas pela ficção para caracterizar a sabedoria e a astúcia de

personagens. Dito isso, o objetivo desse artigo é compreender como o uso predominante de

astúcia em estratégias é enquadrado dentro da Teoria do Poder.

Apesar de haver referências mais antigas de estratagemas, o plano Bodyguard

foi o primeiro caso em que as operações dissimulatórias foram empregadas com maior

veemência e extensão. Dessa forma, por ter aspectos históricos como referência, o método

de procedimento e a técnica de pesquisa utilizados foram, respectivamente, o histórico e a

revisão bibliográfica. O artigo foi dividido em duas partes, que lidam com os aspectos

teórico-conceituais do poder e com a análise de fatos históricos.

A primeira parte pretendeu abordar as categorias de poder adjacentes e a

astúcia dentro da Teoria de Poder, sendo dividida em duas seções: “Teoria do Poder de

Joseph Nye” e “Especulação e Indução do poder na Guerra”. Para a análise dos casos

históricos na segunda parte da pesquisa, o artigo contou com mais duas seções: “Exemplos

de Poder Especioso” e “A Força Armada Fantasma”. Ao final da pesquisa, o artigo

enquadrou o uso predominante da astúcia em estratégias como uma projeção de poder,

chamado aqui de “poder especioso”, que foi utilizado com sucesso na II Guerra Mundial,

sendo primordial para a invasão da Normandia, no chamado Dia-D.

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1 Teoria do Poder de Joseph Nye

A necessidade do homem pela projeção de poder é algo evidenciado em muitas

obras clássicas da ciência política. Em Maquiavel, por exemplo, encontramos o poder como

principal objetivo dos soberanos de sua época. Da mesma forma, nas obras de Hobbes,

aprendemos que o poder conduz sentimentos como ambição e inveja.

O uso do conceito “poder” é carregado de significados e pode conduzir um

interlocutor para compreensões totalmente distintas daquelas pretendidas pelo narrador.

Assim, quando tratamos do poder em ambiente acadêmico, torna-se necessário conceituá-lo

de acordo com a pesquisa elaborada. Ademais, a definição optada responde não somente

ao objetivo da pesquisa, mas também aos anseios de cada pesquisador.

Partindo do dicionário de política de Norberto Bobbio (1998), o poder é definido

de forma geral como a possibilidade ou capacidade de ação visando produções de efeitos.

Conforme ele, o poder como possibilidade torna-se capacidade quando entra em ação e

molda o comportamento de outros. Essa relação evidenciada por Bobbio (1998) entre a

ação e sua consequência também é abordada por Joseph Nye (2012) quando trata da

definição de poder.

De acordo com ele, o poder apresenta duas dimensões: poder como recursos e

poder como resultados. Na primeira dimensão, o poder é definido pelos recursos de um

Estado e projetado por meio de estratégias que visam resultados. Por outro lado, o poder

como resultado significa moldar os comportamentos dos outros, utilizando para isso a

coerções, recompensas e atrações.

Além da contribuição para a definição de poder, a obra “O Futuro de Poder” de

Nye (2012) nos permite inferir que o poder é elástico; rígido; relacional; e perceptível. O

poder é caracterizado como elástico, pois pode ser traduzido como um recurso militar ou um

recurso financeiro, conforme a relação social vigente. Simultaneamente, o poder também é

notado como rígido, pois um recurso utilizado em um contexto social pode não ser aplicado

em outro, como por exemplo, o uso de tanques no espaço cibernético.

Ademais, somente conseguimos notar se alguém é poderoso ao observarmos

alguma coisa ou alguém como comparativo, ou seja, o poder é relacional. Assim, ao tratar

de poder sempre consideramos mais de um agente interagindo. O resultado das interações

de poder entre dois atores dependerá tanto da aplicação do poder pelo ator “A”, como

também da percepção das ações de “A” pelo ator “B”, ou seja, o poder é perceptível.

Além das características do poder inferidas da obra de Joseph Nye (2012), esse

autor divide o poder em três categorias de análises: poder duro; poder brando; poder

inteligente. A categoria de poder duro é facilmente notada, pois se trata da projeção

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tradicional de poder. De acordo com Nye (2012), o poder duro pode ser traduzido nos usos

dos recursos militares, ou seja, em uma aplicação evidente da força.

Por outro lado, o poder brando é mais complexo de notar, pois utiliza recursos

predominantemente intangíveis. Nye (2012) exemplifica essa categoria de poder nos

recursos da diplomacia e economia, como memorandos de entendimento e restrições

econômicas. Embora, na teoria, a percepção dessas duas categorias de poder ocorram

separadamente, elas se correlacionam na prática, conforme demonstra Nye (2012) ao

abordar o espectro dos comportamentos do poder:

Figura 1.1 – Espectro dos Comportamentos de Poder Fonte: Joseph Nye (2012), p. 44.

Essa figura mostra que enquanto o poder duro tenta comandar alguém, o poder

brando visa a cooptação dessa pessoa. Para tal, um ator pode utilizar ações de coação,

ameaça, pagamento, sanções, ajustes, persuasão ou atração. Esses meios elencados no

quadro acima servem tanto para cooptar quanto para comandar, porém, com predileção por

um dos extremos. Exemplo disso, uma ameaça tem mais presença do poder duro do que do

brando, enquanto a sanção tem mais poder brando do que o duro.

Como visto no parágrafo anterior, a separação total das categorias do poder no

uso de um recurso faz parte de um exercício teórico e didático. Empiricamente, observamos

o uso de recursos cuja presença do poder duro e brando é simultâneo. Entretanto, não

necessariamente há a intencionalidade de um agente projetar poder brando ao utilizar um

recurso do poder duro, sendo o contrário também notado.

