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Pesquisa participante e formação ética do pesquisador na área da saúde Participative research and health researcher´s ethical formation Maria Luisa Sandoval Schmidt 1 1 Departamento de Psicologia da Aprendizadem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia, USP. Av. Prof. Mello Moraes 1721/Bloco G, Cidade Universitária. 05508-030 São Paulo SP. [email protected] 391 ARTIGO ARTICLE Abstract The present article discusses Ethics con- cept as dwell and way of dwelling, aiming to articu- late it with some elements of participative research from an ethnographic matrix. Mainly, it focuses the idea of the ethical subject’s autonomy, associating it with self-reflection and alterity in ethnography. Yet, it approaches the participative research in an eth- nographic perspective as a praxis that induces to health researcher’s ethical formation. Key words Participative research, Ethnography, Ethics for research, Ethical formation Resumo O presente artigo discute o conceito de ética como morada e modo de habitar e busca articulá-lo a elementos da pesquisa participante de matriz etnográfica, mostrando a relação in- dissociável entre método e ética nesta perspecti- va. Focaliza, sobretudo, a idéia de autonomia do sujeito ético, associando-a às temáticas da auto- reflexão e da alteridade na etnografia. Aborda, ainda, a pesquisa participante de cunho etno- gráfico como prática propícia à formação ética do pesquisador na área de saúde. Palavras-chave Pesquisa participante, Etnogra- fia, Ética de pesquisa, Formação ética

Formação Etica Do Pesquisador - Malu

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Pesquisa e saúde

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  • Pesquisa participante e formao tica do pesquisadorna rea da sade

    Participative research and health researchers ethical formation

    Maria Luisa Sandoval Schmidt 1

    1 Departamento dePsicologia daAprendizadem, doDesenvolvimento e daPersonalidade, Instituto dePsicologia, USP. Av. Prof.Mello Moraes 1721/BlocoG, Cidade Universitria.05508-030 So Paulo [email protected]

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    Abstract The present article discusses Ethics con-cept as dwell and way of dwelling, aiming to articu-late it with some elements of participative researchfrom an ethnographic matrix. Mainly, it focuses theidea of the ethical subjects autonomy, associating itwith self-reflection and alterity in ethnography. Yet,it approaches the participative research in an eth-nographic perspective as a praxis that induces tohealth researchers ethical formation.Key words Participative research, Ethnography,Ethics for research, Ethical formation

    Resumo O presente artigo discute o conceito detica como morada e modo de habitar e buscaarticul-lo a elementos da pesquisa participantede matriz etnogrfica, mostrando a relao in-dissocivel entre mtodo e tica nesta perspecti-va. Focaliza, sobretudo, a idia de autonomia dosujeito tico, associando-a s temticas da auto-reflexo e da alteridade na etnografia. Aborda,ainda, a pesquisa participante de cunho etno-grfico como prtica propcia formao ticado pesquisador na rea de sade.Palavras-chave Pesquisa participante, Etnogra-fia, tica de pesquisa, Formao tica

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    Introduo

    O debate sobre tica em pesquisa cientfica estna ordem dia e, em nosso pas, a pesquisa emsade tem sido um catalisador importante destedebate. A Resoluo 196/96 do Conselho Nacio-nal de Sade apresentou-se como um instrumen-to de controle e regramento dos procedimentosde pesquisa mdica e, ao mesmo tempo, susci-tou um conjunto interessante de questes namedida em que pretendeu dar conta da vasta reade investigaes em sade. Parte destas questes,como bem sinaliza Iara Guerriero1, refere-se aduas ocorrncias interligadas no campo da pes-quisa em sade: a presena das cincias sociais ehumanas, indicando que a pesquisa em sadeno recoberta exclusivamente pela pesquisamdica, e a prtica de pesquisas qualitativas emque desenhos metodolgicos esto intrinseca-mente relacionados tica de modos diversosdaqueles contemplados pela Resoluo 196/96.Trata-se, portanto, de uma discusso que reme-te, necessariamente, ao entendimento das dife-renas epistemolgicas e de mtodo que consti-tuem, desde o interior das prticas de pesquisa,ticas prprias e respeitveis.