Apesar disso, alguns agentes utilizam recursos combinados com a

intencionalidade de projetarem essas duas categorias de poder. De acordo com Nye (2012),

isso resulta em uma terceira categoria de poder, chamada por ele de poder inteligente.

Assim, enquanto normalmente os agentes aplicam recurso com a intenção de projetar

apenas o poder durou ou o poder brando, no poder inteligente há a intencionalidade do

agente de projetar ambas as categorias anteriores. Ademais, o uso do poder inteligente

garante ao agente eliminar fraquezas provocadas pelo uso segregado dos poderes duro e

brando (NYE, 2012).

Além das categorias anteriormente descritas, Nye (2012) também nos apresenta

conjuntos de recursos subjacentes aos poderes duro, brando e inteligente. Por exemplo, ele

Comanda Coage Ameaça Paga Sanciona Ajusta Persuade Atrai Coopta

D U R O

B R A N D O

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chama de “Pode Militar” aqueles recursos oriundos do ambiente da defesa que podem ser

utilizados na projeção de poder. Da mesma forma, ele chama de “Poder Econômico” e

“Poder Cibernético” aqueles recursos provenientes, respectivamente, da economia e das

tecnologias de informações e comunicações.

Cabe ressaltar que na visão de Nye (2012) os conjuntos acima descritos

apresentam recursos para todas as três categorias de poder. Assim, dentro do poder militar,

ele explica que além do uso dos canhões e revolveres para as batalhas (poder duro), os

recursos também pode ser utilizados para gerar percepções de segurança e defesa para si

e seus Aliados (poder brando). Assim, as relações dos poderes duro, brando e inteligente

podem ser imaginadas da seguinte forma:

Figura 1.2 – Relação entre Categorias e Conjuntos de recurso de Poder

Fonte: Elaboração própria baseada em Nye (2012)

Cada faixa entre as linhas amarelas representa um conjunto de recursos de

poder. Na faixa mais externa temos o poder militar, na central encontramos o poder

econômico e na interna o poder cibernético. Além disso, cabe observamos as listras mais

claras dentro de cada conjunto de recursos, que aqui chamamos de zonas comuns. Nessas

regiões, nos encontramos aqueles recursos que podem ser aplicados em todas as

categorias, ou seja, tanto no poder duro quanto no brando e no inteligente.

Vale ressaltar que existem outros conjuntos de recursos além dos citados acima,

como por exemplo, o cultural. Assim, esse círculo tem tantas faixas quanto os conjuntos de

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recursos existentes. Dentre os conjuntos de recursos subjacentes, encontramos aquele que

é objeto deste artigo, o poder especioso, que será tratado mais enfaticamente no próximo

tópico.

2 Poder Simbólico e Poder Especioso

Desde os primórdios da guerra, já encontrávamos estratégias que quase não

utilizavam o poder duro, caracterizadas pelo uso do poder brando. Essas estratégias eram

compostas pelo uso da astúcia, cujo valor era positivo ou negativo conforme o contexto. Isso

porque o uso da astúcia na guerra podia garantir uma vitória ou definir uma derrota,

conforme demonstrado por Clausewitz (1984).

De acordo com esse autor, o uso da astúcia na confecção de estratagemas pode

ser negativo quando as ações empregadas resultam em dispêndio de tempo e de recursos.

Para exemplificar essa argumentação, ele afirma que o engajamento de tropas para

simplesmente enganar ou iludir o inimigo durante um período de tempo é perigoso, pois elas

estariam indisponíveis quando necessário. Ademais, ainda conforme ele, os exemplos

históricos desses estratagemas, raramente obtém o efeito desejado.

Por outro lado, independente da probabilidade de sucesso dos estratagemas,

Clausewitz (1984) explica que a garantia de vitória ocorre quando o agente da ação

consegue utilizar a astúcia para induzir o inimigo ao erro. Para ele, isso pode definir os

rumos de uma batalha, mesmo que a astúcia sobressaia raramente em meio as demais

circunstâncias da guerra. De acordo ainda com ele, os subterfúgios da astúcia, como por

exemplo, emissões de informações falsas para confundir o inimigo, possuem pouco valor

estratégico e por isso não devem constituir um campo independente de ação.

Maquiavel (2011) também trata da astúcia quando escreve seus ensinamentos

para o príncipe. Para isso, ele realiza um contraste entre a astúcia e a força, onde a primeira

é associada à raposa e a segunda ao leão. Quando trata sobre essas duas qualidades, ele

tenta responder a questão: o que serve melhor ao príncipe no exercício da soberania, ser

astuto ou ser forte?

Para responder essa pergunta, Maquiavel (2011) explica que há duas formas de

luta, uma própria dos homens e outra própria dos animais. A primeira se dá por meio da lei e

a segunda é fundamentada na força. Ainda conforme ele, na impossibilidade de recorrer à

lei, devemos agir com uma combinação de leão e raposa.

O leão, representante da força, costuma assustar e devorar os lobos, mas acaba

por cair nas diversas armadilhas que lhe surpreende (MAQUIAVEL, 2011). Para evitar tais

infortúnios, a solução seria se comportar como uma raposa, a rainha da astúcia, pois ela

evita todas as armadilhas, conforme Maquiavel (2011). Assim, na perspectiva maquiavélica,

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a astúcia torna-se positiva, principalmente quando as leis não são suficientes, como no caso

de uma Guerra.