    Como a tica no se concretiza por decreto,sendo matria de reflexo e de escolhas situadas,parece ser mais fecundo estabelecer regies decontato e interlocuo entre modelos de pesqui-sa e seus modos de zelar por princpios e valoresdo que lutar pela simples hegemonia de um so-bre os outros.

    Com o intuito de auxiliar tal dilogo, esteartigo pretende expor e esclarecer algumas di-menses da pesquisa participante de inspiraoetnogrfica, dando especial ateno problem-tica da autonomia e da heteronomia na compre-enso da tica como morada.

    Sobre o conceito de tica

    A tica, ligada ao senso e conscincia moral, mais do que um conjunto de normas e regrasou, ainda, mais do que a mera obedincia a nor-mas e regras. A tica morada, modo de habitaro mundo e lugar de atualizao de valores e ati-tudes. Ou seja, a tica est implicada nas escolhashumanas que criam mundos e nos modos devalorizar e viver estes mundos. A tica, portanto, indissocivel do tema da escolha.

    Sartre2, filsofo para quem escolha e liberda-de configuram a condio humana, entende queos homens so seres em situao, compelidos a

    responder ao mundo e aos outros e que, agindo,escolhem quem so. A escolha, no sentido sar-treano, inventa e motiva o valor que advm daprpria escolha.

    Concomitantemente, como explica MarilenaChaui3, a escolha desafia a conscincia moral, poisexige a deciso sobre o que fazer, as justificativasperante os outros e ns mesmos sobre as razesda deciso e, por ltimo, a responsabilidade porsuas conseqncias.

    Voltando idia de morada, v-se que o ho-mem escolhe a si mesmo no mundo e cria e atu-aliza mundos, escolhendo. Sua ancoragem nes-ses mundos ou o modo de habit-los remete aosvalores e aos sentimentos despertados pelos va-lores. Poder-se-ia dizer que a consistncia dasescolhas repousa no valor e nos sentimentos queeste valor suscita.

    preciso escolher, viver e sentir um valor paraque ele se associe, autenticamente, idia de tica.Escolha, valor e sentimento assim articuladosfazem pensar no carter autnomo e nunca he-ternomo da tica. H, certamente, valores dis-ponveis numa sociedade ou cultura, em diferen-tes tempos histricos, mas so os indivduos e ascoletividades que, por suas escolhas e prticassociais, os transformam e atualizam ou esque-cem. E h, tambm, o valor do valor, quer dizer,o modo como os valores afetam indivduos ecomunidades humanas: algum ou um grupopode indignar-se com a injustia ou permane-cer-lhe indiferente; sentir escrnio pela honesti-dade ou raiva da mentira; admirar a integridadeou contentar-se com a generosidade e assim pordiante. Em relao a um valor pode haver senti-mentos positivos, negativos ou neutros, de talforma que o valor pode ser afirmado, negado oudeixado indiferena.

    Embora seja possvel escolher com o apoioda moral, da religio ou da lei, o sentido da ticacomo morada e modo de habitar o mundo pedeum sujeito autnomo ou agente consciente ca-paz de deliberar antes de agir e de julgar as aes.

    A tica pressupe a autonomia e a autono-mia feita, como aponta Marilena Chaui3, docontrole interior dos impulsos, inclinaes e pai-xes, da discusso consigo mesmo e com os ou-tros sobre o sentido dos valores e da capacidadede outorgar a si mesmo regras de conduta. Aautonomia estabelece uma relao problemticae problematizadora com os valores estabeleci-dos e hegemnicos num tempo e lugar, sem sub-meter-se ou subordinar-se cegamente a eles. Trspropriedades da pessoa autnoma, ainda segun-do Chaui3, merecem referncia: a responsabili-

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    dade por seus atos, a disposio para julgar suasintenes e a recusa da violncia contra si e con-tra os outros.

    A autonomia autodeterminao, significan-do que o reconhecimento do fim tico move aao tica e nunca a coao externa. A autodeter-minao, contudo, no se traduz pela desconsi-derao dos outros. Ao contrrio, julgamentossobre certo e errado, permitido e proibido oubem e mal so intersubjetivos, envolvendo o cui-dado com outros. Assim, contemplam-se as con-dies humanas da singularidade, com a auto-determinao e da pluralidade, com a intersub-jetividade. No possvel sacrificar os outros emnome da liberdade ou da felicidade de uns: osvalores aspiram universalidade. Ou, dizendode outra maneira, para a tica os fins no justifi-cam os meios quando eles sacrificam a liberdadeou a conscincia moral e no se espera que prin-cpios como a liberdade, a dignidade ou o respei-to sejam retirados de uns em favor de outros.

    A tica como modo de habitar o mundo pede,mesmo, a apreciao do mundo como sendo aprpria coexistncia humana. O mundo , tam-bm, a trama significativa de tudo que torna aterra habitvel para os homens. Por isso, a pes-soa tica inseparvel do cuidado com o mundo.Os modos de cuidar no so naturais e siminstaurados na e pela vida social e cultural. Damesma forma, a pessoa tica se faz na coexistn-cia, na intersubjetividade e na sociabilidade e osvalores e atitudes ticos no so, igualmente, na-turais, mas dependem da educao.

    Este argumento sobre a necessidade da edu-cao particularmente provocativo, pois faz pen-sar no quanto a tica em pesquisa no pode, nemdeve, permanecer restrita ao plano da norma, daregra e da lei ou ao plano exclusivamente jurdico.

    H inmeras concepes de educao e dis-cuti-las neste contexto iria requerer um desviodemasiado longo para os propsitos deste arti-go. Ento, pareceu pertinente recorrer a uma vi-so em particular que, justamente, entende a edu-cao em conexo com o tema do cuidado com omundo e da responsabilidade pelo mundo.

    Trata-se das idias de Hannah Arendt4, paraquem a educao uma prtica ligada ao fen-meno da natalidade, ou seja, ao fato de que seresnascem para o mundo. A educao, entregue aosadultos, tem a dupla tarefa de, por um lado, pro-mover o desenvolvimento dos jovens e, por ou-tro, zelar pela continuidade do mundo. Do edu-cador esperado que ele apresente o mundo emconstante mudana ao jovem e do jovem espe-rado que ele se torne responsvel pelo mundo,

    cuidando para que, com sua ao, o mundo seja,a um s tempo, preservado e renovado. Esta pers-pectiva, exposta de modo bastante sumrio, ar-ticula julgamento, escolha e responsabilidade. Naspalavras de Arendt4, a educao o ponto em quedecidimos se amamos o mundo o bastante paraassumirmos a responsabilidade por ele, salvando-oda runa que seria inevitvel no fosse a renova-o e a vinda dos novos e dos jovens. , ainda, paraa autora, a educao o ponto em que os adultosoferecem uma ordenao, um juzo, uma opi-nio, um posicionamento sobre os quais os jo-vens podem se apoiar para assumir sua respon-sabilidade de preservar e renovar o mundo.

    Esta digresso serve, talvez, para reforar quea educao pode ser o ponto a partir do qual umsujeito autnomo se forma. Esta formao su-pe, ao que parece, o contato com os valoresconsagrados, com a moral vigente numa socie-dade em dado momento histrico e o exercciode discutir, pensar e interpretar esta moral: su-pe este lugar em que a tradio e a disposiopara a renovao convivem e dialogam.

    A incapacidade para a autonomia a hetero-nomia que se traduz na incapacidade de dar-se asi mesmo a regra, a norma ou a lei. O indivduoheternomo depende de receber, de fora, a regra,a norma e a lei. Na heteronomia vige a passivida-de, contrria atividade exigida pela tica. As-sim, o indivduo heternomo pode respondersem pensar no diz ou faz, pode simplesmenterepetir algum ensinamento recebido e pode, porfim, viver uma espcie de alienao no apego au-tomtico e formal s ordens jurdica, ideolgica,religiosa, entre outras.