Analogia semelhante é feita pelo historiador italiano Giovanni Brizzi (2002). De

acordo com ele, a astúcia pode ser vinculado à figura poética de Odisseu, que utilizava da

inteligência e estratagemas para lidar com os assuntos militares. Em contra partida, para

ele, o oposto de Odisseu era Aquiles, que utilizava da força para lhe dar com essas

questões. Assim, a raposa de Maquiavel (2011) era Odisseu, enquanto Aquiles era o leão.

Entretanto, para que a raposa consiga evitar as armadilhas e persuadir por meio

da astúcia, o inimigo não deve notar tal estratagema. Dessa forma, o uso de subterfúgios

para enganar o inimigo e adquirir vantagens depende diretamente da percepção do inimigo.

Dentro dos diversos modos de se notar uma ação, como por exemplo, neutralidade e

cooperação, a que mais alarmaria o inimigo é a percepção de ameaça.

A conceituação de ameaça dentro das Relações Internacionais pode ser dividida

em duas abordagens (AMBROS, 2012). A primeira abordagem é própria do Realismo

Estrutural e da Teoria da Escolha Racional e compreende a ameaça como uma ação

estratégica para influenciar o comportamento do inimigo (AMBROS, 2012). Por sua vez, a

segunda abordagem a define como o reconhecimento de informações de uma ação ofensiva

por parte de um ator, sendo uma visão própria do Neorrealismo e do Construtivismo Social

(AMBROS, 2012).

A principal diferença entre as duas abordagens está no agente e seu referencial.

Enquanto na visão do Realismo Estrutural a ameaça tem sua fonte no proponente da ação,

o Neorrealismo atribui a percepção de ameaça ao paciente da ação. Ademais, dentro do

Realismo Estrutural, o agente ao agir considera seu ato uma ameaça e no Neorrealismo

quem percebe a ação como ameaça é o agente que a sofre, ou seja, o referencial muda.

Partindo dessa segunda concepção, para que uma ação seja uma ameaça, ela

não dependerá da concepção do agente, mas da visão que um Estado B tem das ações do

Estado A. Em virtude disso, uma ação que não vise ser uma ameaça, pode ser percebida

erroneamente por um Estado. Tal fenômeno é descrito por Robert Jervis (1978) e chamado

de “misperception”.

Jervis (1978) utiliza esse conceito para justificar os conflitos internacionais. De

acordo com ele, esses litígios surgem das previsões de concepções errôneas, ou seja,

“misperception”. Exemplificando, as ações de um Estado que tenta cooperar com um vizinho

pode projetar uma visão negativa de imperialismo para os países da região.

Em virtude disso, utilizar de estratagemas para tentar induzir o inimigo requer

exatidão e risco, de forma a evitar uma misperception. Isso porque para que o

comportamento do inimigo seja moldado conforme sua vontade depende não somente de

suas ações, mas também da percepção dele. Assim, a arte da enganação pode ser

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comparada com um truque de mágica, por isso, ela é complexa de se empregar, conforme

opinião de Clausewitz (1984).

O uso da ilusão para moldar o comportamento do inimigo pode trazer dois

pressupostos básicos. Primeiro, a ilusão pode servir para evitar gastos do Estado que a

empregar, tanto materiais quanto imateriais. Em segundo lugar, ela pode ser utilizada

quando o Estado não dispõe de meios concretos suficientes para moldar o comportamento

do inimigo.

Independente do contexto, a ilusão causada pela astúcia de um Estado é

utilizada para provocar comportamentos, sem utilizar, no entanto, de recursos significativos.

Dessa forma, as ações emanadas da astúcia podem ser enquadradas na segunda definição

de poder de Joseph Nye (2012), ou seja, poder como forma de moldar comportamentos.

Neste caso, a projeção de informações falsas, ilusões, mentiras, estratagemas ou qualquer

outra forma de enganação que tenha como fonte a astúcia é chamado aqui de “poder

especioso”.

O poder especioso não seria uma categoria própria de poder de Nye (2012), mas

sim um conjunto de recursos de poder. Dessa forma, na Figura 1.2, que demonstra a

relação entre categorias e conjuntos de recurso de poder, o poder especioso formaria uma

faixa adjacente a do poder militar, econômico e cibernético. Conceitos semelhantes ao

desse poder são tratados como objetos científicos por alguns autores, como por exemplo, o

chamado “poder simbólico”.

Um exemplo do uso do poder simbólico pode ser inferido do artigo de Daniel

Flemes e Miriam Saraiva (2014). Quando tratam da política externa brasileira, estes autores

recorrem ao Barão do Rio Branco, que afirmar ser necessário para a garantia da soberania

o uso de recursos materiais e simbólicos. Eles explicam que os recursos materiais seriam os

militares e econômicos, enquanto os simbólicos seriam alternativas usadas por países com

menos recursos, correspondendo a elementos subjuntivos.

Tratando mais diretamente do conceito de poder simbólico, Javier Noya (2005)

aborda as categorias de poder brando e duro de Joseph Nye (2012). Seu principal

argumento é que o poder simbólico seria uma denominação mais adequada do que a de

poder brando. Para Noya (2005), o pode brando de Nye resulta de uma hermenêutica do

poder equivocada, pois somente é eficaz quando investido do poder bruto, sendo

considerado apenas como simbólico e não como brando.

Embora o uso do poder simbólico gere efeitos nas posturas e comportamentos

dos demais Estados, ele não pressupõe o uso de estratagemas para enganar o adversário.

Isso porque, de acordo com Noya (2005), ele seria o próprio poder brando e não

apresentaria efeito real isoladamente. Tal visão difere do que aqui observamos como o

poder especioso, pois esse pode ser utilizado como um artificio estratégico.