    As regras, normas e leis so necessrias vidasocial, coibindo a violncia, impondo limites econtroles ao risco permanente de violncia.

    H, no entanto, um problema central a serconsiderado no debate sobre tica em pesquisa:como evitar que normas e regras de conduta napesquisa se tornem dispositivos de evaso da res-ponsabilidade, da reflexo e do julgamento pr-prios do indivduo autnomo que forja a tica e por ela forjado?

    Aquela pergunta predispe a uma outra:como formar pesquisadores no esprito da ativi-dade tica?

    Para estas perguntas no existem respostassimples, nem muito menos certeiras, pois, comoensina Chaui3, a tica o campo de um saberprtico, recortado por deliberaes e escolhassobre o possvel e sobre aquilo que depende davontade dos homens: sua matria-prima sovalores e no fatos.

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    Existem, contudo, propostas de pesquisa ca-pazes de oferecer elementos fecundos para a pon-derao em torno da formao, tanto no terrenodas teorias metodolgicas quanto no das experi-ncias concretas de trabalho de campo.

    A pesquisa participante inspirada na antro-pologia interpretativa e no trabalho de campoetnogrfico, na medida em que retoma e proble-matiza as experincias fundadoras da antropo-logia moderna, abre lugar a duas temticas deinteresse para o debate sobre formao tica: aauto-reflexo e a alteridade. Trata-se de dois te-mas que enlaam a tica e a poltica das investi-gaes em que o pesquisador se desloca de seumeio para estudar um outro, prximo ou dis-tante, na sua prpria casa ou lugar. As liesdeste tipo de deslocamento continuam a rever-berar nas situaes de pesquisa em outras disci-plinas como a psicologia, a sociologia, a histriaoral ou a geografia. Delas possvel aproximar,tambm, as pesquisas das cincias sociais e hu-manas na esfera da sade.

    Pesquisa participante,auto-reflexo e alteridade

    A pesquisa participante comporta algumas ver-tentes metodolgicas diferentes, porm, aparen-tadas; todas, por continuidade ou ruptura, rela-cionadas com a matriz etnogrfica que, na viradado sculo XIX para o XX, legitimou a antropolo-gia e a etnografia como disciplinas cientficas.

    Termos como pesquisa-ao, pesquisa-inter-veno e mesmo o mtodo etnogrfico identifi-cam discursos e prticas de investigao que noesto circunscritos antropologia e sim perpas-sam vrias reas das cincias sociais e humanas,tais como a sociologia, as psicologias educacio-nal, social e clnica, a psicossociologia, a geogra-fia humana, a terapia ocupacional, a histria oral,a comunicao social, a economia, entre outras.Ao mesmo tempo, muitas destas reas j produ-ziram no interior de suas praxes ou em experin-cias interdisciplinares um saber acumulado so-bre sade.

    As diferenas e afinidades entre estas trs gran-des vertentes da pesquisa participante pesqui-sa-ao, pesquisa-interveno e mtodo etnogr-fico foram tratadas em detalhe em artigo pu-blicado por mim em 20065 e podem ser aprofun-dadas com a leitura de autores como Brando6,Rocha e Aguiar7 e Pereira8, entre outros. Para asfinalidades deste artigo, contudo, sero clarifica-das algumas referncias comuns para, em segui-

    da, tratar mais especificamente da etnografia in-terpretativa.

    O termo participante remete controvertidapresena de um pesquisador num campo de in-vestigao formado pela vida cotidiana de indi-vduos, grupos, comunidades ou instituies pr-ximos ou distantes. Esta presena do pesquisa-dor no campo encontra sua complementao noconvite ou convocao do outro indivduo,grupo, comunidade ou instituio para parti-cipar da investigao como informante, colabo-rador ou interlocutor.

    Na pesquisa participante, a relao entre pes-quisador e pesquisado pode aparecer diferente-mente, como os termos informante, colaboradore interlocutor, acima mencionados, apontam.

    Informante um termo da tradio etnogr-fica que ainda usado no s na antropologia ena sociologia como tambm naquelas reas quese aproximaram do mtodo etnogrfico maisrecentemente. Ele sugere um tipo de participaodo pesquisador e do pesquisado em que a con-duo da pesquisa, os objetivos e interesses, asformas de apropriao dos dados de observaode campo e de entrevistas e a produo de conhe-cimento so prerrogativas do pesquisador: o in-formante presta informaes. Maria IsauraPereira de Queiroz9, sociloga que, em nossomeio, foi e importante referncia nos estudoscom relatos orais, escreve com nitidez sobre estamaneira de conceber a participao.

    Colaborador indica uma repartio dos lu-gares de produo de conhecimento ou compre-enso no processo de pesquisa. Os objetivos einteresses so do pesquisador mas, em geral, h,no relato final da investigao, espaos para queos pesquisados falem por si, articulados que-les em que o pesquisador comenta e interpretaos achados do campo e das entrevistas. EclaBosi10, com seu clssico estudo de psicologia so-cial sobre o trabalho de memria de velhos, pro-porciona um interessante exemplo de pesquisaem colaborao.

    A figura do interlocutor evidencia uma reori-entao da tradio etnogrfica no contexto con-temporneo de estudos que focalizam a inter-pretao dos sentidos e significados de modosde viver, sentir e pensar que constituem a plurali-dade de mundos coexistentes e conectados naatualidade. Desta interpretao, os pesquisadosno esto excludos, tornando-se parceiros inte-lectuais dos pesquisadores na compreenso defenmenos e na elaborao do conhecimento. Oencontro etnogrfico, neste caso, objeto de cons-tante anlise crtica e lugar de negociaes e acor-

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    dos sobre objetivos, destinos, formas de divul-gao e autoria da pesquisa.

    Estas trs figuraes das relaes entre pes-quisador e pesquisado no representam qual-quer espcie de linha evolutiva e nem se apresen-tam de maneira to esquemtica como aqui ex-posto: so sinais de posies que convivem, for-mando o terreno plural da teoria e da prtica dapesquisa participante.

    possvel, no entanto, identificar uma certaradicalidade na ltima figurao, naquilo que dizrespeito necessidade constante de auto-refle-xo e de posicionamento sobre a alteridade.

    A experincia de Malinowski, consideradauma espcie de carta fundadora da antropologiamoderna e cientfica, pode ser lida, como faz Ja-mes Clifford11, pelo vis do lugar do mtodo que,por um lado, tenta forjar o pesquisador comoinstrumento legtimo e confivel de observao einterpretao da alteridade e, por outro, buscadominar e controlar o trabalho de campo, do-minando e controlando seus informantes emfavor dos objetivos da investigao.

    Porm, posteriormente, com a publicao dosdirios de campo de Malinowski12, foi possvelapreender com mais nitidez os tormentos e em-bates do pesquisador com os informantes que,longe de serem meros objetos, exibiam vonta-de prpria, resistncias e preferncias. Ao mes-mo tempo, foi possvel entender a luta do pes-quisador consigo mesmo para manter-se nte-gro moral e psicologicamente, durante o longoperodo vivendo com os trobriandeses, sem quasenenhum contato com europeus.

    O exemplo de Malinowski, valioso pelo car-ter fundador de sua etnografia, expe a alterida-de e a auto-reflexibilidade como dimenses, apa-rentemente, perfeitamente enquadradas pelomtodo cientfico, no sentido de que o mtodopermitia observar e interrogar o outro, elucidandoos significados e a lgica das concepes e prti-cas nativas e fornecia ao pesquisador uma pautade condutas e atividades metdicas, rotineirasou padronizadas. Mas, como mostra o angusti-ado dirio do antroplogo, as normas meto-dolgicas, quando confrontadas com a realida-de do trabalho de campo e com a presena con-creta e ativa do outro, tornam-se instveis, pre-crias5, insinuando que o interjogo de identida-de e alteridade na relao entre pesquisador epesquisados e a auto-reflexo do pesquisadorlonge de serem neutralizados pelo mtodo so,na verdade, dimenses constitutivas da pesquisaparticipante.