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Além disso, o poder simbólico não utiliza elementos dos outros conjuntos de

recursos do poder, como por exemplo, o militar, mas é se projeta a sobra deles. Por sua

vez, o poder especioso pode utilizar dos outros conjuntos de recursos para promover a

ilusão. Ademais, o que essencialmente caracteriza a projeção do poder especioso é a

astucia e a enganação para moldar o comportamento do adversário.

Logo, o poder especioso considera o uso de elementos simbólicos, apenas de

forma sistemática e com intencionalidade de moldar o comportamento do inimigo. Ademais,

o poder especioso pode gerar consequências reais isoladamente, diferente do poder

simbólico observado anteriormente. Por último, vale evidenciar que diferente dos demais

conjuntos de recursos, o poder especioso depende da percepção do inimigo para poder

alcançar o sucesso.

3 Exemplos de Poder Especioso

Parte das criações humanas surge da ficção cientifica. Ideias que antes apenas

eram vistas nos livros ou peças teatrais, deram origens a algumas invenções reais, como

por exemplo, os hometheaters. Algo semelhante a esses aparelhos foi descrito no livro de

Ray Bradbury de 1953, “Fahrenheit 451”, mas o hometheaters somente surgiu na década de

90. Ainda sobre esse argumento, um vasto acervo de criações também pode ser observado

dentro da sétima arte, o cinema, em que, por exemplo, já podíamos observar o uso dos

tablets em 1966, na série Jornada nas Estrelas, de Gene Roddenberry.

Essa relação entre ficção e realidade também pode ser notada no que se refere

às estratégias militares. A bomba atômica, por exemplo, foi descrita em 1895, no livro de

Robert Cromie, “The Crack of Doom”, mas utilizada pela primeira vez somente em 1945,

pelos Estados Unidos. Nesse sentido e pensando no uso do poder especioso, podemos

observá-lo também nas atuais séries de televisão, como por exemplo, o programa “Da

Vinci’s Demons”.

Essa série desenvolve uma ficção sobre a juventude de Leonardo Da Vinci, que,

embora fantasiosa, utiliza de alguns fatos reais para se estruturar. No caso desse programa,

o poder especioso pode ser observado no episódio chamado “O Mago”, em que aparece a

chamada “besta sobre rodas” que Da Vinci desenhou. Embora a construção dessa arma

nunca tenha passado do projeto, ela é utilizada na serie como um recurso do poder

especioso.

Para evitar que Riario, um enviado de Roma, invada as terras dos Medicis, Da

Vinci apresenta-lhe uma pequena bola costurada, parecida com uma Romã, que ao explodir

liberava diversos de estilhaços, como uma granada. Depois de demonstrar, com uma

pequena besta de mão, o poder da pequena esfera, Da Vinci mostra à Riario uma besta

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gigante sobre rodas, supostamente capaz de disparar uma munição similar do tamanho de

uma bola de canhão. Utilizando a miniatura como base, Riario imagina o poder de fogo que

uma munição de tamanho real teria e se retira da batalha.

Como Da Vinci não contou seus planos para Lorenzo Medici, ao ver a mesma

demonstração, este fica entusiasmado com a nova arma. Entretanto, Da Vinci revela que

aquela construção jamais funcionária, pois era uma imperfeição da engenharia e muito

ineficaz. O único intuito da arma gigante, que Da Vinci construiu, era moldar o

comportamento de Riario e fazê-lo desistir da empreitada.

Outro exemplo da projeção do poder especioso dentro da ficção pode ser

encontrado dentro da série “The Borgies”. Essa ficção fala do pontificado de Rodrigo Bórgia,

o papa Alexandre VI, e sua família. Durante a segunda temporada, no episódio “The

Beautiful Deception”, o rei Carlos VIII, da França, pretende uma ofensiva contra o Vaticano,

com o objetivo de retirar Rodrigo Bórgia do poder.

Sabendo dessa ameaça e em face de insuficiência militar do exército pontifício, o

filho do papa, Cesare Bórgia (Duque Valentino), encomenda secretamente a confecção

artística de centenas de canhões de gesso. Quando o rei francês chega às muralhas do

Vaticano, encontra disposto uma quantidade inesperada de canhões. Esses recursos,

associados às exposições e manifestações verbais de Cesare, garantem a projeção de um

pode especioso que leva o rei francês a desistência.

Embora tal narrativa seja uma obra da ficção, Cesare Bórgia realmente se

utilizava de astúcia em suas estratégias. Maquiavel (2011), em sua obra o Príncipe,

constantemente utiliza os dons e subterfúgios do Duque Valentino como exemplar para o

príncipe, especialmente sua inteligência para utilizar estratagemas de sucesso, ou seja, o

uso constante do poder especioso. Esse episódio nós remete a dois exemplos reais do uso

desse conjunto de recursos, o cruzador espanhol “Cristóbal Colón” e a tática “Quaker Gun”.

O contexto histórico do primeiro caso é a formação do Estado cubano, que era

originalmente colônia espanhola. Por causa das indiferenças espanholas face as

necessidade de reformas administrativas e de governos em Cuba, começou a chamada

“Guerra dos Dez Anos”, em 1868. Apesar dessa guerra ter acabado em 1878, os problemas

que a originaram continuaram e uma luta entre os rebeldes cubanos e os espanhóis

reiniciou a guerra em 1897.

Com o clima novamente aquecido, os Estados Unidos decidem tentar mediar

àquela contenda. Entretanto, tal tentativa não alcançou êxito, o que cominou em uma

batalha naval entre Estados Unidos e Espanha, chamada de “Batalha de Santiago”

(SANTANA, 2002). Neste conflito que encontramos o cruzador espanhol “Cristóbal Colón”,

cujo fracasso pode ser citado como um exemplo falho do uso do poder especioso.