    A retomada da tradio clssica da antropo-

    logia, aqui representada por Malinowski, pelasantropologia e etnografia interpretativas, a par-tir dos anos 60 e 70 do sculo XX, traz em seubojo, entre outras coisas, a valorizao do outrono mais como exclusivamente informante mas,sobretudo, como colaborador e interlocutor comquem se procura parcerias para a construo doconhecimento e para a interpretao da cultura,convidando-o a uma atividade de elaborao in-telectual para alm da prestao de informaessobre seu universo de vida.

    A instabilidade ou a veloz mobilidade da vidasocial no mundo contemporneo desafiam oentendimento das cincias sociais e humanas.Para Marc Aug13, o mundo contemporneo feito de uma multiplicidade de mundos coexis-tentes e conectados, por onde passam relaesde sentido e imensas variaes de formaes iden-titrias e representaes de alteridade. Se a din-mica social no slida nem estvel, a tarefa desua interpretao tambm se torna um desafios teorias e mtodos consagrados nas cinciassociais e humanas. Ou, dito de outra maneira, ascrises do mundo contemporneo encontram suacontrapartida nas crises das teorias e mtodosde investigao das cincias sociais e humanas.Ou, dito de outra maneira ainda, responder aodesafio do conhecimento contemporneo impli-ca, para as cincias humanas e sociais, desalojar-se de eventuais lugares fixos e verdades estabele-cidas para instalar-se no corao da precarieda-de e da inconstncia que caracterizam a dinmi-ca social atualmente.

    Dessa forma, o encontro etnogrfico ou apesquisa participante inspirada na antropologiainterpretativa define-se como processo de cons-truo de conhecimento e, tambm, como pro-cesso de questionamento e elaborao do senti-do da prpria pesquisa em seu contexto singu-lar, situado.

    V-se que a atividade auto-reflexiva e a pro-blemtica do outro como objeto de interesse dapesquisa participante encontram um estatuto cla-ramente constituinte nesta perspectiva. As des-cobertas do trabalho de campo servem mais paratestar os limites e insuficincias das teorias con-sagradas do que para confirm-las e os pesqui-sados migram da posio de objetos de estudopara aquela de colaboradores e interlocutoresqualificados para construo do conhecimentosobre fenmenos sociais e humanos.

    Nesta viso conta, sobremaneira, o recursometodolgico a diferentes vozes e a conseqenteimportncia da memria, das histrias de vida edas biografias. Busca-se, freqentemente, a cons-

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    truo de discursos contra-hegemnicos, basea-dos no s na polissemia e polifonia em torno deum mesmo fenmeno, mas, tambm, na acolhi-da de formas do conhecimento do senso comume do saber popular.

    Concluindo, a incluso do outro como inter-locutor e a abertura para questionar as dimen-ses ticas e de poder do processo de pesquisaassinalam a pesquisa participante como dilogo,negociao e interlocuo culturais e sociais. Eladepende do interesse e do respeito genunos dopesquisador pelos sentidos e significados que seuinterlocutor atribui aos fenmenos estudados eda focalizao do processo de pesquisa comoprodutor de conhecimento. Ao considerar o ou-tro como parceiro, no s o processo de pesqui-sa passa a lidar com outras interpretaes dosfenmenos estudados, quanto se abre para refle-tir sobre as relaes de poder entre pesquisador einterlocutor ou colaborador e sobre o sentido e autilidade da investigao para ambos.

    Pesquisa participante de matrizetnogrfica, tica e formao

    Maurice Merleau-Ponty14, em texto originalmentepublicado em 1960, fala do trabalho etnogrficocomo a criao de um espao comum entre pes-quisadores e aqueles outros que se deseja conhe-cer, espao em que uns e outros se tornam mutu-amente inteligveis. Numa frase, para o filsofo,o encontro etnogrfico tem por tarefa alargarnossa razo para torn-la capaz de compreen-der aquilo que em ns e nos outros precede eexcede a razo.

    Clifford Geertz15, na mesma direo de Mer-leau-Ponty, define o objetivo da antropologiacomo sendo o de alargamento do universo dodiscurso humano e, tomando o trabalho de cam-po etnogrfico como prtica deste alargamento,sugere que o fundamental do ofcio do pesquisa-dor em campo, como experincia pessoal, situ-ar-se entre outros que lhe so estranhos.

    Estas duas referncias parecem suficientespara indicar alguns elementos pertinentes dis-cusso sobre formao tica.

    O primeiro elemento de carter geral a serdestacado , justamente, a implicao pessoal dopesquisador num movimento de aproximar-sede um outro que, no princpio, ele no conhece eno compreende.

    Aproximar-se remete experincia de situar-se que, por sua vez, constitui a pesquisa de cam-po. Esta forma, por assim dizer, faz coincidir

    mtodo e tica, esta ltima entendida como mo-rada ou modo de habitar. A compreenso, nestecaso, efeito dos movimentos de afastamento eaproximao do outro e de si mesmo. A com-preenso , ainda, construda no vai-e-vem derepresentaes ou de modos de viver, sentir epensar o outro e a si mesmo no encontro: o co-nhecimento que resulta do encontro , por isso,produto de posicionamentos e maneiras de seconduzir, envolvendo a atividade crtica do pes-quisador e do outro.

    A tica deste encontro pede a apropriao degestos e atitudes que, quando so embaraosospara o modelo metodolgico, tendem a ser omi-tidos ou excludos. Esta necessidade de apropria-o faz da pesquisa um experimento de auto-re-flexo e um local de articulao de diferentes iden-tidades/alteridades, tratando no s da compre-enso do pesquisador diante de um outro, mas,igualmente, deste outro diante do pesquisador.

    A produo de conhecimento sobre um fe-nmeno ou um tema acompanhada de efeitosde reconhecimento e desconhecimento de luga-res de identidade e alteridade, no interjogo deestilos de conhecer e interpretar o mundo vivido,de tal forma que a pesquisa sobre algo acumula,tambm, no par pesquisador/interlocutor, conhe-cimento sobre si, sobre o outro e sobre o proces-so de construo do encontro etnogrfico e suafuno ou utilidade para ambos.

    O segundo elemento a salientar, intimamenteligado ao primeiro, refere-se experincia decampo como sendo, em si mesma, formativa.

    O pesquisador participante precisa, claro,de educao terica e conceitual. Porm, assimcomo na esfera da tica como morada, a pesqui-sa de campo ou o encontro etnogrfico depen-dem, fundamentalmente, da experincia prtica.A experincia prtica convoca o pesquisador paraa reinveno do mtodo no plano concreto dasrelaes com outros, como ele, autnomos, obri-gando-o a responder pessoalmente pela distri-buio democrtica dos lugares de escuta, fala eao no decorrer da pesquisa, pelas formas deapropriao e destinao do conhecimento ela-borado e pela apreciao crtica de efeitos de do-minao e de emancipao do conhecimento esua divulgao5.

    V-se, pois, que a formao do pesquisadorparticipante enseja a formao tica, num movi-mento de mtuo pertencimento: a forma de pes-quisar que se traduz no mtodo , nesta circuns-tncia, morada, modo de habitar.

    Princpios e valores, nesta concepo, estoinscritos nas bases tericas, nos objetivos, na

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    metodologia e nos procedimentos de um projetode pesquisa. Isso que dizer que a tica do pesqui-sador perpassa todas as fases do processo de in-vestigao e, mesmo, o engaja numa responsa-bilidade que se desdobra e segue depois de con-cluda, formalmente, a pesquisa.

    Consideraes finais

    O conhecimento na rea de sade tem se benefi-ciado de um conjunto interessante de pesquisasde cunho qualitativo sobre, entre outros temasrelevantes, a implementao de polticas pbli-cas, as representaes de sade e doena, as for-mas de cuidado e as diferenas culturais, as di-menses psicolgicas, sociais e culturais presen-tes nas maneiras de aderir ou recusar tratamen-tos, cuidados preventivos ou aes de cidadanialigadas promoo de sade, o trabalho multi-profissional e interdisciplinar.