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A opção da Espanha por utilizar o cruzador Cristóbal Colón como um recurso do

poder especioso surge anterior à Batalha de Santiago. Na segunda metade do século XIX,

em virtude das relações conturbadas com os Estados Unidos, a Espanha decidiu por

programar um plano de aquisição emergencial (AREAMILITAR, 2011). Face à eminente

batalha com os Estados Unidos, a Espanha negociou a aquisição de um cruzador argentino

em fase de construção, que seria posteriormente chamado de Cristóbal Colón.

Nesse período histórico, os espanhóis pretendiam uma ofensiva final na região

caribenha por meio de uma pequena esquadra liderada pelo Almirante Cervera, que teria

como reforço o cruzador recém-adquirido da Argentina. Entretanto, que após um ano de

espera, ainda estava faltando instalar o principal armamento desse navio, que eram os

canhões principais (ÁREAMILITAR, 2011). Por ser um navio de ponta na época, mesmo

sem tais armas, o cruzador espanhol apresentava grande poder de fogo.

Em virtude disso, a incorporação desse navio à esquadra de Cervera ocorreu

sem as armas principais. No lugar delas, entretanto, foram afixados canhões falsos talhados

em madeira, que tinham a dupla função de impedir o reconhecimento de um navio

vulnerável e de intimidar o inimigo (ÁREAMILITAR, 2011). Tal resolução é uma clara opção

pelo uso do navio como um recurso de poder especioso.

Como dito anteriormente, esse cruzador foi utilizado na Batalha de Santiago.

Esse batalha resultou de um bloqueio estadunidense à esquadra do Almirante Cervera, que

estava atracada no porto de Santiago de Cuba (HALLIBURTON, 1936). Como o canal que

levava ao porto era fortificado e minado, os Estados Unidos somente cercaram a entrada do

canal e aguardaram uma possível saída dos espanhóis, de acordo com o explorador

americano Richard Halliburton (1936).

Ele explica que praticamente um mês depois, em julho de 1898, a esquadra

espanhola tentou empreender fuga, mas somente dois dos quatro navios de Cervera

conseguiram transpor o bloqueio, o Viscaya e o cruzador Cristóbal Colón. Por ser mais

lento, o navio Viscaya foi logo perseguido e abatido, conforme explica Halliburton (1936). Tal

sorte também teve o Cristóbal Colón, que foi perseguido em seguida. (ÁREAMILITAR,

2011).

Nesse episódio observamos a recorrência do conselho dado por Clausewitz

(1984), em que o uso da astúcia na estratégia para enganar o adversário geralmente resulta

em fracasso. No caso do cruzador espanhol com canhões de madeira, o poder especioso

projetado foi indiferente para o adversário. Assim, esse episódio nos alude sobre o grau de

tangibilidade necessária para a projeção do poder especioso.

A resposta para esse questionamento pode ser elaborada no segundo caso

verídico, citado anteriormente, sobre a tática Quaker Gun. Conforme Elizabeth Nix (2016), o

termo que nomeia essa tática teve sua provável origem na Guerra de Independência dos

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Estados Unidos, quando o coronel William Washington atacou alguns legalistas no moinho

de Rugeley, Carolina do Sul. Naquela ocasião, conforme essa pesquisadora, a munição da

artilharia havia acabado e os legalistas ainda estavam protegidos, por isso, o coronel

Washington mandou seus soldados construírem um canhão falso de madeira. Com essa

arma falsa, chamada de Quaker Gun por causa da seita pacifista quaker, o coronel intimidou

os legalistas até suas rendições (Nix, 2016).

Diferente do cruzador Cristóbal Colón, a empreitada do coronel Washington

demonstrou resultado positivo. Independente da probabilidade de êxito no uso do poder

especioso, a estratégia de utilizar canhões falsos para enganar o inimigo apareceu em

alguns momentos do século XX. Durante a II Guerra Mundial, por exemplo, observamos a

utilização de “canhões quaker” no ataque à Tóquio em 1942.

Durante esse ataque, também chamado de invasão de Doolittle, os Estados

Unidos enviaram ao território japonês cerca de 15 bombardeiro B-25, com o objetivo de

estender a guerra ao Japão e provocar efeitos morais àquela população (HORNER, 2002).

Esse ataque foi planejado pelo tenente-coronel James Doolittle e tinha o objetivo de

demonstrar que o território japonês não era inviolável. Na semana anterior a missão,

independente como tenha ocorrido, Doolittle ficou sabendo que os pilotos japoneses haviam

sido orientados a ficarem atrás dos B-25 e, consequentemente, fora do raio de tiro dos

armamentos estadunidenses, conforme aponta documentos dos Estados Unidos (2007).

Para tentar eliminar a vulnerabilidade do esquadrão estadunidense, Doolittle

requisitou cabos de vassouras pintados de preto e prego-os nos rabos dos aviões, de forma

a imitar metralhadoras (ESTADOS UNIDOS, 2007). O tenente-coronel esperava que tal

especiosidade enganasse os japoneses, provocando um posicionamento das aeronaves

deles na linha de fogo dos B-25 (ESTADOS UNIDOS, 2007). O que sabemos do final dessa

batalha é que os Estados Unidos saíram vencedores, mas não sabemos se tal resultado

ocorreu devido aos cabos de vassouras.

Por meio desses exemplos, compreendemos que diferente da projeção dos

demais poderes citados no primeiro tópico desse artigo1, a tangibilidade é necessária para a

projeção do poder especioso. Para que um inimigo se envolva em um estratagema, ele

primeiro deve percebê-lo, não como de fato ele é, mas como o agente que o promove

espera que seja visto. Entretanto, como já podemos inferir da afirmação anterior, toda a fase

de elaboração e preparado dos recursos utilizados deve ser intangível aos olhos do inimigo,

somente sendo revelada na projeção desse recurso.