    A pesquisa participante de inspirao etno-grfica oferece-se como um campo possvel deformao em que o aprendizado da teoria e domtodo de investigao est indissociavelmenteligado formao tica. Os temas da sade quemerecem uma abordagem etnogrfica so, poressa razo, um territrio propcio formaotica, unindo o ensino terico aprendizagemexperiencial que advm, principalmente, do tra-balho de campo.

    A proposio de experincias iniciais de pes-quisa etnogrfica ainda nos cursos de gradua-o, em disciplinas de treino de pesquisa ou emprojetos de iniciao cientfica, pode contribuirpara a formao tica. O enquadre das institui-es de ensino superior, circunscrevendo um es-pao protegido para a experincia do aprendiz,por meio da orientao e de grupos ou seminri-os de discusso, fecundo para a reflexo queantecede e acompanha todas as fases de uma pes-quisa etnogrfica, constituindo, simultaneamen-te, o modo de pesquisar ou mtodo e sua tica.

    O deslocamento do pesquisador em direoao universo de vida de um outro, prximo oudistante, , muitas vezes, geogrfico: outra cidade,outro bairro, outra instituio, enfim, outro lu-gar. E, , ainda e principalmente, a disposio paramobilizar seus modos prprios de viver, pensar esentir para encontrar e compreender modos pr-prios de viver, pensar e sentir de um outro.

    Estes deslocamentos tm em sua origemmotivos ticos que do sentido e direo ao dese-jo de pesquisar. O encontro etnogrfico requer, verdade, certas atitudes de partida para que ele

    tenha alguma chance de acontecer. Enumera-se,de forma esquemtica, algumas destas disposi-es, cuja apropriao e metabolizao depen-dem do trabalho constante de reflexo sobre amatria concreta de cada trajeto de pesquisa.

    Convm lembrar que as atitudes so apre-sentadas como um ponto de partida e de apoiopara o debate e no como receiturio a seguir,renovando o convite sua apropriao e meta-bolizao nas situaes concretas de pesquisa.

    Atitudes de interesse para a formao ticado pesquisador:

    1. Busca de interlocuo e dilogo no traba-lho de campo, visando compreender o sentido eos significados da experincia de outros prxi-mos ou distantes.

    2. Distribuio democrtica de lugares de es-cuta, fala e deciso entre pesquisador e colabora-dores ou interlocutores.

    3. Disposio para negociar e refazer os contra-tos ou pactos de trabalho compartilhado entrepesquisador e colaborador sempre que necessrio.

    4. Empenho no esclarecimento, fidelidade,respeito e solidariedade s formas de viver dese-nhadas pelos colaboradores e cuidado em suatranscrio em texto.

    5. Embora os efeitos polticos e ideolgicosda divulgao e recepo de uma pesquisa nopossam ser planejados ou controlados pelo pes-quisador, a anteviso e a ponderao destes even-tuais efeitos podem fazer parte do horizonte depreocupaes presentes no momento da escrita,direcionando escolhas sobre o qu, como e paraquem escrever.

    6. Abertura para sempre que possvel e comoatitude metdica da pesquisa de campo realizarreviso conjunta com os colaboradores de trans-cries de relatos orais e de observaes, bemcomo de textos interpretativos.

    7. Atribuio de crditos, por ocasio de publi-caes, aos colaboradores, bem como uso de no-mes prprios de narradores e interlocutores quan-do eles assim desejarem e omisso sigilosa de no-mes e outras informaes que possam identific-los quando eles assim preferirem ou precisarem.

    8. Discusso de formas de divulgao de re-sultados de pesquisa que possam interessar aoscolaboradores.

    Como se v, trata-se de disposies cuja rea-lizao depende do trabalho de pensamento e daescolha e do posicionamento do pesquisador emsituao. A adeso a esta pauta de atitudes noantecede a pesquisa concreta que ele realiza, ano ser como inteno, mas consubstancia-se ouno no processo mesmo de pesquisar.

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    Artigo apresentado em 29/06/2007Aprovado em 03/09/2007Verso final apresentada em 22/10/2007

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