1 Poder Militar; Poder Econômico; e Poder Cibernético.

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4 A Força Armada Fantasma

Dentre os exemplos de uso do poder especioso, o caso mais significativo e que

instigou a elaboração desse artigo foi o chamado “Dia-D”, cujo código era “Operação

Overlord”. Essa operação foi uma tentativa dos Aliados de conseguir a abertura de uma

nova frente de batalha contra os alemães e conseguir posição favorável na II Guerra

Mundial. O Dia-D foi agendado para ocorreu em junho de 1944. Entretanto, o planejamento

e mobilização dessa operação começaram em 1943, durante a conferência de Teerã, tempo

relativamente pequeno quando comparado com o período de três anos que os Estados

Unidos aguardaram para ingressar na guerra.

Assim, no dia 6 de junho de 1944, mais de 6 mil navios, 5 mil aviões, 36 divisões

de infantaria e paraquedistas desembarcaram nas praias da Normandia sob mal tempo

(TOTTA, 2006). No lado adversário, o comandante alemão responsável pelas praias era o

marechal de campo Erwin Rommel, também conhecido pelo nome de raposa do deserto, em

virtude dos estratagemas que utilizava2, que fortificou e minou a região no que ficou

conhecida como “Muralha do Atlântico” (REZENDE FILHO, 2010). Por achar que aquela

região não poderia ser alvo imediato dos Aliados, devido às fortificações nessa “muralha”,

Rommel resolveu visitar os familiares na Alemanha, o que dificultou a reação e mobilização

alemã (TOTTA, 2006).

Além disso, quando atracaram nas praias da Normandia, os Aliados encontraram

uma resistência alemã de segunda categoria, principalmente porque 2/3 das tropas de elites

alemã (Wehrmacht) estavam batalhando longe dali, na frente leste (VISENTINI & PEREIRA,

2012). A tropa alemã encontrada ali era formada por componentes estrangeiros e por

alemães acima ou abaixo da idade regulamentar para o serviço militar, conforme Visentini e

Pereira (2012). A somatória desses fatores, que privilegiaram a operação Overlord, não foi

resultado da fortuna dos Aliados, mas da virtù desse bloco.

Para que as tropas anglo-americanas encontrassem as melhores condições na

batalha da Normandia, os Aliados desenvolveram, conjuntamente, outras operações de

apoio, cujas principais estão descritas no quadro abaixo:

Quadro 4.1 – Operações do Plano Bodyguard

Operações Objetivos

Operação Iludir os alemães sobre a construção de uma aliança ativa com os suecos para

2 O apelido de raposa do deserto foi dada à Rommel devido suas campanha de El Alamein. Nela,

certa vez, compreendendo a desvantagem alemã e sabendo que a Real Força Aérea britânica fotografava o campo de batalha diariamente, Rommel ordenou que os tanques alemãs transitassem de noite aleatoriamente deixando marcas no deserto. No dia seguinte, quando as aeronaves britânicas fotografaram a região, não sabiam a localização dos tanques e tiveram a impressão de um número bem superior de unidades.

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Graffham uma invasão à Noruega.

Operação Ironside

Manter a 17ª divisão da SS no sul da França e longe da Normandia.

Operação Zeppelin

Simular uma invasão anfíbia na Grécia e Bulgária (Operação Turpitudi) e no sul da França (Operação Vendetta).

Operação Copperhead

Ocultar a real posição do general Montgomery, de forma a ocultar a posição do ataque à Normandia, pois os alemães poderiam acreditar que ele seria um dos generais dos Aliados para uma grande ofensiva.

Operação Quicksilver

Simular o posicionamento de um exército no sudeste da Inglaterra, sob comando do general George Patton, para uma invasão na cidade francesa Pas-de-Calais.

Operação Skye

Realizar diversas transmissões de rádios, simulando os exércitos falsos para comprovar a existência dessas unidades, bem como, salvaguardar a real localização da invasão da Normandia.

Operação Titanic

Para tentar iludir os alemães do verdadeiro lugar do Dia-D, essa operação lançou diversos bonecos com paraquedas, para simular ataques paraquedistas em quatro áreas distintas e longe da Normandia.

Operação Glimmer

Simular uma ofensiva naval na região francesa de Pas-de-Calais. Além disso, a Real Força Área britânica soltaram palhas que eram detectadas pelos radares alemães como uma esquadra de bombardeiros.

Operação Taxable

Simular uma ofensiva naval na região francesa de Cap d’Antifer.

Fonte: Elaboração própria baseada em Levine (2012) e Donovan (2002).

Conjuntamente chamadas de plano Bodyguard, essas ações começaram

anteriormente à operação Overlord e algumas perduraram até o fim da ofensiva da

Normandia. O objetivo principal delas era desviar a atenção do Reich e do Hitler da região

da Normandia, como também reposicionar os alemães para evitar um reforço no norte

francês, ou seja, esses conjuntos de operações de apoio se tratavam de uma grande

projeção de poder especioso por parte dos Aliados.

Do conjunto das operações abordadas no quadro anterior, a Fortitude era central

no plano Bodyguard, sendo considerada uma preciosidade pelos britânicos, sendo ela

dividida em dois centros, chamados de norte e sul (DONOVAN, 2002). Enquanto a Fortitude

Norte foi comandada pelos britânicos, com base em Edinburgh, a Fortitude Sul tinha os

americanos no comando e estava localizada no sul da Inglaterra. A Fortitude começou a ser

desenvolvida em dezembro de 1943 e pode ser caracterizada como uma operação de

dissimulação tática3.

A operação Fortitude era composta por três objetivos, cujo primeiro foi

desenvolvido no norte e os outros dois no sul. No norte, em Edimburgo (Escócia), a

operação pretendeu iludir os alemães sobre horário e que o local da invasão dos Aliados na

Noruega (DONOVAN, 2002). Por sua vez, no sul da Inglaterra, o objetivo da operação era

convencer os alemães de que a invasão ocorreria na região de Pas de Calais (Norte da

3 As operações de dissimulação estão associada a uma operação principal de maior envergadura. Ela

tenta multiplicar o poder de combate da ação principal. Geralmente ela é caracterizada pelo elemento surpresa e visa à exploração de uma oportunidade ou de uma vulnerabilidade do oponente.

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França) e, quando do desembarque na Normandia, convencer os alemães de que essa

ofensiva era falsa (DONOVAN, 2002).

O objetivo da Fortitude Norte estava baseada na crença alemã, predominante na

I Guerra Mundial e em praticamente toda a II Guerra Mundial, de que o melhor ponto para

ações táticas partindo do Reino Unido era Edimburgo, devido à proximidade dessa região

com o continente (DONOVAN, 2002). Para isso, foram realizadas comunicações de rádio

falsas, com mensagens sobre o local e a hora da invasão, para que a inteligência alemã

interceptasse (TAVARES JR, 2001). Também foram passadas informações sobre

localizações de tropas, que eram confirmadas por fontes próprias do exército alemão, como

também movimentações de navios e aviões britânicos na região (TAVARES JR, 2001).

Por sua vez, a Fortitude Sul abarcou os outros dois objetivos da operação geral,

ou seja, convencer os alemães de que a invasão ocorreria pela área de Pas de Calais e que

qualquer sinal de desembarque na Normandia era falso. Para completar esses objetivos, a

Fortitude foi preparada por outra operação, a Quicksilver. Esta operação, que pretendia

simular o posicionamento de um exército no sudeste da Inglaterra, foi onde o general

George Patton comandou a chamada “Força Armada Fantasma”, foco desse tópico.

A operação Quicksilver era dividia em seis etapas, que começaram

anteriormente ao Dia-D (LEVINE, 2012). A primeira etapa consistia em implementar o “First

United States Army Group” (FUSAG), por isso era o principal e mais importante ponto da

Quicksilver. A segunda etapa consistia em transmissões de rádios contendo a suposta

movimentação desse grupamento estadunidense.

A terceira fase tinha como proposito realizar embarques e desembarques

simulados de tropas na região em que o FUSAG estava estacionado. A quarta fase consistia

em bombardeio à Pas de Calais e as ferrovias da região, de forma a projetar a intenção de

invasão daquela cidade. A quinta e sexta fase pretendia, respectivamente, a intensificação

das atividades na cidade britânica de Dover e a simulação de atividades noturnas com

iluminações e bonecos.

Na primeira fase, o FUSAG foi estabelecido sob o comando de Patton, cuja

escolha também representava um artifício para iludir os alemães sobre a verdadeira invasão

dos Aliados no território francês. Apesar de Patton ter sido retirado da frente de batalha após

esbofetear dois militares em um hospital italiano, ele era visto por Hitler e pelos outros

alemães com respeito, admiração e reconhecimento de que ele era o melhor general aliado

(LEVINE, 2012). Em virtude disso, a alta cúpula de guerra alemã, principalmente por

influência de Hitler, acreditava que uma ofensiva ao território francês seria comandada por

George Patton (LEVINE, 2012).

Assim, a nomeação de Patton para comandar o FUSAG, composto pelos

exércitos canadense e estadunidense, era um sinal de invasão real. Mesmo que fictícia,

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essa força era precisamente composta por quatro divisões de infantaria e uma divisão de

blindados canadenses, como também por duas divisões de infantaria e quatro divisões de

blindados estadunidenses (DONOVAN, 2002). A percepção dessas unidades pelos alemães

ocorreu por meio da interceptação de rádios dos Aliados e por fotografias do

posicionamento em campo (LEVINE, 2012).

Ao realizar o reconhecimento das regiões assinaladas, como por exemplo, na

área da 23ª Tropa Especial, os alemães observaram centenas de tanques, carros de

batalhas e soldados posicionados, todos prontos para uma grande ofensiva, confirmando as

transmissões,. Entretanto, as supostas tropas militares eram compostas de artistas

recrutados em universidades e profissionais da área, como por exemplo, o designer de

moda Bill Blass e o pintor Arthur Singer (AMORIM, 2013). Por sua vez, os tanques e carros

de combates eram feitos de borracha e inflados até tomarem o formato dos veículos reais

(AMORIM, 2013).

As funções da Força Armada Fantasma não era somente se posicionarem em

campo, mas realizar ações criativas para enganar e iludir mais ainda o exército alemão.

Dentre elas, podemos citar as voltas constantes com caminhões de transporte militar na

cidade, para simular a chegada de mais soldados, como também frequentar os cafés da

região, espelhando informações sobre o suposto exército estacionado (AMORIM, 2012).

Outras dessas ações eram bem enfáticas, como passar informações para espiões alemães

e visitar cidades vestidos de generais (AMORIM, 2012).

Apesar de ser instalada dentro de uma operação de apoio à invasão da

Normandia, a Força Armada Fantasma também atuou posteriormente em outras missões.

Com cerca de apenas mil homens, a 23ª tropa especial participou de mais de 20 missões,

em território da França, Bélgica, Luxemburgo e Alemanha (AMORIM, 2012). Dentre elas,

vale abordar nesse artigo duas: operação Bettembourg e a travessia do rio Reno.

O auxilio que a Força Armada Fantasma deu na operação Bettembourg, uma

das mais perigosas missões dessa tropa, foi vital para seu sucesso. O objetivo central dessa

operação era garantir que uma dada região fosse percebida pelos alemães como base da

suposta 6ª divisão de blindados, que nada mais era do que sons de tanques e novamente

balões infláveis (GAWNE, 2002). Além disso, houve o mesmo trabalho de desinformação

nas tabernas e vilas da região, como também a simulação de um general visitando as

localidades próximas (BEYER, 2013).

O resultado final dessa operação foi o recuo das tropas alemãs próximas à falsa

6ª divisão de blindados (GAWNE, 2002). Resultado semelhante foi obtido na ocasião em

que a 9ª Divisão dos Estados Unidos, juntamente com algumas tropas britânicas, batalhava

com os alemães para atravessar o rio Reno, próximo da cidade de Wesel. Em um esforço

para suplementar as tropas em combate, a Força Armada Fantasma utilizou suas técnicas

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para que os alemães percebessem um 9ª Divisão muito maior do que realmente era

(BEYER, 2013).

Em fim, as operações anteriormente descritas evidenciam a ligação existente

entre estratégia e poder especioso. Por meio desse tópico percebemos que a projeção de

pode especioso somente demonstra eficiência se a estratégia utilizada for suficiente para

iludir e manipular o inimigo. Assim, podemos afirmar que uma estratégia de projeção do

poder especioso deve ser acreditável, verificável, executável e consistente.

Considerações Finais

A II Guerra Mundial apresentou acontecimentos que se perpetuaram na história

humana e marcaram a memória de muitas pessoas. Por exemplo, quando falamos dessa

guerra, facilmente as pessoas recordam do uso da bomba atômica ou do líder alemão Adolf

Hitler. Entretanto, apenas um número mais restrito de pessoas conhece o plano Bodyguard,

que promoveu o sucesso do Dia-D.

Esse plano era composto por um grupo de operações do tipo dissimulação. O

objetivo dessas operações era iludir os alemães quanto o local e o horário da invasão da

Normandia no Dia-D. Além disso, elas também tentavam reposicionar, indiretamente, as

tropas alemãs em regiões distantes do norte da França, de modo a evitar um reforço

durante essa invasão, que foi codificada como operação Overlord.

Assim, entre elas, existiam operações de desinformação da inteligência alemã,

simulação de embarque e desembarque e transmissões de falsas comunicações para serem

interceptadas. O plano Bodyguard era composto por mais de 10 operações, que começaram

anteriormente ao Dia-D e perdurando algumas durante a operação Overlord. Apesar dessa

quantidade de ações, a operação central do plano era a Fortitude, em especial a parte que

ocorria no sul da Inglaterra.

Dentre as ações desenroladas naquela região, chamadas de Fortitude Sul,

encontramos a operação Quicksilver, comandada pelo general George Patton. Para essa

operação, em especial, foi criado um exército composto de estudantes universitários e

profissionais das artes e áreas correlatas, como também balões. O objetivo central dessa

operação era iludir Hitler e a cúpula de comando alemã sobre um suposto exército de

grande dimensão e pronto para atacar a cidade francesa de Pas de Calais, utilizando balões

em forma de tanque, gravações dos motores desses veículos, manequins vestidos de

soldados e falsos generais em trânsito nas vilas da proximidade, no que se apelidou de

Exercito Fantasma.

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O uso de artifícios próprios da astúcia para iludir o inimigo não surge no plano

Bodyguard. Tal subterfúgio já foi utilizado anteriormente, por exemplo, na invasão de

Tóquio, ainda na II Guerra Mundial, como também na guerra de independência dos Estados

Unidos e em outras ocasiões. Além disso, esse tipo de estratégia de dissimulação também é

constantemente abordado nas obras de ficção, principalmente para evidenciar o poder de

personagens caracterizados pela astúcia.

Ao compreendermos que a projeção de poder pode ser realizada com base na

astúcia e ilusão, resta perceber o que chamamos no artigo de poder especioso. Esse poder,

por vezes, tende ao fracasso, por depender da percepção do inimigo, mas quando aplicado

com sucesso pode definir vitórias e mudar cenários. A projeção dele pende ao fracasso

quando a percepção do inimigo sobre as ações empregadas não condiz com as imagens

que a estratégia pretendia transmitir, no fenômeno chamado de misperception. Outra causa

que pode gerar o fracasso dessa estratégia é o dispêndio de recursos para suas operações,

deixando inoperante certas divisões, que podem fazer falta em ações emergenciais.

O sucesso das operações do Exercito Fantasma se deu em virtude da

superação das dificuldades descritas anteriormente. Isso porque os recursos

predominantemente utilizados não foram requisitados no âmbito propriamente militar, mas

de universidades e empresas estadunidense, não comprometendo os recursos do poder

duro. Da mesma forma a percepção do inimigo foi cautelosamente moldada por ações de

inteligência e racionalidade, como a escolha do general George Pattton para comandar o

suposto exército, pois ele era tido por Hitler como o melhor general aliado e provável

comandante de uma invasão ao continente pelos Aliados.

Ao final do artigo e tendo analisado a Teoria do Poder de Joseph Nye,

conseguimos o enquadramento do poder especioso. Assim, podemos defini-lo como o

conjunto de recursos de poder adjacente, que pode ser enquadrado na definição de poder

como a capacidade de se obter resultados. A projeção desse poder tem por objetivo poupar

recursos materiais e humanos, como também projetar uma superioridade inexistente no

calculo da guerra.

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